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HISTÓRIA DA ARTE Dulce América de Souza Arte pré-histórica Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Identificar as diferentes características da arte pré-histórica. Interpretar os diferentes significados da arte rupestre. Descrever os aspectos da arquitetura pré-histórica. Introdução A história da arte não pode ser definida apenas como um percurso evo- lutivo que parte de uma simples produção para uma mais complexa, mas sim como a construção de uma narrativa em que o homem é o criador de símbolos, por meio dos quais se expressa sobre o mundo que o cerca. Nessa linha de pensamento, podemos dizer que, há muito tempo, os nossos antepassados começaram a produzir esses símbolos, ou seja, começaram a criar arte. A história relata que os primeiros objetos artísticos foram produzidos na tentativa de controlar ou amenizar as forças da natureza — estamos nos referindo à Pré-História. Neste capítulo, você estudará a relação do homem com a natureza incontrolável, por meio da criação dos símbolos. Considerando que a primeira expressão genuinamente artística ocorreu no Paleolítico Superior, conhecerá as principais características da arte rupestre, suas intenções e finalidades e sua configuração plástica, bem como o surgimento da arquitetura enquanto produção artística do Neolítico, período em que o homem se fixa à terra, adquirindo estabilidade e substituindo a mágica pelo culto. Por fim, verá exemplos notáveis das manifestações artísticas mencionadas, que contribuirão para a ampliação do seu repertório visual e conceitual. Características da arte pré-histórica A arte expressa sentimentos por meio de uma forma e explora a realidade por via da aparência, promovendo uma verdadeira recriação do mundo. A origem da arte está na Pré-História, no Paleolítico Superior. Antes, no Paleolítico Inferior (50.000–30.000 a.C.), a utilização de ferramentas era uma etapa básica dessa transformação. Pela prática de experiências sucessivas, em um processo de ensaio e erro, o homem determinou sua forma de poder sobre a natureza. A ferramenta nasce, então, como um instrumento para o exercício de poder do homem sobre a natureza (FISCHER, 2002). A história revela que nossos ancestrais começaram a caminhar sobre dois pés na Terra há cerca de 2 milhões de anos. No entanto, encontramos indícios de utensílios fabricados pelo homem somente por volta de 600 mil anos mais tarde. É provável que o homem tenha utilizado utensílios desde a sua origem. A fabricação dessas ferramentas ou utensílios nos leva a conclusões mais complexas e interessantes, pois ela exige a capacidade de pensar em “[...] varas ou pedras como apanhadores de frutas ou trituradores de ossos [...]” (JANSON; JANSON, 2009, p. 14). Ao fabricar seus instrumentos — necessários para garantir sua sobrevi- vência —, o homem descobriu que algumas pedras, por exemplo, possuíam uma forma mais conveniente do que outras e as classificou como utensílios, guardando-as para usar posteriormente. Nesse momento, o homem começou a associar a forma à função. A partir de então, ele começou a manipular esses utensílios com fins específicos, desbastando-os, a fim de aperfeiçoar a sua forma. A essa fase da evolução humana, denominamos período Paleolítico: quando se revela a mais antiga habilidade do ser humano. Sobre essa habilidade humana, observa Bell (2008, p. 9): “O lascador de pedra fazia aquilo bem, usando o melhor de suas habilidades. Os cortes na pedra produziam arestas, linhas claras, onde não havia nenhuma antes. Criaram relações definidas entre a esquerda e a direita, o topo e a base, a parte de trás e a da frente [...]”. A prática de lascar pedras vinha se desenvolvendo lentamente por milhões de anos, até ser refinada e produzir lâminas tão perfeitas que se tornaram ins- trumentos de corte. Essa prática, porém, não corresponde integralmente ao que hoje entendemos por “arte”. Podemos considerar que as primeiras expressões do que concebemos como arte surgem em tempos muito remotos, quando o homem torna visível os pensamentos invisíveis, ou seja, cria símbolos (BELL, 2008). Um pequeno fragmento de rocha vulcânica foi encontrado em um sítio, em Israel, ocupado por hominídeos no período de 280.000 a 250.000 a.C., em que a formação rochosa natural — semelhante a uma cabeça e um torso Arte pré-histórica2 — recebeu marcações adicionais (Figura 1). Os sulcos acrescentados enfa- tizam um pescoço, e as dobras dos braços colocados de encontro, um busto feminino. Para realizar esse trabalho, supõe-se que o autor tivesse em mente imagens de corpos conhecidos. Supomos que ele transferiu essa imagem para a pedra com o auxílio de ferramentas. “Além disso, ele precisaria de algum incentivo para fazer essa extraordinária asserção: ‘Que isto se torne aquilo’ [...]” (BELL, 2008, p. 10). Figura 1. Pedra sulcada, modificada há mais de 250 mil anos, encontrada em Israel. Fonte: Bell (2008, p. 10). O fenômeno ilustrado pela Figura 1 não havia sido observado no comporta- mento de nenhum animal anteriormente, portanto, um produto como este tem uma conotação de “invisível”, localizado dentro da mente do seu autor, que tornou seu pensamento “visível”. Muito mais tarde, no século V a.C., o filósofo grego Aristóteles afirma: “O objetivo da arte não é representar a aparência externa das coisas, mas seu significado interior [...]” (HODGE, 2018, p. 6). 3Arte pré-histórica A manifestação expressiva apresentada pela Figura 1 é tão precoce quanto fantástica, pois o homo sapiens floresceu na África por volta de 130.000 a.C., e, por volta de 30.000 a.C., havia se espalhado por toda a Europa e a Ásia, fazendo crescer, então, uma tradição de arte rupestre figurativa. A arte rupestre foi uma das primeiras formas que o ser humano encontrou para se expressar e registrar a sua história ao longo do tempo. Segundo a Enciclopedia do Itaú Cultural (2017, documento on-line), a definição vem: Do francês rupestre, o termo designa gravação, traçado e pintura sobre suporte rochoso, qualquer que seja a técnica empregada. Considerada a expressão artística mais antiga da humanidade, a arte rupestre é realizada em cavernas, grutas ou ao ar livre. As técnicas empregadas constituem outro aspecto explorado pelas análises dos especialis- tas. A pintura parece ter sido a realização mais antiga, mesmo que as gravuras — quando a forma é obtida pela retirada de matéria ou por incisões — sejam mais numerosas (vale lembrar que as pinturas ao ar livre praticamente desapareceram). A duração da Pré-História é muito longa, e os historiadores a dividiram em três períodos: Paleolítico Inferior (cerca de 500.000 a.C.), Paleolítico Superior (aproximadamente 30.000 a.C.) e Neolítico (por volta de 10.000 a.C.). Com o objetivo de estudar a evolução da arte ao longo do tempo, é comum lançar um olhar apurado para a arte produzida a partir do Paleolítico Superior, pois é quando os pesquisadores registram as primeiras manifestações artísticas. Essas manifestações foram encontradas principalmente no interior de cavernas na França e na Espanha. No capítulo “As origens da arte”, da importante publicação A necessidade da arte, Fischer (2002) lista algumas teorias que tentam explicar a origem das artes, listadas a seguir. Teoria da necessidade inata: o homem tem o instinto da beleza, pro- vocando sua exteriorização na estetização das coisas, de modo mais elevado, na forma de arte. Arte pré-histórica4 Teoria da arte utilitária: a arte como resultado do aperfeiçoamento, em busca de funcionalidade e da ordem. Uma espécie de fazer melhor, ajustando ou adequando o objeto à sua perfeita finalidade. Teoria mágica ou religiosa: as artes teriam origem na invocação de forças sobrenaturais. Teoria da função expressiva: buscando exprimir seu interior, o meio mais adequado é o da simbolização, pois os símbolos revelam as in- tuições da sensibilidade humana. A arte é a expressão simbólicade uma cultura. Teoria mimética: o homem tem a tendência natural de imitar. A arte passa a ser uma segunda natureza, diante da qual o homem se reconhece. Teoria lúdica: uma forma de o homem dispersar as energias acumuladas depois que deixou de lutar de forma nômade pela sobrevivência, para instalar-se em um sistema de previsão e lazer. Corroborando com a teoria mágica ou religiosa, Gombrich (1999) destaca que, na Pré-História, a arte nasce na sua grande parte “interessada”. Por meio dela, o homem parece se relacionar com o universo desconhecido e assustador. A Pré-História foi uma idade do homem dominada pelo terror cósmico, e a arte estava centrada nas sensações, nos sentidos, na memória e no mimetismo. O homem estava voltado para a observação da natureza, dos animais, para a magia (conceitos totêmicos e místicos). A arte vinha impregnada, em suas representações, de questões místicas. A obra de arte, conforme alude Benjamin (1985), estava a serviço da ma- gia, visto que o que importava para o homem nessas imagens era que elas existissem, não importando que fossem vistas por outras pessoas, pois quem deveria vê-las eram os espíritos. O valor de culto deveria mantê-las secretas, daí estarem no fundo das cavernas. “A arte registrava certas imagens a serviço da magia com funções práticas: execuções de atividades mágicas, ensinamento de práticas religiosas, ou objeto de contemplação ao qual se atribuía efeitos mágicos [...]” (BENJAMIN, 1985, p. 173). Walter Benjamim explica que, à medida que a arte vai perdendo seu valor de magia (valor de ritual), ela passa a ser exposta. Podemos citar como exemplo: os bustos em praça pública, mosaicos, afrescos, a sinfonia que passa a ter sua exposição ao público, entre outros. A arte na Pré-História tinha um caráter eminentemente social e não seria praticada se não fosse útil — temos aqui a conexão da teoria da arte utilitária e da teoria da função expressiva. O homem pré-histórico — extremamente ligado ao grupo social, aos animais e à natureza — integrava esses fatos à arte 5Arte pré-histórica de forma realista no Paleolítico e simbólica no Neolítico. Além disso, podemos dizer que a arte pré-histórica é intelectual, no sentido de que o artista confere a si mesmo uma certa liberdade de deformar, a fim de dar mais força de expressão às suas representações — vemos isso acontecer em algumas representações de animais. Podemos dizer, também, que preocupações de ordem mágica devem ter intervindo, para exagerar, ainda mais, essas deformações. A arte possuía a magia da transformação, o homem podia transformar o mundo, dar a ele significado: a crença no poder da imagem vê na arte uma magia. Segundo Fischer (2002, p. 42): Essa magia encontrada na própria raiz da existência humana, criando simul- taneamente um senso de fraqueza e uma consciência de força, um medo da natureza e uma habilidade para controlá-la, essa magia é a verdadeira essência de toda arte. O primeiro a fazer um instrumento, dando nova forma a uma pedra para fazê-la servir ao homem, foi o primeiro artista. Por um lado, a arte pré-histórica estava extremamente voltada para o utilitário, em consonância com a teoria da arte utilitária, porém, ao lado dessa arte “in- teressada”, existia um lado estético altamente desenvolvido, ratificando a teoria da necessidade inata, conforme o pensamento de Bayer (1979). Observa-se isso nos utensílios de caça e nos objetos domésticos. Para adequar o objeto aos seus objetivos, os homens buscavam a simetria harmoniosa, linhas agradáveis ao olhar, decorando com primor o cabo das facas, esculpindo os ossos e o marfim, pintando com beleza todos os seus objetos de uso. Isso nos conduz a pensar que os homens da Pré-História tinham um forte sentido das formas, dos volumes e das cores e que obedeciam a certas normas e convenções nas suas representações dos animais, humanas e simbólicas. De acordo com Bayer (1979, p. 15): Poder-se-ia considerar, à primeira vista, que os utensílios em si não pertencem à arte. O utensílio, ou a arma, são fabricados para um fim prático determina- do, visando a utilidade. Se afirmássemos que eles nada têm em comum com a arte, pelo menos se não recebessem decoração, empobreceríamos toda a estética. O que constitui a arte é a criação e o desinteresse, mas foi mostrado que a utilidade era uma das raízes da arte e que toda espécie de arte começou por ser interessada. A criação consiste em modificações intencionais que o espírito humano imprime em objetos da natureza. O desinteresse efetua- -se pouco a pouco e nunca de forma radical. Além disso se olharmos um pouco mais de perto os instrumentos pré-históricos e verificarmos que eles se mostram cada vez mais apropriados ao seu objetivo, compreendemos a satisfação que deve ter sentido o homem quando conseguiu fazer um utensílio correspondente a seu fim. Arte pré-histórica6 As cavernas na Pré-História eram espécies de santuários onde se exercia sobre o animal um poder por meio dos desenhos para conquistar caçadas abundantes — em particular as cavernas de Altamira e Lascaux, na Espanha e na França, respectivamente. A arte, ao que parece, ajudava o homem a obter poderes sobre a natureza, sobre os inimigos, sobre o parceiro nas relações sociais, enfim, sobre a realidade. No fazer semelhante havia qualquer coisa de mágico, conferindo ao homem poderes, exemplificando a teoria mimética. Fazendo-se semelhante ao animal, imitando seus sons, sua aparência, seus gestos, os homens podiam atraí-los. Assim, o homem pintou seus utensílios, cantou observando o ruído à sua volta, disfarçou-se para viver novas experiências (teatro), transformou-se em deus, animal, adquirindo maior compreensão da realidade e dominando as formas (BAUMGART, 1999). Segundo Fischer (2002, p. 38): Esta maneira de imitar, fazendo-se igual aos animais, pode ser vista como a primeira manifestação teatral do homem. Quanto à música, podemos tê-la nos processos coletivos de coordenação do trabalho. Canções entoadas em conjunto, onde o refrão repetido exerce certo efeito mágico na vinculação dos indivíduos ao grupo. A música pré-histórica tinha a função de evocar emoções coletivas, atuar como estímulo para o trabalho, para o gozo sexual e para a guerra. Era um meio de colocar os homens em estado diferente, e não tinha a intenção de refletir o mundo. As batidas dos tambores, os ruídos dos paus de chocalho e os sons metálicos tinham a função de produzir efeitos sobre o homem. Ou seja, a função da música era produzir efeitos, e não representar a realidade. Como observa Hans Eiler, citado por Fischer (2002, p. 212–213), os ritmos provocam associações automáticas: Ainda hoje, grande parte dos efeitos da música são obtidos através desse tipo de associações automáticas (marchas militares, marchas fúnebres, ritmos de dança, etc.) e essas associações ensejam a participação direta mesmo de ouvintes despreparados. Esse poder da música de produzir emoções coletivas, de igualar emocionalmente as pessoas por algum tempo, tem sido particular- mente útil às organizações militares e religiosas. Além da música, do teatro e das pinturas parietais (arte rupestre), os artistas do Paleolítico Superior também realizaram trabalhos em escultura, eviden- ciando a figura feminina, diretamente relacionada à fertilidade. A necessidade de manutenção do grupo (procriação) era uma preocupação constante em um mundo ainda não completamente dominado pelos seres humanos. A Vênus 7Arte pré-histórica de Willendorf (15.000–10.000 a.C.), ilustrada pela Figura 2, é uma pequena estatueta (12 cm de altura) representativa da produção das esculturas da Pré-História. Ela representa uma figura feminina, cuja cabeça surge como prolongamento do pescoço, com seios volumosos, ventre proeminente e grandes nádegas. “[...] Tem uma forma arredondada e bulbiforme que pode sugerir um ‘seixo sagrado’ oval [...]” (JANSON; JANSON, 2009, p. 17). Figura 2. Vênus de Willendorf, Mu- seu de História Naturade Viena. Fonte: Dan Shachar/Shutterstock.com. As pequenas esculturas do Paleolítico possuíam o tamanho de uma mão humana e eram feitas com ossos, chifres ou pedras cortados com ferramentas rudimentares. Vimos que, em um estágio mais primitivo, os homens coleta- vam rochas (ou seixos) em cujo formato natural identificavam semelhanças casuais com as figuras humanas. Em um momento posterior (Paleolítico Superior), as peças são mais minuciosamente trabalhadas, embora ainda reflitam a atitude de adaptação dos elementos naturais encontrados. Essas pequenas esculturas contrastam com as grandes dimensões da arte rupestre do Paleolítico Superior. Arte pré-histórica8 A arte rupestre e os seus significados As expressões de arte rupestre mais signifi cativas foram encontradas na Europa, em particular no norte da Espanha e no sul da França, datando de aproximadamente 25.000 a.C., portanto, no Paleolítico Superior. A descoberta das cavernas de Altamira (Espanha) e Lascaux (França), representadas na Figura 3, fomentaram uma revolução no que até então se conhecia sobre o passado da arte. Altamira, na Espanha, foi descoberta em 1868, sendo o primeiro conjunto pictórico pré-histórico de grande extensão conhecido até então. Lascaux, na França, foi descoberta em 1940, sendo caracterizada por um conjunto de corredores de aproximadamente 250 metros de comprimento, com um desnível de 30 metros. Os dois conjuntos são repletos de pinturas de grandes animais, individualmente ou em grupos, que datam de aproxi- madamente 17.000 a.C., com variações encontradas em pinturas e gravações possivelmente anteriores (BELL, 2008; HODGE, 2018). Figura 3. Teto das cavernas de Altamira e Lascaux. Fonte: Juan Aunion/Shutterstock.com e thipjang/Shutterstock.com. Uma descoberta recente foi a da caverna de Chauvet, no sul da França, em 1994. Um dos sítios arqueológicos mais importantes do mundo foi ocu- pado por seres humanos em diferentes períodos, e a maior parte das pinturas encontradas foi realizada no período mais antigo: 30.000 a.C. a 32.000 a.C. Além das espécies mais comuns de animais (cavalos bovídeos e veados), nessa caverna, foram catalogadas 435 pinturas de animais de 13 diferentes espécies, incluindo representações inéditas de leões, panteras, ursos, corujas, rinocerontes e hienas (ver Figura 4). 9Arte pré-histórica Figura 4. Pintura de rinocerontes e cavalos (28.000 a.C.). Fonte: Bell (2008, p. 14). As pinturas de Chauvet são as mais antigas conhecidas e revelam uma linguagem gráfica sofisticada. Os desenhos de carvão representam imagens sobrepostas de cabeças de cavalos e bisões e a cena de dois rinocerontes lutando. Essas cenas são pouco comuns na arte rupestre, pois quase não há registros de figuras que interagem (BELL, 2008). Gombrich (1999) destaca que, quando foram descobertas essas pinturas, os arqueólogos recusaram-se a acreditar que teriam sido realizadas por homens da era glacial, devido às representações animadas, naturais e vigorosas de animais pela primeira vez vistas. “Gradualmente, os rudimentares apetrechos de ferro e osso encontrados nessas regiões tornaram cada vez mais certo que essas imagens de bisões, mamutes ou renas tinha sido escoriadas ou pintadas por homens que caçavam esses animais e, portanto, os conheciam muito bem [...]” (GOMBRICH, 1999, p. 41–42). Arte pré-histórica10 Frente aos deslumbrantes conjuntos pictóricos, algumas perguntas são recorrentes, as quais dizem respeito a como se desenvolveu essa arte e como sobreviveu intacta por tantos milhares de anos, por exemplo. As pinturas não se encontram na proximidade das entradas das cavernas, pois foram realizadas nas profundidades da terra, nos tetos e nas paredes laterais das formações rochosas. Estando ocultas, os historiadores supõem que essas imagens se prestavam a um objetivo mais complexo do que mera decoração. Segundo Janson e Janson (2009, p. 15): Na verdade, quase não há dúvida de que faziam parte de um ritual mágico cujo propósito era o de assegurar uma caça bem-sucedida. Chegamos a essa conclusão não apenas devido à sua localização secreta e traços representando lanças ou dardos que apontam para os animais, mas também devido à forma desordenada com que as imagens estão dispostas umas sobre as outras. As evidências nos levam a acreditar que nenhum homem teria se deslocado até as íngremes distâncias dos interiores das cavernas para simplesmente de- corar um lugar tão inacessível. Para os homens do Paleolítico, não havia uma distinção muito clara entre imagem e realidade; ao reproduzirem a imagem de um animal, pretendiam trazê-lo para o seu alcance, dominá-lo simbolicamente. Ao matarem a imagem, julgavam ter matado o espírito do animal, assim, a imagem só tinha utilidade até o momento da morte do animal. Isso justifica a sobreposição das pinturas: uma vez atingido o objetivo — o ritual da morte —, a imagem poderia ser desprezada (BELL, 2008; GOMBRICH, 1999). Confirmamos, então, a teoria mágica da arte pré-histórica, na qual a maior parte da produção artística está estreitamente vinculada a ideias equivalentes ao poder das imagens. Do ponto de vista plástico, a principal característica dos desenhos, das pinturas e das gravações do Paleolítico Superior é o naturalismo. O artista reproduzia o animal do modo como o via de uma determinada perspectiva, reproduzindo a natureza tal qual sua visão captava; assim, o artista retratava apenas o que encontrava na natureza. Há, contudo, uma grande elaboração por parte do artista, visto que as composições e figuras individuais representadas não possuem nenhuma semelhança com desenhos infantis, como podemos observar na Figura 5. 11Arte pré-histórica Figura 5. Bisões da caverna de Altamira, na Espanha. Fonte: EQRoy/Shutterstock.com e JESUS DE FUENSANTA/Shutterstock.com. Quando Bell (2008, p. 16) defende que “[...] a Idade da Pedra Lascada tinha seus especialistas em arte, se não mesmo artistas em tempo integral [...]”, está se referindo ao espetacular domínio técnico encontrado nos conjuntos rupestres. E ainda, “Ao visitar Lascaux, em 1940, Picasso observou: ‘Não aprendemos nada’ [...]” (BELL, 2008, p. 13). Podemos destacar aspectos plásticos originais e virtuosos, ainda para os tempos atuais, circunscritos no naturalismo das pinturas. Utilizando a sintaxe da linguagem visual proposta por Dondis (2007), podemos encontrar todas as configurações dos elementos visuais (linha, cor, forma, direção, textura, escala, dimensão e movimento) nas composições rupestres. Propomos a leituras desses elementos por meio da análise da Figura 6, que retrata as composições da caverna de Lascaux, na França. Figura 6. Arte rupestre da caverna de Lascaux, na França. Fonte: thipjang/Shutterstock.com. Arte pré-histórica12 Em relação à linha, Dondis (2007, p. 32) destaca: “Nas artes visuais, a linha tem, por sua própria natureza, uma enorme energia. Nunca é estática; é o elemento visual inquieto e inquiridor do esboço [...]”. As linhas das figuras representadas na Figura 6 possuem forte identidade e energia, pois existe uma hierarquia de linhas (mais fortes, mais suaves), inclusive na escolha das cores que evidenciam as figuras: a cor preta destaca os animais mais desejados ou interessantes da composição. Para obter as cores em suas pinturas, o homem do Paleolítico utilizava óxidos minerais, ossos carbonizados, carvão, vegetais e sangue de animais. Os elementos sólidos eram esmagados e dissolvidos na gordura dos animais caçados. Utilizavam os dedos como pincéis, porém há indícios de terem empregado pincéis feitos de penas e pelos (SANTOS, 2000). A aplicação de cores nos seus desenhos era criteriosa, havendo nuances de claro–escuro em alguns animais. A cor destaca algumas figuras evidenciadas em vermelho, frequentemente utilizado, criando efeitos visuais estimulantes, corroborando com a colocação de Dondis (2007, 38): “A cor está, de fato, impregnada de informação, e é uma das mais penetrantes experiências visuaisque temos todos em comum [...]”. “A linha descreve uma forma [...]” (DONDIS, 2007, p. 33). O domínio do traço é impressionante nas pinturas parietais, pois, embora sem conhecimento das formas geométricas básicas, os artistas possuíam grande domínio da forma, do traço e do volume nessas pinturas. Percebemos que as formas são realistas, ou seja, há exata interpretação da realidade a respeito da anatomia dos animais. A direção constitui a referência primária do homem em termos de equilíbrio e tem referência direta com a sensação de estabilidade (DONDIS, 2007). Na Figura 6, identificamos grupos de animais que se movem em determinadas direções e percebemos que a noção de sentido de conjunto está presente na representação. Provavelmente, esses grupos encontrados no meio natural inspiravam os pintores caçadores do Paleolítico. Há pinturas que revelam, inclusive, forças direcionais curvas, que possuem potencial dramático de transmissão de informações, formadas pelos grupos de animais pintados nas paredes de pedra. Dondis (2007, p. 42) define a textura como “[...] o elemento visual que com frequência serve de substituto para as qualidades de outro sentido, o tato [...]”. Podemos reconhecer a textura como uma combinação de ambos os sentidos (tato e visão) nas pinturas rupestres. Elas são realizadas sobre as pedras e utilizam pigmentos naturais, que, por vezes, possuem texturas granuladas. A noção de projeção para além da superfície também é presente nos conjuntos pictóricos paleolíticos. 13Arte pré-histórica Um aspecto fundamental das pinturas encontradas nos interiores das cavernas é a escala, que é definida por Dondis (2007) como um processo em que todos os elementos visuais de uma composição definem uns aos outros pelo tamanho relativo das unidades. Identificamos o grau de importância de cada figura representada na Figura 6 pela escala dela em relação às demais. Embora haja conjuntos sobrepostos, aqueles que pertencem a uma mesma composição mantêm relações de escala bem estabelecidas, com destaque para os dois bisões em linhas pretas. O recurso da dimensão é genialmente explorado pelos pintores do Paleolí- tico. Sabemos que as composições encontradas possuem grandes dimensões, cobrindo grandes áreas dos tetos e das paredes das cavernas, e, para além disso, a utilização (intuitiva) da perspectiva confere a sensação de amplitude nos conjuntos. A dimensão como linguagem visual, é assim definida: A representação da dimensão em formatos visuais bidimensionais também depende da ilusão. A dimensão existe no mundo real. Não só podemos senti- -la, mas também vê-la, com o auxílio de nossa visão estereóptica e binocular. Mas em nenhuma das representações bidimensionais da realidade, como o desenho, a pintura, a fotografia, o cinema e a televisão, existe uma dimensão real; ela é apenas implícita. A ilusão pode ser reforçada de muitas maneiras, mas o principal artifício para simulá-la é a convenção técnica da perspec- tiva. Os efeitos produzidos pela perspectiva podem ser intensificados pela manipulação tonai, através do claro-escuro, a dramática enfatização de luz e sombra (DONDIS, 2007, p. 46). O elemento visual do movimento pode ser considerado uma das forças visuais mais dominantes da experiência humana. O uso da perspectiva e da luz e sombra intensificadas criam ilusão ótica de movimento (DONDIS, 2007). Esse é um aspecto a destacar na arte rupestre encontrada nos principais sítios arqueológi- cos — como Altamira e Lascaux: a excelente apropriação do suporte (a pedra, no caso) para conferir movimento aos animais retratados. Os volumes convexos do corpo dos animais são situados nas protuberâncias das paredes e dos tetos de pedra, ampliando a sensação de movimento, e até “de vida” dessas figuras. Os pintores representam as patas do primeiro plano à frente das patas em segundo plano e, em alguns casos, utilizam instintivamente a perspectiva, representando os elementos dos planos de fundo em menor dimensão do que os do primeiro plano. Um longo intervalo de tempo foi percorrido até o último período da Pré- -História, chamado de Neolítico ou Idade da Pedra Polida, nome adotado para identificar a técnica de construir armas e instrumentos com pedras polidas mediante atrito. Em decorrência desta descoberta (o atrito), o homem produziu Arte pré-histórica14 o fogo e começou a trabalhar com metais. Esse aprimoramento técnico ocorreu paralelamente ao início da agricultura e da domesticação de animais. A vida nômade do Paleolítico deu lugar à fixação do homem na terra, uma vida mais estabilizada. Esses acontecimentos também são denominados Revolução Neolítica (GOMBRICH, 1999; SANTOS, 2000). A Revolução Neolítica transformou profundamente a história humana: o cultivo da terra garantiu a fixação do homem e o induziu à criação de manadas, influenciando diretamente no aumento rápido da população e no estabeleci- mento das primeiras instituições, como a família e a divisão do trabalho. O homem começou a tecer, a fabricar cerâmica e a construir sua moradia. A arquitetura da Pré-História é produto do período Neolítico. Aspectos da arquitetura pré-histórica A nova forma de vida instituída pelo Neolítico (5.000–3.000 a.C.) originou muitas habilidades e invenções humanas, ampliadas com a manipulação dos metais (Idade do Metais, aproximadamente 3.300–1.000 a.C.). Dentre elas, a cerâmica, a tecelagem e a fi ação se constituíram como métodos básicos para a construção arquitetônica, acrescidos do domínio da fabricação de instrumentos em pedra (JANSON; JANSON, 2009). Na transição para a agricultura, ao abandonar a vida nômade que conduzia o homo sapiens e suas famílias a abrigarem-se nos lugares que a natureza oferecia, certamente surgiram moradias que se assemelhavam a cabanas construídas com os mais diversos materiais. Esses abrigos, construídos com madeira, peles de animais e fibras que as pessoas começaram a tecer, não resistiram ao tempo. Baumgart (1999, p. 10) afirma que “[...] cabanas dos mais diversos materiais, não eram arquitetura no sentido de uma arte da constru- ção, que somente pode ser designada como tal quando excede a necessidade puramente prática através de uma conformação espacial [...]”. Os monumentos megalíticos são os mais significativos representantes da arquitetura pré-histórica, conhecidos como construções de culto. Hauser (2003, p. 11) esclarece que “Os ritos religiosos e os atos de culto assumem agora o lugar da magia e da feitiçaria [...]”. Isso significa que o homem neolítico superou o esforço pela defesa contra os ataques do inimigo e as necessidades materiais que o levaram a recorrer a práticas mágicas no período Paleolítico. A vida neolítica gravitava em torno da casa e do campo, da lavoura e da pastagem, da aldeia e do santuário. As formações megalíticas conhecidas são: o menir, o dólmen e os círculos de pedra (cromlech) (Figura 7). 15Arte pré-histórica Figura 7. Monumentos megalíticos: (a) menir; (b) dólmen; (c) círculo de pedra. Fonte: (a) AlexMorozov1204/Shutterstock.com; (b) Lyd Photo- graphy/Shutterstock.com, (c) Spumador/Shutterstock.com. O menir é um dos grandes monólitos pré-históricos, o qual consiste em grandes pedras verticais isoladas, encontradas principalmente no norte da Europa, como Irlanda, e no nordeste da França. Os menires isolados podem estar relacionados aos cultos para fertilidade ou marcos territoriais. Também foram implantados em linha, como exemplifica o alinhamento de menir no importante sítio arqueológico de Carnac, na França, no qual foram utilizadas mais de mil pedras (BAUMGART, 1999). Nessa configuração, eram possi- velmente orientadores espaciais (Figura 8). Arte pré-histórica16 Figura 8. Alinhamento de menir. Fonte: Calaeco (2008, documento on-line). O dólmen é um monumento druídico, composto de uma grande pedra plana sustentada por outras duas ou mais pedras verticais (Figura 9). A con- figuração resultante alude a uma câmara que servia de acesso a locaisde sepultamento ou de culto à morte: as “[...] galerias mortuárias [...]”, segundo Baumgart (1999, p. 11). Figura 9. Dólmen, Inglaterra. Fonte: Panglossian/Shutterstock.com. 17Arte pré-histórica O monumento megalítico que mais se aproxima de uma grande arquitetura é, sem dúvida, o santuário circular Stonehenge. O cromlech (círculo de pedra) foi erigido entre 2.000 a.C. e 1.000 a.C. na planície de Salisbury, na Inglaterra, com diâmetro de 29,5 metros que se amplia a 114 metros no anel exterior, cuja altura das pedras é de 4 metros. Com finalidade religiosa, a estrutura inteira é voltada para o ponto exato em que o Sol nasce no dia mais longo do ano, aludindo a um ritual de adoração do sol, conforme observa Baumgart (1999, p. 11): “Sua disposição com a pedra-altar no centro tem relação com o nascer do sol de 21 de junho, o que não permite concluir nada sobre um determinado culto ao sol, porém sobre concepções de uma visão de mundo que abrange poderes terrenos e sobrenaturais e que se manifesta visivelmente na disposição da construção [...]”. O caminho para a arquitetura monumental foi iniciado no Neolítico, cuja maior representação é o Stonehenge, considerada por diversos historiadores como a primeira grande obra arquitetônica que se tem registro. O monumento possui características majestosas, sobre-humanas, e permanece sendo uma das mais importantes referências arquitetônicas de nossos antepassados. Da Idade do Bronze (ou Idade dos Metais, aproximadamente a partir de 2.000 a.C. até a romanização) surgem registros arqueológicos de moradias e assentamentos humanos. Trata-se dos Nuragues (ou Nurago), edificações construídas em pedra sem nenhuma argamassa e em forma de cone truncado, encontrados na região da Sardenha, na Itália (SANTOS, 2000). A Figura 10 apresenta um exemplar notável dessa tipologia arquitetônica. Esses conjuntos edificados aparentam combinar as funções de residên- cia de líderes, fortalezas militares, espaços de reunião, templos religiosos e residências das pessoas comuns. A complexa tecnologia construtiva dos nuragues foi aplicada em outras ocasiões posteriores, tendo sido referência para as construções romanas. Arte pré-histórica18 Figura 10. Nurago La Prisciona, na Sardenha. Fonte: Lücking (2010, documento on-line). No fim do período Neolítico, os artistas puderam trabalhar os metais, pro- duzindo peças com requinte de detalhes, em decorrência do domínio da pro- dução do fogo. As denominadas “sociedades primitivas” da África tropical, das Américas e do Pacífico Sul produziram uma grande variedade de objetos artísticos — produção conhecida como arte primitiva. A característica dominante compartilhada por toda a produção do período é a reestruturação imaginativa das formas da natureza, substituindo a observação criteriosa e naturalista. A mente primitiva entendia todas as coisas como sendo animadas por espíritos poderosos: homens, animais, plantas, terra, águas, vento, sol e chuva. Consensualmente, a história se inicia com a invenção da escrita, fenômeno que constitui uma das diferenças fundamentais entre as sociedades pré-his- tóricas e históricas. No entanto, ao estudar a produção artística do homem pré-histórico, podemos constatar que vivemos um período farto em eventos. A velocidade com a qual esses eventos se apresentam marcou a transição da Pré-História para a História, sem, no entanto, desprezar os imensos feitos humanos, principalmente no campo das artes. 19Arte pré-histórica BAUMGART, F. Breve história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BAYER, H. História da estética. Lisboa: Estampa, 1979. BELL, J. Uma nova história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2008. BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. CALAECO. Kermario alinamentos. 2008. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/ Ficheiro:Kermario_alinamentos.jpg. Acesso em: 30 jul. 2019. DONDIS, D. A. Sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL. Arte rupestre. São Paulo: Itaú Cultural, 2017. 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REALE, G. História da filosofia. São Paulo: Paulus, 1991. v. I, II, III WOLFFLIN, H. Conceitos fundamentais da história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Arte pré-histórica20
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