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aRtigo * Este artigo é uma tradução do original, que pode ser visto em: Martins, P. P. S., McNamee, S., & Guanaes-Lorenzi, C. (2014). Family as a discursive achievement: A relational account, Marriage & Family Review, 50(7), 621-637. doi: 10.1080/01494929.2014.938290 http://www.tandfonline.com/ doi/abs/10.1080/01494929.201 4.938290 Pedro PAblo sAmPAIo mArtIns Psicólogo. Mestre e Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia. FFCLRP-USP, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. Contato: pedropablomartins@gmail.com sheIlA mcnAmee Docente do Departamento de Comunicação da University of New Hampshire, EUA. Fundadora e vice-presidente do Taos Institute. Contato: sheila.mcnamee@unh.edu cArlA gUAnAes- lorenzI Docente do Departamento de Psicologia da FFCLRP-USP. Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. Coordenadora do LAPEPG-USP (Laboratório de Pesquisa e Estudos em Práticas Grupais). Contato: carlaguanaes@gmail.com Recebido em: 02/04/2015 Aprovado em: 03/06/2015 Família Como Realização DisCuRsiva: uma expliCação RelaCional FAMILy AS A DISCURSIVE ACHIEVEMENT: A RELATIONAL ACCOUNT Apoio: FAPESP. Processo número: 2011/02365-0 Resumo: Partindo de um entendimento de fa- mília como construção social, este artigo sugere que as pessoas ativamente produzem sentidos sobre família no intercâmbio social. A ideia é que família pode ser concebida como uma realização discursiva: Família é definida em termos do que as pessoas, utilizando-se de diferentes discursos so- cialmente produzidos disponíveis, descrevem jun- tas como sendo família. Propomos que diferentes realidades sobre família são criadas por meio de processos de negociação de sentidos no momen- to interativo. Portanto, há muitas versões diferen- tes de família e cada uma delas tem implicações diversas para o mundo social. Exemplos dessas implicações para as teorias psicológicas, pesquisa e terapia familiar são apresentados, considerando como podem ser úteis para o campo da psicologia. palavRas-Chave: família, relações familiares, terapia familiar, teoria psicológica, construcionis- mo social. abstRaCt: Beginning with an understanding of family as a social construction, this article sug- gests that people actively make meanings about family during social interchanges. The idea is that family can be conceived as a discursive achieve- ment: Family is defined in terms of what people who are drawing on various available socially pro- duced discourses describe together as family. We propose that different realities regarding family are created via social processes of negotiating mea- ning in the interactive moment. Therefore, there are many different versions of family, and each of them has diverse implications for the social world. Examples of these implications for psychological theories, research, and family therapy are also presented, in considering how they might be use- ful in the field of psychology. KeywoRDs: family, family relations, family thera- py, psychological theory, social constructionism. O que é família? Ela já foi chamada de instituição, o primeiro lugar de cuidado e o verdadeiro valor de ser humano. A família já foi descrita de várias maneiras: como sendo a conexão entre indivíduos e sociedade, um lugar confortável para se estar no mundo e uma produtora de psiques únicas. Também já foi dito que as fa- mílias são um lugar de relações de gênero desiguais; um grupo de pessoas do qual espera-se que o indivíduo se diferencie; e uma hierarquia a ser respeitada. Muitas descrições a respeito da definição de família foram oferecidas nos últimos séculos. De fato, ficamos tão acostumados a estas concepções de família em nossas vidas que pode parecer difícil – senão impossível – questionar a existência de uma es- sência de família no mundo. A Psicologia interessou-se especialmente pelo assun- to desde os anos de 1950, quando a família, em si mesma, tornou-se um objeto de análise. Curiosamente, apesar de muitas diferentes versões de família terem sido articuladas, as teorias psicológicas tradicionalmente conceberam-na como uma realidade e, portanto, discutiram este conceito como um fato objetificado (veja, por exemplo, Ackerman, 1958). NPS_52.indd 9 18-Aug-15 5:24:40 PM 10 nPs 52 | Agosto 2015 Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 9-24, agosto 2015. Entretanto, em forte contraste com este tipo de tratamento, o campo dos Estudos de Família já reconhece e tem interesse há muito tempo na constru- ção social da família. Há pelo menos quatro décadas, diferentes perspecti- vas como a interacionista simbólica (Hess & Handel, 1959), a fenomeno- lógica (McLain & Weigert, 1979), a feminista (Lloyd, Few & Allen, 2009) e a teorização pós-moderna (Doherty, 1999) têm sido influentes no campo. Em várias publicações, pesquisado- res e teóricos articularam sobre os processos sociais a partir dos quais os indivíduos determinam seus rela- cionamentos familiares uns com os outros (por exemplo, Carsten, 1999; Gubrium & Holstein, 1990; Stacey, 1990), e diferentes conceitos como o parentesco “fictício” ou escolhido, por exemplo, emergiram para suplan- tar o presumido “fato” biológico dos laços familiares (Chatters, Taylor & Jayakody, 1994; Stack, 1974). Na mes- ma linha, desconfortos a respeito de versões essencialistas de família tam- bém começaram a surgir no campo da Psicologia (por exemplo, Ander- son & Goolishian, 1988; Silverstein & Auerbach, 1999). Sabemos que já houve muitos es- forços influentes e bem-sucedidos nos dois campos – Estudos de Famí- lia e Psicologia – no sentido de supe- rar versões simplistas, naturalizadas e essencialistas do conceito de família. Também notamos que estudos sobre o tema geralmente focaram na discus- são sobre o conceito de família e suas implicações para práticas sociais, tais como terapia familiar, políticas de fa- mília ou adoção, por exemplo. Nós ad- miramos tais esforços e muito do nosso argumento aqui segue suas realizações e preocupações com os efeitos prag- máticos de nossas formas acadêmicas de descrever família. Entretanto, nes- te artigo, queremos responder a uma questão específica: como as pessoas de fato fazem uso de diferentes discursos sociais sobre família em suas vidas co- tidianas? Parece-nos muito raro que as pessoas explicitamente recorram a conceitos acadêmicos institucionali- zados ao engajarem-se com seus pares em conversas do dia a dia. Pelo con- trário, no fluxo da vida cotidiana, as pessoas parecem encontrar formas de entender família utilizando um tipo muito diferente de linguagem daquele da academia. Mas, exatamente, como isso acontece? Será que podemos pro- duzir uma explicação teórica para o tipo de processo que ocorre quando as pessoas conversam sobre suas ativida- des comuns e naturalizadas? Considerando estas perguntas, o presente artigo tem como objetivo elaborar uma opção discursiva para entender a maneira como a ideia de família se torna possível nas conversas conjuntas das pessoas. Para isto, con- sideramos as contribuições do movi- mento construcionista social em psi- cologia (Gergen, 1997; Shotter, 2008), que desafiou conceitos e práticas tra- dicionais no campo. As ideias cons- trucionistas convidam profissionais e acadêmicos a focar nos diferentes rela- cionamentos em que primeiro nos en- gajamos e a partir dos quais extraímos os sensos de realidade com os quais vi- vemos. A construção social está inte- ressada em explorar as maneiras como as pessoas constroem conjuntamente os termos a partir dos quais entendem o mundo. O foco está nas interações, situadas em contextos culturais especí- ficos. Assim, o sentido é negociado em cada momento interativo que, por sua vez, está sempre relacionado a discur- sos sociais mais amplos disponíveis na cultura. Como observa Gergen (1997), o conhecimento é criado por meio de práticas compartilhadas. NPS_52.indd 10 18-Aug-15 5:24:40 PM Família como realização discursiva: Uma explicação relacionalPedro Pablo Sampaio Martins Sheila McNamee Carla Guanaes-Lorenzi 11 Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 9-24, agosto 2015. O argumento central desse artigo parte do entendimento de que conhe- cimento é um produto de negociação. Se diferentes realidades são construí- das nas negociações locais das pessoas, então as formas específicas utilizadas para descrever o mundo são resulta- do desses processos sociais. Palavras e ações ganham sentido via negociação e, assim, tornam-se “sensíveis” dentro de diferentes realidades construídas discursivamente. Como, então, pode- mos entender o conceito de família no contexto dessas ideias? Comecemos mantendo em mente a ideia de que, a partir de uma perspectiva construcio- nista social, família pode ser descrita como uma realização discursiva – fa- mília é definida em termos do que as pessoas, que estão utilizando de varia- dos discursos socialmente produzidos disponíveis, descrevem juntas como família no contexto de suas interações. Vamos construir os entendimentos teóricos e pragmáticos sobre os quais nosso argumento a respeito da família se sustenta. O filósofo Ludwig Witt- genstein (1953) nota que nossa parti- cipação em jogos de linguagem, isto é, nossas formas culturais e naturaliza- das de interação, cria formas de vida específicas. Por exemplo, há jogos de linguagem particulares que são consi- derados apropriados para uma intera- ção de vendas, e outros que são consti- tutivos de um relacionamento íntimo. Nossas formas de conversar e agir juntos literalmente criam uma “forma de ser” no mundo (ou uma forma de vida). Wittgenstein chama nossa aten- ção a uma observação de que criamos realidades ao persistentemente con- versar e agir de certas maneiras. Pode- riam as noções de jogos de linguagem e formas de vida serem úteis ao ex- plorarmos o que constitui uma famí- lia? Que tipos de jogos de linguagem criam o que viemos a conhecer como família? O que aceitamos como a reali- dade da família atualmente? Mais im- portante, há uma realidade de família? dIscUrsos domInAntes e PrÁtIcAs sItUAdAs Uma breve verificação na vida social nos mostra a importância do concei- to de família em como organizamos nossas vidas. De acordo com o nosso conceito culturalmente sustentado de família, pensamos na primeira inser- ção das pessoas no mundo por meio de suas famílias. Utilizamos sobreno- mes familiares para conectar indiví- duos uns aos outros e essas relações familiares mediam nossas conversas com outras pessoas. Temos regula- mentações que dão conta da família como instituição e sustentamos um conceito a respeito da maneira como a herança deve, por direito, fluir para os familiares. Além disso, tratamen- tos acadêmicos, tais como os enten- dimentos psicológicos, sociológicos e antropológicos de família, continuam a examinar como a família molda um indivíduo, uma sociedade e uma cul- tura. Se decidirmos aprofundar nossa busca, inevitavelmente nos daremos conta de que a ideia de família sustenta tantas práticas sociais que a vida seria quase ininteligível sem ela. Em resumo – pegando emprestada a formulação de Hacking (1999) – a ideia de família é atualmente naturalizada. Assim, começamos a nos perguntar sobre as implicações destas observa- ções. Primeiro, poderíamos ser leva- dos a pensar que, se a família é sim- plesmente um aspecto natural e óbvio do mundo social, então o que nós fa- zemos nas famílias tem poucos efeitos sobre essa realidade. Em outras pala- vras: “A família é o que é; é assim que as coisas são”. Entretanto, exploremos NPS_52.indd 11 18-Aug-15 5:24:40 PM 12 nPs 52 | Agosto 2015 Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 9-24, agosto 2015. o que é este entendimento “natural”, ou naturalizado. O discurso dominan- te sobre família no Ocidente descreve um homem e uma mulher adultos, engajados em um casal heterossexual, vivendo na mesma casa que seus fi- lhos biológicos. Entretanto, considere a reflexão de Gergen e Davis (1997): “Como pode um único modelo de família adequadamente servir a uma sociedade diversa e heterogênea?” (p. 8). Nós acreditamos que, no mundo complexo de hoje, vale a pena des- construir a ideia de família como uma descrição inquestionada, unificada e historicamente universal. Felizmente, voltando aos nossos comentários so- bre os Estudos de Família, vimos que este campo já estabeleceu as bases para o entendimento da família como uma construção social, o que nos permite engajar-nos em investigações sobre diferentes entendimentos de “família”. Acreditamos que vale bastante a pena explorar como famílias e familiares, comunidades e culturas, assim como períodos históricos, constroem o que conta como família. VArIAção cUltUrAl de “FAmílIA” Exploremos as contribuições de es- tudos feministas e antropológicos que nos mostram que os sentidos de “família” variam dramaticamente en- tre grupos culturais. A partir de uma perspectiva construcionista, devemos considerar este tipo de análise como uma crítica ideológica (Gergen, 1997), porque entendemos que algumas ma- neiras de descrever família criam for- mas de vida que servem a certos inte- resses, como dominação de gênero, de geração, de raça ou de classe. Retomando mais de duas décadas de pensamento feminista, Thorne (1992) identificou cinco tendências centrais ao que ela chama de “abordagem crí- tica à família”. A primeira destas ten- dências argumenta que ocorreu uma transformação de um entendimento de “família” como uma unidade natu- ral arraigada em processos biológicos para um entendimento no qual família é definida como um produto histórica e ideologicamente situado. A segun- da tendência enfatiza as estruturas de gênero, geração, sexualidade, raça e classe que facilitaram a emergência do conceito de família geralmente susten- tado na sociedade ocidental. A terceira refere-se a uma rejeição da noção de família como uma unidade autoconti- da, autônoma e isolada da sociedade; e a quarta tendência redefine as respon- sabilidades de cuidado em termos de uma crítica às oposições entre família e comunidade e entre grupos públicos e privados. Na última tendência, a di- versidade de experiências que as pes- soas têm com a família é reconhecida e apreciada. Esta tendência é apresenta- da em oposição à ideia tradicional de que a família é sempre um lugar segu- ro e protegido (para ensaios relaciona- dos a todos esses temas, veja Thorne & Yalom, 1992). Assim, de acordo com Thorne (1992), a família está vivendo um período de rápida mudança, no qual a complexidade de suas configu- rações, a partir de uma perspectiva vi- sionária, pela primeira vez na história, pode ter uma chance de uma ordem de gênero e parentesco verdadeiramente democrática. Uma antropóloga feminista bra- sileira, Fonseca (2007), aponta que a família tem um valor importante para muitos indivíduos. Entretanto, somos lembrados que usar “família” como um termo analítico cria certos tipos de risco, na medida em que a ciência é colocada a favor de verdades conser- vadoras. Nesse sentido, “... a família passa a ser analisada como uma no- NPS_52.indd 12 18-Aug-15 5:24:40 PM Família como realização discursiva: Uma explicação relacional Pedro Pablo Sampaio Martins Sheila McNamee Carla Guanaes-Lorenzi 13 Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 9-24, agosto 2015. ção política e científica historicamente situada” (p. 26). Assim, podemos ver que as feministas trazem uma postura crítica aos estudos de família e privi- legiam seu entendimento através das lentes de processos históricos e sociais. Estudos em comunidades indígenas apresentados por Carsten (2000) nos ajudam a ampliar esse entendimento. Eles foram conduzidos com o objetivo de comparar culturas de conectivida- de. A autora explica que escolhe utili- zar o conceito de conectividade, ao in- vés de “parentesco” porque este último carrega uma série de pressuposições. Ao discutirconectividade, ela procura entender os efeitos que “estar conecta- do” cria para certas pessoas e favorece um entendimento de que este fenôme- no pode ser determinado de maneiras culturais bastante específicas, para além da noção de ancestralidade. Por exemplo, dependendo da comunidade em observação, vários componentes de conectividade, tais como sangue, sê- men, leite materno, alimentação con- junta e, até mesmo, o engajamento em atividades cotidianas compartilhadas são determinantes para a criação dos tipos de relacionamentos profundos e duradouros tipicamente associados ao parentesco e à família. Entretanto, estas diferenças não aparecem apenas no contexto da ava- liação entre diferentes sociedades. Consideremos a maneira como a res- posta à pergunta “o que é uma famí- lia?” tem variado amplamente com o tempo no contexto cultural específico do Brasil. Vaitsman (1995) traça o mo- delo prevalente da família brasileira de classe média a um processo histórico marcado tanto pela divisão de gêne- ro, quanto por uma separação entre os domínios públicos e privados, que mantiveram as mulheres confinadas à área doméstica da vida familiar por várias décadas. De acordo com sua explicação, mudanças no contexto so- cial ocorridas durante o período pós- -moderno e o avanço das mulheres até o ponto de superarem as divisões claras entre os domínios público e pri- vado desafiaram o modelo patriarcal de família e prepararam o terreno para uma variedade de arranjos familiares. Assim, a heterogeneidade foi legiti- mada como culturalmente dominante e a família tornou-se plástica e flexí- vel; aspectos familiares anteriormente considerados desviantes podem agora existir ao lado de uma variedade de ca- racterísticas. De acordo com Watarai e Roma- nellli (2009), podem ser traçadas asso- ciações entre a ampliação de arranjos familiares e uma série de mudanças sociais, particularmente a inclusão das mulheres na força de trabalho, que permitiu a elas uma crescente au- tonomia com relação aos homens. Os autores afirmam, então, que vários modelos de família estão atualmente no processo de tornarem-se aceitos e serem considerados válidos. A partir de uma perspectiva construcionista social, a linguagem é vista como per- formática. Isso significa que descrever as coisas não é um processo passivo e representativo, mas, ao invés disso, uma ação ativa no mundo. Portan- to, estas variadas formas de família podem ilustrar “múltiplas definições mutantes” do conceito de família e sustentam a ideia de que “a noção do que é uma família continua a mudar drasticamente para incluir uma rica e cada vez maior variedade de uni- dades familiares” (Anderson, 1997, p. 81). Então, não é apenas o fato de as unidades ou organizações familiares previamente existentes simplesmen- te passarem a ser reconhecidas como famílias a partir de um determinado ponto. De fato, o próprio processo de definir família de uma ou outra ma- NPS_52.indd 13 18-Aug-15 5:24:40 PM 14 nPs 52 | Agosto 2015 Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 9-24, agosto 2015. neira, para então reconhecer arranjos familiares específicos como se ajustan- do à definição, dá a alguns destes ar- ranjos o status pragmático de família, ao mesmo tempo em que exclui outras organizações. Essa explicação só pode fazer sentido se pensarmos a partir de uma perspectiva situada de o que conta como família, para quem, em que mo- mento e a partir de quais padrões? Por exemplo, um Projeto de Lei bas- tante controverso conhecido como o “Estatuto da Família” está atualmente em discussão no Congresso Nacional Brasileiro. De acordo com esse projeto, “a entidade familiar” deve ser definida como “o núcleo social formado a par- tir da união de um homem e uma mu- lher, por meio do casamento ou união estável, ou ainda por comunidade for- mada por qualquer dos pais e seus des- cendentes”*. Se um projeto retrógrado como este for aprovado, definir família desta forma significaria que, pelos pa- drões dos direitos legais para o gover- no brasileiro naquele momento, mui- tos arranjos familiares sequer seriam considerados “família” em primeiro lugar. Isto teria efeitos reais e sérios para as vidas de milhões de pessoas que de fato chamam a si mesmas de “famílias” a partir de definições dife- rentes daquelas propostas pela lei. Este argumento deverá ficar mais claro ao desenvolvermos nossa proposta neste artigo. Por ora, entretanto, enfatize- mos que entender a família como uma construção social reconhece-a como um produto emergente de processos sociais, históricos e culturais em cons- tante progresso. Essa definição tam- bém destaca as várias maneiras possí- veis de se descrever família. Considere: se, de fato, há algo que se parece com uma realidade absoluta da família – ao contrário de uma no- ção de sua construção social – então alguns elementos essenciais, estáveis e imutáveis devem existir e podem ser usados para determinar o que cons- titui uma família. Contudo, podemos rapidamente ver que a família não foi sempre vista e entendida da mesma maneira que hoje. De fato, notamos distinções culturais em nossos enten- dimentos sobre o que é uma família; ela não é a mesma ao redor do mundo. Quando nos damos conta dos proces- sos sociais envolvidos na construção e na substância das realidades que habi- tamos, nos preocupamos com as con- sequências de aceitar nossos conceitos atuais de família sem questioná-los. Como, então, uma explicação cons- trucionista social pode nos ajudar a lidar com estas questões? Por quais meios várias realidades de família são criadas? constrUIndo reAlIdAdes em Processos mIcrossocIAIs Vários entendimentos a respeito do conceito de família surgem a partir de diferentes perspectivas. Na acade- mia, o campo da terapia familiar tem se interessado especificamente pelo as- sunto. No início, terapeutas familiares começaram trabalhando com famílias a partir de um enquadre teórico psi- canalítico que deu atenção especial às interações entre membros da família e suas personalidades (Scharff & Schar- ff, 2003). Contudo, nos anos 1950, inspirados pelo trabalho pioneiro de Gregory Bateson e seus colegas Paul Watzlawick, Don Jackson, Janet Beavin e outros, a abordagem psicanalítica da família deu espaço para uma aborda- gem sistemicamente orientada. Em seu trabalho inovador sobre esquizofrenia, Bateson e seus colaboradores introdu- ziram o que, à época, foi uma aborda- gem radical ao estudo da patologia. Ao invés de focar nas relações psicanalíti- * Projeto de Lei tramitando no Congresso Nacional, disponível em http:// www.camara.gov.br/ proposicoesWeb/prop_mostra rintegra?codteor=1159761&fil ename=PL+6583/2013, acesso em 22 de maio de 2014. NPS_52.indd 14 18-Aug-15 5:24:40 PM Família como realização discursiva: Uma explicação relacional Pedro Pablo Sampaio Martins Sheila McNamee Carla Guanaes-Lorenzi 15 Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 9-24, agosto 2015. cas entre membros da família, o foco mudou para os padrões de comunica- ção dentro das famílias (veja Jackson, 1968a; 1968b). Aproximadamente cinquenta anos mais tarde, olhando para trás, podemos ver atualmente que mesmo essa abordagem sistêmica radi- cal ainda utilizava conceitos situados de alguma forma em uma ideologia individualista, porque eles tendiam a observar a dinâmica dos sistemas fa- miliares como sendo composta por partes individuais inter-relacionadas, mas ainda separadas. Entretanto, de- vemos admitir que este foi o início de um novo entendimento empolgante do que significa ser família. A abordagem sistêmica, tão popular nos anos 1960 e 1970, deu espaço para o que é conhecido como uma aborda- gem cibernética de segunda ordem nos anos 1980 (veja Maturana & Varela, 1992; von Foerster, 1981). Aqui, proxi- mamente alinhado com nosso próprio argumento, o “observador” (terapeuta ou outro profissional) era reconhecido como participandoda construção da família, por meio de suas perguntas, comentários e interações com a mes- ma. Esses terapeutas/profissionais co- meçaram a questionar a possibilidade de conhecimento objetivo sobre o sis- tema familiar, argumentando que não parecia possível fazer uma distinção entre o observador e o observado (Be- cvar, 2003). Ao focalizar em processos de comunicação, tanto a teoria dos sis- temas quanto a cibernética de segunda ordem transformaram nossos enten- dimentos do mundo social, deixando de entender que ele existe e espera por ser descoberto, passando a entendê-lo como um produto de nossas intera- ções uns com os outros – não apenas interações dentro da família, mas en- tre família e profissionais/outros. Enquanto essas ideias se desen- volveram, ideias do construcionismo social estimularam uma transição em direção ao entendimento dos sistemas humanos como sistemas linguísticos a partir dos quais sentidos são constru- ídos. Este entendimento tem conse- quências importantes para a maneira como a família pode ser compreendi- da (Anderson, 1997; Anderson e Go- olishian, 1988). Em um exame retros- pectivo, podemos ver uma progressão lógica de um movimento que se dis- tanciava da visão da família como um conjunto de indivíduos (identifican- do, assim, os membros individuais como a unidade de análise) em dire- ção a uma visão da interação (proces- sos e padrões de comunicação) como o foco analítico. Uma vez que o interesse de uma postura construcionista está nos pro- cessos de interação, nossa atenção deve ser direcionada ao que as pessoas fazem juntas em qualquer momento interativo. Ao focar processos intera- cionais, as qualidades ou atributos dos indivíduos ficam em segundo plano e os processos de comunicação tornam- -se centrais. Neste caso, a investigação necessariamente tem que ser sensível aos discursos culturais e históricos nos quais as pessoas se situam (Mc- Namee, 2010), isto é, àquelas versões mais ou menos estáveis e prevalentes do que conta como família nos grupos e sociedades dos quais somos parte. Entretanto, quando pragmaticamente escolhemos focar nossa atenção em processos microssociais de interação, podemos também destacar as manei- ras como as pessoas, em ação conjunta (Shotter, 2008), criam e manejam sen- tidos sobre família em suas próprias atividades locais e cotidianas. Este tipo de abordagem coloca nossa atenção no uso da linguagem no cotidiano para a construção das versões de família que as pessoas utilizam para operar em suas vidas. Assim, chegamos à posi- NPS_52.indd 15 18-Aug-15 5:24:40 PM 16 nPs 52 | Agosto 2015 Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 9-24, agosto 2015. ção de que a “família” é uma realização discursivamente produzida a partir de processos interacionais. FAmílIA como reAlIzAção dIscUrsIVA Consideremos um casal homossexual hipotético. Em uma decisão recente no Brasil, o Superior Tribunal Federal concedeu a homossexuais o direito le- gal de casarem-se e, consequentemen- te, adquirirem o status de entidade familiar. Entretanto, podemos facil- mente entender que uniões estáveis entre parceiros homossexuais não são fato histórico recente. Isto coloca uma série de perguntas: • antes da decisão do tribunal, se ambos os parceiros de um casal homossexual viviam juntos na mesma casa por dez anos, eles eram uma família? • se o casal vivia junto na mesma casa por um ano? Eles eram uma família? • Considere os parceiros de um ca- sal homossexual que namoram há quinze anos, mas vivem em ca- sas separadas. O que os definiria como compondo uma família? O que os excluiria de ser uma? Como discutimos anteriormente, a noção do que conta como uma fa- mília pode ser vista como construída socialmente, ao invés de uma entida- de existente em si mesma e natural no mundo. Entretanto, se a família é socialmente construída, então como é possível vermos, observarmos e, mais importante, vivermos a experiência da família como uma entidade ou objeto existente no mundo? Em uma tenta- tiva de responder a esta pergunta, va- mos recorrer à noção construcionista de produção de sentidos. Aqui, encon- tramos um foco em práticas de lingua- gem, ou seja, o que as pessoas fazem e o que este fazer produz. Novamente, somos lembrados do foco construcio- nista em processos interativos, e não em entidades ou objetos. No discurso dominante de hoje (Moderno), a famí- lia é uma entidade inquestionada – um objeto natural no mundo que, ainda que possivelmente variante, espera para ser estudado e descrito como real- mente é. Contudo, para o construcio- nista, o intercâmbio social é um espa- ço privilegiado onde os participantes negociam a ordem social. Esta ordem, é claro, inclui a família. A teoria relacional do significado (Gergen, 1997) afirma que o sentido é uma realização conjunta surgida das interações situadas onde os participan- tes coordenam suas ações. Isto está em contraste direto com o entendimento mais tradicional sobre o sentido como localizado dentro da mente individu- al e transmitido para um interlocutor por meio de uma linguagem passiva representativa. A fala de uma pessoa não tem sentido em si mesma; ao in- vés disso, a construção do sentido de fato se inicia com as ações suplemen- tares tomadas por um interlocutor em potencial (isto é, quando ele responde de uma forma específica). Ao fazê-lo, a responsabilidade por qualquer sen- tido que emerge não é de nenhum dos participantes isolados. O sentido está nos processos de relacionamento en- tre as pessoas; não dentro da cabeça. Cada movimento em uma conversa, ao mesmo tempo, abre possibilidades para a produção de um novo sentido e restringe outras. No desenrolar de cada ação no processo de se relacio- nar, o sentido continua “a caminho”. Isto é, o sentido nunca está finalizado (Frank, 2005); ele sempre está aberto a mais suplementação. “Os sentidos es- tão sujeitos à contínua reconstituição por meio do domínio expansivo da NPS_52.indd 16 18-Aug-15 5:24:40 PM Família como realização discursiva: Uma explicação relacional Pedro Pablo Sampaio Martins Sheila McNamee Carla Guanaes-Lorenzi 17 Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 9-24, agosto 2015. suplementação” (Gergen, 1997, p. 267) e são, portanto, realizações temporá- rias situadas em momentos interativos particulares. Shotter (2008) também descreve como os sentidos podem ser alcançados das formas mais im- previsíveis e não-intencionais na ação conjunta entre os interlocutores; con- versas corporificadas tornam possível a produção de conhecimento sobre o mundo e sobre nós mesmos. Devemos manter em mente que não há “o início” de uma interação: sempre estamos situados em um fluxo conver- sacional mais amplo e imersos em uma série de relacionamentos diversos. A implicação para a nossa situação neste contexto é que entendimentos local- mente construídos não são, de nenhu- ma maneira, separados de discursos sociais mais amplos. Assim, a partir da teoria relacional do significado, po- demos entender que estamos sempre imersos no universo da produção de sentido. Então, toda vez que tentamos definir família, estamos recorrendo a vocabulários socialmente produzidos, situados em tempos históricos espe- cíficos e que nos permitem produzir versões do que uma família pode ser. Assim, tentar chegar a uma definição verdadeira do que a família essencial- mente é torna-se uma tarefa fútil sem fim possível neste contexto. A esta altura, nos afastamos da per- gunta inicial sobre o que essencialmen- te constitui uma família, aproximan- do-nos de uma pergunta diferente, qual seja, a pergunta de quais versões de família se tornam possíveis em cada conversa específica, relacionalmente contextualizada. Isto nos leva de volta ao nosso argumento inicial: família é o que as pessoas descrevem juntas como família. Entender família como uma realização discursiva é dar-se conta de que os contornos e limitesdo que conta ou não como um aspecto definidor da família são construídos como conhe- cimento válido no processo de nego- ciação de sentido que ocorre durante conversas, enquanto as pessoas fazem uso de diferentes discursos sociais so- bre família em seu cotidiano. Portanto, o conhecimento que surge durante a conversação confere o status de real às versões associadas de família que são construídas. Como Anderson (1997, p. 80) colocaria: “A família é uma realida- de baseada na comunicação”. Podemos ilustrar este processo ao revisitar o exemplo anterior do casal homossexual. Suponhamos que désse- mos a duas pessoas a tarefa de observar um casal homossexual em um ambien- te público por aproximadamente uma hora, depois da qual elas terão que res- ponder se as duas pessoas que observa- ram são uma família. Presumindo que os observadores levem sua tarefa a sé- rio, podemos facilmente imaginar que apenas a observação não é suficiente para resolver a questão, uma vez que os dois observadores devem chegar a uma resposta colaborativamente cons- truída. No mínimo, eles precisariam de alguns minutos de conversa para deter- minar os critérios que adotarão para responder à pergunta. Estes critérios não apenas devem satisfazer aos ob- servadores e serem válidos para tomar uma decisão justa, mas também devem ser convincentes para as pessoas sen- do observadas e para outras pessoas externas em potencial, incluindo a nós mesmos, como aqueles que fizeram a pergunta. Como os observadores po- deriam chegar a uma resposta? Como podemos ilustrar com este exemplo, qualquer resposta possível para esta pergunta aparentemente sim- ples deveria ser negociada e construí- da na conversa entre as duas pessoas a quem o desafio foi colocado. É em seu processo conversacional que elas po- dem chegar a uma série de critérios que NPS_52.indd 17 18-Aug-15 5:24:40 PM 18 nPs 52 | Agosto 2015 Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 9-24, agosto 2015. descrevem o que uma família é, e que lhes permitirá decidir na sequência se aquele casal específico se enquadra na definição ou não. Assim, um conceito de família momentaneamente será al- cançado durante a atividade discursiva e, então, sustentará uma resposta. É im- portante enfatizar o argumento de que não há critérios objetivos em si mesmos sobre os quais uma resposta possa ser construída. Ao invés disso, a escolha de critérios é sempre uma decisão relativa específica a cada momento interativo de linguagem em uso. Isto não signifi- ca sugerir que os discursos dominantes circulando em uma comunidade ou cultura não tenham bastante peso so- bre a questão. Entretanto, para o cons- trucionista, as formas naturalizadas de se falar sobre família apenas se mantêm inquestionadas e apenas ganham o sen- so de “real” ou “verdadeiro” enquanto os participantes continuam a fazer uso delas. Engajar-nos em uma análise fou- caultiana (1969) localiza nosso enten- dimento de família em momentos his- tóricos, culturais e locais específicos, e oferece meios pelos quais podemos começar a nos perguntar quais outros entendimentos de “família” podem ser possíveis em circunstâncias históricas, culturais e locais diferentes. Três observações sobre este exem- plo devem ser consideradas. Primei- ro, trata-se apenas de um exemplo com a intenção de ilustrar os proces- sos de produção de sentido a respeito da ideia de família. Em uma tentativa de tornar o processo claro, o exemplo descreve uma situação hipotética; o processo de produção de sentidos pro- vavelmente não ocorreria de maneira tão explícita na vida real. Entretanto, a clareza de um exemplo simples nos permite prestar atenção a como cer- tos recursos conversacionais são em- pregados em momentos particulares na conversa (McNamee, 2004). Isto significa dizer que quaisquer sentidos sobre família alcançados durante uma dada conversa são realizações relacio- nais socialmente circunscritas. Assim, determinar se um casal específico é ou não uma família (como fato dado) não cabe aos observadores, nem ao casal, nem a ninguém em específico. Ao in- vés disso, o argumento é que qualquer resposta à pergunta “este casal é uma família?” é mais uma resposta, consis- tente com alguma versão particular do que uma família pode ser. Obviamen- te, não produzimos sentido no nada. Dependendo das posições sociais de onde diferentes indivíduos estão fa- lando, dos contextos nos quais eles se encontram, das relações de poder das quais fazem parte e assim por diante, diferentes vozes podem ser mais fortes ou fracas, mais ou menos validadas por outros a respeito de certas questões e podem, portanto, criar descrições com mais potencial para serem comumente sustentadas do que outras. Em segundo lugar, devemos prestar atenção à palavra “momentaneamente”, pois ela nos ajuda a lembrar que quais- quer sentidos construídos entre os dois observadores em nosso exemplo são apenas válidos para o enquadre rela- cional específico no qual eles se situam. Os sentidos construídos sobre família durante a tarefa estão sujeitos a trans- formação como resultados de uma va- riedade de diferenças contextuais. Por exemplo, fatores contextuais como se os observadores estão sendo assistidos ou não durante sua conversa, se eles acreditam que o casal saberá de sua resposta, se eles têm amigos ou familia- res próximos que são homossexuais, se eles mesmos são homossexuais ou não, se são parceiros íntimos, etc., podem resultar em diferenças no processo de negociação e em seus resultados. A terceira observação é pragmática. Considerar uma resposta como uma NPS_52.indd 18 18-Aug-15 5:24:40 PM Família como realização discursiva: Uma explicação relacional Pedro Pablo Sampaio Martins Sheila McNamee Carla Guanaes-Lorenzi 19 Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 9-24, agosto 2015. realização momentânea de nenhuma forma a desvaloriza. De fato, as des- crições relacionalmente produzidas pelos dois observadores terão impac- tos diretos e específicos sobre as ações das pessoas que realizaram a tarefa de tomar uma decisão sobre o casal, as- sim como as ações do próprio casal. Suponha que os observadores sejam os donos de uma loja na qual o casal fazia compras e que eles decidam que os dois membros do casal constituem uma família. Este casal pode ganhar o “desconto para famílias” oferecido pela loja naquela semana. Este efeito hipotético da produção de sentidos é apenas um efeito imediato e pequeno que afeta poucas pessoas. Entretanto, o mundo social é muito mais complexo do que tarefas com respostas de “sim ou não”. O que aconteceria, por exem- plo, se os donos da loja decidissem que o casal era de fato uma família, mas depois o casal dissesse a eles que não se consideram uma? Quão mais com- plexo poderia se tornar o processo de negociação de sentido ao expandir- mos o domínio da suplementação? Dando ainda mais um passo, e se con- siderarmos o mesmo processo como ocorrendo durante o curso da vida co- tidiana, no qual não apenas a bilhões de civis se oferece a mesma tarefa (ex- plicitamente ou não), mas também a profissionais, organizações, governos e instituições? O que podemos tomar como as implicações de entender que a família está ativamente sendo produ- zida durante nossas conversas? lIngUAgem de FAmílIA em Uso: ImPlIcAções Fica em aberto a tarefa de refletir so- bre as implicações de descrever famí- lia como uma realização discursiva. Se nosso argumento ficou claro, reconhe- cemos que a descrição de família que resulta de defini-la como uma reali- zação discursiva não é uma versão fi- nalizada de família e suas implicações para o mundo social apenas podem ser conhecidas após estarem em movi- mento em contextos relacionais locais, reais e específicos. Em outras palavras, nossa explicação permanece aberta à suplementação. Ainda assim, o exer- cício reflexivo de considerar os efeitos de nossas descrições sobre o mundo é muitoimportante. Do nosso ponto de vista, a principal implicação de adotar uma concepção discursiva de família é a possibilidade de manter uma postura aberta que nos permita entender as diferentes formas com que as pessoas descrevem suas conexões com outros e como esses re- lacionamentos funcionam no contexto de suas realidades situadas. Nos pa- rágrafos a seguir, discutimos algumas das formas de enxergar a ideia de fa- mília como uma realização discursiva, acreditando que pode ser útil para o desenvolvimento de teorias psicológi- cas de família, pesquisa e práticas de terapia familiar. ImPlIcAções PArA teorIzAção Sustentar todas as descrições de famí- lia como conhecimento válido (devido a seu uso em comunidades) sugere uma mudança do entendimento de teorias psicológicas sobre família que, presume-se, retratam ou representam a essência do que família realmente é. De maneira alternativa, passamos a entender essas teorias como formas particulares de discutir e descrever fa- mílias, desenvolvidas para atingir cer- tos objetivos. Assim, teorias de família podem ser vistas como produtos de um fluxo conversacional acadêmico contínuo que, ao fazer afirmações so- NPS_52.indd 19 18-Aug-15 5:24:40 PM 20 nPs 52 | Agosto 2015 Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 9-24, agosto 2015. bre família, também são responsáveis por criar diferentes realidades para ela. Isto, por sua vez, oferece um convite aos psicólogos para reconhecer, ques- tionar e tornar suas premissas claras ao estudarem, teorizarem e escreve- rem sobre família. Este convite tam- bém encoraja psicólogos a ilumina- rem tanto os processos por meio dos quais suas descrições e explicações se tornam possíveis, quanto as implica- ções que estas teorias podem ter para o mundo social (Gergen, 1997). Mais ainda, esta explicação situa teorias de família como opções discursivas, no sentido em que se tona desnecessário escolher uma explicação única, fina- lizada e última de família; ao invés disso, uma definição discursiva de família posiciona teorias psicológicas como “formas potencialmente viáveis e generativas de engajarmo-nos rela- cionalmente uns com os outros, bem como com nossos clientes” (McNa- mee, 2004, p. 236). ImPlIcAções PArA A PesqUIsA Podemos também imaginar as impli- cações que este tipo de descrição tem para a pesquisa. Em um nível, pesqui- sadores que compartilham a noção da família como uma realização dis- cursiva são encorajados a refletir con- tinuamente sobre as pressuposições que fazem sobre família e suas razões para tal. Os pesquisadores também re- conhecerão que qualquer escolha em particular a respeito de uma forma específica de descrever família tem suas próprias implicações. Ao fazerem suas pesquisas, eles deveriam questio- nar tanto quais tipos de família estão favorecendo, quanto quais tipos são deixados de fora ou não são escutados. As respostas a estas questões estão di- retamente relacionadas aos tipos de ação social prováveis de serem facili- tadas ou restringidas por qualquer co- nhecimento que resulte de um estudo em particular (McNamee, 2010). Em outro nível, os pesquisadores tam- bém são convidados a explorar mais profundamente as maneiras como as pessoas criam diferentes realidades a respeito da família ao trabalharem co- operativamente para produzir sentido. Os pesquisadores podem querer en- tender os tipos de recursos conversa- cionais aos quais as pessoas recorrem ao serem convidadas a conversar sobre o assunto da família; eles podem estar interessados em situar a influência dos diferentes discursos sociais na cons- trução de descrições locais de família; e eles podem tentar entender os efeitos de entendimentos específicos de famí- lia para as vidas das pessoas. Muitas possibilidades podem ser exploradas. ImPlIcAções PArA A PrÁtIcA de terAPIA FAmIlIAr Finalmente, podemos refletir sobre como a abordagem discursiva e rela- cional à definição de família apresen- tada nesse artigo contribui para o de- senvolvimento de práticas de terapia familiar. Primeiro, uma descrição dis- cursiva de família coloca a atenção do terapeuta no processo conversacional ocorrendo durante a sessão, pois ele se dá conta de que a conversa terapêuti- ca é um contexto para a produção de sentidos, a partir do qual diferentes versões de família podem ser constru- ídas. Isto também posiciona todos os participantes da conversa, incluindo o terapeuta, como responsáveis pelas versões de família criadas, porque o terapeuta também é uma parte ativa do processo de produção de sentidos por meio de suas respostas suplemen- tares (comentários, perguntas, respos- NPS_52.indd 20 18-Aug-15 5:24:40 PM Família como realização discursiva: Uma explicação relacional Pedro Pablo Sampaio Martins Sheila McNamee Carla Guanaes-Lorenzi 21 Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 9-24, agosto 2015. tas corporificadas, etc.). O profissional pode encontrar-se engajado em um tipo de conversa responsiva, uma “for- ma de buscar na conversa de alguém para dar a seus interlocutores oportu- nidades de dizer sobre e explorar mais eventos e experiências que lhes foram importantes em suas vidas” (Shotter, 2009, p. 21). Por sua vez, isto também coloca a atenção do terapeuta em suas pró- prias premissas sobre família e como as mesmas têm um papel no contí- nuo processo de negociação de sen- tido. A seguir, devemos considerar quem deve ser convidado ao cenário terapêutico. Podemos imaginar que qualquer modelo abstrato de família não pode responder a essa questão. Ao contrário, a própria decisão de quem deveria ser incluído na conver- sa terapêutica pode ser um processo discutido por aqueles que já estão participando. Isto está proximamen- te alinhado com a ideia de Anderson (2012) a respeito de que uma prática terapêutica relacionalmente respon- sável é sensível às diversas definições – de self , de problemas e de família, por exemplo – negociadas a partir de dentro do processo entre terapeuta e clientes. Em nosso caso, isso chama atenção para uma série de questões: Quem é construído como perten- cendo à família com o progresso da conversa? Que tipos de descrições as pessoas na sala estão criando juntas? Alguém se sente oprimido por uma descrição dominante? Parece que alguém está sendo excluído ou ig- norado? Que descrições funcionam melhor para um grupo específico de clientes em um momento específi- co? Os participantes podem traba- lhar juntos em direção à construção de diferentes versões de sua família? Em outras palavras, uma conversa sobre o sentido de família pode ser usada como um recurso terapêutico a partir do qual a construção de vá- rias versões de uma família podem apontar para novas possibilidades relacionais para os clientes. em conclUsão As contribuições do movimento cons- trucionista social nos ajudam a des- naturalizar a ideia de família como uma entidade ontológica, inevitável, necessária e autocontida no mundo. Entender família como construção so- cial tem implicações importantes para o campo da psicologia ao considerar que, se há muitas versões possíveis do que constitui uma família, ao invés de uma única família, podemos conside- rar se cada uma dessas versões é útil para certas pessoas e certos propósitos em certos momentos. Então, de volta à nossa pergunta original, “como as pessoas de fato fa- zem uso de diferentes discursos sociais sobre família em suas vidas cotidia- nas?”, uma resposta simples pode ser: as pessoas engajam-se em processos de produção de sentido. É no proces- so incessante de lidar com a ideia de família; nas conversas contínuas sobre o assunto; e na coordenação fluída de ações a respeito do conceito; que dife- rentes sentidos de família são produzi- dos no curso da vida cotidiana. Quan- do focamos em uma microperspectiva de construção social, vemos que os discursos sobre família não são usados em suas versões completas, acadêmi- cas e coerentes.Ao invés disso, eles estão vivos “entre” as pessoas, enquan- to elas negociam sentidos. Neste caso, discursos sociais podem ser mistura- dos, justapostos, contraditos e modifi- cados enquanto as pessoas fazem uso deles no cotidiano de acordo com suas NPS_52.indd 21 18-Aug-15 5:24:40 PM 22 nPs 52 | Agosto 2015 Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 9-24, agosto 2015. demandas específicas, pragmáticas e momentâneas da vida social. Anali- ticamente, queremos saber de quem são os padrões que estamos utilizando em qualquer conversa para discutir a realidade específica de família com a qual estamos lidando. Queremos criar formas significativas e úteis de ca- minhar juntos (Wittgenstein, 1953). Queremos ser capazes de refletir sobre as implicações de nossas descrições e, mais importante, queremos entender a que nível diversas descrições de fa- mília podem ser úteis a interesses es- pecíficos em certos momentos e quais possibilidades alternativas podem ser úteis em diferentes contextos. Quando mudamos o foco de nosso entendimento sobre família de uma postura essencialista para uma postu- ra construcionista, somos convidados a tomar uma postura de curiosidade para entender como as pessoas estão ativamente produzindo sentidos so- bre família enquanto coordenam suas ações em conversas sobre o assunto e são responsáveis por criar diferentes versões – e realidades – de família. Cada descrição pode ser considerada como uma realização discursiva que é tanto situada quanto sustentada em um contexto relacional específico e aos quais as pessoas se referem duran- te o curso de suas vidas cotidianas. Os psicólogos são assim encoraja- dos a explorar as diferentes maneiras pelas quais as pessoas criam relacio- namentos significativos umas com as outras e as maneiras como elas ex- ploram e existem em uma variedade de maneiras possíveis de família. Esta explicação favorece uma postura com- prometida para a Psicologia como dis- ciplina, em que ela está consciente de seus efeitos na sociedade e interessada em discutir não apenas o que as famí- lias já são, mas também o que podem vir a ser. reFerêncIAs ackerman, n. w. (1958). The psychody- namics of family life: Diagnosis and treatment of family relationships. New York: Basic Books. anderson, h. (1997). Conversation, lan- guage and possibilities: A post-mo- dern approach to therapy. New York: Basic Books. anderson, h. (2012). Collaborative rela- tionships and dialogic conversations: Ideas for a relationally responsive practice. Family Process, 51, 8-24. doi: 10.1111/j.1545-5300.2012.01385.x anderson, h., & goolishian, h. (1988). Human systems as linguistic systems: Preliminary and evolving ideas about the implications for clinical theory. Family Process, 27, 371-393. doi: 10.1111/j.1545-5300.1988.00371.x becvar, D. s. (2003). 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