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Março / 2020 Professor/autor: Dr. Júlio Paulo Tavares Zabatiero Projeto Gráfico e Capa: Mauro Rota - Departamento de desenvolvimento institucional Todos os direitos em língua portuguesa reservados por: Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR 86055-670 Tel.: (43) 3371.0200 3Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | SUMÁRIO Bíblia III - Introdução ao Novo Testamento Unidade I - Começando a estudar o Novo Testamento 1. Por que estudar "Introdução ao Novo Testamento"?.......................................................04 2. Aspectos da geografi a e história dos tempos helenísticos............................................11 3. A Organização Discursiva e o Cânon do Novo Testamento............................................20 Unidade II - O contexto Político-Cultural do Novo Testamento 1. O Império Romano: a Pax Romana...................................................................................34 2. O Império Romano: Filosofi as Populares.........................................................................47 3. O Império Romano: Religiões............................................................................................57 Unidade III - O universo discursivo judaico no período helenístico 1. O Judaísmo nos tempos do Novo Testamento...............................................................66 2. O discurso judaico ofi cial..................................................................................................73 3. Discursos judaicos de oposição e resistência.................................................................82 4. Loucura e escândalo: um messias inaceitável (uma análise de I Coríntios 1:18-31)...89 Unidade IV - A teologia neotestamentária no contexto do judaísmo 1. A fi delidade à Torá: um tema em disputa (refl exão a partir do evangelho de Marcos.....97 2. A fi delidade à Torá: um tema em disputa (refl exões a partir de Gálatas 3:1:29).........104 3. O discurso Judaico Ofi cial sobre a pureza......................................................................112 4. O discurso cristão sobre a pureza...................................................................................119 Respostas e reações dos exercícios..........................................................................126 | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA4 UNIDADE I : Começando a estudar o Novo Testamento 1. Por que estudar “Introdução ao Novo Testamento”? (1) Porque o Novo Testamento foi escrito em uma época da história humana que pode ser datada entre os séculos III a.C. e II d.C. Consequentemente, várias distâncias nos separam dos tempos neotestamentários – temporal, geográfi ca, linguística, cultural, social, política, econômica, religiosa – distâncias essas que precisam ser encurtadas pelo estudo; (2) Porque apesar da nossa familiaridade com a superfície dos textos bíblicos, mediante a leitura diária da Escritura, as características linguísticas, literárias e culturais também são distantes das mesmas características na atualidade (e.g., para nós, os Evangelhos são “biografi as” de Jesus, mas quando comparamos os Evangelhos com as biografi as da época neotestamentária, percebemos que eles não compartilham das características das biografi as daquela época); (3) Porque, como consequência dessas distâncias, os sentidos dos temas presentes nos escritos do Novo Testamento também diferem dos sentidos que eles fundamentam em nossas teologias atuais – e o grande desafi o que esta característica apresenta para nós é o de discernir com clareza a “nossa” teologia e a teologia “deles” (e.g., ao estudarmos os temas teológicos da literatura paulina, veremos o tema do senhorio de Cristo. Para nós, esse tema indica essencialmente que Jesus é, como Deus, alguém que tem autoridade plena e poder sobre todas as coisas. Nos escritos paulinos, estes aspectos do sentido do senhorio de Cristo estão presentes, mas não da mesma forma como em nossa realidade atual); Portanto, o estudo introdutório do Novo Testamento tem como objetivos principais nos ajudar a superar essas distâncias a fi m de entender melhor os seus escritos. O nome da disciplina é “introdução” porque ela é preparatória para o estudo exegético e teológico dos escritos neotestamentários. 5Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | A perspectiva teórica desta disciplina O estudo contemporâneo do período histórico do Novo Testamento tem sido realizado a partir de diferentes perspectivas teóricas, das quais as mais importantes são: (1) perspectiva histórica propriamente dita: a tarefa fundamental do estudo é situar os escritos neotestamentários na história do tempo de sua escrita. Para fazer isto, é necessário, consequentemente, datar os livros bíblicos (quase todos eles não tem indicação explícita da data de sua escrita – naqueles tempos não havia a noção de direitos autorais e de reprodução – copyright – com as datas de publicação, etc.), descobrir onde e como foram escritos, que problemas os escritos tentaram resolver, etc. A teoria exegética que sustenta a perspectiva histórica afi rma que “um texto só pode ser entendido dentro de seu contexto”. A perspectiva histórica possui duas grandes vertentes: a histórico- crítica e a histórico-gramatical. Ambas possuem basicamente o mesmo conceito de história e verdade histórica (um texto é histórico na medida em que narra ou representa fi elmente os acontecimentos conforme eles realmente aconteceram), mas diferem na sua atitude no tocante à relação entre a teologia e a exegese. Na vertente histórico-crítica, conceitos teológicos ou doutrinários não devem interferir no estudo introdutório (e.g., a inspiração dos escritos bíblicos não os dota de uma “veracidade histórica” superior a qualquer outro escrito humano). Na histórico-gramatical, conceitos doutrinários ou teológicos podem interferir no estudo introdutório – na vertente fundamentalista, não só a teologia interfere, como também funciona como único critério de verdade para se pesquisar quando, onde, quem e como os textos bíblicos foram escritos). Um exemplo da perspectiva histórico-gramatical é: CARSON, D. A.; MOO, D. J. & MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento, Vida Nova, São Paulo, 1997. Um exemplo da perspectiva histórico-crítica é: BROWN, R. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2005.; | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA6 (2) perspectiva histórico-literária: nesta perspectiva, o foco fundamental recai sobre as características literárias dos escritos bíblicos, fi cando em segundo plano as questões mais tipicamente históricas. A defi nição da data, autoria, história da elaboração do texto são deixadas em lugar secundário, e o foco recai sobre o texto em sua forma fi nal. A ênfase recai, assim, na pergunta pelas questões típicas da crítica literária: gêneros textuais e literários, características de estilo, formas de expressão, uso de linguagem fi gurada, distinção entre prosa e poesia, etc. No tocante à relação entre teologia e introdução, a perspectiva literária é mais plural do que a histórica. A forma dessa relação depende muito mais do autor ou autora do estudo do que, propriamente, da teoria literária utilizada – uma vez que para a teoria literária a questão da verdade ou veracidade histórica de um texto não é relevante. A obra coletiva ALTER, R. & KERMODE, F. (orgs.) Guia Literário da Bíblia, São Paulo, EdUNESP, 1997 é um excelente exemplo da perspectiva literária. O manual de interpretação bíblica de FEE, G. & STUART, D. Entendes o que lês, São Paulo, Vida Nova, 1996 é um exemplo de como os estudos introdutórios em perspectiva literária podem ser usados com uma teologia conservadora. 7Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | (3) perspectiva sociológica: esta perspectiva é uma forma de especialização da histórica – seu enfoque recai sobre as estruturas sociais e culturais dos tempos em que os textos bíblicos foram escritos. Por isso, precisa das defi nições encontradaspela pesquisa histórica sobre data, autoria, etc. Uma vez datado e situado geografi camente o texto, o estudo introdutório passa a perguntar pelas características da sociedade em que o texto foi escrito: como era a estrutura política, as divisões sociais, os papéis masculino e feminino, a função do texto com relação à ideologia social e à utopia, etc. Os enfoques desta perspectiva são variados, de acordo com a teoria sociológica adotada pela pessoa que realiza o estudo. Por exemplo: STAMBAUGH, J.E. & BALCH, D.L. O Novo Testamento em seu ambiente social (São Paulo, Paulus, 1996), adota uma teoria sociológica de cunho weberiano. THEISSEN, G. Sociologia da cristandade primitiva (Sinodal, São Leopoldo, 1987), adota uma teoria sociológica de cunho mais funcionalista, com elementos adotados da psicanálise e psicologia social. HOUTART, F. Religião e Modos de produção pré-capitalistas (São Paulo, Paulinas, 1982), é exemplo de uma teoria marxista da sociedade aplicada ao estudo não só de introdução à Bíblia, mas da religião em geral. FIORENZA, E. S. As Origens Cristãs a partir da Mulher (São Paulo, Paulinas, 1992), exemplifi ca um enfoque sociológico caracterizado por uma teoria de gênero. Dentro desta vertente também podem ser classifi cados os estudos mais tipicamente antropológicos – aqueles que perguntam pela cultura dos tempos bíblicos. Assim como há uma diversidade de enfoques sociológicos adotados nesta perspectiva, também a questão da relação entre conceitos teológicos ou doutrinários e o estudo introdutório é variada. Depende muito dos autores que a utilizam, embora a maioria deles (e delas) venha de ambientes em que se pratica também a pesquisa histórico-crítica. Nesta disciplina adotaremos uma perspectiva teórica que engloba elementos das três perspectivas acima, tendo como eixo uma teoria da ação humana em sociedade conhecida como Teoria da Ação Comunicativa – que engloba aspectos da pesquisa histórica, da linguística (que fundamenta algumas das teorias literárias) e das sociologias modernas. | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA8 Não é necessário descrever esta perspectiva aqui, uma vez que ela estará no pano de fundo de todo o nosso estudo, e suas características principais aparecerão ao longo da disciplina. À medida que usarmos conceitos da teoria, eles serão explicitados e explicados. Como o nosso objetivo maior é entender melhor o Novo Testamento, conhecer a teoria usada para o estudo introdutório é algo secundário – a nossa atenção deve recair diretamente sobre o Novo Testamento e seu mundo. As duas obras publicada em português mais próximas desta perspectiva são: KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2005 (vol. 1 História, cultura e religião do período helenístico; vol. 2 História e literatura do cristianismo primitivo) e KLAUCK, Hans-Joachim. O entorno religioso do cristianismo primitivo. São Paulo: Loyola, 2011 (vol. 1 Religião civil e religião doméstica, cultos de mistérios, crença popular; vol. 2 Culto aos governantes e imperadores, fi losofi a, gnose. São Paulo: Loyola, 2011). EXERCÍCIO DE REFLEXÃO - 01 Após a argumentação inicial sobre a importância de se estudar de forma mais ampla diferentes aspectos do mundo na época de Jesus, escreva a seguir como os aspectos citados podem infl uenciar em sua construção teológica a respeito do Novo Testamento. Talvez estas explicações teóricas não tenham sido muito convincentes para você. Você pode ainda estar se perguntando: “é mesmo necessário estudar esta disciplina? Os textos do Novo testamento são tão claros e fáceis de entender!” Vejamos exemplos de textos que podem nos ajudar a perceber melhor a necessidade dos conhecimentos que iremos construir nesta disciplina de Introdução ao Novo Testamento: Quando Jesus desceu do monte, grandes multidões o seguiam. E eis que veio um leproso e o adorava, dizendo: 9Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | Senhor, se quiseres, podes tornar-me limpo. Jesus, pois, estendendo a mão, tocou-o, dizendo: Quero; sê limpo. No mesmo instante fi cou purifi cado da sua lepra. Disse- lhe então Jesus: Olha, não contes isto a ninguém; mas vai, mostra-te ao sacerdote, e apresenta a oferta que Moisés determinou, para lhes servir de testemunho. Tendo Jesus entrado em Cafarnaum, chegou-se a ele um centurião que lhe rogava, dizendo: Senhor, o meu criado jaz em casa paralítico, e horrivelmente atormentado. Respondeu-lhe Jesus: Eu irei, e o curarei. O centurião, porém, replicou-lhe: Senhor, não sou digno de que entres debaixo do meu telhado; mas somente dize uma palavra, e o meu criado há de sarar (Matteus 8:1-8). Repare nas palavras e frases em itálico. Você é capaz de dizer de que “monte” Jesus veio, e por que ele estava lá? Ou, você é capaz de dizer onde fi cava Cafarnaum? Se é o nome de uma cidade grande, de um vilarejo, de uma cidade judaica ou gentílica? Por que o leproso não pede para Jesus curá-lo, mas para torná-lo “limpo” e Jesus diz a ele “Sê limpo” e o texto fala do ex-leproso como tendo sido purifi cado, e não curado? Como explicar o fato de que um “centurião” se dirige a Jesus (quem eram os centuriões? Por que tão poucos centuriões | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA10 aparecem no relato bíblico?) e o chama de “Senhor” e pede a Jesus que cure um criado seu, paralítico? Paralisia não é doença, para ser “curada”, conforme nós costumamos dizer. Ademais, por que o centurião fala do seu criado como “paralítico” e “atormentado”? O leproso judeu e o centurião chamam Jesus de “Senhor”, será que ao usar a mesma palavra eles entendiam a mesma coisa? Vejamos outro texto: Chegou também a Derbe e Listra. E eis que estava ali certo discípulo por nome Timóteo, fi lho de uma judia crente, mas de pai grego; do qual davam bom testemunho os irmãos em Listra e Icônio. Paulo quis que este fosse com ele e, tomando-o, o circuncidou por causa dos judeus que estavam naqueles lugares; porque todos sabiam que seu pai era grego. Quando iam passando pelas cidades, entregavam aos irmãos, para serem observadas, as decisões que haviam sido tomadas pelos apóstolos e anciãos em Jerusalém. Assim as igrejas eram confi rmadas na fé, e dia a dia cresciam em número. Atravessaram a região frígio-gálata, tendo sido impedidos pelo Espírito Santo de anunciar a palavra na Ásia; e tendo chegado diante da Mísia, tentavam ir para Bitínia, mas o Espírito de Jesus não lho permitiu. Então, passando pela Mísia, desceram a Trôade (Atos 16:1-8). Você seria capaz de desenhar um mapa com a localização de todos os lugares mencionados neste texto de Atos? Por que o texto fala da mãe de Timóteo como uma “judia crente” — havia judeus não-crentes? Crente em quem? Por que Timóteo não foi circuncidado ao oitavo dia — seu pai era grego (não-judeu) — mas Paulo fez questão de circuncidá-lo por causa dos judeus que estavam nos lugares por onde ele fez missão? Que relação institucional havia entre as igrejas em Jerusalém e as igrejas fundadas por Paulo, para que este lhes entregasse as decisões tomadas na reunião dos apóstolos e anciãos em Jerusalém? Que diferenças havia entre as funções de apóstolos e anciãos nas igrejas neotestamentárias? 11Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | Estes dois exemplos apenas reforçam a necessidade que temos de estudar o período helenístico a fi m de podermos interpretar mais adequadamente os escritos do Novo Testamento. No decorrer desta disciplina, nos esforçaremos para aprender o máximo possível sobre a história e a cultura helenísticas. 2. Aspectos da geografi a e história dos tempos helenísticos Após observarmos a necessidade de estudar diversos aspectos para melhor interpretação das Escrituras, iniciaremos com a geografi a e história do Mediterrâneo à época do Novo Testamento. O Cristianismo nasce durante um período em que todo o mundo helenístico estava sob o domínio do Império Romano. O mundo helenístico se localizava no entorno do mar Mediterrâneo. A palavra “mediterrâneo”signifi ca “entre terras”, e o Mar Mediterrâneo era chamado “mare internum” (latim), conforme o mapa1 abaixo: 1 Copyright (c) Júlio P. T. Zabatiero. Permission is granted to copy, distribute and/or modify this document under the terms of the GNU Free Documentation License, Version 1.2 or any later version published by the Free Software Foundation; with no Invariant Sections, no Front-Cover Texts, and no Back-Cover Texts. A copy of the license is included in the section entitled “GNU Free Documentation License”. | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA12 Nosso principal objetivo neste estudo inicial do mundo do Novo Testamento é tentar perceber como as principais características geo- históricas do mundo mediterrâneo infl uenciaram o cristianismo nascente. SAIBA MAIS O imperialismo romano é um movimento de longa duração. Trata- se de quase um milênio de exploração, autoritarismo bélico e de domínio sobre outros povos. Caracterizado por sua crueldade, braço forte, grandes conquistas - através de sua capacidade militar - e superioridade tecnológica, é reconhecido como um dos maiores Impérios de todos os tempos e designa um período histórico marcado pela ampla dominação da potência romana, sob a direção de seus césares. Representava uma forma institucional e territorial do exercício de um poder monárquico. É, sem dúvida, um modelo exato daquilo que signifi ca o poder imperial em todas as variáveis que identifi cam um Império e suas ações imperialistas. A inclinação expansionista, motivada por fatores econômicos e comerciais, e o desejo pelo domínio e magnitude certamente estiveram presentes em toda a história do Império romano. Ou seja, convencido de sua força e aptidão à grandeza, brotava no coração dos romanos o anseio pelo poder e pela conquista, centro de suas motivações e ambições. Esse objetivo foi alcançado em boa parte do Mediterrâneo - uma região privilegiada estrategicamente por onde passavam as maiores e mais importantes vias de comunicação - muito embora o lado do Mediterrâneo não foi o único a ser ocupado. Entre os povos conquistados estavam os hebreus, no Oriente Médio, os bretões, na região da atual Inglaterra, os gauleses, onde hoje é a França, os egípcios, os gregos e muitos outros. 13Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | Dentre as estratégias de expansão, destacava-se a busca por terras cultiváveis, interesses marítimos e de divisas comerciais. O poder romano e suas estratégias de controle e expansão passavam, ainda, por questões políticas e era sinônimo de exploração de recursos naturais e humanos, de violência física, sexual e psicológica contra todas as pessoas, de expansão e construção na base do trabalho escravo e da imposição de impostos e tributos. Era a partir das imposições imperiais que a vida dos povos subjugados deveria ser organizada, ainda que em alguns lugares houvesse tentativas de resistência e vida alternativa. Nesse caso, os vencidos eram massacrados e escravizados. Suas terras eram assumidas e divididas entre os romanos, as elites e os governos locais. SILVA, Flávio Henrique de Oliveira. Poder e Violência nos dias de Jesus: O reino de Deus em perspectiva anti-imperial. 2.1. O helenismo Para compreender melhor os escritos do Novo Testamento e as comunidades cristãs que os produziram, é necessário construirmos uma visão panorâmica do mundo mediterrâneo do qual nasceu o Cristianismo. Do ponto de vista geográfi co, o mundo mediterrâneo engloba três continentes: Europa, Ásia e África – o que acarreta uma grande diversidade cultural, étnica, política, econômica e religiosa. Sendo assim, o que justifi ca falar em “mundo mediterrâneo”? Não só o domínio imperial romano mas, já antes dele, a conquista de partes signifi cativas da Ásia e África por Alexandre, o Grande (séc. IV a.C.), que produziu uma espécie de homogeneização cultural-religiosa através da difusão do helenismo. Através do processo de helenização, a língua e a cultura gregas se difundiram por todo o mundo mediterrâneo, especialmente graças às | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA14 cidades fundadas por Alexandre e seus sucessores, nas quais a civilização grega era implantada e se difundia pelo território ao seu derredor. O Judaísmo e o cristianismo nascente não podem ser entendidos de forma isolada do padrão cultural e religioso helenístico. Entretanto, o helenismo não pode ser visto como uma rua de mão única. Também a língua e a cultura gregas foram infl uenciadas pelas culturas afro-asiáticas dos povos conquistados – desenvolveu-se o grego coinê (a forma da língua grega usada pela maioria da população, e presente em o Novo Testamento), expandiram-se as religiões salvífi cas de mistério (sincretismo de cultos afro-asiáticos com cultos greco-romanos), o Judaísmo fi cou conhecido e era praticado em toda a região graças à dispersão de judeus (o que facilitou a expansão do Cristianismo). 2.2. O Judaísmo O Judaísmo da época do nascimento do Cristianismo possuía diferentes tendências teológicas e institucionais. Na terra de Israel, três grandes grupos de líderes religiosos se esforçavam para defi nir como viver a fé judaica: os saduceus, os fariseus e os essênios. Os saduceus eram um grupo composto principalmente por sacerdotes e suas famílias, e valorizava amplamente o ritual sacrifi cial, a obediência às leis relativas à alimentação e à pureza, a frequência ao Templo e o estudo do Pentateuco como a fonte primordial das doutrinas judaicas e do conhecimento da vontade de Deus. Os fariseus eram o principal grupo teológico que se opunha aos saduceus. Os fariseus não eram sacerdotes, eram líderes leigos, “rabinos” em sua maioria, que destacavam: a obediência a todos os mandamentos da Lei de Deus, a radical separação do mundo gentio, a prática de boas-obras e o estudo de todo o Antigo Testamento como a Palavra de Deus. Enquanto os saduceus tinham o domínio do Templo de Jerusalém e da política judaica, os fariseus tinham o domínio das sinagogas (casas de oração e estudo) e das cidades do interior de Israel. 15Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | O terceiro grupo mais importante é chamado de essênios. Eles eram uma espécie de movimento de renovação do Judaísmo. Consideravam que tanto os fariseus como os saduceus estavam errados em sua interpretação da vontade de Deus. Por isso, se afastavam do Templo e das sinagogas e constituíam comunidades próprias, nas quais estudavam as Escrituras e os textos de seus principais líderes. Os essênios fi caram conhecidos nos últimos tempos graças à descoberta dos manuscritos de Qumram, uma das sedes do movimento. Apesar das grandes diferenças teológicas entre eles, todos esses grupos defendiam a esperança messiânica – ou seja, todos eles esperavam que Deus iria libertar Israel do domínio do Império Romano através do Messias, que iria liderar o exército do povo de Deus contra o do Império Romano. Além desses grupos mais importantes, havia vários outros grupos populares de teologia judaica em Israel, além dos movimentos teológicos dos judeus fora da terra de Israel. Um dos nomes mais conhecidos do Judaísmo fora de Israel é o de Filo, da cidade de Alexandria, um judeu que escreveu várias obras em que apresentou o Judaísmo ao mundo helenístico. | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA16 EXERCÍCIO DE FIXAÇÃO - 02 Os grupos religiosos de maior expressão no Judaísmo estão presentes nos Evangelhos, compreender a respeito deles nos auxilia a perceber melhor os debates e as divergências presentes nos relatos a respeito da vida de Jesus. Sendo assim, analise as afi rmações a seguir e assinale a única alternativa correta. I) Os fariseus controlavam as ações no Templo e da política judaica, além de determinar como era o funcionamento das sinagogas. II) Os essênios formavam uma comunidade independente dos saduceus e fariseus, por considerarem as interpretações erradas. III) Os saduceus tinham o Pentateuco como principal fonte das doutrinas e eram o grupo desacerdotes e suas famílias. IV) Não havia confl itos de doutrinas entre saduceus e fariseus, suas diferenças eram apenas sociais. a) Apenas as afi rmações I e III estão corretas. b) Apenas a afi rmação II está correta. c) Apenas a afi rmações II e III estão corretas d) Apenas as afi rmações I e IV estão corretas. e) Apenas as afi rmações II e IV estão corretas. 2.3. Religiões e a fi losofi a no helenismo As religiões e as fi losofi as no mundo helenístico existiam em grande quantidade e diversidade e não é possível fazer uma apresentação sucinta delas. Para a compreensão do Novo Testamento, porém, o tópico mais importante, a meu ver, é um elemento comum à maioria dessas religiões e fi losofi as: uma visão dualista do mundo. Por dualismo entendemos uma visão de mundo que separa o material do espiritual e atribui ao espiritual mais valor do que ao material. Por exemplo, em religiões de mistério, a salvação era entendida como salvação da alma, e não do corpo, pois o 17Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | corpo não teria chance de ser salvo, pois deveria ser destruído. Note que o Cristianismo afi rma a ressurreição do corpo! Na fi losofi a de Platão, por exemplo, o mundo espiritual era concebido como formado de ideias que eram a própria essência das coisas que se percebiam no mundo material, de modo que a sabedoria e a salvação consistiam em conhecer as ideias, pois tal conhecimento nos livraria da prisão do corpo. Quando Paulo, aos coríntios, diz que o conhecimento incha, ele está se referindo a esse tipo de conhecimento fi losófi co, e não ao conhecimento em geral. 2.4. Uma sociedade agrária avançada A economia do mundo mediterrâneo se caracteriza principalmente pelo latifúndio agrícola e pelo trabalho escravo. Ao lado da produção agrícola, a mineração e o comércio internacional eram as outras atividades econômicas fundamentais. Não se deve desconsiderar, todavia, o signifi cativo papel desempenhado na economia do mundo romano pela tributação que o Império impunha em seus domínios – que ajudava a manter a desigualdade social intensa e a vida em níveis precários de subsistência para a imensa maioria da população. É importante ressaltar, porém, que a ênfase central na escravidão como fator determinante da economia daquele tempo deve ser qualifi cada. Na maior parte das regiões do Império Romano o trabalho agrícola era realizado por pessoas livres, espécies de arrendatários das terras que pertenciam a um número relativamente pequeno de cidadãos romanos ricos e poderosos. A tecnologia de produção era precária, fortemente dependente da mão-de- obra, mas em comparação com períodos anteriores era mais adequada, na medida em que se usavam ferramentas de ferro (especialmente arados) que permitiam maior produtividade, de modo que se produzia sufi cientemente para a subsistência da população geral do Império. O problema maior era a distribuição desses produtos, de tal forma que os governantes romanos tinham um papel importante na distribuição do trigo, por exemplo, como um dos meios de manter a tranquilidade nos seus domínios. Avanços mais signifi cativos se deram na construção de estradas e aquedutos, bem como no desenvolvimento de formas mais | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA18 seguras de navegação ao longo das diversas costas do Mediterrâneo. Tais avanços foram necessários em função de dois fatores principais: o comércio e a manutenção do controle militar (exércitos dependem de boas estradas para alcançar com rapidez regiões de guerra). Em parte, isto nos ajuda a entender a importância do controle dos exércitos na tomada e manutenção do poder imperial. Também nos ajuda a entender a importância da pax romana como mecanismo ideológico de apoio para a manutenção da tranquilidade nos domínios imperiais. 2.5. A vida urbana Se a economia estava profundamente ligada ao campo, a vida cultural e política estava intrinsecamente ligada à cidade. Por um lado, a cidade era o centro político da sociedade, por outro, era o espaço da vida cotidiana. Vários estudiosos consideram que “exatamente a oposição entre cidade e campo é que também moldou a forma da sociedade antiga” (STEGEMANN, E. W. & STEGEMANN, W. História social do protocristianismo. Os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. São Leopoldo: Sinodal, 2004, p. 27). As cidades não eram, em sua maioria, populosas. A maioria da população habitava no campo, e nas cidades havia poucas oportunidades de trabalho – a não ser aquelas vinculadas à produção de bens e prestação de serviços especialmente para as elites urbanas (roupas, construções, alimentação, educação, lazer, etc.). Algumas cidades eram densamente povoadas, por exemplo: Roma, Corinto, Atenas, Alexandria no Egito, Éfeso (algumas com mais de 500.000 habitantes), mas a maioria era de pequeno porte. A estratifi cação política e social era elevada. “Há grandes diferenças entre as pessoas quanto à participação no poder, ao desfrute de privilégios e de prestígio na sociedade. A fonte primordial dessa desigualdade são as instituições do governo. A classe dominante entende o Estado como seu despojo.” (STEGEMANN, op. cit., p. 26) Estima-se que a população rica e governante representasse de 1 a 2% de toda a população do 19Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | Império. Devido à concentração dessa pequena parcela da população nos serviços estatais, havia também grande dose de corrupção, uma forma de ascensão política e econômica mais rápida e viável do que o desenvolvimento baseado no trabalho e talento. Boa parte da vida na cidade se caracterizava pela participação no governo (lembre-se da ínfi ma parcela da população representada nos altos escalões governamentais) e na vida cultural (teatro, banhos, festas religiosas, atividades esportivas, poesia, etc.). Cidades como Atenas, por exemplo, eram centros intelectuais de grande importância e ajudavam a difundir o modo de vida greco-romano. Por outro lado, as cidades acabavam por se tornar, também, espaço de dissensão e revoltas populares, de modo que o controle “policial” nas mesmas era de alta importância e feito, evidentemente, pelos exércitos imperiais. EXERCÍCIO DE APLICAÇÃO - 03 Pudemos observar bem rapidamente como o contexto religioso, político e econômico são importantes para compreender melhor as Escrituras do Novo Testamento. Sendo assim, para contextualizar o Evangelho de maneira coerente, é igualmente importante conhecermos nosso contexto religioso, político, econômico. Essa afi rmação é verdadeira ou falsa? Assinale a única alternativa correta. a) Falsa, pois esses fatores são não agregam na leitura, interpretação e contextualização das Escrituras. b) Verdadeira, pois só é possível comunicar uma mensagem de forma efetiva se conhecermos bem nosso próprio contexto. c) Falsa, porque não houve nenhuma mudança signifi cativa no mundo daquela época e na atualidade. | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA20 Conclusão Procure, agora, relacionar os conhecimentos acima com alguns textos do Novo Testamento, por exemplo: 1Co 1:18-31; At 17:1-14.15-34; Ap 18:1-24. Note em 1Co 1:18-31 como Paulo usa aspectos do contexto para argumentar e apresentar a sua teologia: ele fala de judeus e gregos; ele usa termos relativos à estratifi cação social e à fi losofi a: sábios, poderosos, nobres, fracos, fortes, desprezados. Em Atos 17:1-14 também aparecem judeus e gregos, cidades, autoridades, diferentes religiões – note como Paulo e Silas procuram perceber esses aspectos do contexto em sua pregação do Evangelho. O capítulo 18 do Apocalipse é uma grande denúncia de João contra o Império Romano (que ele chama, no texto, de Babilônia – a grande nação inimiga do povo judeu no passado) – e termos como cidade, luxo, comércio, navios, marinheiros, escravos nos indicam aspectos do contexto e nos dão pistas a respeito de como João analisava criticamente o mundo em que ele vivia. 3. A Organização Discursiva e o Cânon do NovoTestamento Já vimos a afi rmação de que só é possível entender o texto dentro de seu contexto histórico. A tarefa que temos, então, é: como tirar proveito do “contexto histórico” para entender o texto? Assim sendo, nesse tópico iremos descrever como estava organizado discursivamente o contexto histórico dos escritos no Novo Testamento. Na exegese de acordo com o modelo histórico, a operacionalização deriva de uma concepção objetivista e factual da história. Isso signifi ca que o “contexto histórico” que me ajuda a entender um texto é composto de fatos, acontecimentos e estruturas político-sociais. Assim, há a necessidade de toda uma descrição crítica dos acontecimentos históricos da época da escrita do texto, a fi m de que se possa verifi car a relação entre acontecimentos e textos, entre estruturas e textos. Nos modelos linguísticos e discursivos de interpretação textual, não se contesta o princípio da contextualidade. De fato, só é possível entender um texto em suas relações com o contexto em que 21Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | foi produzido e inicialmente comunicado. A diferença está na forma de operacionalização do princípio da contextualidade. Nos modelos discursivos, o “contexto histórico” é analisado do ponto de vista dos discursos que o explicam, das formações discursivas que agrupam esses discursos e estabelecem os parâmetros de sua circulação, comunicação e confl itividade. Neste modelo, parte-se do reconhecimento de que nós não temos acesso direto (imediato) aos acontecimentos, mas apenas um acesso indireto (mediado) ao contexto histórico, acesso este que está presente nos discursos da época em que o texto a ser interpretado foi formulado e circulou inicialmente. 3.1. Situando os escritos neotestamentários no tempo Nos tópicos anteriores construímos conhecimentos relativos à geografi a, economia, estruturação social e política e os discursos que circulavam no mundo mediterrâneo à época do Novo Testamento. Nossa tarefa, agora, será formular uma proposta de estruturação desse amplo e complexo contexto histórico a partir dos discursos que o explicavam, e verifi car como essa organização discursiva afetava o cristianismo nascente e os escritos neotestamentários. Como aspecto preliminar a essa questão, precisamos situar os escritos do Novo Testamento dentro do primeiro século a.C. Apresento uma breve síntese das datas dos primórdios do Cristianismo e escritos neotestamentários. No caso dos escritos do Novo Testamento, vários deles têm suas datas ainda sob forte discussão, de modo que não se deve interpretar a síntese aqui oferecida como a palavra fi nal sobre tais questões. Vale a pena destacar que a questão da datação de um texto não pode ser resolvida a partir de critérios doutrinários ou confessionais. A datação de um texto é reconstituída a partir de uma pesquisa que se baseia em critérios literários, fi lológicos, sociológicos, antropológicos e históricos – todos os quais, somados, procuram nos fornecer o máximo de objetividade e acerto possíveis. | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA22 Assim, por exemplo, em uma das tendências de datação de textos do Novo Testamento, se considera que o corpus paulino é composto de cartas escritas por Paulo e de cartas escritas por discípulos de Paulo, embora não se faça tal distinção nos sobrescritos delas. Por exemplo, para boa parte dos pesquisadores, as Pastorais não foram escritas por Paulo – o uso do nome de Paulo nas mesmas seguiria um padrão comum e aceito na época: o da pseudonímia – usava-se o nome de uma pessoa famosa a fi m de conferir maior peso e autoridade a um escrito. Pesquisadores que usam critérios doutrinários para estudar as datas dos escritos, porém, contestam tal hipótese a partir do conceito de inspiração: se o texto é inspirado por Deus, tudo o que nele está escrito é verdadeiro; logo, só podemos aceitar que Paulo escreveu as pastorais e, consequentemente, a data das mesmas deve ser situada no tempo em que o apóstolo ainda estava vivo. Nesta disciplina critérios doutrinários não serão considerados para as hipóteses de datação dos textos. Ademais, nesta disciplina se pressupõe que as hipóteses de data, discursividade, interpretação dos textos, etc., não possuem “autoridade” para defi nir questões doutrinárias. Por exemplo, a doutrina de inspiração da Bíblia não deve ser decidida a partir da hipótese aceita para a datação de um determinado livro bíblico. É claro que estas hipóteses afetam a nossa maneira de formular doutrina, mas a teologia envolve outros saberes e possui critérios próprios de produção de conhecimento, que ultrapassam os limites dos critérios de produção de conhecimento na pesquisa introdutória aos escritos bíblicos. Por fi m, não é possível nesta disciplina discutir a argumentação usada para construir as hipóteses de datação de escritos neotestamentários. Se você tem interesse em entender e avaliar criticamente tal argumentação, recomendo que estude as introduções ao Novo Testamento escritas em perspectiva histórica. Por exemplo, a de Carson, Moo & Morris para uma visão mais “histórico-gramatical” de análise, e a de Brown para uma visão mais “histórico-crítica” de análise (v. bibliografi a no programa da disciplina). 23Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | EXERCÍCIO DE APLICAÇÃO - 04 Ainda que não seja visto de forma aprofundada, situar os discursos do Novo Testamento dentro de um período histórico aproximado é muito importante para auxiliar na interpretação, pois a partir disso, é possível buscar compreender melhor qual era a intenção da mensagem transmitida. Entretanto, essa não é uma tarefa tão simples, pois envolve critérios que podem variar. Quais são alguns deles? Assinale a alternativa correta: I) Doutrinários. II) Arqueológicos. III) Inspiração. IV) Literários. a) Os critérios corretos são I, III e IV. b) Os critérios corretos são II e IV. c) Os critérios corretos são I e III. d) Os critérios corretos são I, II e IV. Obras do Novo Testamento: Datas Aproximadas de Composição Início dos anos 50 Metade/Final dos anos 50 Metade dos anos 60 Anos 70-80 Anos 90 Após 100 1 Tessalonicenses Gálatas Marcos Mateus João 2 Pedro(?) 2 Tessalonicenses (?) 1 Coríntios Tito (?) Lucas Apocalipse 2 Coríntios 1 Timóteo (?) Atos 1 João Romanos 2 Timóteo (?) Colossenses(?) 2 João Filipenses 1 Pedro (?) Judas (?) 3 João | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA24 Filemon (?) Tiago (?) Tiago (?) Judas (?) Hebreus (?) Hebreus (?) 2Tessalonicenses (?) 1 Pedro (?) Efésios (?) Tito (?) 1 Timóteo (?) (?) Data incerta. Este quadro não tenta incluir as datas propostas minoritariamente. Exceto para os primeiros escritos paulinos, uma aproximação de cerca de uma década governa a maioria das datações, e.g., Mateus e Lucas poderiam ter sido escritos nos anos 90. corpus paulino Data mais recuada Data mais avançada 1 Tessalonicenses 51 2 Tessalonicenses 51/2 anos 90 Gálatas 54-57 Filipenses 56-57 1 Coríntios 57 2 Coríntios 57 Romanos 58 Filemon 56-57 ou 61-63 Colossenses 61-63 anos 70-80 Efésios 61-63 anos 90-100 Tito 65 95-100 1 Timóteo 65 95-100 2 Timóteo 66-67 95-100 25Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | evangelhos sinóticos e atos Marcos início anos 70 Mateus anos 70-80 anos 90-100 Lucas anos 70-80 anos 90-100 Atos anos 70-80 anos 90-100 corpus joanino João anos 90 anos 100-150 1 João anos 90 anos 100-150 2 João anos 90 anos 100-150 3 João anos 90 anos 100-150 Apocalipse anos 90 anos 100-150 outros escritos 1 Pedro 64 ou anos 70-80 2 Pedro 65 anos 100-150 Tiago 62 ou anos 70-80 Judas anos 70-90 Hebreus anos 60 ou anos 70-80 3.2. Situando discursivamente os escritos neotestamentários A hipótese de datação dos escritos neotestamentários acima possui alguns elementos de destaque: (1) apesar de Jesus ter vivido antes dePaulo, os escritos sobre ele (Evangelhos) são posteriores aos escritos paulinos; (2) a revolta judaica contra o Império Romano e sua derrota, em 70 d.C., foi determinante para a produção dos Evangelhos na região siro-palestinense; (3) dois grupos de textos dialogam mais com o mundo helenístico: o corpus paulino e o joanino; (4) dois grupos de textos | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA26 dialogam mais com o mundo judaico: os sinóticos e Atos e os “outros escritos”; (5) o período que compreende a segunda metade do primeiro século e a primeira metade do segundo, da era cristã, é fundamental para se entender o cristianismo nascente e os escritos neotestamentários. Do ponto de vista da organização discursiva do período, a seguinte hipótese pode nos ajudar a situar e analisar melhor a relação dos escritos neotestamentários com seu contexto histórico. Penso que podemos distinguir quatro grandes “formações discursivas” - ou seja, quatro grandes grupos de discursos explicativos da realidade na época sob estudo, excetuando a formação discursiva neotestamentária propriamente dita: a formação discursiva religiosa-helenística, a formação discursiva fi losófi ca-helenística, a formação discursiva judaica e a formação discursiva imperial-ofi cial. As relações entre essas formações discursivas eram bastante complexas, e variavam de acordo com o tempo e o espaço, e de acordo com as pessoas e instituições sociais que as criavam, mantinham e/ou modifi cavam. Por exemplo: ao incluir os escritos neotestamentários na formação discursiva judaica, enfatizo o fato de que para a sociedade em geral não era possível, naquele tempo, distinguir discursivamente cristianismo de judaísmo. Internamente, porém, judeus não-cristãos e judeus cristãos conseguiam perceber as diferenças mais importantes na descrição e interpretação da realidade. A formação discursiva judaica mantinha claramente relações polêmicas com a imperial, entretanto, houve situações em que judeus se aliavam estrategicamente aos governantes imperiais a fi m de combater seus oponentes do cristianismo nascente. Os discursos judaicos não- cristãos e judaico-cristãos, por sua vez, tinham em comum relações polêmicas com os discursos helênicos (religiosos e fi losófi cos) em sua visão de mundo, da sociedade, cultura, pessoa, etc. Da mesma forma, se relacionavam polemicamente com o discurso imperial ofi cial – embora por razões diferentes e com motivos teológicos distintos. 27Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | EXERCÍCIO DE FIXAÇÃO - 05 Quais elementos podemos citar como infl uenciadores da hipótese de datação e dos quatro grandes grupos de formação discursiva: religiosa-helenística, fi losófi ca-helenística, judaica e a imperial-ofi cial? I) A revolta e derrota judaica no ano 70 d.C. contra o Império Romano. II) Dois grupos de textos dialogam mais com o mundo helenístico: os sinóticos e Atos e os “outros escritos”. III) Os Evangelhos que são anteriores aos escritos paulinos. IV) Dois grupos de textos dialogam mais com o mundo helenístico: o corpus paulino e o joanino. a) As alternativas I e II estão corretas. b) As alternativas II e IV estão corretas. c) As alternativas I e III estão corretas. d) As alternativas II e III estão corretas. e) As alternativas I e IV estão corretas. | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA28 Conclusão Apresentei, aqui, um pequeno exemplo de uma tarefa intelectual de grandes proporções: compreender os escritos do Novo Testamento em relação ao seu contexto. Entendo este texto como uma provocação e uma convocação ao estudo cuidadoso e detalhado dessa relação dos escritos neotestamentários com o seu contexto. Mediante a pesquisa exegética, pode-se construir os diferentes discursos e entender as suas relações discursivas no contexto. Mediante a teologia bíblica, pode-se construir o quadro abrangente dessas relações discursivas e oferecer hipóteses de organização. Mediante a introdução ao Novo Testamento, se retomam essas hipóteses e se formulam novas sínteses da pesquisa. É um processo permanente e desafi ador. Para encerrar este tópico, voltemos nossa atenção à formação do cânon neotestamentário. Este tema possui diferentes dimensões de estudo, das quais enfocaremos predominantemente a dimensão histórica. Precisamos lembrar, de antemão, que o Novo Testamento não foi a Bíblia dos primeiros cristãos! De fato, a única Bíblia que os primeiros cristãos conheceram era a Bíblia Hebraica constituída daquilo que conhecemos hoje como Antigo Testamento (com pelo menos duas coleções reconhecidas como autorizadas, canônicas – a hebraica e a da Septuaginta). À medida em que as igrejas iam consolidando sua identidade, confl itos internos e externos surgiam, e exigiam que decisões teológicas, políticas, disciplinares, estruturais, fossem tomadas. Dentre essas decisões, aos poucos as comunidades cristãs dos primeiros séculos foram colecionando alguns escritos e reconhecendo neles uma autoridade teológica e moral que lhes permitia falar desses escritos como Escritura. Eventualmente, esse reconhecimento local e regional foi se ampliando, até que por volta do IV século da era cristã houvesse um consenso na Igreja Cristã a respeito do cânon do Novo Testamento. Não podemos discutir detalhadamente este processo. Por isso, segue uma citação do Comentário Bíblico São Jerônimo que apresenta uma boa síntese do processo de formação do cânon do Novo Testamento, para que você possa, pelo menos, ter a informação básica sobre este tema. 29Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | Saiba mais “48 (I) Observações Gerais. Hoje, os católicos romanos, os ortodoxos e os protestantes aceitam o mesmo cânon do NT de 27 livros. É insustentável a teoria de que estes livros foram aceitos desde os primeiros dias do Cristianismo e que as dúvidas surgiram apenas depois; esta teoria está relacionada à idéia, não mais aceita, de que conteúdos específi cos do cânon eram conhecidos na era apostólica. Os primeiros seguidores de Jesus tinham Escrituras que eles consideravam sagradas, mas estas eram escritos que chegaram a eles em virtude de sua herança judaica. Para os primeiros 100 anos de Cristianismo (30-130 d.C.) o termo AT é um anacronismo (contudo veja 2Cor 3,14); a coleção dos escritos sagrados de origem judaica não seria designada como “Antiga” senão até haver uma “Nova” coleção da qual ela diferia. (O Judaísmo moderno não fala de um AT; visto que os judeus rejeitam o NT; para eles há apenas uma coleção sagrada.) Quando os cristãos começaram a escrever suas próprias composições e por que? Quando elas foram colocadas em pé de igualdade com as antigas Escrituras judaicas? O que determinou quais obras cristãs deviam ser preservadas e aceitas? Quando ocorreu a aceitação? Estas são questões com as quais devemos lidar. 49 (A) Motivos para Escrever Obras Cristãs. O Cristianismo, muito mais que o Judaísmo, é uma religião com sua origem em uma pessoa. O que Deus faz está centrado em Jesus, de modo que os cristãos primitivos podiam dizer que Deus estava em Cristo Jesus (2Co 5,19) – os judeus não consideravam Moisés nestes termos. Para pregar o reino de Deus, que fi zera sua presença sentida no ministério de Jesus, os apóstolos foram comissionados. Contrário a algumas teorias modernas, o NT retrata os apóstolos como o elo vivo entre os crentes e o Jesus em quem eles criam. Consequentemente, nos primeiros dias em que os cristãos estavam próximos aos apóstolos – tanto geográfi ca quanto | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA30 cronologicamente – não havia necessidade premente de escritos cristãos. De fato, não temos provas claras a favor da maioria dos escritos cristãos do período de 30-50 d.C. Durante esta época a fé cristã foi comunicada, preservada e nutrida oralmente (Rm 10,14- 15). A pregação teve um papel superior no Cristianismo do que teve no Judaísmo; e para os primeiros cristãos o que era “canônico” era o que Pedro (Cefas), Tiago e Paulo pregavam em continuaçãoao que Jesus havia proclamado (1Cor 15,11). Provavelmente a distância foi o fator mais infl uente na mudança da situação de modo que a escrita se tornou importante. 50 (1) Distância geográfi ca. Com a decisão em Jerusalém, em 49 d.C., de permitir a aceitação dos gênios sem a circuncisão (At 15), o mundo extenso mundo gentílico, já invadido por Paulo, tornou-se um vasto campo missionário aberto. A fundação de comunidades a grandes distâncias umas das outras, e a movimentação contínua dos apóstolos, fez da comunicação escrita uma necessidade. Uma igreja cujos limites estavam próximos a Jerusalém era coisa do passado, e a instrução apostólica frequentemente tinha que vir de longe. Esta necessidade foi primeiro satisfeita com cartas e epístolas, e as cartas paulinas são os escritos cristãos mais antigos e importantes do que conhecemos com certeza. (2) Distância cronológica. A existência de testemunhas oculares de Jesus marcou os primeiros anos do Cristianismo; mas à medida que os apóstolos se dispersaram, e após a morte deles, a preservação da memória dos atos e palavras de Jesus tornou-se um problema. Além disso, necessidades catequéticas requeriam a organização dos testemunhos orais em unidades compactas. Isto deu origem a coleções pré-Evangelhos, orais e escritas, e os Evangelhos fi zeram uma seleção destas coleções como fonte de material. Mas mesmo os Evangelhos, uma vez escritos, não substituíram o testemunho oral, como ouvimos de Papias, que no 2º século ainda procurava por testemunho oral, embora conhecesse 31Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | vários Evangelhos, canônicos e não canônicos (Eusébio, HE 3.39.4; GCS 9/1. 286). Outras exigências, como a ameaça de heresia, perseguição e a necessidade de reafi rmar a fé, produziram escritos cristãos adicionais. 51 (B) Critérios para Preservação e Aceitação. Uma vez que havia escritos cristãos, qual fator determinaria quais deviam ser preservados e exclusivamente considerados sagrados? Pois, como veremos, alguns escritos do 1º século não foram preservados, e outras obras antigas que foram preservadas não foram aceitas. Os seguintes fatores foram importantes. (1) Origem apostólica, real ou suposta, foi muito importante, particularmente para a aceitação. A canonicidade de Apocalipse e Hebreus foi discutida precisamente porque havia dúvida se tinham sido escritos por João e Paulo, respectivamente. Hoje entendemos que a origem apostólica deve ser tomada no sentido mais amplo que “autoria” tinha na discussão bíblica (à 89 abaixo). Frequentemente isto signifi ca não mais que um apóstolo teve uma conexão tradicional com a dada obra. Pelos padrões mais estritos correntes hoje, pode ser legitimamente questionado se uma única obra do NT veio diretamente de algum dos Doze. 52 (2) Muitas das obras do NT foram endereçadas a comunidades cristãs em particular, e a história e a importância da comunidade envolvida teve muito a ver com a preservação e até mesmo com a aceitação fi nal dessas obras. Aparentemente nenhuma obra que emergiu diretamente da comunidade palestinense foi preservada, embora algumas das fontes dos Evangelhos e de Atos provavelmente fossem palestinas. A razão para esta perda provavelmente esteja no rompimento da comunidade cristã palestinense durante a guerra judaico-romana de 66-70. A Síria parece ter tido melhor sorte, por aparentemente as comunidades sírias foram as destinatárias de Mateus, Tiago e Judas. As igrejas da Grécia e da Ásia Menor | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA32 parecem ter preservado a maior porção do material do NT, i.e., os escritos paulinos, os joaninos e, talvez, os lucanos. A igreja de Roma preservou Marcos, Romanos e, talvez, Hebreus e os escritos lucanos. Para Irineu, (c. 180), que enfrentou as reivindicações gnósticas de origem apostólica para seus escritos, a conexão dos apóstolos com as igrejas conhecidas da Ásia Menor, Grécia e, acima de tudo, Roma, era um argumento importante para o NT canônico (veja Farkasfalvy, Formation 146). 53 (3) Conformidade com a regra de fé foi um critério de aceitação. As dúvidas acerca do milenarismo provocaram suspeitas sobre Apocalipse, e um evangelho apócrifo como o Evangelho de Pedro foi rejeitado como constituindo um perigo doutrinário. Farmer (Formation 35ss.) relaciona a perseguição e o martírio à regra de fé. O fato de que alguns gnósticos questionavam o valor do martírio era enfrentado com um apelo aos Evangelhos, Atos e cartas que realçavam a morte de Jesus na cruz e aos sofrimentos de Pedro e Paulo. 54 (4) Até que ponto o acaso teve um papel na preservação? Alguns argumentam, a partir da teoria da inspiração, que o acaso não teve papel algum: Deus não teria inspirado uma obra e então permitido que ela se perdesse. Mas este argumento pressupõe que cada obra inspirada tinha um valor permanente. Não poderia a tarefa para a qual Deus inspirou uma obra em particular ter sido realizada quando foi recebida? Um bom exemplo pode ser a carta perdida de Paulo, a qual pronunciava julgamento sobre um indivíduo de Corinto (1Cor 5,3). Além disso, o argumento pressupõe que Deus sempre protege as obras que ele motivou contra as vicissitudes humanas – uma pressuposição que não é comprovada na história de Israel e da igreja. Consequentemente, muitos eruditos que defendem uma teoria de inspiração ainda creem que o acaso exerceu um papel na preservação de obras importantes, pelo menos, como Filêmon, embora obras mais importantes tenham sido perdidas (parte da 33Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | correspondência corintiana, e a logia de Jesus em aramaico, que Papias atribui a Mateus). Mesmo entre as obras que foram preservadas houve disputas e lentidão na aceitação universal de algumas obras importantes (Hebreus, Apocalipse, Tiago) – mais que no caso de Filêmon.” (Raymond E. Brown, “Canonicidade” em The New Jerome Bible Commentary, tradução em português no prelo, Editora Academia Cristã & L oyola.) | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA34 UNIDADE II - O Contexto Político-Cultural do Novo Testamento 1. O Império Romano: a Pax Roman Na unidade II nos concentraremos em estudar as principais características do discurso imperial centrado na pax romana. Como vimos, o cristianismo nasceu durante o período em que o Império Romano dominava todo o mundo mediterrâneo. Os temas da pregação e literatura cristãs primitivas, além de responder às necessidades da vida das comunidades cristãs, também tinham de responder aos desafi os intelectuais, políticos, culturais, econômicos e religiosos de seu tempo. Um desses desafi os era dado pela ideologia política do Império Romano – que pode ser sintetizada pela expressão pax (paz) romana. Neste tópico estudaremos alguns textos que representam o discurso ideológico da pax romana, a fi m de analisar as suas relações interdiscursivas com textos neotestamentários. 1.1. Vozes discursivas como meio de interpretação de um texto em seu contexto sócio-histórico. Atente para as defi nições de termos técnicos a seguir. Estes termos são usados constantemente em nosso estudo introdutório ao Novo Testamento (e também na disciplina de Introdução ao Antigo Testamento), por isso é importante fi xá-los antes de seguirmos a diante. a. O termo vozes discursivas (que pode ser chamado apenas de discurso) deriva da obra do pensador russo M. Bakhtin e tem sido usado em diversas teorias e metodologias da linguística, semiótica e análise do discurso. Segundo Beth Brait, as vozes discursivas “assume[m] o caráter de visões do mundo ou percepções realizadas através do discurso: as vozes são sociais, são pontos de vista que estabelecem relações entre línguas, dialetos territoriais e sociais, discursos científi cos e profi ssionais, 35Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | linguagem familiar etc. Cabe à análise do discurso, com sua capacidade interdisciplinar, localizar os recursos linguísticos e não-linguísticos da combinação e transmissãodas vozes discursivas.” (Brait, B. “As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso”, in BARROS, D. L. P. de & FIORIN, J. L. (orgs.) Dialogismo, polifonia, intertextualidade. Em torno de Bakhtin. São Paulo. EDUSP: 1994, p. 25.) b. Interdiscursividade é o termo que explica o uso que um texto faz de discursos, a ele anteriores, ou contemporâneos. Há duas maneiras de uso de outros discursos: a citação, quando um texto copia temas de outro(s); e a alusão, quando um texto se apropria mais livremente de temas de outro(s) texto(s). Tanto na interdiscursividade quanto na intertextualidade, o uso dos outros textos e/ou discursos pode ser de forma contratual (quando há um acordo de ideias), ou polêmica (quando os outros textos e/ou discursos são usados sem acordo). c. Marcas linguísticas das relações intertextuais e interdiscursivas: Há várias maneiras de explicitar as relações intertextuais e interdiscursivas, que ficam marcadas no texto. Pode-se mencionar claramente que se está citando outro texto ou discurso; pode-se indicar essas relações mediante o uso de aspas, travessões ou outras formas de pontuação (o que não ocorria nos textos bíblicos originais); pode-se usar de recursos estilísticos como a ironia e a paródia; pode-se usar a negação e a implicitação (pressupostos e subentendidos); pode-se usar glosas (comentários ou explicações: e.g., é comum em Juízes o refrão “naquele tempo não havia rei em Israel”, claramente uma glosa. A glosa pode provir de uma redação posterior do texto, ou pode provir do próprio autor do texto.); podem-se usar também diferentes formas de inclusão de outras vozes: discurso direto (a fala da “voz” é citada), e discurso indireto (a fala da “voz” é marcada por um verbo de dizer e uma oração subordinada substantiva objetiva direta). | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA36 1.2. A Pax Romana. O Império Romano dominava o mundo mediterrâneo de seu tempo. Além do uso da força militar, o Império usava um conceito político- religioso para manter as suas conquistas. Através da afi rmação de que o Império trouxe a paz ao mundo, os romanos tentavam manter os povos conquistados submissos ao seu domínio. Leremos alguns textos que explicam a ideologia da pax romana. a. História Natural, Plínio, o Velho. (COMBY, J. & LEMONON, J.-P. Roma em face a Jerusalém, p. 54-55) “Não há, com efeito, quem não pense que a majestade do Império Romano, unindo o universo, fez progredir a civilização, graças ao intercâmbio comercial e à comunidade de uma paz feliz, e que todos os produtos, até os que antes estavam ocultos, viram seu uso se generalizar.” (XIV, 2) “Não é maravilhoso ver esse intercâmbio contínuo de plantas transportadas de todos os pontos do globo para salvar a vida humana? E isso graças à majestade sem limites da paz romana, que faz com que se conheçam mutuamente não só os homens das terras e nações mais afastadas umas das outras, mas também as montanhas e seus picos que vão perder-se nas nuvens, e sua fauna e sua fl ora. Oxalá seja eterno, é a minha prece, esse presente dos deuses! Não parece, com efeito, que eles deram os romanos à humanidade como uma segunda luz do dia?” (XXVII, 3) b. Para o Império Romano, a paz era a ausência de revoltas, implantada mediante a subjugação dos povos conquistados pela força. Sêneca, 37Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | falando a respeito do imperador, chefe do exército romano, assim descreve a pax romana: Ele é, pois, o laço pelo qual a comunidade permanece unida, ele é o sopro de vida que tantos milhares inspiram, que por si sós não representariam mais do que fardo e espólio, se aquele espírito fosse tirado do Império: ‘enquanto o rei permanece com vida, todos permanecem unânimes, se ele for perdido, eles quebram a fi delidade’. Esta desgraça será o fi m da paz romana, isto fará cair em ruínas a felicidade de tão grande povo; este povo estará longe deste perigo enquanto souber suportar os freios. Uma vez que os tenha rejeitado, ou não suportar que as rédeas, caso tenham sido jogadas ao chão por algum acaso, lhe sejam colocadas novamente no dorso, então esta unidade e este sistema do maior domínio cairá quebrado em muitas partes e para esta cidade o fi m da obediência identifi car-se-á com o fi m do dominar (Sêneca, apud WENGST, Klaus. Pax Romana: pretensão e realidade. São Paulo: Paulinas, 1991, p. 18). c. A Igreja que sofre violência É sintomático e carregado de sentido que desde o início, das primeiras vezes em que a pax romana é mencionada, se fala do imperador como chefe militar. O altar da paz ao Imperador Augusto, construído no simbólico lugar do Campo de Marte, deus da guerra, na verdade dava sentido à história da violência calcada no sucesso do vencedor. Sobre ele, o holocausto que queimava a vítima totalmente e por inteiro, sublinhava o fato do preço da paz proclamada e celebrada: o | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA38 sangue derramado. A pax romana, portanto, é paz querida politicamente pelo imperador e seus mais altos funcionários, e estabelecida e garantida militarmente pela intervenção das legiões. A guerra que leva à vitória forma o pressuposto do tempo feliz da paz, no qual o Imperador triunfa. E este tempo feliz continua a ser assegurado pelas legiões e suas armas. Esta paz que Roma traz é paz-de-vitória para os romanos; para os vencidos, paz de submissão. Em teoria uma relação de direito entre dois parceiros, a pax romana é na realidade uma ordem de dominação. Roma é o parceiro que, a partir de si mesmo, ordena a relação e propõe as condições que o não romano deve aceitar, confi rmando sua submissão ao poderoso Império que o protegia contra os ataques de outros povos estrangeiros. Esta paz estabelecida e mantida, portanto, com meios militares, é acompanhada de rios de sangue e lágrimas de enormes dimensões. Na verdade, nesta época da história, o mundo conhecido tem paz porque “todo o orbe terrestre” é dominado por Roma. Esta pretensão de paz universal também é mantida quando guerras menores, de periferia, se aproximam. A pax romana — construída sobre o alicerce da camufl ada violência da opressão — não compete, entretanto, unicamente aos humanos. Trata-se de algo querido e protegido pelos deuses. Protegendo e conservando o Império Romano, os deuses cuidam da salvação do mundo, a qual consiste na paz, na harmonia, na segurança, na riqueza e na honra (http://www.amaivos.com.br/templates/amaivos/ noticia/noticia.asp?cod_noticia=3839&cod_canal=44) 39Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | Exercício de Fixação - 06 Vimos que o mundo mediterrâneo era dominado pelo Império Romano, o qual precisava manter sua posição de domínio. Uma das estratégias para que as conquistas do Império permanecessem asseguradas era aplicando sobre o povo um conceito político- religioso que parecesse bom a todos e fi zesse com que as pessoas se rendessem a ele, aderindo tal crença/fi losofi a. Pensando nisso, qual das alternativas abaixo expressa o conceito político-religioso utilizado pelo Império Romano? a) O Império pregava a liberdade, através do qual todos poderiam comercializar, crer, se relacionar, a partir de suas próprias convicções. Dessa forma, sendo livres, não haveria guerras e diferenças entre o povo. b) A política e a religião eram coisas distintas para o Império Romano. A religião não deveria interferir na política e assim cada poderia crer no que queria, desde que respeitasse as leis gerais do estado. c) A paz romana era o alvo do Império Romano. Com a paz estabelecida o comércio estava garantido. Não haveria guerras. E todos poderiam viver com tranquilidade, sem ser subjugado por nenhum outro povo, criando suas próprias leis. d) A paz romana era o alvo do Império Romano. Com a paz estabelecida o comércio estava garantido. Não haveria guerras e revoltas. Mas todos deveriam viver de acordo com as regras do Império, crendo na soberania do Imperador, prestando culto a ele, sob pena de sofrercondenações e perder a proteção. | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA40 1.3. A religião como parte do discurso da pax romana A religião dos romanos era politeísta e antropomórfi ca com nítidas infl uências das crenças etrusca e grega. Ao dominar grande parte do mundo conhecido, os romanos entraram em contato com diversas religiões e tiveram por elas grande respeito [...] A fl exibilidade religiosa dos romanos, o respeito a outras religiões e a facilidade de incorporá-las foi um fator importante em sua capacidade de dominar povos tão variados e uma área geográfi ca tão grande. Durante o Império, a religião ofi cial ganhou o culto aos imperadores, uma espécie de religião cívica, que reverenciava os imperadores romanos que haviam sido declarados ‘santos’, após a morte. Esse culto aglutinou, por muitas gerações, durante os três primeiros séculos d.C., as elites nas diversas áreas do Império (FUNARI, P. P. Grécia e Roma. Vida pública e vida privada. Cultura, pensamento e mitologia. Amor e sexualidade. São Paulo. Contexto: 2001, p. 114-115). Saiba mais Colocar abaixo do “saiba mais” a palavra “Curiosidade”, seguida da imagem e desses nomes. Os principais deuses romanos são: Júpiter, o deus do dia; Apolo, deus do sol e da medicina; Juno, deusa protetora do casamento, parto e da mulher, de forma geral; Marte, deus da guerra; Vênus, deusa do amor e da beleza; Diana, deusa da lua, da caça e da castidade; Ceres, deusa da fecundidade da terra e da agricultura; Baco, deus do vinho e da alegria. 41Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | O culto ao imperador divinizado servia, sobretudo, para marcar a lealdade dos súditos e dos povos conquistados ao Império Romano. Não era um concorrente das religiões praticadas, nem das fi losofi as existentes. Sua importância e sua prática variavam ao longo do tempo e ao longo dos interesses políticos nas diferentes províncias do Império. “De qualquer maneira, o culto imperial, com seus aspectos políticos, suas instituições ofi ciais e suas leis imperativas, não podia oferecer matéria para uma vida religiosa profunda. Ficou uma manifestação de legalismo, que certamente não excluiu convicções sinceras, mas não impediu que os espíritos se voltassem para outras fontes mais exaltantes de religiosidade” (PETIT, P. A paz romana. São Paulo. Pioneira/EDUSP: 1989, p. 177). Um dos elementos presentes nas festas celebrativas do imperador era a aclamação do imperador: “César é kyrios” (Senhor), reconhecimento de sua autoridade suprema sobre a vida dos seus súditos. A tolerância que os romanos tiveram para com diversas religiões do mundo por eles conquistadas não existiu, entretanto, para com a religião cristã. Os motivos da intensa perseguição sofrida pelos cristãos no período imperial não são somente de caráter religioso, mas também e principalmente político. Os cristãos realizavam seus cultos secretos, viviam em pequenos grupos e foram, nos primeiros tempos, tomados por bruxos e feiticeiros, na medida em que recusavam mostrar respeito pelos deuses romanos. Além disso, os cristãos, monoteístas, não reconheciam a divindade do imperador e não aceitavam o culto a ele e ao Estado, sendo considerados uma ameaça à segurança do Estado romano” (FUNARI, P. P. op. cit., p. 130). Nesta fi gura podemos observar um pouco da diferença entre os princípios que rege Império e o Reino de Deus. | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA42 1.4. O Novo Testamento e a Pax Romana a. Jesus Cristo, um novo caminho para o exercício do poder Na afi rmação cristã de que Jesus Cristo é Senhor, encontramos dura crítica contra a ideologia da pax romana. Não pode haver paz, de fato, onde há violência e dominação. A paz dos impérios jamais deixou de ser uma falsa paz, o encobrimento da violência e da dominação por uma retórica de progresso, harmonia e felicidade. Assim foi com os romanos, assim foi na guerra fria, assim é no império globalizado do modo capitalista ocidental de viver em nossos dias. Onde julga necessário, o império atual não se recusa ao uso das armas. Em geral, porém, prefere a estratégia da violência e dominação simbólicas — o anúncio do pseudo-evangelho do capitalismo como único caminho, verdade e vida. Disfarçada de progresso, desenvolvimento científico, democracia e prosperidade, o modo de vida capitalista estende seus tentáculos com vistas a dominar todas as nações e povos. Como o antigo império romano, o império contemporâneo exerce o poder de forma violenta e dominadora. Em um mundo assim articulado, não há lugar para diálogo, apenas para o conflito inter-religioso, com vistas à implantação de uma única fé — a fé em Mamom. O exercício do senhorio de Cristo, porém é totalmente distinto. É um senhorio que não conquista, mas reconcilia; não gera uniformidade, mas unidade. É um senhorio sem estratégias, mas com relacionamentos. Um senhorio cujo poder é exercido pelo Deus que faz a paz mediante a morte do seu próprio Filho, e não a dos seus inimigos. Na tradição judaico-cristã, a paz (shalom) é a plena harmonia que Deus estabelece na sua criação, com destaque – neste contexto – para a justiça social, econômica e política que é a harmonia cósmica aplicada à convivência humana. Para restaurar a harmonia rompida da criação, Deus entrega Seu Filho à morte reconciliadora em benefício da criação alienada do Pai. Ou, nas palavras do próprio crucificado: “o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir, e dar a sua vida em resgate de muitos” (Mc 10:45). 43Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | b. A oikoumene e a Paz Enquanto nas discussões ecumênicas contemporâneas pode parecer atrativo tentar redefi nir oikoumene (termo grego que signifi ca o mundo habitado) em um sentido positivo, necessitamos lembrar que na literatura cristã primitiva oikoumene era, primariamente, um termo do império, raramente usado em um contexto libertador [...] O desafi o para o ecumenismo atual deve ser o de repudiar a trajetória imperial da palavra, incluindo o próprio legado imperial da igreja (Barbara Rossing, apud HANSON, Mark S. “The Church: Called to a Ministry of Reconciliation”. Sermão pregado em Concílio da Federação Luterana Mundial, setembro de 2005. http://www.lutheranworld. org /LWF_Documents/2005-Council/Sermon-Opening- 2005-EN.pdf. Acesso em 2/08/2007). Podemos vislumbrar a igreja, aqui, como o protótipo da nova criação, a antecipação escatológica da reconciliação cósmica de Deus — a comunidade missionária. A paz de Cristo deve afetar todo o modo de ser da igreja. O tempo não nos permite abrangência aqui, por isso, aponto apenas três exemplos: Do ponto de vista da adoração cristã, a afi rmação do senhorio de Cristo sobre os poderes nos convida ao culto público e à piedade privada nos quais “a oração cristã [seja, também] negação das pretensões dos poderes do imperialismo, e [...] discernimento constante da manifestação da força da cruz diante dos poderes que determinam a história” (ANDERSON, Ana F. op. cit., p. 62). O culto cristão, no templo e na vida, não pode ser alienado nem alienante. Não pode ser individualista, nem consumista, mas culto e | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA44 vida públicos, ou seja, efetivamente comprometidos com o bem-estar de toda a sociedade e de toda a criação de Deus. Do ponto de vista da ação social dos cristãos, devemos crescer em direção a uma mentalidade em que os evangélicos percebam a possibilidade de existir confi ança e participação com outros atores sociais além daqueles que professam a mesma fé, podendo, inclusive, compartilhar de redes com grupos que hoje são demonizados. Certamente este é o maior impedimento ou a maior deformação do capital social produzido neste meio, o qual tem como consequência uma signifi cativa fragilidade que serve de impedimento para o estabelecimento de redes mais amplas e diversifi cadas. Um ambiente de tolerância e respeito torna-se fundamental para que efetivamente os avanços oferecidospela formação dessas diferentes comunidades cívicas, as quais são acessíveis a uma massa de excluídos praticamente inatingida, ofereça capital social sufi ciente para manter e aprofundar a democracia brasileira (FONSECA, Alexandre B. “Os evangélicos e sua vivência na sociedade”. In: SILVA, Serguem (org.). Missão Integral: Proclamar o Reino de Deus, vivendo o evangelho de Cristo. Belo Horizonte: Visão Mundial; Viçosa: Ultimato, 2004, p. 236s). Do ponto de vista do diálogo inter-religioso, a paz de Cristo exige uma comunidade plenamente cônscia de sua identidade transformada e transformadora. O diálogo inter-religioso não pode ser visto como uma 45Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | ameaça à identidade da igreja, ou como um obstáculo à fi delidade à Palavra de Deus. Dialogar exige autenticidade e demanda que os parceiros envolvidos no diálogo mantenham sua legítima identidade, pois os diálogos inter-religiosos fi cam comprometidos quando as religiões perdem o seu perfi l social, diluindo- se em tendências passageiras, de difícil apreensão. Não se pode dialogar com uma religiosidade difusa, e o encontro entre religiões nem chega a acontecer quando os parceiros se constituem de indefi nidas transições entre as religiões, perdendo-se em formas híbridas de toda espécie (LIENEMANN-PERRIN, Christine. Missão e diálogo inter-religioso. São Leopoldo: CEBI/EST/ Sinodal, 2005, p. 163). O que ameaça à integridade da igreja não é o diálogo inter-religioso, mas o sincretismo com a cultura consumista e hedonista de nosso tempo, que se disfarça de êxtase religioso e prosperidade espiritual. É o conformismo com o mundo, e não o amor missionário que nos pode fazer perder o rumo. Compare a ideia de paz na ideologia imperial com a ideia de paz anunciada no Evangelho de João: Estas coisas vos tenho falado, estando ainda convosco. Mas o Ajudador, o Espírito Santo a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo quanto eu vos tenho dito. Deixo- vos a paz, a minha paz vos dou; eu não vo-la dou como o mundo a dá. Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize. Ouvistes que eu vos disse: Vou, e voltarei a vós. Se me amásseis, alegrar-vos-íeis de que eu vá para o Pai; porque o Pai é maior do que eu. Eu vo-lo disse agora, antes que aconteça, para que, quando acontecer, vós creiais. Já não falarei muito convosco, porque vem | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA46 o príncipe deste mundo, e ele nada tem em mim; mas, assim como o Pai me ordenou, assim mesmo faço, para que o mundo saiba que eu amo o Pai. Levantai- vos, vamo-nos daqui (João 14:25-31). EXERCÍCIO DE APLICAÇÃO - 07 Percebemos nos relatos sobre a pax romana, que essa paz tinha um alto preço. Na verdade, ela era exercida com violência e opressão. Enquanto os governantes e demais líderes se benefi ciavam dela, outros eram explorados e privados de sua liberdade, e caso rejeitassem o modelo imposto, poderiam sofrer severas consequências, sendo excluído da “proteção” que o Império exercia. Percebe-se, também, que parte do povo acredita que realmente estar sob o jugo do Império era bom e que a ideologia do império fazia todo sentido. No meio cristão é possível encontramos cenários parecidos. Assinale a alternativa em que o discurso cristão se assemelha ao discurso político-religiosos do Império Romano: a) O perdão pelos pecados através de uma graça concedida. Ou seja, em que não há necessidade de pagamento pela obtenção do perdão. b) A crença na paz que excede a todo entendimento, independente das situações ao nosso redor. Isto porque acredita-se que o amor de Deus nos basta. c) A necessidade de aceitar a Jesus publicamente e cumprir com seus ritos, a fi m de não ser atacado pelo Inimigo. O descumprimento de determinadas práticas afasta a proteção de Deus, dando abertura para o mal. d) A fé numa vida eterna ao lado de Jesus Cristo. 47Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | O tema da paz não pode ser lido apenas em sentido existencial, referente à “minha paz”. É, primariamente, um termo político e social – a paz é o modo adequado das relações entre as pessoas e a forma adequada das relações entre as nações e os poderes. Na refl exão acima, procuramos mostrar alguns dos sentidos em que a paz de Jesus não é como a paz do mundo. 2. O Império Romano: Filosofi as Populares Vários livros do Novo Testamento foram escritos em regiões de cultura predominantemente helenista, e seus autores tiveram de adequar a mensagem do Evangelho a essas culturas, sem alterar a essência do ensino de Cristo, baseada na visão vétero-testamentária de Deus e Sua ação no mundo – uma cosmovisão distinta da predominante no mundo greco-romano. Na cosmovisão judaica, não há um dualismo entre matéria e espírito, corpo e alma, de modo que a salvação de um seja a exclusão do outro. O hebreu compreendia a totalidade do ser humano – material e espiritual – como proveniente da criação divina e igualmente objeto da salvação divina. Da mesma forma, não havia um dualismo político entre indivíduo e sociedade, de modo que a salvação do indivíduo pudesse ser pensada sem levar em consideração a salvação do povo de Deus. O conceito salvífi co fundamental no Antigo Testamento é o de libertação, e seu paradigma | Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA48 é o êxodo do Egito (cf. Êxodo cap. 3). Mesmo nos textos mais recentes do Antigo Testamento, já produzidos em contato com a cosmovisão dualista persa, a salvação fi nal é descrita, em termos semi-apocalípticos, como uma nova criação, que abrange “céus e terra”, ou seja, tudo quanto Deus criou (Is 65:17-25, etc.), e nenhum traço de dualismo ontológico, ou metafísico, pode ser encontrado. Já na cosmovisão predominante no mundo greco-romano, a realidade é concebida como dual, ou seja, composta de matéria (que é considerada má e mortal) e de espírito (que é considerado bom e imortal). O ser humano é composto de corpo (pertencente ao âmbito da matéria, por isso mau e mortal) e alma (pertencente ao âmbito do espírito, por isso boa e imortal). Para esse dualismo, a salvação, por assim dizer, consistiria na libertação da alma da prisão corpórea e material neste mundo. Uma forma antiga desse dualismo era o conceito de tricotomia, provavelmente cunhado pelo fi lósofo platonista Possidônio: “Em sua cosmologia, ele distinguiu entre um mundo celestial acima da lua, imperecível e imutável, e o mundo sublunar, transitório e sujeito à mudança. [...] o espírito humano tem sua origem no sol, recebe do mundo intermediário (a lua) a alma que anima e mantém o corpo que é providenciado pelo mundo sublunar” (KOESTER, 1995:139). A cosmovisão dualista permeava várias correntes fi losófi cas e crenças religiosas no período da missão paulina, e é contra o pano de fundo desse dualismo que devemos entender boa parte das polêmicas teológicas neotestamentárias. Neste tópico, estudaremos algumas das principais tendências fi losófi cas populares da época do Novo Testamento. No próximo, voltaremos nossa atenção às religiões do mundo mediterrâneo. 2.1. A fi losofi a estóica No período do Principado Romano, a fi losofi a estóica, com sua ênfase na ética, tornou-se a principal corrente fi losófi ca dos romanos. Os escritos de Sêneca são excelente amostra dessa fi losofi a. Algumas de suas ideias principais são: 49Bíblia III - Introdução ao NT | FTSA | (1) Como providência, razão suprema, e pai da humanidade, Deus tornou sua vontade idêntica à lei moral. Ao cumprir essa lei e purifi car-se de todos os afetos, a pessoa torna-se idêntica à divindade. (2) O refi namento da linguagem psicológica para a direção da alma nesse processo ressalta nos escritos de Sêneca, que conecta esses pensamentos com uma antropologia ‘platônica’: somente a alma é verdadeiramente humana e capaz de identidade com Deus; o corpo é a prisão da alma, experiências físicas não são nada além de agonias, e os deveres da vida política necessidades
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