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i Universidade Federal do Rio de Janeiro ESCRAVIDÃO, FAMÍLIA E COMPADRIO AO SUL DO IMPÉRIO DO BRASIL: SANTA MARIA (1844-1882) Letícia Batistella Silveira Guterres 2013 ii ESCRAVIDÃO, FAMÍLIA E COMPADRIO AO SUL DO IMPÉRIO DO BRASIL: SANTA MARIA (1844-1882) Letícia Batistella Silveira Guterres Tese de doutoramento apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós- graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de doutor em História Social. Linha de pesquisa: Sociedade e Economia Orientador: João Luís Ribeiro Fragoso RIO DE JANEIRO 2013 iii iv S587e Silveira Guterres, Letícia Batistella. Escravidão, Família e Compadrio ao Sul do Império do Brasil: Santa Maria (1844-1882). / Letícia Batistella Silveira Guterres, 2013. Vi, 468 f.: il.; 30 cm. Orientador: João Luís Ribeiro Fragoso. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 2013. 1. Escravidão – família e compadrio. 2. Século XIX – Santa Maria (1844-1882). 3. Sociedade e economia – tese. I. Fragoso, João. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em História Social. III. T. CDU: 930.85 v RESUMO A presente pesquisa dedica-se ao estudo da composição de laços familiares envolvendo escravos em uma região de economia agrária, voltada ao mercado interno, mas cujas relações sociais estavam profundamente marcadas pela escravidão. Procuramos entender a lógica de organização parental destas famílias a partir do contexto de transformações que vivia o Brasil neste período. Ao contexto do fim do tráfico atlântico de escravos, em 1850; junto ao alastramento de ideias liberais contrárias à escravidão, somava-se uma série de eventos que anunciavam o fim da escravidão no Brasil. No Rio Grande de São Pedro, via-se a consolidação de redes de mercado regionais de abastecimento e produções voltadas para a exportação fora da Província (charque), junto ao expressivo crescimento demográfico. Todo este cenário não inviabilizou a conformação de redes parentais complexas, marcadas por estratégias fundamentadas na ideia de estabilidade familiar. Neste aspecto, os casamentos não eram desejados por todos escravos, assim como não eram caminhos que levavam necessariamente à liberdade. As composições familiares tantas vezes transcendiam os parâmetros circunscritos na categoria jurídica a que um determinado sujeito pertencia. Localizamos evidências empíricas de relações costumeiras que se traduzem numa família escrava estável, embora não referendada pela Igreja e pouco foram afetadas por todas as transformações supracitadas. Palavras-chave: Escravidão. Família. Compadrio. Século XIX. vi ABSTRACT Slavery, Family and Spirituals relationships in the south of Brazilian Empire: Santa Maria (1844-1882) Leticia Batistella Silveira Guterres Orientador: Prof. Dr. João Luís Ribeiro Fragoso Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos à obtenção do título de Doutor em História Social. This research is devoted to study the composition of family ties involving slaves in a region of the agrarian economy, focused on the domestic market, but whose social relations were deeply marked by slavery. We seek to understand the logic of parent organization of these families from the context of transformations that Brazil was living in this period. The context that attended the end of the Atlantic slave trade in 1850, with the spread of liberal ideas contrary to slavery, summed up a series of events that heralded the end of slavery in Brazil. In Rio Grande de São Pedro occurred the consolidation of networks of regional market supply and export-oriented productions outside the Province (beef jerky), along with the significant population growth. This scenario not prevented the forming of networks parental complex, marked by strategies based on the idea of family stability. In this respect, the marriages were not desired by all slaves, just as they were not paths that led necessarily to freedom. The family compositions often transcended the parameters circumscribed in legal category to which a particular subject belonged. Locate empirical evidence of customary relationships that translate into a slave family stable, though not ratified by the Church and were little affected by all the above transformations. Keywords: Slavery. Family. Spirituals relationships. XIX century. vii À Talita, por ser a inspiração em tudo o que eu faço. Saudade para sempre. viii AGRADECIMENTOS Chegar ao final desta longa jornada não foi fácil. Ninguém sobrevive a este imenso desafio pessoal se não estiver cercado de pessoas, que cada uma a seu modo, fazem toda a diferença. É hora de agradecê-los. Em primeiro lugar, agradeço ao Programa de Pós Graduação em História Social, da UFRJ, aos coordenadores, professores e funcionários, que buscaram solucionar as questões burocráticas, sempre que necessário. À CAPES, devo agradecimento pelas duas bolsas que permitiram a minha dedicação integral a este trabalho. A primeira delas, no Brasil, e a segunda, a bolsa PDEE, que viabilizou os cinco meses de meu proveitoso estágio doutoral na Universidade de Yale. Ao meu orientador, professor João Fragoso agradeço de forma muito especial. O rigor de sua orientação nunca prescindiu o respeito e a generosidade, que fazem dele o profissional que é. Ao professor Stuart Schwartz, que me recebeu em Yale, que ouviu atentamente o desenrolar de minha pesquisa, fez sugestões de bibliografia e que me colocou em contato com os seus orientandos, para que trocássemos informações. Aos funcionários dos arquivos que estive pesquisando ao longo destes anos, meu profundo agradecimento: Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, Arquivo Histórico do Estado do Rio Grande do Sul, Arquivo da Cúria Diocesana de Santa Maria, Arquivo Diocesano de Porto Alegre, Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Agradeço aos professores que compõem esta banca, por terem aceito o convite. Aos professores Cacilda Machado e Roberto Guedes, que estiveram na banca de qualificação e cujas críticas e sugestões foram importantes à continuidade deste estudo. Aos professores Luis Augusto Farinatti e Paulo Moreira, além de agradecida, estou feliz por vocês fazerem parte desta etapa importante da minha vida. O professor Paulo acompanhou parte do meu Mestrado e esteve ix presente no momento da defesa, há oito anos atrás. O professor Farinatti, mesmo antes de eu sonhar em ser historiadora, já era um incentivador. Me levou aos arquivos, me iniciou na pesquisa científica e sempre esteve presente em todos os momentos importantes da minha vida profissional. Obrigada. À professora Tereza Santos, que foi fundamental no auxílio da parte estatística deste trabalho e por toda a atenção depositada. A todos os colegas deCurso, em especial àqueles que se transformaram em grandes amigos: Jonas Vargas, Siméia e Carlos, Leandrin, Adrianna Setemy, Dani Carvalho, Moacir Maia, Maíra e Alexandre. Enfim, eu não tenho dúvida nenhuma que se não fosse vocês e nossa amizade seria muito mais penoso chegar até aqui. Só por tê-los conhecido, embarcar nessa jornada já valeu a pena. Durante esses longos quatro anos, sempre tive abrigo da minha amiga querida, Ana Paula Soares. Ela, junto a sua família linda, me hospedaram com o maior carinho todas as vezes (e foram muitas) que estive em Porto Alegre, pesquisando nos Arquivos. Muito obrigada, queridos. No Rio de Janeiro, das vezes que tive de resolver assuntos de trabalho, a casa da Adrianna Setemy era minha. Obrigada à toda família. À Natália Pinto, que topou me ajudar com o trabalho de digitação de registros batismais que não acabavam mais. Seu empenho, seriedade e amizade foram muito importantes para os resultados deste trabalho. À Gláucia Kulzer, agradeço por ter enviado inventários sempre que precisei, por ter cedido banco de dados, por ter lido e feito sugestões em partes deste texto. Ao Max Ribeiro, que trocou informações sobre Santa Maria e que ajudou com os bancos de dados. A Gabriel Aladrén e Renata Dal Sasso sou duplamente grata: além de me ajudarem com dicas para a longa trajetória de burocracias, em ocasião de minha ida para os Estados Unidos, através de vocês conheci duas grande figuras, que se tornaram amigos para uma vida: a Larissa da Costa, que mesmo sem me conhecer, ajudou com todas as pendências burocráticas, em Yale, x além de conseguir a casa em que acabei indo morar. O Atílio Bergamini, amigo de horas de conversas sobre história, literatura e a vida. Tudo sempre regado com muito humor. À Tetyana, a húngara com quem dividi casa no período em New Haven. Tenho certeza que nunca entendeu direito o que eu fazia, mas a convivência com ela, me enriqueceu como pessoa e como historiadora. A todos os amigos que reconheci nas andanças pela vida, meus sinceros agradecimentos. Lá no Rio de Janeiro, à Almerinda Castro, que cedeu a sua casa nas vésperas de viagem aos Estados Unidos. O casal Adriana e Antônio Lamas, por serem meus fiadores. Lá de Brasília, a Marília Lessa, que com a generosidade que lhe é característica hospedou a mim e minha mãe em um Hotel, para que tivéssemos a tranquilidade necessária para a longa espera do Visto. Também não menos importante a presença amiga de Ricardo Valença, Jackie Paz, e Tânia Aguiar. Sou grata a Eugênio e família a acolhida em Natal. Aos amigos “baianos”, Bianca e Gustavo, pela amizade e auxílio em empréstimos de livros, carregamentos de erva mate e toda a parceria. Ao Robinho, Janete e família, que tornam Salvador divertida de se viver. À minha família extensa, vô, vó, tios, tias, primos, primas, irmão, sogra, sogro, sobrinhos (a) e agregados. Vocês são tudo de bom! São, aliás, toda a inspiração para o que eu faço. Luiz Carlos e Sonia, pai e mãe, sem vocês nada disso seria possível. Não há palavras suficientes para agradecer todo o apoio dispensado. Tanto o material, quando a bolsa não havia chegado; e o afetivo, todas as vezes que precisei. Vocês nunca mediram esforços para estar junto e abraçaram como de vocês todos os meus projetos. Este trabalho também é de e para vocês. Por último, e em primeiro lugar, ao Ricardo, por tudo: por seu meu melhor amigo, meu grande parceiro e o amor da minha vida. Este trabalho é nosso! xi LISTA DE QUADROS Quadro 1. Compadrio dos filhos do casal de escravos Gregório e Benta.....................................137 Quadro 2. Escravos herdados pelos filhos de Constantino e Dona Ricarda................................ 144 Quadro 3. Plantel de escravos de Francisco José Pinto (1858)....................................................146 Quadro 4. Escravos herdados pelos filhos de Francisco José Pinto (1858) e Joaquina Pereira Natividade (1864)........................................................................................................................148 Quadro 5. Plantel de escravos de Clarimundo José Pinto (1866)................................................149 Quadro 6. Escravos herdados pelos filhos de Clarimundo José Pinto e Maria Helena da Fontoura Pinto................................................................................................................ .............................150 Quadro 7. Os batizados realizados pelo padre Valle na fazenda de Francisco José Pinto....155-156 Quadro 8. Fazenda de José Constantino Pinto............................................................................159 Quadro 9. Casa do Capitão Clarimundo José Pinto..............................................................160-162 Quadro 10. Fazenda do Capitão Olivério Antonio de Atáide...............................................164-165 Quadro 11. Sujeitos que batizaram escrvos na propriedade de Cipriano..............................192-193 Quadro 12. Apadrinhamento de escravos de Cipriano (em sua propriedade)..............................200 Quadro 13. Apadrinhamento de escravos de Cipriano em outros locais da freguesia.................201 Quadro 14.Padrinhos dos filhos da crioula Carolina....................................................................204 Quadro 15. Padrinhos dos netos ingênuos da crioula Carolina....................................................208 Quadro 16. Padrinhos dos filhos de Carolina...............................................................................209 Quadro 17. Padrinhos dos filhos da crioula Afra.........................................................................210 Quadro 18.Padrinhos dos filhos de Afra......................................................................................211 Quadro 19. Escravos do Coronel Raimundo Fagundes Bitancourt..............................................235 Quadro 20. Casamentos entre escravos em Santa Maria (1844-1882).................................255-256 Quadro 21.Origem dos escravos nubentes ..................................................................................259 Quadro22. Lista de senhores de escrvos e tamanho de plantel (uniões legítimas-escravos)262-264 Quadro 23. Relação da propriedade de David José de Medeiros Filho.......................................267 Quadro 24. Relação da propriedade de Manoel José de Medeiros..............................................268 Quadro 25. Relação da propriedade de Manoel José de Medeiros..............................................268 Quadro 26. Relação da propriedade de Manoel Luiz de Medeiros..............................................268 Quadro 27. Escravos do plantel de Salvadr da Roza Garcia.................................................275-276 Quadro 28. Relação da propriedade de Manoel Ignácio Diniz.............................................284-285 Quadro 29. Relação da propriedade de José Francisco Escobar..................................................285 Quadro 30. Batizados realizados na casa de Manoel Ignácio Diniz.....................................286-287 Quadro 31. Fazenda de José Constantino Pinto....................................................................296-298 Quadro 32. Lista de senhores de escravos, tamanho de plantel e número de casamentos (uniões legítimas mistas)...................................................................................................................298-301 Quadro 33. Batizados realizados na casa de Jose Fracisco de Escobar.......................................303 Quadro 34. Batizados realizados na casa de Manoel Luiz de Medeiros...............................321-322 Quadro 35. Batizados realizados na propriedade de Manoel Gonçalves Chaves.................324-325 Quadro 36. Registros de batismo dos filhos de Lucrecia.............................................................387Quadro 37. Registro de batismo dos filhos legítimos de Tereza Maria de Jesus e o escravo João...............................................................................................................................................389 Quadro 38. Sujeitos devedores do Padre Valle............................................................................391 Quadro 39. Sujeitos do qual o Padre Valle declara-se credor......................................................392 Quadro 40. Legatários do Padre Valle..........................................................................................393 xii LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1. Santa Maria da Boca do Monte. Movimento anual de batismos, casamentos e óbitos da população livre (1844-1882)..........................................................................................................50 Gráfico 2. Santa Maria da Boca do Monte. Movimento de batismo, casamento e óbito da população escrava por décadas (1844-1882)..................................................................................51 Gráfico 3. Santa Maria da Boca do Monte. Movimentos de alforrias concedidas em registro e em pia batismal (1850-1885)................................................................................................................64 Gráfico 4. Movimento de batismo, casamento e óbito da população escrava por décadas. Santa Maria da Boca do Monte. (1844-1882).........................................................................................69 Gráfico 5. Número de senhores de escravos por ano. Santa Maria. ( 1844-1882).........................85 Gráfico 6. Número médio de escravos por proprietário, por ano. Santa Maria.(1844-1882).........86 Gráfico 7. Número de escravos por ano. Santa Maria (1844-1882)..............................................87 Gráfico 8. Percentual de senhores de escravos de acordo com o tamanho da escravaria. Santa Maria. (1844-1882).........................................................................................................................88 Gráfico 9. Percentual de proprietários por tamanho da escravaria e período.................................89 Gráfico 10. Número de casamento de escravos por décadas. Santa Maria. 1844-1882...............258 Gráfico 11. Uniões legítimas e ilegítimas, por ano, através dos registros de batismo. População escrava..........................................................................................................................................260 Gráfico 12. Uniões legítimas e ilegítimas por décadas. População escrava................................261 Gráfico 13. Movimento de nascimentos de índios batizados na Paróquia de Santa Maria da Boca do Monte. 1844-1882...................................................................................................................339 xiii LISTA DE TABELAS Tabela 1.1. População livre, liberta e escrava de Santa Maria, século XIX...................................33 Tabela 1.2. População da paróquia de Santa Maria quanto à nacionalidade..................................34 Tabela 1.3. População livre considerada em relação à nacionalidade estrangeira.........................36 Tabela 1.4. Batizados de livres. Santa Maria. 1844-1849..............................................................38 Tabela 1.5. Batizados de livres. Santa Maria. 1850-1870.............................................................39 Tabela 1.6. Batizados de livres entre os anos de 1871 e 1882........................................................40 Tabela 1.7. Batizados de ingênuos entre os anos de 1871 e 1882..................................................40 Tabela 1.8. Batizados de libertos entre os anos de 1844 e 1849....................................................42 Tabela 1.9. Batizados de libertos entre os anos de 1850 e 1870...............................................42-43 Tabela 1.10. Batizados de forros entre os anos de 1844 e 1849.....................................................43 Tabela 1.11. Batizados de forros entre os anos de 1850 e 1870.....................................................44 Tabela 1.12. População geral da paróquia de Santa Maria na relação da condição social e raça 45 Tabela 1.13. População geral da paróquia quanto à raça...............................................................46 Tabela 1.14. Homens e mulheres livres na relação de faixas etárias e raça. Santa Maria da Boca do Monte. Ano de 1872.............................................................................................................47-48 Tabela 1.15. Registros de batismo. 1844 e 1849. População escrava. Santa Maria da Boca do Monte..............................................................................................................................................66 Tabela 1.16. Batizados de escravos entre os anos de 1850 e 1870.................................................67 Tabela 1.17. Registros de batismos entre os anos de 1850 à 1869. População escrava. Crianças e adultos. Santa Maria da Boca do Monte.........................................................................................68 Tabela 1.18. Mulheres escravas de acordo com faixas etárias. Santa Maria da Boca do Monte. Ano de 1872....................................................................................................................................70 Tabela 1.19. Registros de batismos, 1844-1849. Cor/origem do batizado de acordo com a condição jurídica. Inocentes e adultos............................................................................................72 Tabela 1.20. Registros de batismos, 1850-1870. Cor/origem do batizado de acordo com a condição social. Inocentes e adultos...............................................................................................73 Tabela 1.21. Ocupações dos escravos conforme os inventários post mortem................................75 Tabela 1.22 Número de proprietários de escravos, número de escravos, número médio de escravos por proprietário, por ano. Santa Maria – Rio Grande do Sul. Brasil. Período 1844- 1882...........................................................................................................................................83-84 Tabela 1.23. Número e percentual de proprietários e de escravos nas categorias do tamanho da escravaria nos três períodos. Santa Maria. (1844-1882).................................................................90 Tabela 5.1. Batismos de filhos legítimos e ilegítimos. População livre. Santa Maria. 1844- 1882..............................................................................................................................................336 Tabela 5.2. Padrinhos de batizandos livres, filhos naturais. Santa Maria. 1844-1882.................342 Tabela 5.3. Madrinhas de batizandos livres, filhos naturais. Santa Maria. 1844-1882................343 Tabela 5.4. Condição jurídica das madrinhas de batizandos escravos, filhos naturais. Santa Maria. 1844-1882.....................................................................................................................................348 Tabela 5.5. Condição jurídica dos padrinhos de batizandos escravos, filhos naturais. Santa Maria. 1844-1882.....................................................................................................................................348 Tabela 5.6. Condição jurídica das madrinhas de batizandos escravos, filhos legítimos. Santa Maria. 1844-1882.........................................................................................................................349 xiv Tabela 5.7. Condição jurídica dos padrinhos de batizandos escravos, filhos legítimos. Santa Maria. 1844-1882.........................................................................................................................349Tabela 5.8 – Tipos de alforria: pagas, condicionais e gratuitas Santa Maria da Boca do Monte, 1858-1882............................................................................................................................. ........359 Tabela 5.9. Tipos de alforria (subdivisões) Santa Maria da Boca do Monte, 1858-1882............360 Tabela 5.10. Naturalidade dos alforriados e tipos de alforria Santa Maria da Boca do Monte, 1858-1882.....................................................................................................................................363 xv LISTA DE FIGURAS Figura 1. Movimentação de escravos pertencentes à família Pinto..............................................167 Figura 2. Família de Cipriano.......................................................................................................193 Figura 3. Ligações de compadrio: José Luiz de Medeiros e Rita Teixeira de Cesar....................196 Figura 4. Escravos de Maria Teixeira Cezar batizados na propriedade de Cipriano Teixeira Cezar: Francina (13/1/1854)....................................................................................................................215 Figura 5. Escravos de Rita Teixeira Cezar batizados na propriedade de Cipriano Teixeira Cezar: Zeferina (13/1/1854)....................................................................................................................218 Figura 6. Escravos de José Luiz de Medeiros batizados na propriedade de Cipriano Teixeira Cezar............................................................................................................... .......................220-221 Figura 7. Escravos de Rita Teixeira de Moraes batizados na propriedade de Cipriano Teixeira Cezar: Adriano (22/3/1859).........................................................................................................226 Figura 8. Escravos de João Ignácio Xavier batizados na propriedade de Cipriano Teixeira Cezar............................................................................................................................................227 Figura 9. Escravos batizados na propriedade de Cipriano e de posse de Faustina Maria de Carvalho.......................................................................................................................................230 Figura 10. Famílias de escravos de Raimundo Bitancourt (batizados em sua propriedade e na paróquia de Santa Maria).............................................................................................................237 Figura 11. Escravos de Raimundo Bitancourt na propriedade de Cipriano Teixeira Cezar........238 Figura 12. Escravos do Capitão João Prestes dos Santos batizados na propriedade de Cipriano Teixeira Cezar: Silvéria (23/4/1858)............................................................................................239 Figura 13. Escravos de Thereza Maria de Jesus batizados na propriedade de Cipriano Teixeira Cezar: Juliana (23/4/1858)...........................................................................................................240 Figura 14. Escravos de Ignácio Martins de Moraes batizados na propriedade de Cipriano Teixeira Cezar: Bernardo (29/11/186?)......................................................................................................241 Figura 15. Escravos de Antônio José Correia batizados na propriedade de Cipriano Teixeira Cezar.............................................................................................................................................242 Figura 16. Escravos de Elias Victorino dos Santos batizados na propriedade de Cipriano Teixeira Cezar.............................................................................................................................................243 Figura 17. Escravos de José Joaquim Cezar batizados na propriedade de Cipriano Teixeira Cezar.............................................................................................................................................244 Figura 18. Famílias de escravos do plantel de Escobar................................................................306 Figura 19. Movimento de escravos entre propriedades................................................................327 xvi LISTA DE DIAGRAMAS Diagrama 1. Filhos da crioula Carolina........................................................................................202 Diagrama 2. Filhos de Carolina....................................................................................................203 Diagrama 3. Filhos de Afra..........................................................................................................203 Diagrama 4. Filhos da crioula Afra..............................................................................................203 xvii LISTA DE ABREVIATURAS APERS – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul AHRS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul ACDSM – Arquivo da Cúria Diocesana de Santa Maria xviii SUMÁRIO Introdução ................................................................................................................................. 21 Capítulo 1. “Na extremidade sul do Império do Brasil”: Santa Maria da Boca do Monte e suas características socioeconômicas ................................................................................................ 32 1.1 Uma fronteira agrária aberta e uma população livre em franca expansão ........................... 33 1.2 Por todos os lados e em todo o lugar: os escravos em Santa Maria......................................59 1.3 Senhores de poucos escravos. Escravos de muitos senhores .............................................. 77 1.4 Os registros batismais e a desconcentração da propriedade escrava em Santa Maria .......... 82 Capítulo 2. A unidade produtiva e seus aspectos constitutivos: escravidão, família e parentesco 92 PARTE I:................................................................................................................................ 92 2.1 Os movimentos da historiografia da escravidão ................................................................. 92 2.2. Sobre a família escrava .................................................................................................. 101 2.3 Os laços familiares entre escravos e seus parâmetros analíticos ....................................... 109 2.4 As alianças familiares, o parentesco e a ligações das unidades produtivas ....................... 117 PARTE II: ............................................................................................................................ 125 2.5 Os desenhos da propriedade: a família Pinto ................................................................... 125 2.6 A Fazenda de Santa Catarina ........................................................................................... 131 PARTE III: ........................................................................................................................... 133 2.7 Laços familiares geracionais dos plantéis de Francisco José Pinto ................................... 133 2.8 Thomé e Luzia ................................................................................................................ 142 2.9 Ligações familiares consensuais e os projetos de estabilidade ......................................... 143 2.10 Plantel de Clarimundo José Pinto ..................................................................................149 2.11 Os padrinhos dos escravos de Clarimundo José Pinto .................................................... 153 2.12 Os escravos de Theodoro José Pinto e Antonio José Pinto ............................................. 153 PARTE IV: Visitas Paroquiais .............................................................................................. 155 2.13 Visita paroquial à fazenda de Francisco José Pinto ........................................................ 155 2.14 A parentela de Francisco José Pinto nas visitas paroquiais ............................................ 158 2.15 Visita paroquial à fazenda de José Constantino Pinto.......................................................159 2.16 Visita paroquial à casa do Capitão Clarimundo José Pinto ............................................. 160 2.17 Visita paroquial à fazenda do Capitão Olivério Antônio de Ataíde ................................ 164 2.18 O movimento de escravos e as suas estratégias familiares................................................166 xix Capítulo 3- “A porta por onde se entra”: o batismo e seus “efeitos maravilhosos” através das visitas paroquiais ao Rincão de São Pedro.......................................................................... ...169 PARTE I............................................................................................................................... ......169 3.1 Os “efeitos maravilhosos” do batismo ............................................................................. 169 3.2 Das tradições jurídicas de uma vila católica .................................................................... 174 3.3 O compadrio de escravos: outras considerações .............................................................. 178 3.4 As redes familiares e de compadrio em Santa Maria: um olhar através das visitas paroquiais ............................................................................................................................................. 185 PARTE II - ........................................................................................................................... 189 3.5 As visitas paroquiais ao Rincão de São Pedro ................................................................. 189 3.6 Vizinhos, parentes e compadres: os visitantes à propriedade de Cipriano Teixeira Cezar . 192 3.7 Visitas à propriedade de Cipriano Teixeira Cesar ............................................................ 197 PARTE III - .......................................................................................................................... 214 3.8 “Em visita Paroquial”: Familiares de Cipriano Teixeira Cezar ........................................ 214 3.9 O batizado de escravos de Maria Teixeira Cezar em propriedade de Cipriano ................. 214 3.10 O batizado de escravos de Rita Teixeira Cezar em propriedade de Cipriano Teixeira Cezar ............................................................................................................................................. 217 3.11 O batizado de escravos de José Luiz de Medeiros na propriedade de Cipriano............... 219 3.12 O batizado de escravos de Rita Teixeira de Moraes em propriedade de Cipriano ........... 226 3.13 O batizado de escravos de João Ignácio Xavier em propriedade de Cipriano ................. 227 PARTE IV – ......................................................................................................................... 229 3.14 Vizinhos, parentes: outras visitas à propriedade de Cipriano ......................................... 229 Capítulo 4 – Entre o/posições e vontades: o casamento de escravos em Santa Maria ............... 248 4.1 O casamento entre escravos ............................................................................................ 254 4.2 As famílias escravas de David José de Medeiros ............................................................. 266 4.3 Um grande plantel: Salvador da Roza Garcia .................................................................. 275 4.4 Um pequeno plantel: Maria Elias .................................................................................... 279 4.5 Um médio plantel: Manoel Ignácio Diniz ........................................................................ 284 4.6 Uniões mistas e o casamento: José Francisco de Escobar, seus escravos, compadres e vizinhos ................................................................................................................................ 290 4.7 Visita ao oratório da casa de José Francisco de Escobar .................................................. 302 4.8 Os casamentos mistos no plantel de Escobar ................................................................... 307 xx 4.9 O amasiar entre escravos ................................................................................................. 309 4.10 Amasiados e vivem juntos; amasiados e vivem separados ............................................. 309 4.11 “Por causa de uma preta amásia de Domingos” ............................................................. 311 4.12 “Foi por ele levada ao seu rancho, onde então residia” .................................................. 314 4.13 “Em casa onde mora com suas filhas” ........................................................................... 315 4.14 Das implicações da pretensão de casamento de Constantino: “eu, você e eles” .............. 316 4.15 As interações familiares, a vizinhança e o compadrio escravo ....................................... 318 4.16 Pontos de interação: o compadrio de escravos ............................................................... 319 4.17 Visita paroquial à fazenda de Manoel Luiz de Medeiros...................................................321 4.18 Visita paroquial ao oratório privado de Manoel Gonçalves Chaves..................................324 4.19 O movimento de escravos e suas estratégias familiares. .............................................. ..325 Capítulo 5 – Laços consensuais, filhos naturais e a estabilidade familiar. ................................ 329 5.1 A ilegitimidade em números em Santa Maria .................................................................. 334 5.2 Ailegitimidade e a população livre .................................................................................. 336 5.3 A ilegitimidade e a população escrava.......................................................................... 345 5.4 “Da fina flor da sociedade” ............................................................................................. 352 5.5 “Enquanto for do seu gosto” ........................................................................................... 355 5.6 O pároco mediador: alianças em diferentes direções ....................................................... 364 5.7 “Tendo-se metido em política tornou-se inimigo a uma parte da população”: o sucessor do Padre Valle ........................................................................................................................... 371 5.8 A figura de um Coronel.................................................................................................. 375 5.9 “Encaram semelhante ato como de maior conveniência e felicidade”: as redes sociais do Padre Valle ........................................................................................................................... 379 5.10 A tia Lucrecia e sua família .......................................................................................... 384 5.11 Entre uma união estável ou fortuita?............................................................................. 391 5.12 A consensualidade e a estabilidade familiar: “Por minha morte, deixo a ele os meus bens por sinal de gratidão” ............................................................................................................400 Considerações finais ............................................................................................................. 405 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................................412 ANEXOS..........................................................................................................................................431-468 21 Introdução Era ano de 1878. O escravo Constantino defendia-se da acusação do assassinato de sua sogra, a parda liberta Engrácia Maria da Conceição. O réu era amásio da filha da vítima, de nome Maria Liotides. A imputação ao crime ligava-se à sua suposta pretensão de casar-se com Liotides e da mãe desta não admitir dita união 1 . O evento deu-se no segundo distrito do termo de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, mesmo local onde vivia a família da vítima. Ali, Engrácia, seu amásio, o lavrador José Pedro; sua filha, Maria Liotildes e o neto, Francisco, de oito anos de idade, estavam estabelecidos na condição de agregados em propriedade de Dona Maria Cândida da Costa. Ao narrar os fatos que teriam gerado o assassinato, o adjunto do Promotor Público de Santa Maria, Henrique do Rego, referiu-se à “harmonia dos indícios”, responsáveis por apontar à culpabilidade do réu, Constantino. Fundamentalmente, o fato do escravo querer casar-se com Liotildes e sua mãe não permitir a concretização do casamento, por si só teria o levado à cometer o crime. *** A primeira vez que tomei contato com este processo crime, ainda durante a graduação, fui instigada à entender os significados da família para escravos como Constantino em uma vila católica 2 , como o era Santa Maria, que, entretanto, era habitada por sujeitos de distintas designações sociais. Na ocasião, investir neste tema no Rio Grande do Sul era urgente, dado à quase inexistência de trabalhos nesta direção 3 . À medida que a pesquisa se desenrolava, eu percebia que grande parte dos estudos sobre este tema no Brasil estavam condicionados a um modelo de 1 Processo-crime 1002, Santa Maria, maço 28, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. APERS. 2 O Censo Geral de 1872 diz que, entre a população geral de Santa Maria, 8.176 eram católicos e 82 acatólicos. Estes últimos todos alemães. 3 Cabe salientar o trabalho de Laureano, entre os inauguradores deste tema no Rio Grande do Sul. LAUREANO, Marisa. A última vontade. Um estudo sobre os laços de parentesco entre os escravos na Capitania do Rio grande de São Pedro. 1767-1809. Dissertação de Mestrado, PUCRS, 1999. 22 classificação da família, que talvez não se adequasse às questões envolvendo os escravos. 4 Nesses modelos, a família pensada como nuclear e monogâmica, constituída sob os auspícios da Igreja católica eram a linha mestra destes estudos. O trabalho que resultou em dissertação de Mestrado 5 nos apontou a outros aspectos organizacionais daquela sociedade, que instigaram à continuidade da investigação em outras direções, fundalmentalmente as relações consensuais, os laços de compadrio e o apadrinhamento nas interações dos escravos, de seus senhores e outros sujeitos de suas relações. O tema da família dialoga com questões relacionadas às contribuições historiográficas que, desde a década de 1980, no Brasil, se debruçam neste tema. A primeira delas se refere à pouca importância atribuída às regiões cujas economias estiveram mais voltadas ao mercado interno. 6 A historiografia da década de 1980, marcada pela “deformação peculiar aos cursos de graduação”, no sentido de que os pesquisadores, quando se dedicavam ao estudo do espaço agrário brasileiro, buscavam, a priori, plantations exportadoras, porque achavam que era exatamente isto que iriam encontrar. 7 As plantations escravistas eram, em grande medida, o local privilegiado destes estudos, já que entendido como locus que incorporava os elementos fundamentais à explicação da economia brasileira. Somente com o despontar de trabalhos mais regionalizados, o mercado interno brasileiro é redimensionado; assim como a escravidão, disseminada para muito além dos mercados agroexportadores, em sociedades que não estavam apenas divididas entre senhores e escravos. 8 4 No primeiro capítulo traçamos um panorama geral desses trabalhos. 5 SILVEIRA GUTERRES, Letícia Batistella. Para além das fontes: im/possibilidades de laços familiares entre livres, libertos e escravos em Santa Maria. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós graduação em História: PUCRS, 2005. 6 Na realidade, pode-se dizer que essa historiografia esteve assentada, em descrever a dinâmica histórica do Brasil marcada por interesses metropolitanos, que teria permanecido mesmo após a indenpendência. O mercado interno, neste cenário era apenas dependente do comércio exterior. Cito aqui uma referência clássica sobre o tema: PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 6. Ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1961. 7 MATTOS DE CASTRO, Hebe. Ao Sul da História: lavradores pobres na crise do trabalho escravo. 2 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p.11. Entretanto, convém reconhecer que na década de 1970, alguns estudos começam a apontar a importância dos aspectos internos constitutivos da sociedade colonial para entender a sociedade brasileira. Um destes é Gorender, que propôs a existência de um “modo de produção colonial” na colônia. GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 4 ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2010. 8 Alguns desses trabalhos: MATTOS DE CASTRO, Das cores do silêncio. Os significados da liberdade no sudeste escravista. Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 1998.; FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998; FRAGOSO, João. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). 2 ed. 1998. 23 Em meados do século XIX, o Rio Grande do Sul seguia um momento de consolidação das redes de abastecimento e produções voltadas para a exportação (entendida como fora da Província), como é o caso do charque. 9 Guardadas as especificidades regionais, a Província do Rio Grande de São Pedro encerrava características comuns à tantas outras áreas brasileiras, onde as relações sociais incorporadas à uma estrutura social hierárquica, estavam marcadas pelo trabalho escravo. Nesse sentido, o espaço deste estudo definitivamente não é atípico, ou seja, um local essencialmente agrário, de economia voltada ao mercado interno e cujo trabalho cativo, ainda que significativamente inferior às áreas de plantation, estava disseminado por todas as atividades econômicas e nos diferentes grupos sociais, marcando profundamente todas as relações sociais. A segunda questão, se relaciona à anterior, no sentido que parece se refletir dela: quanto aos estudos sobre a família escrava, a atribuição primeira à sua existência costuma ser condicionada ao tamanho das propriedades estudadas (médias e grandes), ou seja, geralmente em regiões de plantation de café e açúcar, onde o número de escravos não era menor do que dez em cada propriedade. Como exemplo pode-se citar a obra de Robert Slenes 10 , onde o autor atribuiu como fator de explicação fundamental à possibilidade de formação de famílias escravas no Sudeste brasileiro, o tamanho das posses de terras maiores, junto ao número relativamente grande de cativos, que tornava mais fácil a escolha de um cônjuge na mesma propriedade, unido à relativa estabilidade, visto que, em tais propriedades (médias e grandes), o escravo, provavelmente depois de adquirido, não mais seria alienado por venda. O autor declara que, em outras regiões, como no Sul do Brasil, onde as propriedades eram menos estáveis(por se tratarem de áreas, que em 1850 seriam grandes perdedoras de escravos no tráfico interno), havia a probabilidade de que ali se revelassem estruturas familiares mais fracas. Com efeito, cabe destacar que a família aqui estava sendo refletida a partir das uniões através do casamento. Este estudo pretende justamente ir além dessa inferência, na tentativa de entender como se organizaram (e foram afetadas) as estruturas parentais da escravidão, em meio às transformações 9 CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; SANTOS, Corcino Medeiros dos. Economia e sociedade no Rio Grande do Sul: século XVIII. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: INL, 1984. 10 SLENES, Robert. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 24 resultantes da segunda metade do século XIX, que, em síntese anunciavam o fim do escravismo brasileiro. Em que medida o alastramento de ideias liberais (no Brasil e no mundo) contrárias à escravidão interfiriam nessas organizações familiares? O fim do tráfico atlântico de escravos, em 1850, e o consequente aumento nos preços de escravos teriam resultado na instabilidade familiar? O impactante crescimento demográfico ocorrido em áreas como Santa Maria, fruto da expansão territorial e apropriação de áreas de fronteira agrária aberta também seguia junto à lenta construção do Estado Nacional. No Rio Grande do Sul isto não se deu longe de conflitos e guerras que envolveram sujeitos de diferentes designações sociais. Partimos da hipótese que a estrutura parental escrava, não necessariamente conformada através do casamento, mas em uniões de concubinato, mantiveram padrões estáveis, com recursos que podiam os aproximar do casamento. O que o padrão normativo tratava de chamar de ilegitimidade, era, para muitos dos sujeitos que o conformavam uma união costumeira estável. A terceira questão, também relacionada às anteriores se encaminha à discussão sobre a idéia de família implícita nestas abordagens. Grande parte dos trabalhos ainda pauta-se como modelo para o estudo da família negra, a nuclear e monogâmica, conforme pontuamos anteriormente. Este fato ajudou a formar idéias apriorísticas sobre este tema, já que se costumou buscar a família constituída nas uniões legítimas, sancionadas pela Igreja Católica. Caso as uniões legítimas não se confirmassem nos registros de casamento, isto revelaria a ausência de conformação familiar dita estável. Neste sentido, coloca-se como aspecto central deste trabalho acessar as redes de relações nas interações de sujeitos de diferentes designações sociais: livres, libertos e escravos e compreendê-las através de laços como o compadrio, o apadrinhamento e os círculos de vizinhança. A ideia de família não está reclusa à unidade doméstica ou à coabitação. Mais do que o número de sujeitos que compõem a casa, este conceito está atrelado ao sentido de pertencimento àquela sociedade. Assim, cabe à análise das unidades produtivas não somente como fontes de produção e consumo, mas nas relações que interligam as famílias e a propriedade: a vizinhança e o parentesco. 25 As questões pontuais acima mencionadas tentarão ser analisadas através de trajetórias familiares, à luz de uma metodologia de inspiração microanalítica. Nesse sentido, a proposta em que se insere a obra de Carlo Ginzburg 11 é inspiradora: o indivíduo é o ponto de encontro de diferentes facetas da sociedade, do social e, nesse sentido, uma importante ferramenta para acessar o geral. 12 A escolha do período temporal (1844-1882) deste estudo refere-se fundamentalmente aos registros batismais, que são a base para as análises aqui expostas. As descontinuidades dos assentos batismais no período anterior, em especial durante a guerra farroupilha (1835-1845), junto à existência dos resultados demográficos envolvendo a mesma região neste período temporal ajudaram a corroborar esta opção. 13 Ademais, os anos anteriores ao fim do tráfico atlântico nos permitiram (ainda que reconhecendo o curto período temporal) visualizar os impactos desta Lei nas organizações parentais que dali por diante de sucederam. Partindo dos assentos de batismo de toda a população livre, liberta e escrava nos anos que contemplam este estudo, buscamos informações suplementares que ajudassem a explicar os comportamentos ali destacados. Uniu-se, portanto, os registros de casamento de escravos, os inventários post-mortem, processos crime, testamentos, cartas de alforria, registros paroquiais de terras. Recompor parcelas de trajetórias de algumas famílias geracionalmente foi possibilitado pelo método de cruzamento de nomes (onomástico). 14 Alguns termos recorrentes utilizados neste trabalho merecem ser esclarecidos: 11 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 12 Conforme nos sugere o antropólogo norueguês, Fredrik Barth, a microanálise pode ser uma possibilidade de acessar tanto as regularidades quanto os desvios sociais. A implicação desses preceitos teóricos não está em um modelo de representação de sociedade prevista pelo estruturalismo, mas na presença da variação como parte da vida humana. Os agentes sociais não podem ser vistos como cópias ou simples reprodutores do modelo que se convencionou chamar sociedade, mas cada sujeito é ponto de encontro de diferentes relações sociais, ou seja, as escolhas dos agentes partem de estratégias ligadas aos seus respectivos recursos disponíveis e as interações entre estes sujeitos são atravessadas de conflitos e tensões, no constante jogo de maximizar seus interesses (FRAGOSO, 2006). E estas relações sociais estão em contínua geração, são generativas. FRAGOSO, João. Alternativas metodológicas para a história econômica e social: micro-história italiana, Fredrick Barth e a história econômica colonial. In: ALMEIDA, Carla Maria Carvalho & OLIVEIRA, Mônica Ribeiro (orgs). Nomes e números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006, p.27-48. 13 Me refiro ao trabalho de BELINAZO, Terezinha. A população da paróquia de Santa Maria da Boca do Monte (1844-1882). Santa Maria: UFSM – Dissertação de Mestrado, 1981. 14 GINZBURG, Carlo; Poni, Carlo. O nome e o como. In: A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Difel- Bertrand Brasil, 1989. 26 Família senhorial refere-se às famílias proprietárias de escravos de Santa Maria. No caso desse estudo, como se verá a seguir, as famílias senhoriais foram o ponto de partida à análise das redes mais complexas em que se inseriam as estratégias familiares dos cativos de suas propriedades. A parentela senhorial 15 relaciona-se à família extensa, no sentido de incorporar os laços provenientes do casamento, leia-se, cunhados, noras, sogros (a), cunhados (as); assim como padrinhos e afilhados e escravos. Outro termo aqui utilizado é estratégia, que está associado à importância da rede de relações consangüíneas ou outras alianças como elementos fundamentais nas escolhas dos sujeitos, que estão posicionados para a ação. Sob a lente das estratégias familiares e de redes de amizade, proteção, compadrio e apadrinhamento pretende-se “preencher um quadro que os cálculos estritamente econômicos representavam apenas de maneira parcial e distorcida.” 16 Nessas ações, as estratégias adotadas se valem do que Levi denominou de racionalidade seletiva, e que confere a elas se movimentar em um campo limitado, ou seja, pressupõe:A ambigüidade das regras, a necessidade de tomar decisões em situações de incerteza, a quantidade limitada de informações que, todavia, não impede a ação, a tendência psicológica a simplificar os mecanismos causais considerados relevantes para a determinação de comportamentos e, enfim, a utilização consciente das incoerências entre os sistemas de normas e de sanções (LEVI, op.cit, p.46). Norbert Elias 17 ajuda a pensar nas limitações presentes nas estratégias dos indivíduos na medida em que trabalha com a perspectiva de que estes sujeitos vivem em redes de dependências, 15 Embora com diferenças nas proprostas anlíticas, tomo emprestado a definição do termo desta autora. PEDROZA, Manoela da Silva. Engenhocas da moral: uma leitura sobre a dinâmica agrária tradicional (freguesia de Campo Grande, Rio de Janeiro, século XIX). Tese de Doutorado apresentada na UNICAMP, 2008, p.11. 16 LEVI, Giovanni. A Herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2000, p.96. 17 ELIAS, Norbert. A Sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. No que diz respeito às redes de dependência em que os sujeitos estão imersos, diz: “Ela vive, e viveu desde pequena, numa rede de dependências que não lhe é possível modificar ou romper pelo simples giro de um anel mágico, mas somente até onde a própria estrutura dessas dependências o permita; vive num tecido de relações móveis que a essa altura já se precipitaram nela como seu caráter pessoal.” (ELIAS, 1994, p.44). 27 que, todavia, é contraditória e passível de ser rompida e modificada. Porém, essas alterações estão circunscritas em seu campo de possibilidades, de seus valores. A implicação desses preceitos teóricos não está em um modelo de representação de sociedade prevista pelo estruturalismo, mas na presença da variação como parte da vida humana. Os agentes sociais não são cópias ou simples reprodutores do modelo que se convencionou chamar sociedade, mas cada sujeito é ponto de encontro de diferentes relações sociais, ou seja, as escolhas dos agentes partem de estratégias ligadas aos seus respectivos recursos disponíveis e as interações entre estes sujeitos são atravessadas de conflitos e tensões, no constante jogo de maximizar seus interesses. 18 *** Além dos termos acima mencionados com efetiva recorrência, citarei ao longo deste trabalho, uma historiografia local 19 , que apresentou importantes contribuições sobre diferentes objetos de pesquisa relacionados à Santa Maria. Menciono aqui os fundamentais à nossa análise. Primeiramente, destaco os trabalhos dos memorialistas de Santa Maria: João Belém 20 , Romeu Beltrão 21 e João Daudt Filho 22 , cujas obras trazem informações sobre os moradores, as questões políticas, religiosas e costumes da região. Além destes, temos as falas de viajantes europeus que estiveram na Província do Rio Grande do Sul e que passaram por Santa Maria. De seus relatos, apreendemos algumas das impressões que deixaram sobre a paisagem geográfica santamariense de meados dos oitocentos. 23 Terezinha Belinazzo 24 traçou um panorama demográfico da região de Santa Maria entre os anos de 1844 e 1882 e que tem servido como obra de referência para os trabalhos que se seguiram, inclusive deste. 18 FRAGOSO, op.cit. 19 RIBEIRO, José Iran; WEBER, Beatriz Teixeira (orgs.). Nova história de Santa Maria: outras contribuições recentes. Santa Maria: Câmara Municipal de Vereadores, 2012. 20 BELÉM, João. História do Município de Santa Maria (1797-1933). 3. ed. Santa Maria: Editora da UFSM, 2000. 21 BELTRÃO, R. Cronologia histórica de Santa Maria e do extinto município de São Martinho (1797-1930). Porto Alegre, 1979. 22 FILHO, João Daudt. Memórias. 4 ed. Santa Maria: UFSM, 2003. 23 MARCHIORI, José Newton; NOAL FILHO, Valter. Santa Maria: relatos e impressões de viagem. Santa Maria: Editora da UFSM, 1997. 28 Luis A. Farinatti 25 , ocupou-se em compreender a dinâmica de ocupação e distribuição fundiária de Santa Maria na segunda metade dos oitocentos. Dentre as importantes contribuições de sua análise destaco a dinâmica de apropriação de terras ligada a lavradores pobres de outras áreas brasileiras, bem como a quebra da tradicional dualidade da campanha – grandes e pequenos criadores – demonstrando uma paisagem agrária bem mais diversificada e complexa. Ana Paula Flores 26 dedicou-se à reflexão das relações e interpretações dos seus habitantes com a morte, tomando como fato marcante a construção do primeiro cemitério extramuros daquela localidade. O trabalho de Alexandre Karsburg 27 dialoga com os trabalhos de Vitor Biasoli 28 e Luis Eugenio Véscio 29 , em investigação que mostra as divergências e disputas políticas associadas a um momento em que a Velha Matriz caía em ruínas junto ao regime do padroado no Brasil. Gláucia Kulzer 30 desenvolveu seu estudo acerca da formação patrimonial das famílias de elite em Santa Maria em período semelhante ao nosso. Com a utilização de inventários post mortem, entre os anos de 1858 e 1889, analisou o grupo de proprietários/criadores de Santa Maria. A trajetória da família Pinto, inserida neste grupo e de maior patrimônio (monte bruto) entre os inventários permitiu à autora discutir questões ligadas à mobilidade social, à formação e transmissão de patrimônio e o acesso à terra. *** 24 BELINAZO, op.cit. 25 FARINATTI, Luis Augusto Ebling. Sobre as cinzas da mata virgem: lavradores nacionais na Província do Rio Grande do Sul (Santa Maria, 1845-1880) – Dissertação de Mestrado do curso de Pós-Graduação em História do Brasil da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1999. 26 FLORES, Ana Paula Marquesini. Descanse em paz: testamentos e cemitério extramuros na Santa Maria de 1850 à 1900. Dissertação de Mestrado do curso de Pós-Graduação em História do Brasil da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2006. 27 KARSBURG, Alexandre de Oliveira. Sobre as ruínas da Velha Matriz: religião e política em tempos de ferrovia. Santa Maria (1884-1897). Dissertação de Mestrado. PUCRS, 2007. 28 BIASOLI, Vitor. O catolicismo ultramontano e a consquistas da Santa Maria da Boca do Monte (Rio Grande do Sul – 1870-1920). São Paulo: USP, 2005 (tese de Doutorado). 29 VÉSCIO, Luis Eugênio. O crime do Padre Sório: maçonaria e Igreja católica no Rio Grande do Sul – 1893-1928. São Paulo, USP, 2001 (tese de Doutorado). 30 KULZER, Glaucia. De sacramento à Boca do Monte: a formação patrimonial de famílias de elite na Província de São Pedro (Santa Maria, RS, século XIX). Dissertação de Mestrado – UNISINOS. São Leopoldo, 2009. 29 O primeiro capítulo traça as características sócio-econômicas de Santa Maria na segunda metade dos oitocentos. Com o auxílio dos registros batismais, de inventários post mortem e do Censo Geral de 1872, destacamos a presença de uma fronteira agrária aberta e de uma população livre e escrava crescente. A disseminação da propriedade escrava, que acompanhou os anos que anteceram a abolição da escravatura no Brasil conformou uma área em que as relações sociais a despeito disso, permaneciam profundamente influenciadas pela escravidão, no que traduziu-se os seus padrões parentais. O segundo capítulo está dividido em quatro partes. A primeira delas é marcada por tópicos relacionados à historiografia da escravidão, em especial ao tema da família escrava. Esta parte, por seu turno, está dividida em outras três. Na primeira, traçamos uma breve discussão acerca do encaminhamento da historiografiadedicada ao tema da escravidão no Brasil, em especial as suas transformações a partir das décadas de 1970 e 1980 e como elas abriram caminhos novos à temas e objetos de análise, como é o caso da família escrava. A segunda parte deste mesmo nexo central trouxe algumas reflexões sobre a família escrava no Brasil e nos Estados Unidos, não só chamando a atenção para o aspecto já recorrente, que diz respeito à influência dos estudos norteamericanos sobre a família na historiografia brasileira, mas em especial, a manutenção da associação do casamento à família. A terceira parte, traça alguns parâmetros analíticos que vem pautando os estudos sobre a família escrava no Brasil. Em especial, a atenção para o que se refere à estrutura de posse de escravos (tamanho da escravaria). Este elemento vem servindo de parâmetro analítico para as relações familiares envolvendo escravos, em especial, no que diz respeito à ideia generalizada de que havia maior probabilidade de famílias estáveis em plantéis médios e grandes. Este referencial também toca os laços de parentesco fictício e a própria possibilidade de conformação de uma comunidade cativa. A quarta parte deste mesmo tópico é uma tentativa de apresentar em que medida está inserida a abordagem que pretendemos fazer sobre o tema. Ela deve considerar dois aspectos centrais: o primeiro diz respeito à ideia de família, enquanto algo que transcende as relações de consanguinidade e/ou coabitação e a de unidade produtiva. Estes dois elementos tornam-se basilares para compreeender como se organizavam essas unidades, levando em consideração que, 30 os laços de parentesco de escravos bem como as alianças de consanguinidade e vizinhança de seus senhores eram importantes dados para entender como aquela estrutura, representada pela unidade produtiva, estava em permanente mudança. Assim, mais importante do que atestar o tamanho da unidade produtiva a que pertencia o escravo, procuramos estabelecer relações entre as alianças de parentesco dos cativos e como eles ligavam outras fazendas que, no caso desta análise, estavam vinculadas a membros da família senhorial e de sua vizinhança. Nesse sentido, a opção metodológica foi partir para trajetórias familiares, e através da família Pinto, seus parentes, vizinhos e escravos, traçar aspectos que ajudassem a pensar sobre como aquela unidade se organizava. Aqui, as alianças de apadrinhamento tecidas pelos escravos, ligam as fazendas e sugerem que, daquelas escolhas, havia uma estratégia de fortalecimento de laços familiares entre escravos, e isso pouco estava atrelado à escolha de padrinhos de condições jurídicas diferentes das suas. Por fim, a última parte do segundo capítulo, partiu das visitas paroquiais realizadas à propriedade de membros da família Pinto, e teve por finalidade captar o movimento dos escravos entre as fazendas ligadas à vizinhança e à família senhorial. O capítulo três teve como proposta fundamental a análise dos laços de compadrio escravo. Para tanto, nos utilizamos das visitas paroquiais referidas nos registros de batismo realizados em Santa Maria. Através delas, agregamos à análise do apadrinhamento das famílias escravas de Cipriano Teixeira Cezar (ao longo de mais de uma geração), também, a de membros de sua família e vizinhança. Procuramos, nesse sentido, observar outros elementos, para além dos demográficos, na opção pelas escolhas que envolviam o parentesco fictício das famílias escravas de seu plantel. No quarto capítulo, estudamos a prática do casamento católico envolvendo escravos. Tratando-se de uma vila católica, o fato de ter em seu bojo o caráter de disciplina social, a efetivação do casamento não ocorria sem contradições. A primeira delas é a possível ressonância da herança cultural africana, no que resultou em práticas familiares distintas das preconizadas pela Igreja católica. A segunda questão fundamental tratada neste capítulo diz respeito às implicações do casamento para os diferentes sujeitos nele envolvidos. Ainda que em muitos casos ele se relacione à aquisição de um certo prestígio social lincado a escravos e seus senhores, por outro lado, procuramos questionar até que ponto a todos os escravos interessava casar. 31 O último capítulo, apresenta o perfil das famílias consensuais em Santa Maria, além de investir na trajetoria familiar envolvendo a participação do vigário da região. Nesse quadro, procuramos demonstrar como os guardiões da ordem pública e moral, centrais ao funcionamento burocrático imperial, tinham seus poderes atrelados à sociedade civil. Nesse imbricado aspecto da organização social, a família nem sempre reproduziu os padrões normativos do catolicismo. 32 Capítulo 1. “Na extremidade sul do Império do Brasil” 31 : Santa Maria da Boca do Monte e suas características socioeconômicas Santa Maria da Boca do Monte esteve inserida nos contextos de ocupação do extremo sul brasileiro da América lusa. De um acampamento militar, em 1784, no ano posterior, já tinha 200 almas, tendo sido realizado, no ano de 1798, o primeiro batizado na capela do Acampamento. 32 O que era um povoado subsistiu ao acampamento, tornando-se em 1804, Oratório; em 1814, Capela Curada; em 1837, Freguesia; em 1857, Vila de Santa Maria e em 17 de maio de 1858, Município. Até a sua emancipação, a região era formada por uma área mais extensa do que os atuais limites do município e englobava os municípios de Silveira Martins, parte de Itaara, São Pedro do Sul e a própria Santa Maria, conformando a região da Depressão central rio- grandense 33 . O cenário emancipacionista de meados do século XIX 34 refletia as características da sua população que, assim como nas diversas províncias brasileiras, caracterizava-se pela sua ampla heterogeneidade, guardando espaço para sujeitos de diferentes condições e designações sociais. 31 Memória Estatística do Brasil no Acervo da Biblioteca do Mininstério da Fazenda do Rio de Janeiro. Acessível em http://memoria.org.br/index.php?b=1 32 BELÉM, João. História do Município de Santa Maria (1797-1933). 3. ed. Santa Maria: Editora da UFSM, 2000. p. 33. 33 Ver mapa em anexo 1. 34 Isabel Reis, em estudo sobre a família na Bahia no mesmo período do século XIX destaca à ampliação que ocorreu neste contexto, no sentido da interação entre sujeitos com estatutos jurídicos diferentes, unidos por laços familiares e de parentesco. A isso está relacionada a opção de Reis por adotar a expressão “família negra” e não “família escrava”. ___________________. A FAMÍLIA NEGRA NO TEMPO DA ESCRAVIDÃO: BAHIA, 1850-1888. Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, 2007. Sobre isso ver em especial o capítulo 1. http://memoria.org.br/index.php?b=1 33 Tabela 1.1. População livre, liberta e escrava de Santa Maria, século XIX Ano Livre % Liberto % Escravo % Total 1859 4.124 80,7% 20 0,4% 966 18,9% 5.110 1872 7.054 85,4% Não consta - 1.204 14,6% 8.258 Fonte: KULZER, 2009. “Mappa Statistico da População da Província classificada por idades, sexos, estados e condições com o resumo total de livres, libertos e escravos.” In: Fundação de Economia e Estatística. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul – Censos do RS 1803-1950. Porto Alegre, 1981. Censo Geral de 1872 disponível em: www.ibge.gov.br No intervalo dos treze anos da realização dos censos referidos acima houve o aumento da população livre e escrava em Santa Maria. A população livre quase dobrou, crescendo 71%, passando a representar de 80,7% da população, em 1859, mais de 85% da população total, em 1872. A população escrava, embora tenha aumentado 24% no mesmo intervalo detempo, diminuiu percentualmente em relação à população total, de 18,9% para 14,6%. Possivelmente a ausência de referência no censo de 1872 35 à população liberta, não signifique a sua inexistência, mas a atribuição destes números à população livre, o que tenderia a relativizar este aumento acentuado de sujeitos situados nesta categoria jurídica. Assim como os dados dos censos, os registros batismais aqui analisados confirmam uma população crescente e heterogênea em Santa Maria de meados dos oitocentos. É sobre as características desta população em crescimento que trataremos a seguir. 1.1 Uma fronteira agrária aberta e uma população livre em franca expansão “Era ano de 1871 de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Floriano Pereira de Souza encontrava-se em juízo, defendendo-se da acusação de homicídio 36 . Na ocasião, disse trabalhar “com plantações 35 É recorrente na historiografia brasileira relacionada ao século XIX o uso do Censo Geral de 1872, embora também o seja a confirmação de suas limitações que, todavia, não inviabilizam ou desqualificam a sua utilização nas aproximações às característica daquelas populações. 36 Processo crime n.961, Cartório de órfãos e ausentes, 1871, APERS. O processo trata do assasssinato de Antônio Cabellina, que foi flagrado pelo réu, tentando violentar sua esposa. Depois de uma luta corporal, o resultado foi a morte do agressor. 34 nos matos da Serra Geral”. Ele, assim como a maioria dos seus vizinhos, chamados a prestar depoimento em dito processo, não eram naturais de Santa Maria. Ele mesmo havia dito “ter vindo de muda para esta Vila com sua família”, ainda que não tenha referido o local exato de sua procedência. Assim como ele, o lavrador José dos Santos; Joaquim Henrique de Cristo e o também lavrador, João Lima da Costa, eram naturais de outras localidades. Os dois primeiros, da Província de São Paulo e o último, da Província de Entre Rios. Possivelmente, o réu do mencionado processo tenha emigrado (junto à sua família) de áreas vizinhas à Santa Maria, assim como a maior parte dos habitantes da região naquele período. Já os sujeitos que prestaram depoimento naquela ocasião, eram parte da minoria dos habitantes de Santa Maria, pois naturais de outras Províncias brasileiras e estrangeiras. É isto que nos mostra os dados do Censo de 1872. Tabela 1.2. População da paróquia de Santa Maria quanto à nacionalidade Condições Brasileiros % Estrangeiros Total % Homens livres 3.366 94,8% 186 3.552 5,2% Mulheres livres 3.383 96,6% 119 3.502 3,4% Soma de livres 6.749 95,7% 305 7.054 4,3% Homens escravos 622 98,9% 7 629 1,1% Mulheres escravas 570 99,1% 5 575 0,9% Soma de escravos 1.192 99% 12 1.204 1% Soma geral 7.941 96,2% 317 8.258 3,8% Fonte: Censo Geral de 1872 disponível em www.ibge.gov.br Os sujeitos livres que compunham esta população não eram exclusivamente originários do território nacional. Disso deve-se os processos migratórios ocorridos nos limites fronteiriços de todo o espaço brasileiro oitocentista. Além disso, o quadro acima nos diz que, no que se refere à 35 população escrava, também esta era, em sua maioria, originária do Brasil, anunciando que o seu crescimento dificilmente teria relação com a presença de africanos, através do tráfico ilegal, pós 1850. Nos deteremos nisto adiante. Mais de 95% da população livre de Santa Maria no ano de 1872 era composta por brasileiros de diferentes localidades da então Província do Rio Grande de São Pedro. O aumento desta população deveu-se ao processo migratório entre as províncias brasileiras. E, ainda que tal evento aponte à um contexto histórico característico da região estudada, não é atípico ou singular quando analisado no cenário brasileiro do século XIX. Dos mecanismos migratórios ocorrentes neste período em outros espaços do território nacional, Maria Bassanezzi 37 , por exemplo, analisou o movimento interno na Província de São Paulo, da segunda metade do século XIX e observou que “13,6% da população que vivia nessa Província havia nascido em outras regiões do Brasil ou em outros países (10% e 3,6% respectivamente)”. De forma semelhante, Cavalcanti e Guillen 38 constataram que “durante o século XIX houve um aumento da população dos homens livres pobres, caracterizado pelo constante movimento em direção ao interior do país”. Ainda que esses movimentos sejam anteriores ao século XIX, se intensificaram a partir deste período, à medida que as suas bases econômicas foram diversificando-se, “propiciando a constituição de novas fronteiras agrícolas, fontes de novas riquezas.” Dos dados do censo de 1872, sabemos que a presença de estrangeiros na composição dos habitantes livres de Santa Maria era pouca, representando apenas 4,3% do total. Destes estrangeiros, figuravam entre a maioria os alemães, embora também se fizessem presentes sujeitos de outras nacionalidades. 37 BASSANEZI, Maria Silvia C. Beozzo. “Migrantes no Brasil da segunda metade do século XIX”, p.2. Disponível em http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/2000/todos/hist1_4.pdf 38 CAVALCANTI, Helenilda; GUILLEN, Isabel. Atravessando fronteiras: movimentos migratórios na história do Brasil, p.3. Disponível em http://200.144.182.150/neinb/files/Movimentos%20migrat%C3%B3rios%20na%20hist%C3%B3ria%20do%20Brasi l.pdf http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/2000/todos/hist1_4.pdf http://200.144.182.150/neinb/files/Movimentos%20migrat%C3%B3rios%20na%20hist%C3%B3ria%20do%20Brasil.pdf http://200.144.182.150/neinb/files/Movimentos%20migrat%C3%B3rios%20na%20hist%C3%B3ria%20do%20Brasil.pdf 36 Tabela 1.3. População livre considerada em relação à nacionalidade estrangeira Sexo Alemã Paraguaia Portu guês Argentino Oriental Francês Inglês Italiano Espanhol Soma H* 119 19 10 9 7 3 2 3 1 173 M* 77 11 10 7 7 4 2 - - 118 Total 191 68% 25 8,9% 20 7,1% 16 5,7% 14 5% 7 2,5% 4 1,4% 3 1,1% 1 0,3% 281 100% Fonte: Censo Geral de 1872 disponível em www.ibge.gov.br *H para homens, M para mulheres. Os italianos, que aí se mostram numericamente inexpressivos terão uma relevância numérica maior naquele então município a partir de 1877, momento em que houve a instalação do núcleo italiano de Silveira Martins. 39 Em algumas áreas do Rio Grande do Sul, o crescimento da população neste período esteve mais fortemente associado ao movimento migratório de contingentes italianos e alemães 40 . Em alguns deles, mais expressivamente do que em Santa Maria. Para Rio Pardo, por exemplo, Perussato observou o aumento da população livre, que no intervalo de 14 anos (entre 1858 e 1872) cresceu 34,8%. 41 A explicação para o crecimento teria sido o movimento imigratório de alemães. 42 39 Sobre a instalação desse núcleo de imigrantes: VENDRAME, Maíra. “Lá éramos servos, aqui somos senhores”: a organização dos imigrantes italianos na ex-colônia Silveira Martins (1877-1914). Dissertação de Mestrado, PUCRS, 2007. 40 BRENNER, José Antonio. Imigração alemã: a saga dos Niederauer. Santa Maria: Editora da UFSM, 1995. 41 PERUSSATO, Melina K. Como se de ventre livre nascesse. Experiências de cativeiro, parentesco, emancipação e liberdade nos derradeiros anos da escravidão. Rio Pardo/RS. 1860-1888. Dissertação de Mestrado – UNISINOS, 2010, p.54. 42 PERUSSATO, Ibid, p.55. “O principal fenômeno que permite explicar o crescimento populacional rio-pardense, a que desconhecemos anexações territoriais ou grandes migrações nesse período, consiste no movimento imigratório de contingentes alemães alocados em núcleos coloniais no local que passou a se chamar Santa Cruz.” 37 Em Santa Maria, pelo menos desde 1828,
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