1. Indique as informações apresentadas na parte introdutória da resenha Deus vai te pegar?

DEUS VAI TE PEGAR

 Acabo de tomar conhecimento de um escritor gaúcho que, por desatenção minha, nunca tinha ouvido falar. Trata-se de Carlos Moraes, natural de Lavras do Sul e hoje residente em São Paulo, que está lançando Agora Deus Vai te Pegar Lá Fora pela Editora Record. O livro caiu do céu e foi devorado num final de semana.

 É uma história de autobiografia e ficção. Conta a história de João Silveira, um padre que no princípio da década de 70 foi preso numa pequena cidade da fronteira por causa de um sermão considerado subversivo. Padre João gasta seus dias na cadeia tomando chimarrão, filosofando com os outros presos e organizando partidas de futebol, enquanto aguarda dois alvarás de soltura: um vindo de Roma, já que pediu dispensa de seus votos religiosos, e um de Brasília, já que apelou de sua condenação.

        Perguntado se é tudo verdade, o autor Carlos Moraes, que viveu a mesma situação, responde: “Um pouco aconteceu mesmo na cadeia; outro pouco aconteceu também, mas não lá; outro pouco não aconteceu nunca e o resto merecia ter acontecido”.

 Merecia mesmo. O livro é comovente, inteligente, irônico e divertidíssimo. Consegue ser gaúcho sem ser regionalista, consegue falar em religião sem ser catequista e conta a história de um preso político sem recorrer à panfletagem. Uma história que, na mão de alguém que se levasse muito a sério, ficaria chata de dar dó, mas o talento e o bom humor de Carlos Moraes se encarregaram de torná-la engraçada, terna e surpreendente. “Minha prisão foi mais Kafka do que Marx”, diz o autor.

 Voltando à ficção: o padre João Silveira vira atração da cadeia do lugarejo, é o prisioneiro mais visitado aos domingos (“É o que dá um padre ser preso numa cidade sem zoológico”). Toda noite sobe na caixa d’água do presídio e troca ideias com as estrelas sobre os colegas de cela que, mesmo sem uma ficha limpa, tornaram-se amigos do peito. E se indaga também sobre o adeus ao celibato, algo que lhe atrai e assusta. Há em todo o livro uma reflexão, permeada por passagens inesquecíveis, sobre o que significa “lá dentro” e “lá fora”, entre prisão e liberdade. Um dos momentos mais bonitos é quando o padre finalmente recebe os alvarás tão aguardados, e percebe que tornou-se não um padre livre, mas um homem livre, e sente-se “acuado entre a dor das coisas que não são mais e o medo daquelas que não são ainda”.

 E, pra encerrar minha homenagem – mas não meu entusiasmo –, digo que encontrei no livro uma religiosidade muito mais pé no chão, muito mais desassombrada por culpas e pecados, mais de acordo com o Deus que eu imagino nas minhas preces particulares. O livro nos pega lá dentro e nos devolve aqui pra fora com uma fé saudável como tem que ser.

                                MEDEIROS, Martha. Jornal ZH, 05/12/2004