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Autor: Prof. Renato Bulcão Colaboradora: Profa. Angélica Carlini Filosofia Interdisciplinar Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Professor conteudista: Renato Bulcão Renato Bulcão é formado em Filosofia, mestre em Comunicação, ambos pela Universidade de São Paulo (USP), e doutor em Educação e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Coordena o curso de licenciatura em Filosofia da Universidade Paulista (UNIP). © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) B933p Bulcão, Renato. Filosofia Interdisciplinar / Renato Bulcão. - São Paulo: Editora Sol, 2018. 148 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXIV, n. 2-084/18, ISSN 1517-9230. 1. Natureza e cultura. 2. Indivíduo e comunidade. 3. Lei e justiça. I. Título. CDU 1 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Fabrícia Carpinelli Elaine Pires Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Sumário Filosofia Interdisciplinar APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................9 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................9 Unidade I 1 O SER HUMANO: NATUREZA E CULTURA .............................................................................................. 13 1.1 O que é natureza e o que é cultura? ............................................................................................ 13 1.2 Quando nascemos, não sabemos qual a diferença entre natureza e cultura .............. 13 1.3 O que faz do ser humano um animal como os outros? ....................................................... 14 1.4 O que distingue o ser humano dos outros animais? ............................................................. 16 1.5 O desenvolvimento da linguagem é a maior diferença entre o ser humano e os outros animais ..................................................................................................................................... 17 1.6 Quantos significados tem a palavra cultura? ........................................................................... 19 1.7 É possível distinguir em nós o que é natural do que é cultural? ...................................... 20 1.8 O ser humano é frágil ou é forte diante da natureza? ......................................................... 22 1.9 A cultura é essencial para a definição do ser humano ......................................................... 23 1.10 As concepções filosóficas sobre a constituição do ser humano ..................................... 24 1.11 O corpo e a alma ................................................................................................................................ 24 1.12 O dualismo e o monismo ................................................................................................................ 27 1.13 As relações entre a racionalidade e o desejo .......................................................................... 28 1.14 O que comanda o ser humano: sua razão ou seus desejos? ............................................ 29 1.15 Por que a consciência é um aspecto fundamental do ser humano? ........................... 29 1.16 Qual a relação entre a mente e o cérebro? ............................................................................. 31 1.17 Como o ser humano relaciona as características biológicas da natureza com os dados culturais? ............................................................................................................................ 32 1.18 O ser humano é dual? ...................................................................................................................... 33 1.19 O psiquismo é separado do corpo? ............................................................................................ 34 1.20 O conhecimento é uma modalidade de desejo? ................................................................... 36 1.21 Somos senhores de nossos desejos e sentimentos? ............................................................ 37 1.22 O que significa ser e estar consciente? ..................................................................................... 37 1.23 É mais fácil conhecer a si mesmo do que as coisas ou as outras pessoas? ............... 38 1.24 A consciência nos engana? ............................................................................................................ 38 1.25 É possível conhecer-se a si mesmo sem se enganar? ......................................................... 39 1.26 O que significa dizer que pensamos com nosso cérebro? ................................................. 39 1.27 A arte e a técnica ............................................................................................................................... 40 1.28 O trabalho e a alienação ................................................................................................................. 42 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a 1.29 O tempo e a transcendência ......................................................................................................... 44 2 QUERER, PODER E AGIR ............................................................................................................................... 46 2.1 Os valores ................................................................................................................................................. 46 2.1.1 Ser e dever ser .......................................................................................................................................... 46 2.1.2 O fato e o valor ........................................................................................................................................ 48 2.1.3 Por que nós agimos de maneira valorativa? ................................................................................ 49 2.1.4 Qual a diferença entre dizer que algo é assim e que algo deve ser assim? .................... 49 2.1.5 As convenções humanas são um prolongamento ou uma ruptura com a natureza? .................................................................................................................................................50 2.1.6 Juízos de fato e juízos de valor ......................................................................................................... 50 2.1.7 A esfera da moral é o lugar das ações e das escolhas humanas, das suas normas e dos seus valores .............................................................................................................................. 51 2.1.8 Seguir a natureza pode ser uma regra moral? ........................................................................... 52 2.1.9 A moral é uma questão de sentimento? ....................................................................................... 52 2.1.10 Alguns exemplos das diversas posições filosóficas a respeito do bem e do mal ........ 53 2.2 A universalidade e a relatividade dos valores ........................................................................... 55 2.2.1 Universalismo ........................................................................................................................................... 55 2.2.2 O que é diversidade cultural? ............................................................................................................ 55 2.2.3 As noções de certo e errado são universais ou relativas aos costumes? ......................... 55 2.2.4 O que é o etnocentrismo? ................................................................................................................... 56 2.2.5 O que é relativismo cultural? ............................................................................................................. 57 2.2.6 Quais são as diferenças entre as posições universalistas e as relativistas em relação aos valores ..................................................................................................................................... 58 2.2.7 Devemos falar em cultura ou em culturas? ................................................................................. 58 2.2.8 Há culturas superiores às outras? .................................................................................................... 59 2.3 O bem e o mal........................................................................................................................................ 59 2.3.1 O bem e o mal dependem da perspectiva de quem os define? ........................................... 61 2.3.2 É possível querer o mal? ...................................................................................................................... 62 2.3.3 O belo e o feio .......................................................................................................................................... 63 3 A LIBERDADE E O DETERMINISMO ......................................................................................................... 64 3.1 Por que fazemos as coisas que fazemos da forma que fazemos? ................................... 69 3.2 Somos livres ou somos determinados por fatores como a genética, o ambiente e o tempo? ................................................................................................................................. 70 3.3 A liberdade é a ausência de ameaças e limites? ...................................................................... 70 3.4 O que determina a liberdade humana? ....................................................................................... 70 3.5 Liberdade é a ausência de lei? ......................................................................................................... 71 3.6 Uma pessoa que não é livre pode ser responsabilizada por seus atos? ......................... 71 3.7 Os desejos e as paixões limitam nossa liberdade? .................................................................. 73 3.8 Quem obedece a si mesmo é livre? ............................................................................................... 74 3.9 Podemos ser, ao mesmo tempo, livres e apaixonados? ........................................................ 74 3.10 O agir ético é indissociável da relação consigo mesmo e com os outros ................... 74 3.11 O sentimento da liberdade garante sua existência? ............................................................ 75 3.12 Somos livres mesmo dentro de uma prisão? .......................................................................... 75 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a 4 O INDIVÍDUO E A COMUNIDADE: O CONFLITO .................................................................................... 75 4.1 O que levou os homens a viverem em comunidade? ............................................................ 76 4.2 A violência ............................................................................................................................................... 76 4.3 O homem é um animal violento? .................................................................................................. 76 4.4 O que significa dizer que o ser humano é um animal político? ....................................... 77 4.5 O que são as esferas do indivíduo, do social e do político? ................................................ 77 4.6 Qual o sentido do conflito nas relações humanas? ............................................................... 78 4.7 O fenômeno da violência é diferente do conflito? ................................................................. 78 4.8 O conflito é necessariamente ruim? ............................................................................................. 79 4.9 É possível viver sem conflito?.......................................................................................................... 79 4.10 A violência é anterior à vida em sociedade? .......................................................................... 79 4.11 A política é o espaço público da expressão e da articulação de conflito .................... 80 4.12 O que é o consenso? ......................................................................................................................... 80 4.13 É possível lutar por direitos sem enfrentar o conflito de interesses? .......................... 81 Unidade II 5 A SOCIEDADE E A CULTURA: A FORÇA E A AUTORIDADE ............................................................... 87 5.1 A diferença entre o exercício da força e o da autoridade ................................................... 89 5.1.1 Toda autoridade usa a força? ............................................................................................................ 89 5.1.2 Quais são os fundamentos da desobediência? ........................................................................... 90 5.1.3 A autoridade é necessária? ................................................................................................................. 90 6 A LEI E A JUSTIÇA ............................................................................................................................................ 90 6.1 O interesse e o bem comum ............................................................................................................ 90 6.2 Qual a diferença entre lei e direito? ............................................................................................. 91 6.3 A lei reprime os indivíduos? ............................................................................................................. 96 6.4 A lei é contrária aos interesses e aos desejos? ......................................................................... 96 6.5 É legítimo opor-se à lei? .................................................................................................................... 96 6.6 Os diferentes conceitos de justiça .................................................................................................96 6.7 A justiça e a liberdade são incompatíveis? ................................................................................ 98 6.8 Justiça é tratar todo mundo igualmente? ................................................................................. 98 6.9 A legitimidade e o poder ................................................................................................................... 98 6.10 Como diferenciar legitimidade e legalidade? ......................................................................... 98 6.11 É possível viver sem lei? ................................................................................................................... 99 6.12 Existe uma justiça divina? .............................................................................................................. 99 6.13 Todas as leis são justas? .................................................................................................................. 99 6.14 Existe um exercício legítimo da força e da dominação? .................................................100 6.15 Como compreender as diferentes formas de política na sociedade humana? ......100 6.16 A sociedade pode determinar o que o indivíduo deve fazer? .......................................101 6.17 O Estado existe para garantir a liberdade do indivíduo? .................................................101 6.18 A política é sempre uma luta pelo poder? ............................................................................102 6.19 A política deve levar em conta a moral? ................................................................................102 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a 7 VERDADE E VALIDADE .................................................................................................................................104 7.1 A emergência da Filosofia ...............................................................................................................105 7.2 A filosofia e os outros saberes.......................................................................................................106 7.3 O que é raciocinar? ............................................................................................................................106 7.4 Qual a diferença entre validade e verdade? ............................................................................107 7.5 Um raciocínio coerente é necessariamente verdadeiro?....................................................107 7.6 Os instrumentos do conhecimento ............................................................................................108 7.7 A lógica ...................................................................................................................................................108 7.8 A lógica é uma ciência? ...................................................................................................................110 7.9 A proposição e o juízo ......................................................................................................................111 7.10 Todo pensamento é necessariamente lógico? .....................................................................112 7.11 O raciocínio e o argumento .........................................................................................................112 7.12 Indução e dedução ..........................................................................................................................113 7.13 A diferença entre os argumentos dedutivos e indutivos ................................................114 7.14 As verdades empíricas são mais fáceis de refutar? ............................................................115 7.15 A indução é fundamentada logicamente? ............................................................................115 7.16 Como identificar se uma inferência é válida?......................................................................117 8 OS TIPOS DE CONHECIMENTO .................................................................................................................118 8.1 O surgimento da Filosofia ...............................................................................................................120 8.2 Os filósofos pré-socráticos .............................................................................................................121 8.3 Os sofistas ..............................................................................................................................................123 8.4 O início da Filosofia ...........................................................................................................................123 8.5 Há uma lógica do mito? ..................................................................................................................124 8.6 Há uma ruptura ou uma continuidade entre o mito e a Filosofia? ...............................124 8.7 Os mitos ainda estão presentes na sociedade contemporânea? ....................................125 8.8 Filosofar é uma experiência existencial? ..................................................................................125 8.9 O que são os saberes? .......................................................................................................................126 8.10 O que é ciência? ...............................................................................................................................127 8.11 O que é religião? ...............................................................................................................................128 8.12 O que é arte? .....................................................................................................................................128 8.13 Qual a relação entre Filosofia e religião? ...............................................................................129 8.14 Qual a relação entre Filosofia e arte? ......................................................................................130 8.15 Qual a relação entre religião e arte? ........................................................................................132 8.16 Qual a relação entre religião e ciência? ..................................................................................132 8.17 Qual a relação entre arte e ciência? .........................................................................................133 8.18 Qual a relação entre Filosofia e ciência? ................................................................................134 8.19 O que distingue a Filosofia dos outros saberes? .................................................................135 8.20 A Filosofia é um tipo de literatura? ..........................................................................................136 9 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a APRESENTAÇÃO A proposta da filosofia interdisciplinar vem ao encontro das leituras e do ensino transversal das disciplinas do ensino médio. A ideia de fundo é fazer com que os professores traduzam a realidade percebida para as salas de aulas. Nem sempre isso é evidente. Podemos utilizar a linguagem matemática para explicar as demais formas de apreensão da natureza como também a Geografia, a Física, a Química e até mesmo a Biologia. Podemos utilizar a língua portuguesa para demonstrar como cada disciplina constrói um vocabulário próprio. Também podemos juntar a Química com a Geografia, ou a Física com a História. As percepções da Química ajudaram a entender a camada de ozônio e o aquecimento global, e a Física permitiu as grandes navegações, a mecanização, a Revolução Industrial, entre outras coisas.Mas a maioria das pessoas não teve aula de Filosofia, de maneira que o conhecimento filosófico que constrói suas crenças, habilidades e competências surgem em sala de aula como do nada. Sempre foi assim e deverá ser assim sempre. Isso não é verdade. Houve um tempo em que ser republicano era pior do que ser herege. Pensar em democracia era contra o poder vigente, e propor uma constituição era uma afronta punida com tortura seguida de morte. Portanto, as coisas mudam. Isso só é possível porque o pensamento humano também evolui. Na sociedade, há sempre um movimento que propõe a mudança, e outro que briga para que as coisas se mantenham como estão. O papel da Filosofia é examinar as diversas propostas de pensamento para que, da mesma forma que entendemos melhor hoje o espaço e as estrelas, possamos entender melhor as propostas de convivência entre seres humanos. Todos os “ismos” criados nos séculos XIX e XX, o positivismo, o comunismo, o liberalismo, o socialismo, o feminismo e também o terrorismo, são simples formas de entendimento do mundo. Do mundo como ele é ou de como ele deveria ser. Esta disciplina visa auxiliar o futuro professor de filosofia a dar respostas convincentes e rápidas aos seus alunos, tirando todas as dúvidas que costumam surgir entre os adolescentes (mas não somente neles!). São muitas as questões que surgem no cotidiano. Conseguimos trazer respostas da evolução do pensamento humano nas propostas de vários filósofos. Não há uma única resposta válida, na medida em que não acreditamos mais que a verdade, assim como a justiça, exista em si, mas oferecemos subsídios para elaborar respostas e compreensões de determinadas situações humanas. Afinal, é para isso que serve a Filosofia. INTRODUÇÃO Mesmo quando dizemos que vivemos a pós-modernidade, ainda estamos muito imbuídos das ideias e ideais da modernidade. No Brasil, cultivamos o humanismo e suas propostas, como se elas nunca fossem envelhecer quando, na verdade, as ideias humanistas estão rapidamente chegando aos seus limites. Se o governo democrático foi um dia um sonho, atualmente convivemos com problemas que eram impensados antes da democracia ser a norma de governo. 10 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a É importante que você perceba que tudo passa. E mesmo aquilo que parece ser a mesma coisa que no passado, na prática, sofreu alguma transformação pela simples ação do tempo. O século XX preparou para nós duas surpresas: o rompimento da noção de “aqui e agora” e a possibilidade de um envelhecimento superior a cem anos. O “aqui e agora” foi transformado, na medida em que posso pedir para meu pai, de 92 anos, conversar pelo aplicativo de áudio e vídeo ao vivo com minha filha e meu neto. Meu pai está no Rio de Janeiro, minha filha e meu neto estão em Londres. O que é aqui? Rio de Janeiro ou Londres? O que é agora? O horário de Brasília ou o GMT (Grenwich Mean Time, Tempo Médio de Grenwich, em português)? Se meu pai está com 92 anos e viu serem inventados o avião a jato, o cinema falado e a cores, os antibióticos, a televisão, a pílula anticoncepcional, os foguetes, o satélite, o fax, o computador, o ultrassom e a ressonância magnética, a internet e o telefone celular – apenas para ficarmos nas coisas mais populares –, o que será que meu neto de três meses poderá ver? Impressoras de comida? Teletransporte? Cidades no espaço? Refletindo sobre tantas novidades durante quatro gerações, pergunto: você viu um aparelho de fax funcionando? Para os que nunca viram, era um aparelho que funcionava como uma máquina de fotocópias através do telefone. Você punha uma folha de papel A4 de um lado, e saía sua cópia do outro lado. O fax certamente não acabou com o sonho comunista da União Soviética, que era como a Rússia se chamava entre 1917 e 1991, mas foi com a ajuda desse aparelho que pela primeira vez os russos puderam enviar e receber notícias para fora do país sem serem censurados pela polícia política. A própria ideia de polícia política, tão comum a partir de 1848 na Europa, que aqui no Brasil existiu até 1985, é desconhecida para muitos. Pode alguém ser preso e torturado, às vezes até mesmo morto, numa cela de cadeia, apenas porque acredita em ideais políticos diferentes dos governantes? Pois é exatamente esse tipo de intolerância que até hoje mata pessoas de religiões diferentes. Há cem anos, mesmo nos países democráticos, era proibido que pessoas de religiões diferentes pudessem se casar. No Brasil, por exemplo, apesar de o Estado ser laico e separado da Igreja Católica desde a Proclamação da República, a religião oficial do país era a católica, fato que só mudou com a Constituição de 1988. Todos nasciam católicos e depois assumiam outras crenças; isso faz sentido hoje em dia? Então, é importante que você perceba que as ideias mudam. Não que existam tantas formas de pensar e narrar o mundo que sempre se pode inventar uma novidade, mas velhas formas de pensar precisam ser recicladas para poderem incluir as invenções técnicas e o novo conhecimento sobre o mundo. Na medida em que as ideias mudam, mudam também os hábitos. Durante milênios as mulheres grávidas desenvolveram formas imprecisas de tentar adivinhar o sexo de seus filhos. Com a invenção do ultrassom, houve um período de transição que permitiu que as grávidas escolhessem ou não saber o sexo dos bebês. Hoje em dia, a maioria das mulheres quer saber o sexo da criança para se preparar melhor. Nenhuma das posturas é errada. São formas de escolher como queremos viver nossas vidas. A técnica e, sua filha, a tecnologia permitem novos comportamentos, que seriam impensáveis em décadas anteriores, como, por exemplo, meu pai falando e vendo seu bisneto na tela de um 11 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a celular. Mas isso não significa que todos nós tenhamos qualquer obrigação de ter um telefone celular para vermos e falarmos com alguém só porque a possibilidade é dada. A única responsabilidade comum que temos cada vez mais clara na vivência humana é continuarmos a reproduzir para a manutenção da nossa espécie. E como descobriram os países que dispõem em seu arsenal de armas atômicas, se alguém resolver destruir o planeta, todos perdem. Por isso a ecologia e o cuidado com o meio ambiente ganharam força nas nossas conversas. Cuidar da natureza é necessário para cuidarmos da nossa sobrevivência. Assim, podemos perceber que a filosofia do século XX não pode ser uma mera continuidade da filosofia dos séculos anteriores, por mais que precise dessa continuidade como base para desenvolver novas ideias. Nos últimos anos, o maior desafio que surgiu para a filosofia foram os programas de computador. No momento em que começamos a escrever comandos em linguagens alfanuméricas, que fizeram as máquinas interagir conosco, mudamos pela primeira vez o patamar do que é humano. Não que mudanças de patamar não tenham acontecido no passado, por exemplo, com a descoberta da agricultura, a domesticação dos animais, o desenvolvimento da matemática e das primeiras máquinas, o desenvolvimento da física e as primeiras máquinas a motor, tudo isso mudou a cultura e a civilização. Isso sem contar com os avanços da química e da medicina. Mas, no século XXI, finalmente nos demos conta de que, desde o século XIX, alguns filósofos, como, por exemplo, Charles Sanders Peirce, já vinham pensando em soluções para problemas que nem mesmo eram compreendidos pelas pessoas. Hoje em dia, podemos explicar todas as propostas filosóficas de todos os tempos, como sugestões de narrativas que, se compreendidas e seguidas, permitem entendimentos diversos das coisas e dos fatos. Como consequência dos entendimentos diversos, as pessoasvão assumir comportamentos diferenciados. Se a frase anterior parece difícil de entender, vou propor um exemplo para explicar por analogia: Se estamos usando um aplicativo de mensagens no celular e escrevemos “Olá, meu amigo”, quem receber a mensagem vai se sentir de uma determinada forma. Se eu resolver mandar uma foto ou uma ilustração de duas pessoas se abraçando, quem receber pode interpretar essa imagem de mil maneiras diferentes, e uma delas será, talvez, “Ah, ele está dizendo que é meu amigo”. Se por outro lado eu gravar uma mensagem de voz dizendo “Olá, meu amigo”, quem ouvir vai buscar a intenção da minha fala na entonação das palavras. Por fim, se eu resolver gravar um vídeo dizendo a mesma coisa, além de a pessoa poder pensar que eu gosto dela, vai poder também me examinar para saber se eu pareço estar bem. Todas as atitudes de quem receber a mensagem vão depender sempre do que a pessoa estiver vivendo no momento em que receber a mensagem. Esse momento específico recebe o nome genérico de contexto. Quando um texto narrado (seja ele escrito, desenhado, falado ou interpretado) provoca reações diferentes nas pessoas, podemos entender que a ideia narrada era complexa. A atitude das pessoas também vai depender do contexto em que elas estão inseridas. Se você entendeu isso é porque refletiu sobre o que eu narrei. Ou seja, entender o texto que estou escrevendo não é simples, pois não faz parte do seu cotidiano. Mas não é difícil entender se estiver explicado de uma forma que faça sentido. 12 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Por outro lado, posso escrever esse texto com um computador, e até mesmo fazer com que a máquina leia o que eu acabei de escrever com uma voz que parece humana. Mas o computador ainda não consegue ler o que eu escrevi e tomar uma atitude qualquer. Estamos justamente desenvolvendo a inteligência artificial para que, um dia, a máquina venha a ter essa capacidade humana. Mas quando jogamos um game, vemos que a máquina já interage conosco, e isso sinaliza a mudança de patamar do que antes era exclusivamente humano. Futuramente, talvez seja difícil distinguir entre o que deve ser considerado humano e não humano, mas, até lá, vamos poder distinguir entre as formas de pensar e narrar que são exclusivamente humanas e as que são traduzidas em comportamentos e atitudes. É disso que tratamos nesta disciplina, de pensamentos que viram narrativas que provocam comportamentos. Você vai perceber que muito do que você pensa foi proposto há muitos anos, talvez séculos atrás, mas são pensamentos que, como ferramentas da mente, servem para promover nosso estar no mundo, aqui e agora. 13 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a FILOSOFIA INTERDISCIPLINAR Unidade I 1 O SER HUMANO: NATUREZA E CULTURA 1.1 O que é natureza e o que é cultura? Quando nascemos, não conseguimos verificar qual é a diferença entre natureza e cultura. Para todos nós, tudo aquilo que nos envolve enquanto somos um bebê faz parte da nossa natureza. À medida que crescemos, assistimos televisão e conversamos com nossos pais e avós, vamos percebendo que o mundo é muito maior do que nós imaginávamos. No início, não fazemos a menor diferença entre o sol, uma árvore, uma geladeira ou os aviões que passam. Como tudo isso já existia desde antes da nossa própria existência, a impressão que temos é que todas as coisas que existem no mundo sempre existiram. Com o tempo, vamos percebendo que existem coisas que foram inventadas e outras que não foram feitas pelo ser humano. Descobrimos que água, terra, fogo e ar existiam muito antes que a nossa espécie humana tivesse evoluído. 1.2 Quando nascemos, não sabemos qual a diferença entre natureza e cultura Desde muito pequenos somos ensinados que tudo aquilo que o homem não inventou faz parte da natureza. Aprendemos, então, que todos animais, árvores, plantas, montanhas, rios, mares, planetas e todo o resto do universo existiam antes que o ser humano soubesse o que eles são, do que são feitos e como funcionam. Vamos aprendendo explicações cada vez mais detalhadas a respeito das coisas que existem. Descobrimos que algumas respostas que assimilamos quando éramos bem criancinhas, na verdade, são apenas fundamentos simplificados. A partir do momento em que aprendemos a falar e a escrever a nossa língua, vamos nos preparando para entender cada vez melhor o funcionamento das coisas. A primeira distinção que nossos professores nos ensinam é que existem coisas que são próprias da natureza, e todas as outras, não. Também aprendemos os cinco sentidos: tato, olfato, audição, visão e paladar. A primeira grande invenção humana foi o desenvolvimento das línguas. A partir da capacidade de comunicação entre os seres, criamos também a aptidão da interpretação das coisas que vemos e sentimos. Essa capacidade de descrever as coisas e organizá-las de forma a facilitar o entendimento é o que chamamos de cultura. Observação Cultura é o conjunto de descrições e de explicações que damos para as coisas que podemos perceber na natureza e nas nossas vidas. 14 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Unidade I Na pré-história, os primeiros homens precisaram organizar a sua rotina de hábitos e de trabalho para facilitar a vida na natureza, gerando uma quantidade muito grande de conhecimentos. Com o tempo, tal ação permitiu que os seres humanos desenvolvessem ferramentas, roupas e casas para facilitar a vida no meio ambiente. Duas dessas invenções foram as armas, para facilitar a caça, e as ferramentas, para ajudar na agricultura. Com a organização da caça, da pesca e da agricultura, os seres humanos perceberam que havia uma rotina que era repetida de tempos em tempos. Essa rotina diz respeito ao momento de semear uma planta para podermos fazer a colheita depois, e também ao momento certo de caçar ou pescar determinados animais. Assim, ao perceber que a rotina das ações facilitava sua existência na Terra, os mais velhos passaram a contar para os mais novos quais eram essas práticas. Ao observar a agricultura e a organização da caça, o ser humano inventou a história, a religião, a própria sociedade e, portanto, a cultura. Lembrete As ferramentas foram inventadas para facilitar a caça e a agricultura. Assim, podemos resumir que a relação que existe entre cultura e natureza é que a cultura serve principalmente para explicar para os seres humanos como funciona a natureza. Quanto melhor entendemos a natureza, mais desenvolvemos a cultura. 1.3 O que faz do ser humano um animal como os outros? Durante milhares de anos, o ser humano imaginou que era um ser diferente dos outros animais. Isso porque a raça humana não conseguiu perceber nos outros animais nenhuma forma de cultura. Alguns animais tinham até uma maneira organizada de cuidar da sua espécie, mas nenhum animal parece se adaptar à natureza e às suas mudanças tão rapidamente quanto o ser humano. Por outro lado, os seres humanos têm semelhanças com todas as espécies vivas. Platão, que foi o primeiro filósofo grego cujos pensamentos respeitamos até hoje, sugeriu que é a alma humana que cria em nós a grande diferença para os animais, mas o primeiro a perceber que era necessário fazer uma classificação dos seres vivos foi outro filósofo grego, Aristóteles. Ele classificou os organismos vivos que eram conhecidos na sua época em plantas e animais. Os animais eram, por sua vez, divididos de acordo com o meio em que se moviam. Então, Aristóteles classificou-os como animais da terra, da água e do ar. Essa classificação perdurou por muitotempo e em Filosofia é chamada de Taxonomia. Para Aristóteles, todos os seres vivos tinham alma. 15 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a FILOSOFIA INTERDISCIPLINAR Observação Platão nasceu no período clássico da Grécia Antiga. Foi autor de muitos livros contendo diálogos filosóficos e fundador da Academia de Atenas, a primeira instituição de educação superior do mundo ocidental. Juntamente com seu professor Sócrates e seu aluno Aristóteles, Platão ajudou a construir a base da filosofia natural, da ciência e da filosofia ocidental. Exemplo de aplicação Aos 16 anos, Aristóteles foi para Atenas estudar na Academia de Platão. Lá ficou por vinte anos, até a morte do professor. No ano de 343 a.C. foi contratado por Felipe da Macedônia para ser tutor do seu filho, Alexandre, e lá ficou até Alexandre se tornar rei. Neste ano voltou para Atenas e fundou o Liceu, no qual eram estudadas as Ciências Naturais, a Metafísica, a Lógica, a Ética, a Política, a Biologia, a Zoologia e a Medicina. No Liceu também foi desenvolvida a base da metodologia científica. Pesquise em sites de busca e verifique as citações de uma pessoa que viveu há mais de 2.000 anos e ainda merece destaque hoje em dia. Sabemos que existem grandes ligações entre todos os seres vivos. Para começar, nenhum ser vivo existe sem conter dentro dele moléculas dos minerais que formam o próprio planeta Terra. A maioria desses minerais que compõem as rochas da Terra estão presentes em maior ou menor escala na formação de todos os seres vivos. A grande diferença que existe entre um ser vivo e um ser inanimado é que o primeiro combina diversos elementos da natureza para constituir um organismo. Os organismos diferem dos elementos básicos da natureza porque crescem e se reproduzem. A capacidade de reprodução é que dá a uma coisa a qualidade de organismo e de ser vivo. Nesse sentido, não há muita diferença entre os diferentes seres vivos na medida em que o sentido da vida para todos eles é perpetuar a espécie. Em outras palavras, é fazer com que a sua espécie continue existindo para sempre. Observação Entre os seres humanos, é necessário um homem e uma mulher para a reprodução. Aparentemente, a maioria dos seres vivos também precisa de um membro do gênero masculino e outro feminino para conseguirem reproduzir. Hoje, sabemos que a divisão de gêneros atinge até mesmo o reino vegetal. Apenas os micro-organismos e animais muito simples conseguem ter a capacidade de se reproduzir sem a necessidade de um macho e de uma fêmea. 16 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Unidade I Foram necessários mais de 2.000 anos para que os seres humanos notassem que existem muitas semelhanças entre os seres vivos. Na verdade, até há pouco tempo a ignorância e o desconhecimento faziam com que até mesmo os grandes cientistas acreditassem que existiam grandes diferenças entre as raças humanas. Há 120 anos, admitiam que todos os seres humanos – os asiáticos, os africanos, os europeus, os índios nativos do Novo Mundo – eram seres diferentes uns dos outros e quase não pertenciam a mesma espécie. Hoje em dia, sabemos que as diferenças de cor da pele, forma dos olhos, pigmentação e aparência dos cabelos, nada disso é suficiente para distinguir um ser humano de outro ser humano. Sabemos também que a construção de todos os mamíferos é muito parecida. Portanto, verificamos semelhanças entre os animais que aparentemente são muito diferentes entre si, como, por exemplo, entre o elefante e o rato. Com o tempo, percebemos que mesmo os animais de classes muito diferentes, como as cobras e os pássaros, têm uma série de coisas em comum. Tanto a maioria das cobras quanto a maioria dos pássaros têm olhos, têm ossos e têm órgãos que servem para funções biológicas muito semelhantes. Fomos percebendo que todos os seres vivos compartilham entre si várias características em comum. Mesmo que os pássaros disponham de asas, os peixes possuam escamas e a capacidade de respirar embaixo de água, os répteis tenham o sangue frio e os mamíferos produzam leite, todos os seres vivos, incluindo aí também as plantas, possuem um DNA que determina o crescimento de suas células e, dessa maneira, a formação do próprio ser. Percebemos que é com a construção das células que os seres vivos são constituídos, sempre a partir do mesmo princípio. Assim, o ser humano não tem como fugir da sua origem natural e mais especificamente da sua origem animal. Muitos de seus comportamentos são regidos conforme a construção biológica do seu organismo. Nesse sentido, por mais que a utilizemos a cultura e as invenções da ciência e conseguimos ter um índice de sobrevivência superior e até mesmo mais confortável do que a maioria dos outros animais, as mães protegem os seus filhotes e os pais a segurança do grupo da mesma maneira que fazem os tigres, as baleias e os macacos. Hoje em dia, sabemos que o que distingue o ser humano dos outros animais não é a sua aparência. 1.4 O que distingue o ser humano dos outros animais? A capacidade do ser humano em desenvolver a linguagem e as línguas faz com que ele seja um animal diferente de todos os outros. Mas sabemos que os sentimentos não são exclusivos dos seres humanos. Nossos animais de estimação também se mostram felizes, tristes, amedrontados ou famintos. Na verdade, a maioria dos mamíferos é capaz de demonstrar claramente quais são os seus sentimentos. Eventualmente, muito desses animais são capazes também de emitir sons para demonstrar sentimentos e sensações. Mas nenhum animal, além do ser humano, conseguiu efetivamente construir uma língua que permite o desenvolvimento de uma linguagem. Mesmo que tenhamos conhecimento da existência de milhares de línguas que são faladas pelos seres humanos, sabemos também que podemos fazer a tradução da maioria das palavras e das expressões de uma língua para outra. É por isso que nós conseguimos assistir a um filme que foi originalmente falado em inglês na sua tradução dublada para o português. É por esse motivo também que podemos entender um desenho animado japonês na sua versão em português. Em outras palavras, mesmo que filmes, programas de televisão ou qualquer peça literária, seja ela um livro ou um manual de instrução, tenha sido escrita originalmente numa língua estrangeira, sabemos que a sua tradução para o português é suficiente para que nós consigamos entender o seu sentido. 17 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a FILOSOFIA INTERDISCIPLINAR A capacidade que seres humanos têm de descrever a natureza, além dos nossos próprios sentimentos e sensações com uma riqueza de detalhes, é única e promove a nossa grande e fundamental diferença para todos os outros seres vivos. Por mais que alguns animais, como as formigas e as abelhas, possam exibir um comportamento social parecido com aquele que nós seres humanos às vezes promovemos, nunca ninguém encontrou um livro escrito por formigas ou abelhas. Também não temos notícia de nenhuma tentativa de comunicação entre as abelhas de diferentes espécies. Portanto, essa capacidade de organizar a linguagem – e a partir dela falarmos sobre as coisas da natureza dos homens, de uma maneira estruturada para que todo mundo entenda – é que distingue o ser humano de todos os outros animais. 1.5 O desenvolvimento da linguagem é a maior diferença entre o ser humano e os outros animais Os serem humanos inventaram palavras para designar as coisas que pertencem ao seu ambiente. Hoje em dia, sabemos que os diferentes grupos de seres humanos migraram da África, local onde a nossa espéciesurgiu, para os demais continentes do planeta. Em cada lugar eles desenvolveram uma língua para facilitar a transmissão dos conhecimentos, permitindo ao grupo conviver de uma forma mais fácil com a natureza que os cercava, isto é, o seu meio ambiente. Então, a língua das pessoas que moravam em montanhas nevadas acabava contendo um número maior de detalhes a respeito do que acontecia naquele determinado lugar, como, por exemplo, a palavra avalanche, que é o deslizamento de uma geleira. Essa palavra não existia na língua das pessoas que moravam no deserto, pois lá não acontecia nenhuma avalanche, nem nenhuma montanha com neve. Por outro lado, o calor do deserto e a areia também acabaram por criar palavras específicas, as quais não eram conhecidas pelo povo que residia nas montanhas nevadas. Um exemplo é a palavra oásis. Um povo que vive basicamente da pesca desenvolve nomes para designar cada tipo de peixe, já que acaba conhecendo uma variedade muito maior do que os habitantes de um local que fica a centenas de quilômetros do mar. Mesmo que existam peixes no rio que cruza aquela terra longe do mar, onde as pessoas vivem da agricultura e do pastoreio, a quantidade de peixes deste rio não apenas é menor do que no mar, mas certamente suas espécies são diferentes. Assim, as sociedades passaram a desenvolver as palavras de acordo com a vivência que elas tinham naquelas localidades específicas que habitavam. Tais expressões ajudavam os seres humanos a se adaptarem ao seu ambiente. Com o passar dos tempos, as pessoas passaram a viajar de um lugar para outro e a fazer contato com tribos que viviam em lugares diferentes. Dessa maneira, as narrativas da forma de viver de um lugar foram levadas para outro pelos viajantes. Da mesma maneira com que determinadas histórias viajavam, algumas palavras novas também. Foi dessa maneira que os moradores do deserto ficaram sabendo da existência da neve nas montanhas. O desenvolvimento original das culturas nada mais era do que a preservação dos hábitos e dos costumes que facilitavam a vida de grupos de seres humanos nas localidades específicas em que viviam. Por esse motivo, ao longo da história do ser humano, sempre houve o medo de viajar para um lugar desconhecido, pois isso tornaria o homem indefeso, na medida em que não tinha o conhecimento necessário para sobreviver em outro meio ambiente. 18 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Unidade I Ao olhar para montanhas, campos e florestas cobertos com uma vegetação que ele não conhecia desde criança, o viajante se sentia perdido por não saber distinguir a planta que era comestível daquela que era venenosa. Ele não conhecia os animais selvagens que habitavam em outros lugares e, portanto, poderia ser atacado por eles. Essa adaptação dos seres humanos ao local em que nasceram e cresceram, com o tempo, passou a ser desenhada e depois escrita para gerações futuras. No início, a transmissão de conhecimento era feita com a ajuda de desenhos e de rituais que funcionavam como peças de teatro. Esses desenhos e rituais deram origem não apenas ao início da literatura, mas, principalmente, ao início da religião. Com o tempo, os seres humanos foram percebendo que podiam usar sistemas para descrever os seus hábitos e costumes, e com a invenção da escrita, a literatura serviu para ensinar às gerações futuras o que elas deveriam fazer para facilitar a sua sobrevivência, que era principalmente se comportar como seus pais e avós. Junto com a invenção da escrita nasceram também os primeiros números, os quais serviram para ajudar a contar o resultado da agricultura. Na medida em que foram desenvolvidos sistemas para medir a quantidade comida produzida pela agricultura, também foram criados sistemas para anotar as trocas que as pessoas faziam entre si das coisas que produziam. Assim, a invenção da escrita permitiu não apenas a organização da forma de viver, mas também a disposição das quantidades dos alimentos e demais objetos necessários para a manutenção da vida. Com o tempo foi ficando claro que cada grupo de seres humanos devia se organizar como uma família. Quando esta se tornava muito grande, ela virava um bando, e quando os bandos se estabeleceram em definitivo em determinados lugares, viravam uma tribo. Isso acabou facilitando a vida de tal forma que as tribos conseguiram se aproximar e casar seus filhos, se tornando parentes umas das outras. Mais tarde, as tribos se organizaram em nações. Com o avanço da linguagem, e com uma qualidade cada vez maior de descrição dos fatos que aconteciam e das atitudes que as pessoas tinham em relação aos acontecimentos, os povos começaram a escrever as suas histórias. As sociedades, que por algum motivo até hoje desconhecido por nós não tiveram a capacidade de desenvolver a escrita, ficaram condenadas a transmitir sua história e suas tradições na forma oral, de pai para filho. A tradição oral ficou sempre sujeita à memória e às eventuais modificações que eram feitas nas narrativas de uma geração para outra. Com a escrita, os fatos foram gravados e puderam ser rememorados da mesma forma com que tinham sido descritos. Isso permitiu que a experiência de gerações passadas pudesse ser avaliada pelas gerações futuras. Os atos que tinham sido realizados pelos antepassados podiam ser conferidos e reavaliados para que as pessoas percebessem se aquela forma de se comportar perante uma determinada situação deveria ou não ser repetida. Essa capacidade de gravar um determinado comportamento através de sua descrição (e depois de um determinado tempo reler o que foi escrito e reavaliar se aquele comportamento ainda era pertinente ou mesmo correto) criou a sustentação para o desenvolvimento das culturas. A diferença entre uma sociedade com cultura escrita e uma sociedade sem é que na 19 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a FILOSOFIA INTERDISCIPLINAR sociedade sem escrita os adultos dizem que fazem uma coisa de determinada maneira porque sempre foi assim. Já na sociedade com cultura escrita, quando as pessoas fazem uma coisa que seus avós também faziam, elas conseguem dar um determinado valor àquilo que estão fazendo no momento. Em outras palavras, enquanto nas sociedades sem escrita as pessoas resolvem não comer um determinado animal porque em algum momento do passado seu bisavô comeu um animal dessa espécie e morreu, numa sociedade com escrita narra-se um fato, por exemplo, que há 50 anos seu avô, depois de comer a carne de determinado animal, passou mal e morreu. Mas podemos ler que aquele animal tinha sido encontrado morto na floresta. Ninguém sabia há quanto tempo ele estava lá nem do que tinha morrido. Assim, o neto desse homem, ao ler esse relato, podia refletir a respeito do fato. Será que seu avô morreu porque comeu aquele tipo de animal? Será que só morreu porque comeu um animal que morreu na floresta? A partir destas reflexões é que o ser humano pode testar cada uma dessas possibilidades. A filosofia chama essas possibilidades de hipóteses. Dessa maneira, com a experimentação e o registro dela é que os seres humanos acabam desenvolvendo o conhecimento. E o conjunto dos conhecimentos acabaram determinando as culturas. Nesse sentido, nenhum outro animal, mesmo que transmita algum conhecimento de pai para filho, acaba desenvolvendo uma cultura. 1.6 Quantos significados tem a palavra cultura? Hoje em dia, a palavra cultura significa comumente todo conhecimento, todas as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo ser humano enquanto membro de uma sociedade. Mas nem sempre foi assim. Os gregos acreditavam que cultura era o que eleschamavam de paideia: um conhecimento superior que os homens instruídos tinham a respeito do mundo. Os romanos também tinham uma noção parecida com a dos gregos e chamavam este conhecimento de humanitas. Para eles, a cultura só poderia ser adquirida por uma pessoa que estivesse com vontade de instruir o seu espírito. O simples fato de pertencer a uma sociedade inserida dentro de uma civilização não era suficiente para participar de uma cultura. Essa ideia de que a cultura é uma coisa específica das pessoas muito instruídas tem a ver com o fato de que ao longo dos séculos foi possível para alguns poucos estudar tanto que, de alguma forma, todo conhecimento acumulado pela humanidade pudesse ser conhecido. Lembrete Durante muitos séculos, aqueles que tinham cultura eram as pessoas que sabiam ao menos um pouco a respeito de todas as coisas. 20 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Unidade I Com o desenvolvimento da ciência a partir do século XIX, a especialização em cada campo do conhecimento foi tornando cada vez mais impossível que uma pessoa soubesse de tudo, ou mesmo que conhecesse muita coisa a respeito de todo o conhecimento acumulado pela humanidade. Assim, um médico pode ter uma enorme cultura médica sem conhecer muito a respeito da Matemática. Por outro lado, um matemático pode exibir uma enorme e profunda cultura Matemática, sem conhecer muita coisa a respeito de Biologia. Assim, a palavra cultura passou a identificar as pessoas inseridas dentro de uma sociedade, pois conhecem o suficiente para participar dela. Hoje em dia, quando falamos de cultura, estamos discorrendo sobre as artes, principalmente as clássicas, como a pintura, a literatura e a música. Mas, efetivamente, todas as pessoas que participam de uma determinada sociedade de uma civilização têm conhecimentos comuns que servem para que elas convivam bem dentro daquela civilização. Quando pensamos na cultura brasileira, pensamos também nas diferentes formas de alimentação que são possíveis no Brasil. Conhecemos as variações de sotaques que exibimos ao falarmos a língua portuguesa e reconhecemos todas as coisas que dizem respeito aos nossos hábitos e costumes brasileiros. Mesmo assim, sabemos que existem grandes diferenças entre os gaúchos e os amazonenses, e os índios do Mato Grosso e os paulistas. Observação Hoje em dia, cultura significa a forma de um povo transmitir seus conhecimentos. Mesmo que muitas vezes ainda façamos referência a pessoas muito instruídas como pessoas cultas, na verdade todos nós, de alguma forma, participamos de uma cultura e, portanto, também exibimos um determinado grau de cultura. Cultura, no fundo, é tudo aquilo que organiza e que rege a forma de nos comportarmos dentro de uma sociedade. E é exatamente o aprendizado dessa forma de comportamento que nem sempre depende da instrução formal. Até uma pessoa que estudou muito pouco conhece as regras de comportamento e cooperação da sociedade em que vive. 1.7 É possível distinguir em nós o que é natural do que é cultural? É comum ouvirmos uma pessoa dizer que um determinado comportamento é natural. Porém, quando dizemos que alguma coisa é natural, muitas vezes estamos querendo dizer que esta coisa é usual. Então, por exemplo, se uma pessoa diz que é natural que toda criança goste de chocolate, ela esquece que chocolate é um produto fabricado pelo homem. E o chocolate que comemos hoje é muito diferente daquele que existia na vida dos nossos antepassados. No passado, o chocolate era uma bebida parecida com o café. As amêndoas do cacau eram moídas e torradas, assim como os grãos de café, além de misturadas com água quente para ser bebida. Essa bebida foi encontrada pelos conquistadores espanhóis no império asteca. Lentamente, o hábito de beber chocolate foi importado para a Europa e apenas no século XVIII é que o chocolate 21 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a FILOSOFIA INTERDISCIPLINAR passou a fazer parte da fabricação de biscoitos e de bolos. E só há aproximadamente 150 anos é que se misturou o chocolate com leite condensado, criando assim o chocolate moderno que todos nós conhecemos. Na verdade, resta perguntar: como pode ser natural uma coisa que há 200 anos nem existia na cultura humana? O hábito de consumir chocolate foi introduzido lentamente na nossa cultura e sugere um eco da cultura asteca. Ao longo dos séculos fomos transformando a forma de consumir chocolate. Mesmo assim, foram poucos séculos, e aqui lembramos que a humanidade existe há pelo 150 mil anos. De onde vem, então, a possibilidade de dizermos que uma coisa que evoluiu através da cultura e com a ciência moderna está na nossa vida de uma forma natural? Ora, as coisas verdadeiramente naturais são aquelas que nos acompanham desde os nossos primórdios e que dizem respeito à nossa vida biológica. Respirar é natural. Ter filhos é natural. Mas coisas tais como se vestir, trabalhar, cooperar em sociedade e escolher determinados alimentos em detrimento de outros são atos da cultura. Portanto, todos esses hábitos que desenvolvemos à medida que evoluímos na nossa cultura e civilização são, efetivamente, hábitos culturais. Hoje em dia, agregamos muito mais atos culturais aos nossos comportamentos diários do que hábitos naturais. Lembrete As coisas naturais são aquelas que fazem parte da nossa natureza, tais como comer, beber, respirar, chorar ou sorrir. Os outros comportamentos foram aprendidos e são culturais. Mas, por que então fazemos essa relação entre hábitos que são claramente culturais e alguns que são evidentemente naturais? O motivo é muito simples. Desde a época em que não havia muita diferença entre o homem e os outros animais, sabemos que é muito mais saudável comer uma fruta madura do que uma fruta verde. As frutas verdes podem provocar doenças ou mal-estar. Vários animais que comem frutas sabem, através do sentido do paladar, que o sabor doce das frutas avisa que elas estão prontas para serem comidas. Assim, aprendemos quando ainda éramos também animais que um alimento doce é uma comida própria para o consumo. Isso é um conhecimento natural. Quando comemos chocolate, estamos de fato exibindo um comportamento cultural, mas, ao mesmo tempo, fazemos uma analogia ao antigo comportamento natural. Por isso é que muitas vezes falamos sobre comportamentos culturais como se fossem comportamentos naturais. Os comportamentos naturais são aqueles que dizem respeito às nossas questões biológicas primárias, tais como respirar, comer, sentir medo e ter alegria. Os comportamentos culturais são todos aqueles aprendidos dentro do âmbito de uma determinada cultura. Assim, aprendemos a comer determinadas comidas, de certas maneiras e em definidos momentos. Na cultura brasileira, costumamos comer abacate como sobremesa misturado com açúcar ou na forma de doce. Na cultura mexicana, come-se abacate antes da refeição principal, na forma de 22 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Unidade I salada misturada com alho ou pimenta. É o mesmo abacate, mas cada cultura prefere consumi-lo de maneira diferente. Nenhuma delas é errada. Elas apenas exibem comportamentos culturais diferentes. Não podemos dizer que é natural para ninguém comer abacate de uma ou de outra forma, por isso os comportamentos desenvolvidos são culturais. A distinção entre o que é natural e o que é cultural nasceu no momento em que as tribos precisaram organizar uma forma de viver. No início, os seres humanos resolviam as coisas a partir das suas qualidades físicas. O homem mais forte mandava nomais fraco. Todas as discussões eram resolvidas com um combate pessoal, e quem ganhava o bate-boca era quem matava a outra pessoa. O exemplo mais famoso disso está na Bíblia, quando a guerra entre dois povos permitiu o confronto do jovem Davi contra o gigante Golias. Na medida em que a solução última de todos os julgamentos terminava com a morte e, consequentemente, com um distúrbio da paz na sociedade, as civilizações passaram a adotar um conjunto de leis que permitiu que os conflitos pessoais pudessem ser resolvidos a partir de um consenso social. Dessa maneira, o nosso comportamento natural cada vez mais foi se moldando na forma de comportamento cultural. Todos nós passamos a respeitar os princípios e as regras que permitem a vida em comunidade e sociedade. Todos esses princípios e regras não podem ser assumidos como naturais. Observação A maior parte de nosso comportamento é efetivamente cultural. 1.8 O ser humano é frágil ou é forte diante da natureza? Quando olhamos para o nosso planeta Terra, nos perguntamos se o ser humano é frágil ou forte diante da natureza. Com tanta discussão a respeito do aquecimento global e das interferências humanas na natureza, temos a impressão que o ser humano é muito forte. Mas à medida que nós pensamos em cada um de nós, sabemos que as grandes manifestações da natureza, tais como tempestades e desabamento de morros, terremotos, avalanches, tsunamis, enchentes, nevascas e mesmo a seca extrema podem causar a morte imediata de qualquer pessoa. Perante essas forças da natureza, verificamos que somos impotentes e extremamente frágeis. Então, se somos tão impotentes e frágeis, de onde vêm as ideias de que o ser humano é forte diante da natureza? Lembrete Perante as forças da natureza, somos frágeis! Recentemente, na história do ser humano, mais exatamente o século XIX, acreditávamos que estávamos sempre à mercê de Deus e da natureza. Na verdade, enxergávamos a natureza como parte integrante do Reino de Deus. Só depois que a ciência se desenvolveu efetivamente é que conseguimos construir máquinas que passaram a interferir muito fortemente na natureza. Então, percebemos que podemos causar interferências profundas no próprio planeta. 23 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a FILOSOFIA INTERDISCIPLINAR Há 200 anos, a humanidade imaginava que podíamos usar todo o carvão, todo o petróleo e toda a madeira do mundo, que de alguma forma a natureza sempre teria o suficiente para nos abastecer. Mas hoje sabemos que não é bem assim. A natureza tem recursos limitados e sua capacidade de reciclagem também é limitada. Temos a noção de que sujar a atmosfera com gases tóxicos vai acabar provocando uma série grande de doenças. Temos conhecimento de que mesmo que seja possível inventar um pesticida para eliminar certos parasitas que ameaçam as plantações e, portanto, a própria alimentação humana estamos interferindo não apenas no sistema do campo, mas também comendo uma quantidade grande de veneno que era destinado apenas para matar os insetos. Dessa maneira, vários benefícios trazidos pela ciência, se utilizados de uma forma irresponsável, acabam provocando uma destruição irreversível da natureza. Esse aniquilamento impede que a gente continue vivendo bem no planeta. Assim, várias construções humanas acabam interferindo na natureza de tal maneira que quebram a harmonia com que a vida se estabeleceu na Terra. Daí chegamos a duas conclusões: a primeira é que, individualmente, somos frágeis perante a natureza; a segunda é que, coletivamente, ao exibirmos uma conduta social irresponsável, utilizando demais as máquinas, a química e o conhecimento modernos, acabamos por danificar o equilíbrio entre os elementos e os seres vivos do planeta. Apenas o comportamento responsável das pessoas pode tornar possível o equilíbrio entre o planeta e o futuro da ciência. Nesse sentido, podemos dizer que, independentemente de Deus, nós somos responsáveis pelo planeta que habitamos. 1.9 A cultura é essencial para a definição do ser humano Existem duas concepções básicas do que é a cultura. A primeira acredita que cultura é a formação intelectual do ser humano. A segunda pensa a cultura como forma de um povo agir numa determinada região geográfica construindo uma civilização. Desde os gregos que a formação do ser humano vem sendo pensada como uma preparação para que ele aprenda determinados valores morais e um conhecimento prático que permita sua convivência com as outras pessoas. Assim, a palavra cultura acabou sendo sinônimo da quantidade de conhecimento que cada um consegue aprender. Este tipo de cultura sempre foi considerado como uma capacidade de promover a diferença entre as pessoas. Aqueles que aprendem muitos conhecimentos são considerados pessoas cultas. Os outros que não conseguem aprender muito são considerados pessoas ignorantes, portanto, sem cultura. Na segunda forma de pensar a cultura, todos os seres humanos exibem algum grau de cultura na medida em que todos nós fazemos parte de uma civilização. Aprendemos os elementos necessários para conviver em sociedade, dentro de uma determinada região geográfica. Assim mesmo, o índio que não aprendeu Matemática, tem a sua cultura própria. Portanto, seja da forma elitista, que acredita que cultura é a acumulação de uma grande quantidade de conhecimentos, ou da forma mais sociológica, que crê que todo ser humano participa de uma cultura, a cultura é a forma com que todos os seres humanos se diferenciam dos animais. 24 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Unidade I 1.10 As concepções filosóficas sobre a constituição do ser humano Ao longo dos séculos, os filósofos tiveram ideias diferentes do que é o ser humano. Na busca incessante por entender quem somos nós, a Filosofia desenvolveu uma série de pensamentos muitas vezes antagônicos, isto é, pensamentos que combatiam uns aos outros para tentar definir o que constitui o ser humano. Para a sabedoria popular, um ser humano é simplesmente uma pessoa, mas, muitas vezes, a Filosofia criou diferenças entre as pessoas. Aristóteles, por exemplo, acreditava que os escravos não eram efetivamente seres humanos. Vamos conhecer algumas das ideias oferecidas pelos filósofos a respeito do que é e como se constitui um ser humano. 1.11 O corpo e a alma Toda vez que ouvimos a palavra alma, imaginamos saber o que ela quer dizer. Da mesma maneira, sempre que nos referimos à palavra corpo, imediatamente sabemos que temos um corpo. Desde muito pequenos, aprendemos o que é corpo e o que é alma. Basta olharmos no espelho para vermos o nosso corpo, contudo, até hoje nenhum ser humano conseguiu ver a sua própria alma. Acreditamos que a alma exista, mas nunca ninguém foi capaz de vê-la ou fotografá-la. Por causa disso, a Filosofia se preocupa há muitos séculos em dar uma explicação para o que é alma. Muitos fundamentos descreveram a alma como uma substância. Nesse sentido, a alma seria alguma coisa parecida com a luz ou com a água. Uma das característica da alma, da forma que entendemos esta palavra e a utilizamos no dia a dia, é que ela existe independentemente do corpo. A maioria das filosofias tradicionais sempre pensou que a alma era o lugar onde as atividades espirituais do ser humano estavam fixadas. Os nossos valores morais estariam de alguma maneira ligados à nossa alma. Até hoje, com toda a ciência, ainda não conseguimos descobrir o que é a alma do ser humano. Na Antiguidade, diversos filósofos descreveram a alma de modos diferentes. Anaxímenes acreditava que a alma é feita de ar. Isso porque ele acreditava, assim como um outro filósofo chamado Diógenes de Apolônia, que o ar era o princípiode todas as coisas. Para os seguidores de Pitágoras, a alma era uma harmonia que podia ser construída a partir de números. Por outro lado, um filósofo chamado Heráclito, que acreditava que o fogo era a origem de todas as coisas, também julgava que a alma era feita de fogo. Outra interessante teoria sobre a alma era a do filósofo Demócrito, que supunha que a alma era feita de átomos que podiam entrar no corpo e assim movimentá-lo. Foi Platão quem primeiro criou o conceito de alma que até hoje é aceito: todo o corpo cujo movimento é imprimido fora inanimado; todo corpo que se move por si, a partir do seu interior, é animado. Essa é precisamente a natureza da alma. Segundo ele, a alma é a causa da vida, e por isso é imortal, já que constitui a sua própria essência. Essa explicação que Platão deu da alma serviu de base para todos os demais filósofos. Explicando melhor o que Platão falou, a alma existe simplesmente por que ela dá vida a todos os seres vivos. Ainda segundo Platão, a alma não pode morrer porque ela só serve para fazer viver. 25 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a FILOSOFIA INTERDISCIPLINAR Aristóteles desenvolveu então uma teoria mais sofisticada a respeito da alma. Segundo ele, a alma é a substância do corpo. Ela serve para fazer viver um corpo orgânico. Isso porque o organismo, enquanto instrumento, tem a função de viver e de pensar, e o que faz essa função é a alma. Para ele, a alma não é separável do corpo, porque as atividades da alma não podem ser separadas das atividades do corpo. Mas Aristóteles acreditava que existia uma parte da alma para além do próprio corpo. Essa parte da alma permitia o funcionamento da mente. Aristóteles também acreditava que a alma não podia existir fora do corpo, e quando o corpo morria, a alma também falecia. Plotino, um filósofo grego que morou em Roma, acreditava que a alma era uma coisa divina e que não podia ser corrompida. Assim, para entender a alma, era necessário fazer uma reflexão a respeito do que acontecia dentro do ser humano. Dessa maneira, Plotino sugeriu que existia dentro de nós a possibilidade de saber o que era certo e o que era errado, criando, portanto, a noção de consciência. Santo Agostinho, que foi muito influenciado pelo pensamento de Platão, ensinou aos cristãos que, com o reconhecimento da espiritualidade, podíamos ter acesso à nossa própria alma. Quando refletimos a respeito de nós mesmos e confessamos para nós as nossas qualidades e também os nossos defeitos, conseguimos entrar em contato com a nossa alma. Isso que Santo Agostinho descreveu chamamos, hoje em dia, de consciência. Para Santo Agostinho, nada mais é importante do que conhecer a Deus e a alma. Isso porque Deus estaria na alma de todos os homens. Observação Santo Agostinho foi o primeiro grande filósofo da cristandade. Nascido em uma família muito rica, até os trinta anos ele gozou uma vida de prazeres. Depois tornou-se cristão por influência da mãe e se mudou para a Itália. Lá estudou teologia com os grandes mestres da sua época, em Roma e em Milão. Depois voltou à sua terra, onde escreveu sua obra filosófica, de grande importância para a religião católica. Porém, durante a Idade Média, os teóricos cristãos preferiram a noção de alma que Aristóteles tinha proposto, mas eles mudaram uma coisa na ideia de Aristóteles: consideraram que a alma é imortal e não morre com o corpo. São Tomás de Aquino insistiu que alma é independente do corpo e por isso consegue sobreviver depois que o corpo morre. O filósofo cristão denominado Ockham sugeriu que as experiências espirituais que nós temos decorrem de uma experiência interna, que nós hoje em dia chamamos de reflexão. Para o filósofo francês René Descartes, essa experiência interna fazia com que o homem fosse uma coisa que pensa. A substância dessa coisa é a alma. Por outro lado, a via de acesso para alma é o pensamento através da consciência. Com esse modo de pensar, Descartes mudou o entendimento humano a respeito da alma, que deixou de ser uma substância corpórea e passou a ser uma percepção subjetiva da existência do ser humano. 26 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Unidade I Descartes revolucionou toda a Filosofia quando descobriu a forma filosófica de organizar o método científico. Através da reflexão e análise sem preconceitos das partes mais simples de uma coisa, ele percebeu que era possível examinar todas as partes e formular hipóteses racionais para o seu funcionamento. Com base neste método, Descartes estudou a Geometria, a Biologia e a Medicina, e seu método ainda é utilizado pelos pesquisadores modernos. A partir de Descartes, o conceito de consciência passou a superar o conceito de alma. Para ele, e também para o filósofo alemão Leibniz, a forma da alma conhecer as coisas é revelada e testemunhada pela consciência. Para o filósofo inglês Locke, considerado o pai do liberalismo, a reflexão é a mesma coisa que a experiência interna. Assim, a reflexão é uma das fontes do conhecimento, o que permite o entendimento que o nosso espírito faz das ideias que recebe do exterior. Segundo ele, os atos do espírito são o pensamento, a percepção, a dúvida, o conhecimento e a vontade. Outro filósofo, Hume, escocês e empirista, acreditava que todo o conhecimento do ser humano era constituído por impressões e por ideias. Para o filósofo alemão Immanuel Kant, o conhecimento só seria possível quando conseguíssemos perceber todas as qualidades e categorias que existem num objeto. Assim, é impossível que a consciência seja parte da alma. Isso porque é impossível que o pensamento se torne parte de uma substância que seria a alma. Dessa forma, percebeu-se que a alma estaria limitada à própria consciência. A partir daí, cada vez mais os filósofos preferiram substituir o termo alma pela a ideia de mente. Hoje em dia, continuamos a usar o termo alma e a noção de alma apenas quando estamos falando de religião. Até hoje, as religiões acreditam que os seres humanos existem porque Deus nos deu uma alma. Ainda vai-se acreditar por muito tempo na ideia alma enquanto ninguém descobrir qual a origem da vida. Por outro lado, toda a percepção dos seres vivos diz respeito ao conhecimento de seus corpos. Para Aristóteles, tudo o que pertence à natureza é constituído por corpos e grandezas. Segundo ele, corpo é o que tem extensão em qualquer direção e que é divisível em qualquer direção. Aristóteles entendia qualquer direção como a altura, a largura e a profundidade, e sabia que todo corpo existe em três dimensões. Essa definição de corpo foi aceita por muitos séculos. Vários filósofos importantes como São Tomás de Aquino, Descartes, Espinosa e Hobbes apenas confirmaram de forma diferente a ideia original de Aristóteles. Leibniz foi o primeiro a inovar o conceito de corpo. Para ele, existia o corpo matemático e o corpo físico. O corpo físico é a matéria e tem a capacidade de agir e de sofrer uma ação. Essa ideia evoluiu nas filosofias existencialista e instrumentalista ao ponto de considerarem que o corpo equivale a uma coisa. Esta coisa é aquilo que os seres humanos utilizam para estar no mundo. A concepção mais antiga do corpo é que ele é a prisão da alma. Esse conceito original é de Platão e foi aceito por muitos séculos. Segundo Platão, o corpo poderia de alguma maneira demonstrar uma queda ou, em outras palavras, deixar de se comportar como um ser humano e passar a agir como um animal. Para Aristóteles, o corpo é um instrumento natural da alma. São Tomás de Aquino acreditava que a finalidade do corpo humano é ter alma racional para suas operações. A matéria do corpo existiria para permitir ao ser humano que ele executasse
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