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Memorias e Identidades - Simone Valdete dos Santos

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Memórias e Identidades1 
 
Simone Valdete dos Santos2 
 
"Recordar é viver" 
 
O ditado popular, tantas vezes repetido, revela que nossa capacidade de 
lembrar está vinculada às nossas vivências, que lembramos situações mediante 
nossas experiências imediatas. 
A afirmação de Ecléa Bosi reforça o entendimento da memória vinculada 
ao imediato, ao agora: “A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão agora a 
nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual”(1983). Os 
materiais a nossa disposição, mencionados por Bosi, constituem-se em objetos 
evocadores de memória: um disco anteriormente ouvido que volta às nossas 
mãos, uma fotografia, um diário, documentos de um registro oficial, entre tantos 
outros exemplos, podem significar e ressignificar nosso passado envolto por esses 
objetos, a partir do que estes objetos representam em nosso presente e já 
anunciando para futuras experiências. 
Logo, as lembranças, as reminiscências, as recordações não nos ocorrem 
ao acaso, são provocadas e provocadoras de tensões / acontecimentos presentes 
e / ou vindouros. Em geral, há um trabalho de produção das memórias. 
Os acontecimentos, as tensões estão relacionados e podem ser fonte de 
inspiração dos objetos, das imagens, dos sons, sendo estes evocadores e 
vestígios concretos das memórias. 
As memórias tem caráter individual, subjetivo, com bem pondera Norbert 
Elias: "Cada ser humano, partindo de um ponto único dentro da sua teia de relações, percorre através de 
uma história única um caminho ao encontro da morte." ( 1993, p.40) Há uma relação dialética 
 
1 O presente texto foi elaborado especialmente para a oficina "Memória e Identidade" ministradas 
pelas Profas. Simone Valdete dos Santos e Maria Stephanou, nos dias 23 e 24 de maio de 2002 
no município de Gravataí, sendo uma das atividades do VII Simpósio Estadual sobre a Cultura 
Gravataiense cujo tema central: Gravataí, Culturas e Identidades - Caminhos para a inclusão 
social" promovido pela Fundação Municipal de Arte e Cultura (FUNDARC). 
entre as memórias individuais e as memórias coletivas, sendo estas últimas 
interface constante da teia de relações analisadas profundamente por Elias em 
sua obra A Sociedade dos Indivíduos. 
Uma canção pode evocar memórias de toda uma geração, um objeto pode 
ser representativo para determinada categoria profissional, assim como uma 
imagem para determinado povoado... A memória coletiva pode assumir 
intersecções entre pessoas de mesma idade, de mesmo sexo, moradoras de 
determinado lugar, ativistas políticos de um mesmo grupo, entre outras múltiplas 
possibilidades de articulações. 
"A visão, hoje muito difundida, de que um indivíduo mentalmente sadio pode tornar-se 
totalmente independente da opinião do "nós" [ we group] e, nesse sentido, ser absolutamente 
autônomo, é tão enganosa quanto a visão inversa, que reza que sua autonomia pode desaparecer 
por completo numa coletividade de robôs. É isso que se pretende dizer quando se fala da 
elasticidade dos vínculos que unem a auto-regulação da pessoa às pressões reguladoras do "nós". 
(Elias, 2000, p.40) A memória coletiva e a memória individual, neste contexto 
relatado por Elias, se colocam numa indefinição dos limites de uma existência 
única a uma existência inserida na sociedade. 
A memória coletiva se coloca como um campo constante de disputa, pois 
conforma histórias de regiões, de nações, de coletividades, formalizando o que 
deve ser lembrado, como os heróis e os valores a serem cultuados, as tradições... 
Neste sentido, os diversos grupos políticos apregoam seus valores, e suas 
proposições, fazendo-os circular como verdade da memória. 
A mídia exerce papel fundamental nas referidas disputas, quem não 
lembra da polêmica sobre a existência ou não do escultor Aleijadinho durante o 
barroco mineiro? Várias reportagens, com a sustentação de pesquisas históricas, 
refutaram a possibilidade das esculturas em pedra sabão terem sido produzidas 
por escultores portugueses em Portugal e transportadas para o Brasil... A 
polêmica foi lançada, porém, uma verdade é que as esculturas existem, 
caracterizam o barroco mineiro e brasileiro, mas o escultor Aleijadinho existiu, foi o 
 
2 Doutora em Educação no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande 
do Sul, professora de História da Educação da Faculdade de Educação / UFRGS. 
autor das obras? A mídia televisiva diz que ele nunca existiu (uma matéria do 
Fantástico da Rede Globo). 
Hamilton (2000) problematiza o papel da mídia enquanto construtora de 
memória: “Teme-se que a cultura de massa empobreça ‘nossas memórias originais’ e que uma 
versão mais homogeneizada tome seu lugar. Teme-se também perder a comunidade e a 
identidade, já que a tecnologia de massa modifica não só nosso sentido do temporal, mas também 
a natureza especificamente espacial do lembrar. A noção de que podemos nos ‘lembrar’, por 
exemplo, do assassinato de Kennedy significa que nos lembramos de como foi apresentado na 
televisão ou no rádio, e não termos a experiência direta desse evento. O que Ulric Neisser chama 
de ‘memórias de flash’ ou imagens repetidas reforça o impacto da representação visual." (p.90) 
Diante da rapidez das informações na atualidade, o alerta de Hamilton 
merece ser considerado, para que se valorize as experiências daqueles que 
vivenciaram os acontecimentos, tendo cautela em relação as interpretações dos 
meios de comunicação e a imposição homogeneizada de memórias. 
 
 
"Não recordar é viver" 
 
A memória é seletiva e funciona entre a lembrança e o esquecimento. 
Recordar pode trazer muito sofrimento para um indivíduo ou para um grupo em 
determinadas situações e o ato de "esquecer" corresponde a resistência, a 
sobrevivência do grupo diante das mágoas vividas. Desta forma, não recordando, 
a pessoa ou o grupo vive melhor o seu presente, projeta um futuro 
desconsiderando tais registros. 
Exorcizar tais fantasmas pode ser um desafio para o historiador, para 
aquele que contribui para a recuperação das memórias: "...há que considerar o lado 
mais positivo: a exploração coletiva de histórias de vida em projetos participativos pode ajudar as 
pessoas a reconhecer e valorizar experiências que foram silenciadas, ou a enfrentar aspectos 
difíceis e dolorosos de nossas vidas. Para alguns, esse processo será extremamente polêmico; 
para outros será gratificante: as novas histórias podem contribuir para divulgar as experiências 
vividas por indivíduos e grupos que foram excluídos ou marginalizados em narrativas históricas 
anteriores." (Thomson, 2000, p.72) 
"Recordar é ser" 
 
As memórias sacramentam a existência e o pertencimento a determinado 
grupo, com seus rituais, seus costumes, seus credos, sua etnia própria. Somos 
mais ou menos prestigiados conforme a "quantidade de memória" produzida, 
registrada. 
Para Rousso (2000) a memória é: "uma reconstrução psíquica e intelectual que 
acarreta de fato uma representação seletiva do passado, uma passado que nunca é aquele do 
indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional. Portanto 
toda memória é, por definição, ‘coletiva’, como sugeriu Maurice Halbwachs. Seu atributo mais 
imediato é garantir a continuidade do tempo e permitir resistir à alteridade, ao "tempo que muda", 
às rupturas que são o destino de toda vida humana; em suma, ela constitui - eis uma banalidade - 
um elemento essencial da identidade, da percepção de si e dos outros. " (p.95, grifos meus) 
A memória se produz e reproduz em um contexto de mudança, está em 
movimento, os registros aparecem em determinado momento da vida, em 
determinada época em umgrupo social, em um país, em função de outros 
acontecimentos imediatos, outras recorrências, sendo estas recorrências de 
lembranças observadas pelos historiadores para constituir a memória coletiva. 
O processo contínuo de lembrar e esquecer, de constituir identidades, de 
registrar as lembranças e valorizar os registros, vai garantindo a cidadania, a 
autonomia, a capacidade plena do "ser" político e social, possibilidades de 
inclusão social, tolerância e convivência na sociedade pelo conhecimento das 
suas memórias e de outros grupos sociais, que possuem outros credos, outras 
formas de alimentar-se, vestir-se, outros entendimentos sobre a vida. 
As lembranças constituem o ser, e o ser constitui as lembranças por sua 
capacidade de lembrar e esquecer, impregnado de suas experiências imediatas. 
 
 
 
 
 
 
Referências bibliográficas: 
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: T. A. 
Queiroz, 1983. 
ELIAS, Norbert. A sociedade dos Indivíduos. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 
1999. 
ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L.. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de 
Janeiro: Jorge Zahar, 2000. 
THOMSON, Alistair, FRISCH, Michael, HAMILTON, Paula. Os debates sobre 
memória e história: alguns aspectos internacionais. In Usos e Abusos da História 
Oral. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2000. 
ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In Usos e Abusos da 
História Oral. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2000.

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