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~. ---., \ \ ,•... ~ Etica e Filosofia Renato Janine Ribeiro * 1 i I 1 Nesta exposição não vou definir exatamente o que é ética, o que é cidadania'. Vouprocurar discutir questões em tomO de um fato que inaugura, praticamente, a;, década de 90 no Brasil. Éum Clamor forte pela ética na política. Isso fi~ou muito evidente no governo Collor. Um presidente. da República foi acusado de corrupção e acabou sendo destítuído do seu cargo depois de um processo político, porque levado I adiante no Senado Federal, e, quase penal, porque, ide qualquer forma, um processo por crime, no qual ele foi condenado. Isso, na história dd Brasil, foi um momento importante, , I porque significava que, pela primeira vez, era possível: 1) retirar do poder uma pessoa que havia delinqüido; 2) fazer isso de maneira instítucional, dentro do respeito à justiça tal como ela existe. Fazer aplicar um valor ético essencial, que é o da honestidade. Podemos dizer que cresceu, na época, o movimento pela ética na política. Talvez sejam vários movimeritoscoril esse nome. O fato é que se espraiou, pelo País, uma consciência de que a coisa política requ'eria um tratamento ético. Um desdobramento muito visível disso foi o movimento contra a fome, conduzido pelo Betinho, e uma série de outros que tomaram a questão da cidadania com bastante empenho. Esse é um dos traços marcantes da nossa década. Não é o único, e não podemos dizer que todos os traços marcantes da nossa década vão nessa direção. Outros como a luta contra a inflação vão, talvez, em outra direção. A primazia da política econômica brasileira não é de natureZa ética. ' Dado que estamos levantando a questão da ética e da cidadania, acho que o ponto de partida adequado é pensar a questão da ética na política e esse momento notável da cidadania brasileira, 'que ocorreu há seis anos, quando um presidente foi destituído por corrupção. Ora, essa luta contra a corrupção talvez seja o ponto relevante pelo qual a ética ingressa na política. Vou expor, primeiramente, o que seria ética na política. Nà verdade, vamos ter duas ou três partes nesta exposição. Estou começando por uma exposição mais • Professor de Filosofia - uSP, , Extensão, Belo Horizonte, v, 9, n, 3D, p, 9-27, dez, 1999 I' J 10 I favorável ao movimento pela ética na pdlítica, mas depois, vou fazer algumas objeções. O que significa lutar pela ética na polític~? Significa, antes de mais nada, combater o pa- trimonialismo. É um termo que entrou em voga no Brasil por volta dos anos 50, 60 e ad- quiriu o sentido quase de um conceito explicativo da política tradicional brasileira. O pa- trimonialismo consiste essencialmente em considerar a coisa pública como um patrimô- nio privado. Patrimônio é um termo que~ literalmente, indica aquilo que nos vem do pai, aquela propriedade que nos foi legada {ior nosso pai. Portanto, propriedade hereditária, que se incorporou de maneira decidida e, mais do que isso, definitiva ao patrimônio da I farmlia. Em certas legislações medievai~, o patrimônio era inalienável, ou seja, não podia ser vendido nem doado. Só podia ser trknsmitido no interior da farmlia. I Converter a coisa pública em patrimônio privado é um delito muito grave sob I esse ponto de vista. Significa retirar a cbisa pública de sua característica de pertencente a todos e convertê-la em propriedade hereditária de.um grupo, de uma família etc. Isso, que em linhas gerais assim se explica facilmente, é algo um pouco mais complexo, quando a gente vê na prática. Vou dar um exemplo, que é muito constante no Brasil colonial, e queem,Minas deve ter ocorrido C0m muita freqüência. No Brasil colonial, nem sempre ,.'--, . - 'o, I - . o Estaçl()d1,cidad~ou:a .vil~possuíam r~cursos para fazer face às necessidades públicas. - - - I Muitas vezes acabava acontecendo queiuma pessoa rica utilizasse parte de seu dinheiro para, por exemplo,; cal,çar um caminho, pagar alimentação da cadeia ou para consertar o • - • - I prédio da Câmara. Essa doação acabavaitrazendo uma cobrança, porque a pessoa que ha- viac,o~oçadocoisa sua no patrimônio público passava a encará-lo também como seu, em part~.,si ,um ,~amiliar ou uma pessoa próxima fosse presa, ela pediria que a soltassem e, teria, ob.:v.i~mente,.tJ:mcertocrédito junto ao poder público. ; , O~quivalen!ed~sso hoje é, por exemplo, quando um carro de polícia quebra. Como o p9,d~~ppblic() não!tem dinh~iro para c<;msertá-Io,um mecânico o faz de graça. Um dono de posto de gasolina doa gasolina para ,ocarro, colaborando com a polícia. Na hora em q~.~~~Hy~riu~~ p~qllY~~infração, ou até uma grande infração cometida por essa pessoa ou um próximo dela, ela,vai querer que a polícia encare isso com os olhos mais amistosos • ' '. • • - ••• ". ~. _'''." _~ •• ' 0'- , '. . I doque;~e f,()ssélllTI'!-Ínfração cometida por uma pessoa que nunca colaborou . .,<:;':.,Y;Qcê.s.P9,d~mvercomo a questão do patrimonialismo é complexa. Não é simples- mente oç,aso da g~ande corrupção, da corrupção visível, evidente, que ocorre, por exem- plo, quando um presidente daRepública passa a cobrar comissões altas para cada negócio queo E~~p.oJ~z.Corrupção pode ocorrer nessa pequena dimensão. Nessa indistinção da coisa púl?lica e do patrimônio privado. Esse é um dos problemas sérios que temos tido no Bra~il.:O combateao,p~trimonialismo a.parece, hoje, como uma bandeira essencial de to- do e qualquer movimento que queira recuperar ou constituir um caráter realmente público do Estado brasileiro. O combate pela éÚca na política não é apenas uma luta contra o pa- ,'; ,I trimo~ialismo. É tambéll1 úIl1ahfta contra a corrupção. Ora, o termo cbrrupção exige que a gente,seja um pouco específico a esse respeito. Por alguma razão que eu lamento, a cor- rupção, no correr do século XX, passa a se tomar um conceito que se refere muito mais ao roubo do patrimônio. Muito mais um crime contra a propriedade do que outra coisa. Extensão, Belo Horizonte, v. 9, n. 30, p. 9-27, dez. 1999 -----------,---- . Hoje, quando pensamos em corrupção, nós pensam9s essencialmente em alguém que co- loca no bolso dinheiro que não lhe pertence, dinheir~ público ou dinheiro de algum grupo, mas geralmente um dinheiro público, que é furtado por alguém que dele se apodera. Ora, essa idéia de corrupção, ela própria, é uma idéia um pouco decadente, um pouco simpli- ficada de uma idéia muito mais forte que nos vem desde a Antigüidade. A idéia de corrupção, desde a Antigüidade, se refere, não tanto ao furto do bem pú- blico, mas sobretudo à corrupção dos costumes. Quando se discute a República em Roma e se diz que'a República está corrompida, a idéia essencial não é que as pessoas estão pon- do dinheiro no bolso; A idéia essencial é que os costumes de honestidade, de recato, de respeito, estão se perdendo. Eé porque esses costumes de respeito estão se perdendo que ocorre0 furto ao patrimônio público. Ou seja, o furto contra a propriedade é decorrência de algo muitomais.central. Para a República funcionar como tal, é preciso haver uma série de costuines que.atestem o respeito aos outros. E se esses cost\lmes se perderem, a Repú- blica vai se perder. Eao termo disso, nós vamos ter a corrupção . .A temática dá.corrupção é altamente moral. Às vezes, até moralista, porque muitos autores que lamentam a corrupção dos costumes ao longo dos tempos apontam, por exem- pIo, o fato ~eque;as.mulheresnão estejam ~ais dentro do lar, cuidando pacientemente das suas.fáIm1íasj,obedecendo devü::lamente a seus maridos e pais. Na história,.corrupção muÍtasvezes designou mais isso do que o furto dO bem comum. É um termo já com- plicado. Talvez a gente devesse recuperar a idéia de corrupção de costumes sem esse ran- ço moralista: .' ' . '. Estou querendo, desde o começo, assinalar esse aspecto um tanto ambíguo daquilo. . . que.diz respeito à ética.' para que não façamos simplesmente uma exposição no sentido dad;efe~a da ética contra o patrimonialismo e a corrupção, porque, às vezes, as coisas po- dem ser; um pouco .maisco~plicadas. Podemos dizer, em linhas gerais, quea preocupação com a ética na política foi por essa via;)Ela' trouxe; tambén,t.; uma série.de preocupações adicionais, que poderemos re- sumir no .seguint~: como faiercom que a ética melhore a qualidade não só da nossa po- lítica, mas taIT,lbémda nossa legislação ?Como fazer que certas leis, certas regras que exis- tem, masque são tidas como injustas, sejam corrigidas? Vou dar um exemplo. Nalei bra- sileira, existem os crimes de calúnia,' injúria e difamação. Não é o caso de detalhar exa- tamentea diferença,de um para outro: Oque temos com esses três crimes é o fato de que consistem em. imputar a alguém uma coisa desonrosa. Pode chegar a ser um crime, pode sermais,leve. que:ümcrinie ..Nostr~s casos, quando eu imputo falsamente a uma pessoa uma co~dutadesónrosa, eumesmo estou cometendo um crime. O caluniador é aquele que afirmaque'UIua pessqa,cometeu um crime, mas nã?, tem provasdissó.Se o crime é acusar alguém falsamente de. ter cometido um crime, é evidente que não se calunia uma pessoa. quando se diz que ela cometeu um crim~ ejssp,de fato, ocorreu. Ou seja, se sou acusado deter matado alguém e processo meu acusaaoracusando-o de caluniador, o suposto calu- niador pode se defender. E a melhor forma que ele tem de se defender é dizer: "Mas de fato ele matou a pessoa" "ou roubou isso, ou fez tal coisa". Isso se chama prova de verdade. 11 :"~ . \ . 1.~ ,- . ~,<-,- Extensão, Belo Horizonte, v. 9, n. 30, p. 9-27, dez. 1999 12 Quando uma pessoa está acusando outra de um crime, isso é calúnia, a não ser quea acusação seja verdadeira. Nesse caso, o suposto caluniador pode provar a verdade doque ele diz. Há uma única exceção que a lei brasileira prevê: o caso em que eu não posso provar que a pessoa cometeu um crime, em que a prova de verdade não vale. Mesmo que eu acuse verdadeiramente essa pessoa, estou caluniando e posso ser condenado a uma pe- na por causa disso. É quando eu acuso o chefe de Estado brasileiro ou estrangeiro. Se eu acuso o Presidente da República de ter cometido um crime, sou caluniador, mesmo que seja verdade que ele cometeu o crime. O que as pessoas esquecem é que não é só o Presi- dente da República do Brasil que tem esse privilégio. Todos os chefes de Estado estran- geiros têm o mesmo privilégio. Se algum jornalista cometer o desatino de acusar o chefe de Estado do Iraque, o presidente Saddam Hussein, de cometer tais ou quais crimes, ele poderia ser processado, acredito que pelo Ministério Público. E não poderia provar que eventualmente Saddam Hussein tenha cometido osçrimes. Vocês vêem, essa lei não é muito aplicada. No caso dos chefes de Estado estrangeiros, pelo menos, eu não conheço a aplicação. Do contrário, boa parte das redações de exterior dos jornais brasileiros estaria na cadeia ou teria sido multada; não,sei exatamente qual é a pena. Vejam que essa exceção que favorece0 chefe de Estado é uma exceção absolutamente imoral. Ela é absolutamente não-ética, porque estabelece um privilégio inadequado. E isso é tão ~isível que o"redator do Código Penal (durante a ditadura Vargas) não teve coragem de dizer com todas as letras algo assim: "constitui crime de calúnia acusar o Presidente da República de um crime que ele tenha de fato cometido". O legislador não teve coragem de dizer isso; no fundo, é o que alei diz. Então, o que estabeleceu? Ele diz algo assim: "N~ caso do artigo tal, pode- se provar a verdade do ato praticado, exceto quando se referir às pessoas referidas no in- ciso tal do artigo tal"; Vocês vêem que é uma redação feita para esconder a coisa. O próprio legislador sabi(\ que estava fazendo algo que não era honesto. E essa é uma lei que está sendo 'mudada no Congresso . .Podemos dar outros exemplos de mudanças na legislação, em função de um clamor ético. Desse ponto de vista, a ética tem uma importância muito grande para mexer não só na política, mas também na legislação. Quero inicialmente desenvolver um pouco o cam- po dos códigos de ética. Um campo grande de trabalho, hoje, da questão ética, são os Có- digos de Ética: Código de Ética geralmente existe nas diversas profissões. Temos Códigos de Ética demédico, profissionais da saúde, advogados, engenheiros; Muitos conselhos re- gionais ou conselhos federais têm os seus Códigos de Ética, que também mudam ao longo dos tempos. O grande problema do Código de Ética é que geralmente ele é um código para proteção das pessoas da profissão. Os códigos se originam numa idéia antiga, numa idéia medieval, podemos dizer, segundo a qual quem melhor controla a qualidade de uma cor- poração é a própria corporação. A corporação dos ourives, na Idade Média, ~ra mais ade- quada para controlar a qualidade das jóias que fossem produzidas porq~e ela própria tinha todo o interesse de que as jóias fossem produzidas com qualidade. Podemos dizer o mes- mo para outras corporações que muitas vezes referem-se a profissões 'que até já deixaram de existir, mas que controlavam, de alguma forma, a qualidade da produção da área e Extensão, Belo Horizonte, v. 9, n. 30, p. 9-27, dez. 1999 /..--. " .•..•.•5feli'et'i1-r )g .••.il "" '-';: --- R" . t ••'"rl1«' .;:;. i <- / ' . ,...----------- - --- - ------~-----,------------------------------. . ~>: \' 1 J eventualmente a qualidade, a conduta moral dos seus membros. Ora, modernamente, essas corporações são extremamente protetoras do seu próprio grupo. Sabemos que, até algum tempo atrás, era muito difícil alguém ser punido pela sua própria corporação por ter cometido algum delito. O grande exemplo disso são as polícias militares. As polícias militares julgam, elas próprias, os delitos cometidos por seus mem- bros. Sabemos que elas são muito rigorosas. Os Tribunais de Justiça Militares estaduais são muito rigorosos com delitos da gravidade, por exemplo, de não prestar continência ao superior, andar com o uniforme em desalinho, desrespeitar uma ordem. E são muito mais complacentes com delitos mais "leves", como matar um civil, pelos quais muitas ve- zes as pessoas são absolvidas. Esse é o problema. Vocês vêem aí exatamente em que con- siste o espírito da corporação. O espírito da corporação é contrário ao que está fora, é o espírito de uma ação interna. Vai ser penalizado aquilo que prejudicar a coesão interna, que no caso de uma polícia militar é altamente hierárquica. Porém, com o outro que está fora, ninguém tem o menor respeito. Não é porque a polícia militar ou os médicos existem em função dos cidadãos ou dos pacientes que eles vão ter algum respeito adicional àqueles que estão fora da corporação. Uma das coisas que vemos em nosso tempo é a necessidade de reformar. os Códigos de Ética e, de modo geral, o sistema de punição interna, de con- troleinternode uma corporação sobre seus membros. Já temos alguns avanços "nessa di- reção. Eu observaria dois pontos importantes em qualquer Código de Ética ou código de controle interno corporativo. O primeiro ponto é exatamente romper com o caráter corpo- rativista desses códigos ou dessas legislações internas. Há uma tendência forte das corpo- rações a encobrir.a desonestidade ou os desmandos dos seus próprios membros. A única saída para isso é fazer com que qualquer apuração seja pública. É reduzir a dimensão das apurações em segredo e aumentar o caráter público'da apuração. Há certas sanções nos conselhos regionais, como o de medicina, que são reservadas. Não são publicadas. Não sei qual a importância ea' necessidade disso, não sei se é correto ou não. Em princípio, aquilo que não é público é um pouco duvidoso nesse tipo de controle. Mais do que tomar público, é importante que o controle se dê por ação de elementos externos ao grupo. É o que um professor venezuelano chama "avaliação por ímpares". No mundo acadêmico, fa- la-se muito em avaliação por pares. Ele propõe a avaliação pelos seus ímpares. A avalia- ção pelos seus pares é avaliação pelos iguais. Professores de Filosofia seremos controla- dos por professores de Filosofia; PMs por PMs, médicos por médicos~ O que ele sugere é uma avaliação justamente feita para desequilibrar essas corporações.É chamar gente de fora para que haja um certo tipo de controle. Isso é uma idéia, a meu ver, revolucionária, porque, há guasemil anos, a idéia do julgamento pelos pares é tão importante que até ser- viu de base para essa grande invenção inglesa que é o júri: o julgamento pelos pares. A idéia dele é criar,exterioridades que permitam julgar. Parece-me muito interessante esse ponto, porque ele evita essas redes de interesses, de compromissos, que tendem, a surgir dentro de um grupo, colegiados, órgãos acadêmicos, todos os lugares; falo isso como pro- fessor, o mundo que conheço é muito assim. 'Extensão, Belo Horizonte, v. 9, n. 30, p. 9-27, dez. 1999 ...... <:;".----~----~_.~------~~---- 13 14 Uma segunda mudança importante num Código de Ética ou em procedimentos éti-tcos é a necessidade de equilibrar ou compensar as desigualdades. Vivemos numa socie-dade desigual. Mesmo que tornemos o Brasil uma sociedade mais justa, certas desigual- dades sempre vão existir. Desigualdades que podem ser, por exemplo, de situação. Quan- do alguém vai defender uma tese (para citar um exemplo bastante acadêmico) há uma de- sigualdade entre o candidato e os membros da banca. Os membros da banca têm poder. O candidato não tem tanto. O candidato tem o seu momento de glória e felicidade, e os outros estão gravitando à sua volta, leram o seu trabalho. O que é importante notar nessa questão é que existe uma relação de poder. O que isso implica? Implica que os examina- dores devem tomar um certo cuidado. Eles não podem ser prepotentes, não podem utilizar o poder deque estão investidos para, de alguma forma, abusar do candidato~ Por exemplo, não tem cabimento, num concurso, o examinador perguntar ao candidato: é verdade que você é ladrão? É verdade que você superfaturou recursas? Isso não é correto, porque ele estaria exercendo 'o seu poder sobre outra pessoa. Qual éa idéia que está por trás desse equilíbrio, dessa política compensatória de desigualdades? É aidéia de que quem t<tmpoder, na verdade não tem poder, apenas detém poder, ocupa poder, segura o poder por um momento eem nome de outros. Se um pro- , fessor tem poder sobre seus alunos, se um oficial tem poder sobre seus'soldados, se, de, alguma forma, qualquer que seja, alguém tem poder sobre outrem, esse poder não é pro- priedade dele, hão é algo que lhe per.tence de maneira definitiva, não é sequer algo que lhe pertence. É algo que ele tem provisoriamente em função de interesses e valores mais amplos. Isso fica bastante claro quando a gente pensa na liberdade de imprensa, grande exemplo de uma liberdade exercida por alguém em nome de outros. Quem se beneficia da liberdade de imprensa são, geralmente, os jornalistas, ou os empresários da imprensa. Em certos casos; serão os jornalistas; na maioria dos casos, os empresários da imprensa. Por isso, alguns dizem que não há liberdade de imprensa, mas liberdade de empresa. Essa liberdade sÓtem'sentido se se levar em conta que o titular da liberdade de imprensa não é_ojornalista, não é o empresário. É a sociedade. A liberdade de imprensa é uma liberdade dasociedadé. Ela corresponde ao direito que tem uma sociedade de ser bem informada, de receber informações confiáveis, verídicas, mesmo que opostas entre si. Mais verídicas possíveis no plano dos fatos e mais variadas possíveis nos planos dos valores e das opi- niões. O jornalista ou o dono de jornal estão desfrutando desse direito quando, tendo llma informação importante, não são obrigados a revelar sua fonte;'quando não pode ter sua publicação censurada ou apreendida. Elese beneficia desse direito, mas não é dono do di- reito. Essa situação interessante de uma liberdade ou de um direito é desfrutada por al- guém, mas não é dele. Não pertence a ele. Acho que isso vale perfeitamente para a idéia de poder. No caso do examinador, ele está apenas exercendo esse poder, temporariamen- te, em nome de outros. Por isso, é interessante que as posições de poder sejam alvo de re- vezamento, que não haja a conservação permanente das mesmas pessoas nos cargos de poder. Porque é justamente esse revezamento que mostra que as pessoas estão entrando Extensão, Belo Horizonte, v. 9, n. 30, p. 9-27, dez. 1999 <.. l' : crJ:;'ffl.';"'$"i's,...,,>:r:>;':.~-fz::i#~ ."t1.-iM~#"*?iáCit.--" ~.~ "(e ..-z."d;,;.;rmJ~~f~:' O. , /, .. I '7 I, ,o,'I, I ' ,I I r I 1 . e saindo do poder porque, na verdade, nunca o poder é delas. Não é que a pessoa teve o poder; o verbo ter indica propriedade, ser dono de. Não é que a pessoa teve o poder e per- deu o poder. Mesmo quando ela exerceu o poder, o poder não era dela; o poder era con- fiado a ela. Há um conceito jurídico muito interessante para designar isso - o conceito de depósito - que usamos quando dizemos que alguém é fiel depositário. O fiel depositário tem em suas mãos um bem, ele pode eventualmente desfrutar desse bem; não precisa, ne- cessariamente, guardar o bem intocável, sem mexer nele. Esse bem que ele tem em suas mãos não pertence a ele, é algo que pertence a outras pessoas, e de que ele faz uso provi- soriamente. Mesmo que o provisório dure muito tempo e acabe se tomando definitivo, o fato é que nunca isso é propriedade dele. Então, se pensamos que o poder é propriedade de alguém, se pensamos a história brasileira, da qual Raimundo Faoro tratou num livro famoso, como a história dos Donos do poder, se vemos atitudes daqueles que consideram o poder como propriedade sua, estamos tratando do ~buso do poder, não de outra coisa. Se um policial, que anda armado, que está autorizado pela sociedade a andar arma- do, é insultado, ele não tem o direito de'usar a arma só porque ouviu uma ofensa. Ao con- trário do que ocorre no País, é justamente o fato d~ estar armado que exige por parte dele um comedimento maior. Ele tem mais poder; no caso dele, eu diria mais força, porque está armado com revólver, que póde facilmente matar uma pessoa. Por isso mesmo, ele tem que .usar de mais circunspecção, de mais cautela do que as pessoas que estão lidando com ele. Pode parecer paradoxal, mas a conseqüê~cia dessas proposições que estou adian- tando é justamente esta: quanto mais poder uma pessoa tem, quanto mais força uma pes- soa tem, mais ela deve ser capaz de aceitar até mesmo um certo nível de desafQro sem re- vidar com toda a força ou o poder que possui. Não quer dizer que ela tenha que levar de- saforo para casa. Não estou defendendo necessariamente isso. Mas ela não pode usar a for- ça e o poder que possui, qu~ são desiguais em relação ao outro, quando ela é de alguma forma insultada. Um Código de Ética deve procurar reduzir as desigualdades. Ora, há dois tipos de .desigualdades~ há desigualdades conjunturais e desigualdades estruturais. Os exemplos que eu dei foram basicamente de desigualdades conjunturais. Uma pessoa está exercendo um cargo de poder, mas não vai tê-lo para sempre. Ela pode não ser reconduzida ao cargo, não ter condições de permanecer nele. Pode haver uma rotatividade no caso de um man- dato, de um cargo eleito. Uma pessoa também pode estar numa situaçãq de poder pura- mente momentânea, como no exemplo dos membros de uma banca examinadora. Passado o curto momento que dura o exame ou concurso, ou a defesa da tese, essa pessoa não tem mais poder sobre as outras. Agora ela tem que respeitar, tem que levar em conta essa de- sigualdade e ter respeito aos que estão conjunturalmente abaixo dela. Há desigualdades mais fortes: as estruturais. Uma desigualdade estrutural existe quando grupos sociais são tradicionalmente ?primidos por outro. Grupos sociais.quetra- dicionalmente padecem de situações adversas para conseguir realizar aquilo que deseja- riam fazer. É muito visível a que grupos poderíamos estar nos referindo. São distinções sociais que levam em conta os mais pobres, sobretudo, numa sociedade tão desigual so- Exten,são, Belo Horizonte. v, 9, n. 30,p. 9-27, dez. 1999 15 L. ..".I I I 16 cialmente quanto a brasileira. São desigualdades sociais que se referem, na sociedade bra-sileira, aos negros e aos índios. Também dizem respeitoà diferença entre os sexos, ou parausarmos o termo mais recente, entre os gêneros, e que fazem com que as mulheres, de for- ma geral, tenham certas dificuldades a mais que os homens, no mundo do trabalho e mes- mo no das relações sociais. Tudo isso significa que pessoas que eventualmente nasceram com uma disposição genética que as faz brancas, em vez de negras, homens em vez de mu- lheres, ou que tenham o acaso social de nascer numa família mais rica ou pelo menos de classe média, se beneficiam de vantagens significativas em relação a outras. Aí a exi- gênciaética é justamente que essa desigualdade seja compensada. Toda e qualquer polí- tica social somente serájusta se partir desse ponto de vista de que não estamos numa socie- dade em que todos são, por princípio, iguais. Estamos numa sociedade na qual muitos pa- decem os efeitos da desigualdade e necessitam, portanto, de um esforço adicional para conseguir vencer a desigualdade. Isso foi o que levou, nos Estados Unidos, a uma iniciativa muito interessante, que hoje está sendo destruída, a da ação afirmativa. A ação afirmativa é a ação que procura adotar medidas compensatórias fortes para favorecer aqueles grupos historicamente dis- criminados. Se constatamos que historicamente os negros foram discriminados e tiveram ~condições de avanço econômico e social muito inferiores às dos brancos, yamos procurar melhorar as condições de acesso dos negros ao emprego, à universidade, à saúde etc. Essa é uma das maneiras de lidar com isso- vamos criar cotas. Por exemplo, vamos ver quantos negros há percentualmente na socit~dade e garantiremos a esse percentual de negros a uni- versidade, a função pública, talvez até empresas privadas. Evidentemente, isso significa uma injustiça, se pensarmos de um ponto de vista de indivíduos. Isso quer dizer que um negro com nota 17 (usei 17 para não pensarmos de Oa 10, podemos pensar de Oa 27, no que quiser) pa~sará à frente de um branco com nota 20. Significa isso, sim. Significa, tam- bém, que a sociedade se convence de que, se ela não fizer isso, sempre os brancos terão mais facilidade de ter nota 20 ou 21 ou 22 do que um negro ter nota 17. E que para um negro ter nota 17 pode ser socialmente mais difícil e mais raro do que para um branco ter nota 20. Portanto, há um elemento de justiça nisso, que é muito forte. O mesmo pode valer para mulheres ou para grupos étnicos ou sociais dos mais variados. Écurioso que nos Estados Unidos há certos lugares em que grupos minoritários, por causa do seu perfil de sucesso (eu me refiro sobretudo aos orientais) não precisam ser prote~idos. Ao contrário, fala-se na Califórnia em proteger os brancos contra os asiáticos, porque os asiáticos estariam pe- gando tantos lugares bons na universidade, nos empregos e nos concursos que teriam pas.:. sado à frente dos brancos. Éclaro, não é por uma discriminação; ao contrário, os asiáticos .foram discriminados e tiveram outras. condições de esforço. A ação afirmativa se justifica eticamente, então, porque ela é uma maneira de compensar essa desigualdade; é uma ma- neira de considerar que a desigualdade está historicamente dada. 9Uy a desigualdade não ocorre apenas entre indivíduós livres. Cada umse esforça de tal e qual maneira, mas a desi- gualdade retoma todo o passado das pessoas e dos grupos sociais.á que elas pertencem. A desigualdade está articulada com todo esse passado e ela faz, portanto, que as pessoas Extensão, Belo Horizonte, v. 9, n. 30, p. 9-27, dez. 1999 , rI') :"l ~...J ~.; .~ I estejam historicamente mais ou menos habilitadas para disputar uma determinada po- sição. Nessa parte inicial, o que eu visava era justamente mostrar como podemos tomar mais éticas a política e a legislação. Quero fazer a crítica a essa postura, não criticar cada ponto do que eu disse, mas ape- nas indicar as limitações dessa postura inicial. Não vou negar o que afirmei até agora; há, na própria idéia de código de ética, uma contradição entre os dois substantivos que temos aÍ. Um código pode ser ético ou não? Porque um código, afinal de contas, é uma lei. Um código pode ser uma lei editada pelo Estado - Código Penal -, uma lei baixada por um conselho regional ou federal, que não é exatamente o Estado, embora esteja ligado ao po- der público. Mas tem uma autonomia: é escolhido pelos filiados àquela profissão. Tanto no caso do código votado no parlamento e sancionado pelo presidente quanto no caso do código de ética de médicos ou dentistas, ou advogados, estamos diante de regras social- mente estabelecidas, que prevêem sanções. Ora, regras assim estabeleéidas, que prevêem penas para quem não as cumprá, são obedecidas por quê? Geralmente, porque são apenas para quem não as cumpre. Podemos dizer que as pessoas obedecem a essas regras porque elas acreditam nelas? Não sabemos. Podemos dizer-que o fato de as pessoas cumprirem essas regras, por mais éticas que sejam, esse próprio fato é ético? Não sabemos. Podemos dizer que certas ações são éticas, ou que certas ações são melhores do ponto de vista étiêo. Contudo, em última análise, a questão ética não diz respeito às ações, e sim às pessoas que as estão cumprindo. Uma pessoa pode estar fazendo ações todas elas corretas, todas elas honestas e estar fazendo isso apenas porque tem medo da punição, ou porque aprendeu desde cedo que tem que fazer isso, sem saber por quê. Uma pessoa que assim age está agin- do eticamente? Ou estará agindo eticamente apenas se escolheu agir assim porque con- sidera mais justo e mais correto ainda, que isso lhe custe. É claro que a pessoa ética é do segundo tipo. Aquela que está agindo porque crê ser mais justo agir de determinada forma e não por,medo da lei. Então, a lei tem um grande problema sempre. Há sempre um pro- blema crucial em dizer que uma lei é ética e que um código é ético. Neste ponto, uma tragédia velha, demais de 2000 anos, é exemplar para discutir a questão ética. Estou me referindo à tragédia Antígona, de Sófocles. Sucintamente, para rememorar o ponto essencial, Antígona é uma tragédia que pertence ao ciclo de Édipo, ela própria filha de Édipo. Depois que o pai descobre o seu doloroso passado, isto é, ter matado Q próprio pai e desposado a mãe, deixa0 trono de Tebas. Os filhos dele, os filhos do próprio Édipo se digladiam e dois deles acabam se batendo às portas de Tebas, lutando pela coroa da cidade, e morrem ambos. E o rei de Tebas, tio deles, manda que um seja en- terrado com toda a solenidade, como herói, como alguém que tinha o direito do seu lado, e que o corpo do outro sejajogado ao lixo, que ele não seja enterrado, que nenhuma honra fúnebre lhe seja prestada, e se alguém tentar fazê-lo, que essa pessoa seja executada. An- tígona, irmã dos dois mortos, enterra o'irmão que foi abandonado. E ela deixa- claro que não faz isso porque estava do lado dele. Ela faria a mesma coisa pelo outro. Não queria que os irmãos se batessem, mas dado que eles se bateram e se mataram, ela quer que os dois tenham direito às honras que a religião grega prescreve. Creonte, o rei, decide con- Extellsão, Belo Horizonte, v. 9, n. 30, p. 9-27, dez. 1999 ';.', 17 18 dená-Ia mas há belas discussões a respeito. Sucintamente, Antígona vai dizer que, acimada lei do Estado, há uma lei mais forte que é a lei que manda, entre outras coisas, prestaruma homenagem aos mortos, não deixar que seus corpos apodreçam, que sejam devo- rados pelos abutres. Isso é essencial porque desde há muito tempo, desde 2400 anos, afir- ma-se que existem valores superiores à lei que o Estado edita, pois essa lei pode ser injusta e contestada. Porém, a pessoa que contesta essas leis nem sempre sai ilesa. Antígona é exe- cutada. Ela paga com a própria vida. Só que evidentemente, hoje, ninguém cita Creonte com tom admirador, e geralmente é Antígona que citamos com admiração. Uma lição fica, uma lição essenciaL A diferença é que hoje não temos tanta certeza de quais são essas leis que Antígona segue tão confiante e tão segura de que são as leis corretas e que lhe impõem fazer algo que vai custar a sua própriavida. No lugar das leis dos deuses, uma Antígona moderna provavelmente falaria na sua consciência individual. Em certos momentos, a sua consciência individual prescreve desobedecera uma lei desde que arque com as conse- qüências, e essa consciência individual, nós sabemos, é falha. Ela é instável, insegura. Po- demos nos enganar muito quanto à nossa consciência individual, mas essa é a regra do jo- go. É só dessa maneira que podemos escolher o caminho a ser tomado. O essencial é que nós não' sabemos, mesmo que creiamos em Deus, exatamente o que Ele nos.prescreve, 3: cada momento, para ser seguido. É por nossa responsabilidade que escolhemos o cami- nho. E talvez esta seja a lição interessante de Antígona, a lição de que é preciso, ou que é justo, que é necessário, em certos casos, desobedecer às leis. Por que obedecemos às leis? Podemos ter três razões básicas para obedecer a uma lei: pode ser por medo, pode ser por prudência, pode ser por convicção. Vou desenvolver isso. Por exemplo, a lei de trânsito. Posso obedecer à lei de trânsito por medo de ser multado, de ser pontuado, de per- der a carteira de motorista. Nessa motivação para obedecer à lei, não existe nada de pro- priamente ético. Eu estou obedecendo à lei só por medo da punição . .Uma segunda motivação para obedecer à lei é obedecer por prudência. No caso, eu obedeço às leis de trânsito porque considero que, embora possam ser, para mim, um ônus, elas me trazem vantagens também. Por exemplo, se estou com pressa, se gostaria que to- dos os caminhos se abrissem à minha frente sem nenhuma detenção, evidentemente é um estorvo para mim um sinal vermelho. Por outro lado, posso pensar que é justamente o fato de que o sinal está vermelho para mim que garante que, em um outro momento, estará ver- , de e que o outro carro parará no vermelho e não baterá no meu. Aqui o racioCÍnio não é mais o do medo. Éo racioCÍnio da prudência. Éo racioCÍnio "eu saio ganhando obedecen- do à lei; embora eu faça um sacrifício, eu detenha o meu carro, esse sacrifício é ampla- mente compensado porque ele me evita trombadas. Eu obedeço à lei ou por medo, quando tenho medo da multa, ou por prudência, quando quero evitar trombadas. Há uma terceira motivação para obedecer às leis: é por convicção. Posso estar convicto de que é justo que eu respeite os outros no trânsito. Nesse caso, o fato de respeitar os,outros no trânsito não será algo que me é imposto pelo medo, nem algo que necessariamentefaço só porque sinto que é uma troca na qual também levo vantagem. Estarei respeitando porque considero que essa é a maneira de ser cidadão, de estar estabelecendo uma jornada comum com outras Extensão, Belo Horizonte, v, 9, n, 3D, p, 9-27, dez, 1999 ';.' ' .:.._-" . ......--;..•..-.;-~ .. .....,.,~tô'hr .•-?-.12i.t:tt._'"'" I 1 . pessoas. Acho que é interessante o exemplo do trânsito também porque, para uma parte da sociedade, para a parte motorizada da sociedade, o trânsito é uma das grandes experiên- cias que se tem de contato público, uma vez que uma parte razoável da população hoje possui carro ou anda de carro. Essas pessoas não têm experiência em logradouro público a não ser guiando carro. Sua ligação com o outro é muito mais a relação de competição com outro carro. Ora, de que maneira podemos entender o que está ocorrendo na socieda- de através dessa competição, desse conflito? Se vocês pegam esses três casos, é evidente que a primeira razão de obedecer é totalmente não-ética, por medo; A segunda, eu não di- ria queé anti ética, a prudência, tuas diria, também, que não temos diante dela um exemplo propriamente ético. É, no terceiro;caso - quando obedeço à lei por convicção - que po- demos dizer que há uma motivação propriamente ética para obedecer à lei. Portanto, por melhor que seja alei, por maisjusta que seja, podemos obedecer a ela pelas razões mais diversas. Há uma lei federal proibindo o fumo em bares e restaurantes; proíbe não, limita o fumo, e essa lei estáiJara ser agora modificada porque ela esqueceu de estabelecer san- ções. Ficou mais ou menos letra morta. Isso éum exemplo çlaro de que as leis funcionam geralmente quando lidamexatamente com os medos que a pessoa tem. Ou seja, as leis par- tem de uma dimenSã()'inuito'pouco ética. Se nós,iamos por essa direção, a única via pro- priamente ética é quando estou obedecendo por convicção. Isso é importante porque, se obedeço a uma lei por convicção de que essa' lei ,éjusta, que o conteúdo da lei é justo ou de que mesmo que o conteúdo não seja a melhor das coisas, o fato de ele ter sido votado pela sociedade indica queessa leítem uma legitimidade. Se obedeço por essarazão, estou de alguma forma aceitando privar-me de vantagens por considerar justo privar-me dessas vantagens em favorde'álgo'que considero justo oú boin. Vocês vejam, então, um traço que, muitas vezes, vai ter uma escolha ética ou a conduta ética, e ela causar um certo pre- juízo à pessoa que assim age~Ufi sinal da cónduta: ética é a pessoa sofrer uma certa perda com ela. Devemos desconfiatdé condutas éticas vantajosas. Devemos desconfiar, sobre- tudo, da idéia de que évantajoso ser ético~Pode até,serrium certo sentido, numa certa oca- sião, mas a idéia de ética éjustamente uma idéia que tem álgo, ainda que indiretamente, a ver com heroísmo.' ... . Temos uma visão muito errada do heroísmo, graças a uma retomada do heroísmo nos últimos anos, que modificou:totalmente a sua figura. Refiro-me especialmente aos su- per-heróis da TV. Os super-heróis, que fazem parte da socialização das crianças, são per- sonagens que têm muitá força. Eles ganham todas as paradas. Eles lutam pela justiça, são extremamente fortes;'passam inicialmente por um momento de perda e triunfam no fim. Nada disso designa exatamente a figura do herói. Q.herói propriamente dito não é um ar- quétipo do conquistador. É um' arquétipo do perdedor. Herói é.aquele que sacrifica sua própria vida, no limite, ou pelo menos vantagens suas, para conseguir alguma coisa. Gran- de exemplo de herói infantil, contado na Holanda, é o menino que enfia o dedo no buraco do dique para não deixar o buraco aumentar e destruir a aldeia. Esse herói, conforme a his- tória, morre por causa disso. Mas salva a aldeia. Quer dizer, não é alguém que se caracteri- Extensão, Belo Horizonte, v. 9, n. 30, p. 9-27, dez. 1999 ",' ,' •• - • o 19 -_._----."-- " ._.="u. , 20 za pela sua superforça. É alguém que se caracteriza por colocar um valor superior acimade suas vantagens próprias, à custa muitas vezes da própria vida. Acho de certa forma la-'mentável um sinal dos nossos tempos que o heroísmo tenha se reduzido à força e que esteja ligado ao sucesso e à conquista quando a temática do herói é por outra via. Eu diria que uma conduta ética tem de ter algum elemento dessa figura do herói perdedor. Essa figura do herói que renuncia, do herói que sabe que, por um valor mais alto, alguma perda deve ser aceita. Não é por acaso que, quando falamos em ética, temos que pensar sempre na idéia de decisão; O sujeito ético tem que decidir. Ora, o que é decidir? O que é decisão? É operar uma cisão, é fazer, um corte.,Uma decisão é sempre uma escolha que implica o corte de alguma coisa, a penia de alguma coisa. Quando decido algo, isso quer dizer que, até aquel,e,momento, ,~utinha duas ou tal vez mais opções. Eu decidi, me contenho dentro deuma delas, abro mão das outras. Isso também faz parte da ética, essa renúncia a isso. Essa renúncia a uma quantidade grande de coisas e a aceitação dç uma só. O perfil ético que estou apresentando é um perfil, no limite, do desafio à lei. Pode- mos obedecer à lei por razões éticas. Podemos também enfrentar a lei, se considerarmos que, (i lei é injusta,desde,que~rquemos corri as ~onseqüências disso. O essencial nesse ponto é s~t:IJl9scapazes. ,de.arcar, teflIlos a hombridade, a fortaleza de alma para arcar com as cons~qüências do desafio feito àleLVou citar um episódio queme impressionou;muito quando fui fazer meu ,mestrado na França, já faz algum tempo. Houve um episódio que foi o;s~guinte:umapessoasentiu-s~ mal na rua, literalmente, na calçada, e desmaiou na frente de uma farIl1ácia,a calçada fronteira à farmácia e começou a ter convulsões. E o farmacêutico não saiu, não acudiu, não lhe deu remédio, injeção, nem nada. A pessoa mor- reu ali na frente da farmácia,e, quando perguntaram ao farmacêutico por que ele a tinha deixadq morreras sim, ele disse: "Porque eu não posso, se eu tocasse nele e começasse a acudir, .arninha responsabilidade estaria envolvida, civil e penalmente. Se eu o acudisse de uina mapeinl errada, eu seria responsável por isso." Isso causou uma discussão ampla porque mostraya que~dei; de certa forma, Javorecia a indiferença, favorecia a crueldade. E houve propostas de mudança da, lei para, enfim, de alguma forma parar de penalizar a solidariedade. Asolidariedade s.eriaum mau negócio para o farmacêutico. Mas gostei es- pecialmente do comentário que li de alguém: "Mas o problema não é mudar a lei. O pro- blema é justamente que as pessoas tenham coragem, em certos casos, de enfrentar a lei. Não adianta a gente tentar fazer uma lei que sirva exatamente para o caso, uma lei que pro- teja quem acudiu uma pessoa em más condições, mas que, ao mesmo tempo, não incentive as pessoas,a, querendo ajud(ir, piorar a condição de alguém de cuja saúde não entendem. Não dáp~a ~gente resolver esse problema. A única solução é as pessoas terem coragem, 'em certos casos, de violar a lei"; É a velha lição de Antígona.É a velha idéia deque a exigência ética não pode se re- \ solver com demanda simpksrnente para mudar a lei. Em certos casos, temos de ter a co- ragem de considerar que umá lei é injusta, errada e que deve ser modificada. Evidente- mente, nada disso quer dizer que se deva começar a violar a lei a torto e a direito. Menos ainda, violar a lei com a garantia da impunidade. Isso quer dizer desobediência civil. No Extensão, Belo Horizonte, v, 9, n. 30, p. 9-27, dez. 1999 F," -,j!...,., caso extremo, ou nos casos limitados, isso significa considerar que é mais importante a sobrevivência desse ser humano que está a 5 metros de mim do que um artigo do Código Penal. E se eu puder de alguma forma ajudá-lo, devo tentar fazer isso. Em outras palavras, o que quis colocar nessa segunda parte da exposição foi mais ou menos o seguinte: po- demos, sim, procurar tomar a política mais ética. Podemos tentar tomar as leis, as regras, os códigos mais éticos. Há sempre um elemento decisivo queé o seguinte: leis e regras sempre vão lidar com ações. A ética, em última análise, é uma propriedade de sujeitos, de seres humanos. Podemos dizer que há ações boas e más; ações justas e injustas. Mas só dizemos isso de maneira derivada porque justo ou injusto é o ser humano que pratica determinadas ações. As ações podem sê-lo ou não, e pode acontecer de uma pessoa justa cometer ações injustas ou de uma pessoa injusta cometer ações justas. Talvez as pessoas injustas pratiquem muitas ações justas pelo fato de não quererem ser punidas por delitos, dado que elas são pautadas bàsicamente pelo medo das sanções que sofram. É importante reconduzirmos a problemática da ética à questão de sujeitos, de pes- soas que escolhem numa certa direção. Desse ponto de vista, a idéia do programa "Você Decide" é muito interessante. Não estou falando necessariamente dos programas, mas a idéia de colocar valores éticos em confronto. Se coloCarmos em discussão os valores éti- cos propriamente ditos, talvez não tenhamos muita discordância. Acredito que, se colo- cássemos a voto é justo matar, é justo roubar, é justo mentir; as pessoas vão responder que , tudo isso é injusto, provavelmente. O problema se toma importante quando, por exemplo, tenho que fazer uma escolha entre dois valores. Se a escolha é entre um interesse e um va- lor, geralmente o lado ético é justamente o do valor, e não o do interesse. Mas pode ser que eu tenha que escolher entre mentir ou roubar e, nesse caso, pode ser que dizer a ver- dade vá ferir muito uma pessoa desnecessariamente. Eu tenho que fazer uma opção, tenho valores diferentes. Por exemplo; o respeito ao outro, o cuidado com o outro de um lado, e o dever de dizer a verdade de outro. E a escolha é que é interessante. O ponto interessante, então, na questão ética é justamente quando vemos que, embora possamos até ter certas tabelas, decálogos, lista de certo' e errado, tudo isso só se toma significativo numa de- terminada prática. E nessa prática, esses.valores geralmente não estão todos de um lado (do bem) contra um outro "lado, que seria todo do mal. O interessante é justamente essa mistura e essa necessidade de escolha. Desse ponto de vista, só podemos ter uma ética se tivermos uma capal::idade de escolha e de construção de um ser que vai saber que os va- lores com que ele está lidando são antagônicos. Antes de entrar na conclusão, uma palavra ainda a esse respeito. Talvez um dos pro- blemas sérios que nos dificulte a questão ética seja o fato determos sido, muitos de nós, formados a p'artir da idéia de uma certa harmonia, que seria o resultado de nossa formação, de nossa educação. Idéia de que, de alguma forma, nós deveríamos procurar uma har- monia, nos tomar harmônicos. A idéia de que a nossa vida deveria ser bem-sucedida emo- cionalmente, profissionalmente, conjugalmente. Cada vez mais, notamos que os cami- nhos vão em direções diferentes, que as pessoas, às vezes, têm mais êxito em uma direção do que em outra. Que, às vezes, justamente, um desses caminhos dá certo na medida em Extensão, Belo Horizonte, v. 9, n. 30, p. 9-27, dez. 1999 21 '-- - L".' 22. que outro dá mais errado. Vemos que nessas várias dimensões que enumerei ocorrem de-sastres na vida de muitas pessoas. Amores que se perdem, relações que se desfazem, pro-fissões que são suprimidas, desemprego que surge antes mesmo do emprego ou que surge tardiamente. Talvez se tivermos uma noção mais clara de que a vida humana, não apenas a ética, não têm no seu horizonte necessariamente a harmonia, talvez seja mais fácil lidar com as escolhas éticas. Talvez percebamos que esses desastres, essas dificuldades fazem parte essencial dessa formação, e sobretudo dessa construção de uma têmpera mais forte, de uma capacidade de lidar com a diversidade. Como que é difícil. UIl1últimó ponto que quero colocar.é () seguinte: podemos dizer que a lei ou toda preocupação com conteúdos certos e errados, listas do que é certo, listas do que é errado, ou a lei, ou as regras, tudo isso se preocupa com os atos na sua exterioridade. Uma lei diz: "é proibido atravessar o sinal vermelho". Ela não está preocupada com a motivação que a pessoa teve para atravessar o sinal vermelho. Sobretudo nos países que têm uma ci- dadania consolidada, não adianta absolutamente vir com uma justificação sobre minhas motivações para atravessarosinal vermelho. Atravessei, estou multado. Cometi tal de- lito, estou punido, serei punido. Então, a lei procura,ver os atos na sua exterioridade. A ética está mais in~en~ss::lda:çQmo sujejtc) na suainterioridade. Façamos essa oposição. Di- gamos que isso significa que a lei cuida, sim, de atos certos e errados. A ética não vai cui- dar tanto do certoe do errado no ato, mas da questão da justiça, da decisão que o sujeito' toma,. Em tudoo que eu expus até agora pode ter parecido que fiz muito mais o elogio da ética do q~e o elogio da lei. Foi minha iQtenção fazer isso. Contudo, eu queria reequilibrar um pouco essaoposição~A sociedade moderna só consegue chegar a um regime em que há liberdade de opinião, de escolhas, tolerância com o diferente, em suma, a uma demo- cracia nuncaantes vista, porque ela passou a julgar apenas os atos e deixou de julgar, sempre que possível, a interioridade. Talvez eu esteja exagerando um pouco, simplifican- do um pouco. Vou corrigir a minha forma. Não é que a sociedade tenha parado de julgar a interioridade. Ela reduziu muito ojulgamento da interioridade. Em alguns casos, a gente vê, sim, a interioridade.A gente procuray.er se uma pessoa,~o cometer um crime, o fez premeditadamente ou não. Se.o fezmoyidaporum valorrelevante ou por um motivo torpe e fútil. Alguma coisa da interioridade entra. De modo geral, o avanço democrático está ligado ao fato dea sociedade parar de julgar a interioridade e começar ajulgar os atos. Por quê? Porgue uma sociedade que julga a interioridade acaba se preocupando mais em ver o que está passando nas mentes dos outros do que o que as pessoas estão fazendo efeti- vamente. Uma. sociedade desse tipo' acaba lidando muito pouco com aquilo que efetiva- . mente causa problema aos outros e acaba policiando as consciências. No filme "O Judeu", que passou um tempo atrás, há um momento do julgamento desse dramaturgo brasileiro que foi queimado vivo em Lisboa; no século XVIII, como criptojudeu, como judeu escon- dido. Éo momento em que se d!za ele algo assim: "Na sexta-feira, vocês não comem car- ne. Fulano de tal separou a pele do frango para comer, quer dizer que são judeus". Quer dizer, atos que são absolutamente inocentes, que não causam mal nenhum, não há mal so- cial que possa ser causado por alguém pelo fato de separar a pele do frango e não comê- Extensão, Belo Horizonte, v. 9, n. 30, p.9-27, dez. 1999 1. '" ." ~. ',._-,' '", ;la,\coisa que hoje é recomendada em todo regime de emagrecimento. Atos desse tipo " ..eram, porém, examinados pela significação que eles teriam como revelando a consciência '"f!ifjil' . dele. Como nojudaísmo não se pode comer determinado tipo de gordura, o fato de separar a gordura indicaria q~e,a pessoa, na verdade, é judia, e isso seria o problema. A inquisição é um grande exemplo de preocupação com as motivações das pessoas. Atualmente a polítipa do Irã, a política do Afegani~tão se preocupam muito com a mo- tivação das pessoas. Estou enf~tizando isso, porque um E~tado que se preocupa com a éti- ca de seus membros tem uma fortíssima chance de ser um Estado totalitário. Um Estado que procure verificar a il1teriq~idade de s~~smembros estará fazerido uma coisa indevida. Com isso o que eu quero dize~ não é que devemos deixar d,eJado alei pela ética. Devemos perceber que existe uma esfera,fundamental,que éa da lei, uma esfera fundamental, que é a da ética. E uma não pode pretender tirar o lugar da outra. Mesmo que as duas muitas vezes entrem em confli.to. Até insisti na importância de que ,esse conflito não seja desco- nhecido, não seja ignorado, não seja pas~ado por cima. :t\iesmo que muitas vezes entrem em conflito lei e ética, é ptecisoperceber que há dimenspes importantes. Na medida em que nós começamos a controlar apenas os atos que prejudic,am os ou,tros e não ~ais a cons- ciência que levou as pessoas. ~.'.lgirçlHtaJou qual fo~a, pqqemos admitir que as pessoas tenham consciênci~s m~l~o çliÍ'~rentes~'Nã~me interessa, então, se uma pessoa é homos- sexual, heterossexual; se uma pessoa é de direita ou de esquerda, não me interessa se uma p~ssoa tem tal ouqual religião. O que interessa~ que essa pessoa socialmente manifeste respeito pelo outro de maneira que não prejudique a vida alheia. É esse o ponto crucial. Isso só pode ocorrer se deixarmos claro que o Estado não pode ter uma pretensão ética, que a lei não pode ter uma pretensão ética no-sentido de investigar a intimidade das pessoas. Como podemos concluir? Talvez o interessante fosse enfatizar esse aspecto difícil da interioridade~ De certa fqrma, o que procurei e?,por aqui, conflitos entre a ética e a lei e, no limite, até entre a ética e a ciçl~dania, o que procurei expor foi o fato de que a interio- ~ • o,' , o,, ••• ' ,. • • .,' • ridade é uma conquista. Alguém se constituir como sujeito qu~ decide é uma conquista ,',.-',.,-. ,. >'. l .. " '. . difícil. Isso exige que essa pessoa passepqr uma série de prov~ções que são de conflitos, .' ... ' - .. ': . ;, .,. - ',,' - . de antagonismose talvez uma,das ~elhoresformas disso seja exatamente mostrando-se capaz até mesmo de relativizar valores, até mesmo de notar que valores são importantes, mas às vezes não podem se~ satisfeitos todos ao mesmo t~mpo. É nesse trajeto que passa por muitos desastres a vida d~ cada um de nós, mas é um trajeto alongo prazo enrique-, cedo~, é com ele que s~-pode forjaro que podemos~ha~ar,~om certa temeridad~, u~ su- jeito ético. Extensão, Belo Horizonte, N, 9, n, 30, p, 9-27, dez, 1999 23 L ') '1 ItO ü" I /'It1 'I.;IJ-" " J!.', .J 00000001 00000002 00000003 00000004 00000005 00000006 00000007 00000008 00000009 00000010 00000011 00000012 00000013 00000014 00000015
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