Buscar

Fundamentos do direito penal?

💡 1 Resposta

User badge image

Olynto de Castro

1. Direito Penal e Dogmática Jurídico-Penal: definição e características

Estabelecer uma definição de Direito Penal e de Dogmática Jurídico-Penal implica em exercer um esforço analítico de considerável envergadura, em função da complexidade da temática envolvida e dos infinitos problemas que envolvem a incidência do poder punitivo desde uma política orientada para a máxima redução de danos em relação aos direitos fundamentais do cidadão. Trata-se de um empreendimento que envolve recurso à enorme pluralidade de fontes e que não pode ser tratado desde uma leitura jurídica que considere somente a produção científica nacional. Nesse sentido, procurou-se fazer jus ao tema através da constante referência a autores de inegável renome no que se refere aos problemas considerados, objetivando traçar um panorama rico – ainda que não suficientemente crítico – das questões envolvidas. Como se trata apenas de uma introdução, grande parte das questões são tratadas de forma superficial, deixando em aberto pontos que merecem um estudo mais minucioso em análises que atentem de forma direta a tais problemas. O que se propõe aqui é tão somente uma análise panorâmica que, ao menos, estabeleça de forma satisfatória o sentido que deve pautar a intervenção jurídico-penal em um Estado Democrático de Direito.

1.1 Conceito e características do Direito Penal

O Direito Penal é um ramo do Direito e, logo, o seu conceito deve reportar-se, de alguma forma, ao conceito de Direito em geral. O problema posto por essa questão se encontra no fato de que está longe de haver uma concepção consensual e inequívoca do conceito de Direito, diante da pluralidade de interpretações através das quais o fenômeno jurídico pode ser entendido. Neste sentido, qualquer conceito sempre implica em uma redução da complexidade inerente ao fenômeno jurídico-normativo.

Reconhecida esta insuficiência, pode ser dito que o Direito regula (ou procura regular) o convívio social e funciona como elemento de harmonização das relações sociais, oferecendo mecanismos de resolução de conflitos, por meio de sua dúplice natureza de poder que protege e, simultaneamente obriga, através de um conjunto de normas que integram o ordenamento jurídico. Trata-se de uma definição que evidentemente não esgota o fenômeno jurídico, mas que, ao menos, abrange parcela significativa de suas características. 

O ordenamento jurídico pode ser definido como um conjunto ou sistema de normas jurídicas vigentes em um país, em um determinado momento histórico. É por definição um sistema que não existe como um fim mesmo, mas como meio para a realização de valores essenciais ao homem e à sociedade. Trata-se de um sistema normativo dinâmico, composto de um corpo ou grupo de elementos relacionados entre si, que fazem parte e interagem no contexto de um todo ordenado hierarquicamente. Por outro lado, a atribuição de um caráter sistêmico não impede que cada setor ou ramo do Direito tenha as suas peculiaridades.

Em âmbito jurídico-penal, o problema conceitual é simplificado em função das características do Direito Penal, uma vez que este ramo do Direito – mais do que qualquer outro e por força da legalidade – se restringe ao chamado direito positivo, ou seja, às normas, que são a única fonte primária do Direito Penal. [1] Essa característica absolutamente deixa de lado qualquer possível referência ao chamado Direito Natural, delimitando e restringindo o Direito Penal a um espaço específico dentro do ordenamento jurídico: somente a lei é norma jurídica suscetível de ter caráter penal.[2] Ou seja, só há crime e sanção penal – pena ou medida de segurança – a partir da existência de uma lei prévia que defina o que é crime e qual a sanção aplicável, expressão máxima do princípio nullun crimennulla poene sine lege.

O Direito Penal é formado por um conjunto de regras e princípios que integram um campo específico do ordenamento jurídico, dedicado à tutela dos bens jurídicos mais relevantes de uma sociedade. É a partir desses pressupostos que se pode chegar a uma definição propriamente dita do que consiste o Direito Penal.

O Direito Penal é um meio de controle social[3] formalizado, que representa a espécie mais aguda de intervenção estatal. É formado por um conjunto de normas jurídicas (princípios e regras) que definem as infrações de natureza penal e suas conseqüências jurídicas correspondentes – penas ou medidas de segurança. É considerado um meio de controle social formal precisamente por ter sido estabelecido com esta finalidade: o controle, que visa a tutela de bens jurídicos.[4] O princípio de exclusiva proteção de bens jurídicos enfatiza justamente o caráter instrumental da tutela jurídico-penal, vedando ao direito penal interferência no âmbito da moral, da religião, da ética, enfim, de tudo que diga respeito às convicções íntimas dos cidadãos. É um controle social voltado para a tutela de bens juridicamente tutelados e não se constitui em mecanismo para propor mudanças na ordem social ou constituir uma ética em qualquer sentido.

O controle social é exercido pelo conjunto de instituições, estratégias e sanções sociais que objetivam manter os indivíduos dentro de determinados modelos e normas de comportamento comunitário. Segundo Hassemer, a expressão controle social designa um conjunto de três elementos que podem ser sinteticamente definidos como a) viver de acordo com normas sociais; b) aplicar sanções aos desvios em relação a estas normas e c) respeitar, para tanto, determinadas normas procedimentais.[5]

Por outro lado, as mesmas normas jurídico-penais que estipulam sanções em caso de violação de seus preceitos (mandamentos e proibições) conformam um sistema que estabelece garantias ao cidadão diante do poder punitivo, pois exigem uma série de condições para o seu exercício. O que significa que o Direito Penal – enquanto instrumento de controle social normativo – também tem uma função de proteção e garantia, que lhe é inerente e necessária, uma vez que a partir da intervenção jurídico-penal é possível retirar direitos da pessoa humana que lhe são constitucionalmente assegurados, sendo por isso a sua utilização reservada somente às lesões mais graves aos bens jurídicos mais importantes, o que caracteriza a idéia de fragmentariedade da tutela jurídico penal, por exigência do princípio da intervenção mínima ou ultima ratio. Portanto, sua utilização é reservada aos bens jurídico-penais absolutamente essenciais ao convívio social e que são considerados merecedores da tutela penal. Tudo isso conduz a um meio de controle com alto grau de formalização, com regras e princípios muito bem definidos.

Neste sentido, o sistema penal é um sistema garantista de controle formalizado. Apresenta vantagens que os sistemas de controle informais não dispõem, possibilitando que através da resposta penal sejam afastadas reações incontroladas e espontâneas como a vingança privada. Garcia-Pablos considera que o Direito Penal, por suas características, é um instrumento mais racional, previsível, limitado e seguro do que outros controles sociais.[6] O próprio critério de proteção a bens jurídicos enquanto garantia será reforçado pelos critérios dos princípios da ofensividade – exigência de lesão ou perigo de lesão concreta ao bem jurídico – e insignificância – desconsideração de ataques insignificantes aos bens juridicamente tutelados.

Toda norma penal que institui um crime protege (ou deveria proteger) algum bem fundamental, que através de sua proteção é elevado à condição de bem jurídico. Trata-se de uma proteção de ordem subsidiária, pois o emprego da intervenção jurídico-penal somente é justificado quando o Direito Civil ou outros ramos do Direito Público se mostram insuficientes à tutela eficaz do bem em questão. A idéia de subsidiariedade – assim como a idéia de fragmentariedade – é extraída do princípio da intervenção mínima.

Existe certo consenso no que se refere à conceituação do Direito Penal na doutrina contemporânea.[7] Para Bitencourt, o Direito Penal “apresenta-se como um conjunto de normas jurídicas que tem por objeto a determinação de infrações de natureza penal e suas sanções correspondentes – penas e medidas de segurança”.[8]Brandão constrói uma definição normativa de Direito Penal, com base em três institutos: Crime, Pena e Medida de Segurança. Assim, o autor afirma que “o Direito Penal é um conjunto de normas que determinam que ações são consideradas como crimes e lhes imputa a pena – esta como conseqüência do crime –, ou a medida de segurança”.[9] De acordo com Luiz Régis Prado, “O Direito Penal é o setor ou parcela do ordenamento jurídico público que estabelece as ações ou omissões delitivas, cominando-lhes determinadas conseqüências jurídicas – penas ou medidas de segurança. Enquanto sistema normativo, integra-se por normas jurídicas (mandamentos e proibições) que criam o injusto penal e suas respectivas conseqüências”.[10]  Para Nucci, o Direito Penal “é o corpo de normas jurídicas voltadas à fixação dos limites do poder punitivo do Estado, instituindo as infrações penais e as sanções correspondentes, bem como regras atinentes à sua aplicação”.[11] 

Considerando-se que ao Direito Penal está reservada a mais grave sanção do ordenamento jurídico – a pena – e que esta é conseqüência jurídica do crime, fica assinalada a especificidade da intervenção jurídico-penal, que caracteriza esse ramo do Direito. Conforme Roxin, o Direito Penal é composto por todos os preceitos que regulam os pressupostos e conseqüências de uma conduta cominada com pena ou medida de segurança. Dentre os pressupostos se encontram as descrições de condutas delitivas (como o homicídio, por exemplo) e dentre suas conseqüências, todas as normas que se ocupam da configuração e determinação da pena, ou da imposição de medida de segurança. Pena e medida, são, portanto, o ponto comum de referência a todos os preceitos jurídico-penais. O que faz com que um preceito pertença ao Direito Penal não é a mera regulação normativa de uma violação a mandamento ou proibição (porque também ocorre em muitos casos no âmbito civil e administrativo), mas o fato dessa infração ser passível de sanção através de pena ou medida de segurança.[12]

A pretensão preventiva também distingue o Direito Penal dos demais ramos do ordenamento jurídico, uma vez que objetiva evitar a prática de crimes através de uma prevenção geral genérica, dirigida a todos, que em caso de falha, impõe através do devido processo legal a sanção cominada, sendo esse o seu sentido de prevenção especial, expressão máxima do caráter coercitivo do poder exercido.[13] Com efeito, daí decorre a noção de que a norma penal consiste em um imperativo, onde se atribui à pena a função de motivar contra o delito, ou seja, uma função de prevenção de delitos e de proteção de bens jurídicos.

O Direito Penal – como todo texto – é datado. Logo, é um objeto cultural que pertence a um recorte histórico e geográfico específico.[14] Isso significa que é a expressão de um tempo, de determinadas circunstâncias sociais, culturais, políticas, econômicas, enfim. O processo de elaboração legislativa em âmbito penal não escapa a esta regra. São circunstâncias de cunho histórico/valorativo que conduzem à definição abstrata por meio do Direito Penal de uma série de comportamentos que devem ser obedecidos e/ou evitados pelos cidadãos. A proibição legislativa de uma determinada conduta, através da norma penal, importa em uma valoração negativa que conduz à criminalização da mesma. Isso implica em mandamentos e proibições relacionados a determinados bens jurídicos, que definem o injusto penal e as conseqüências para as condutas desviadas, estabelecendo o desvalor de certas ações e resultados.

Portanto, o Direito Penal – ou Direito Criminal – define as infrações penais (crimes ou delitos e contravenções) e comina-lhes sanções na hipótese de descumprimento dos preceitos estabelecidos. A denominação Direito Penal é mais comum nos países ocidentais, ainda que o termo Direito Criminal (expressão mais abrangente) ainda seja utilizado pelos anglo-saxões. A questão é meramente terminológica, embora alguns autores apontem que o enfoque de um é maior no crime e do outro, na punição. Outros termos, como Direito Repressivo (Puglia), Princípios de Criminologia (Luca), Direito Sancionador, Direito Protetor dos Criminosos (Dorado Montero), Direito de Luta contra o Crime (Thomsen), Direito de Defesa Social (José Agustín Martínez), e Direito Restaurador surgiram, mas sem grande difusão. Entretanto, deve ser ressaltado que é difícil discordar da afirmativa de que o termo Direito Penal designa um objeto mais restrito do que trata este ramo do Direito, como a própria existência das medidas de segurança indica.[15]

Jiménez de Asúa considera que o Direito Penal é cultural, normativo, valorativo e finalista.[16] O Direito Penal atual é ramo do Direito Público[17], e para Asúa, é sancionador e não constitutivo, já que a antijuridicidade é uma só; a infração é a todo o ordenamento jurídico, pois a contrariedade se refere ao direito e não somente à ordem penal.[18] De acordo com esse entendimento, o Direito Penal não cria bens jurídicos, mas apenas acrescenta proteção a bens já disciplinados por outros setores do ordenamento.

No entanto, o Direito Penal tem natureza ao menos, parcialmente constitutiva, ainda que a primeira seja predominante. Como refere Zaffaroni, ele será excepcionalmente constitutivo quando proteger bens ou interesses não regulados em outras áreas do direito, como é o caso da omissão de socorro.[19] Todavia, de acordo com Bitencourt, é preciso reconhecer a natureza primária e constitutiva do Direito Penal, pois mesmo quando protege bens já cobertos por outros ramos do ordenamento jurídico, o faz de uma forma que lhe é peculiar, com outra espécie de valoração.[20] Para Luiz Regis Prado, o Direito Penal tem natureza autônoma ou constitutiva (valorativa) mas também sancionatária.[21]

De qualquer forma, o fato do Direito Penal também ter natureza constitutiva (primária ou secundária) não deve levar ao equívoco de conceber o mesmo a partir de uma perspectiva isolada dos mandamentos constitucionais, pois uma interpretação hermenêutica exige uma aplicação conjunta do ordenamento jurídico, o que conduz, por sua vez, à exigência de uma dimensão constitucional de aplicação do Direito Penal. Inclusive não se pode esquecer que o Direito Penal é um dos ramos do ordenamento jurídico onde mais se impõe uma leitura constitucional.

Costuma-se distinguir entre Direito Penal comum (ou nuclear) e Direito Penal especial. O primeiro corresponde ao Código Penal Brasileiro (de 1940, cuja Parte Geral foi reformada em 1984), que é subdividido em Parte Geral e Parte Especial; o segundo é constituído pela legislação penal extravagante (como a Lei dos Crimes Hediondos e a Lei dos Crimes Ambientais).[22]  

A divisão do Código Penal em uma Parte Geral e uma Parte Especial consiste na atribuição à primeira das questões centrais da teoria e aplicação do Direito Penal, enquanto a segunda trata da descrição de delitos concretos. Por este motivo temas como a função e missão do Direito Penal e os fins da pena são tradicionalmente discutidos nos estudos dedicados à Parte Geral.

Também merece menção uma série de referências às subdivisões do Direito Penal, como Direito Penal Econômico, Direito Penal Empresarial, Direito Penal do Consumidor, Direito Penal Ambiental e assim por diante, que caracterizam um objeto de estudo mais específico. Todavia, não são áreas autônomas, apesar de algumas especificidades.  

 

0
Dislike0

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

✏️ Responder

SetasNegritoItálicoSublinhadoTachadoCitaçãoCódigoLista numeradaLista com marcadoresSubscritoSobrescritoDiminuir recuoAumentar recuoCor da fonteCor de fundoAlinhamentoLimparInserir linkImagemFórmula

Para escrever sua resposta aqui, entre ou crie uma conta

User badge image

Outros materiais