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UC PSICANÁLISE, TEORIA E TÉCNICA ANÁLISE PSICANALÍTICA DO FILME MESMO SE NADA DER CERTO ESTUDO DE CASO Bianca Souza Camila R.S.de Oliveira Gabriela Lins Fernando Amorim INTRODUÇÃO Isolamento, silêncio e penumbra aconchegante e sedutora, olhos e mentes vagueiam para além da realidade consciente esse é o cenário perfeito de uma sala de cinema e cria um estado psicológico análogo ao ventre materno para onde gostaríamos de voltar (FERNANDES, 2005)1. Seria esse nosso prazer pelo cinema? Para a autora, no cinema, a câmara toma lugar do sonhador, projetando uma relação dele com o objeto, é como se fosse os seus olhos, desenvolvimento a percepção, criando acontecimentos que se processam no momento presente. Na vida real (ou na realidade subjetiva do espectador), a cisão entre o corpo real e a imagem imaginária cria uma identidade para o sujeito. No cinema, porém, o sujeito constitui um corpo imaginário que pode assumir qualquer forma e valor, pois o imaginário não está lá fora, é o mundo em que nos envolvemos no tempo da projeção. Além disso, é justamente nesse ponto que ocorre a identificação do espectador. Metz (1980)2 introduz dois níveis de processos identificadores: a identificação cinemática primária, que é a identificação com o olhar da câmera, e a identificação cinemática secundária, que é a identificação com o olhar de um personagem na tela. O filme é uma ilusão na medida em que apresenta algo que está ausente. Apresenta um espetáculo, o que também significa que esconde algo: se algo é projetado, sua fonte está sempre oculta. A presença na tela é limitada a graus de visibilidade. Quando há presença, ou seja, vemos algo na tela, sempre há algo que está fora do quadro da tela. Assim, a presença evoca a ausência; se algo está na tela, o ponto de vista está fora da tela. Quando o 1 FERNANDES, Ana Lúcia Sampaio. Cinema e Psicanálise. Revista Estudos de Psicanálise. n.º 28, pp. 69-73. Rio de Janeiro, set, 2005. 2 METZ, Christian. Linguagem e cinema. São Paulo: Perspectiva, 1980. espectador olha para a imagem, o prazer que sente ao olhá-la já está sempre marcado por uma falta: a falta ou a ausência do que não se vê. Nesse sentido, o espectador olha para uma imagem, para a tela, a fim de preencher ou esquecer essa lacuna. Fernandes (2005) explica que Freud não gostava da ideia do cinema, se opunha à imagem, a psicanálise é a ciência da palavra enquanto o cinema a arte do silêncio, mas a psicanálise trata de imagem o tempo todo: ao explicar o sonho, num cenário composto de imagens semelhantes às de atores num palco, onde se buscam as representações do desejo reprimido e mascarado, que ao serem descobertas tomam aspecto de cenas visuais, não estaria ele falando de cinema, do cinema interior do sonhador? Apesar da ausência do cinema nas peças literárias de Freud (MANO e WEINMANN, 2019)3 é possível notar uma simbiose entre elas, óbvio cada uma com suas peculiaridades e técnicas, mas o que se pretende é extrair da arte as contribuições para a psicanálise. Os contos que inspiram a arte cinematográfica é também uma peça que estimula a análise sob o olhar da psicanálise. Assim, extraímos do filme Mesmo se Nada der Certo, a inspiração para fazer uma análise psicanalítica da relação pai e filha, representadas pelos atores Mark Ruffalo, como Dan e Hailee Steinfeld, a Violet. Imagem 1: Dan e Violet, pai e filha Fonte: http://www.imagensfilmes.com.br O filme Mesmo se Nada der Certo é do gênero comédia romântica musical em que os personagens principais são tidos como perdedores, destacamos aqui o papel de Mark Ruffalo, como Dan, um pai divorciado e produtor musical falido e da sua filha Violet, interpretado pela atriz Hailee Steinfeld, uma adoslescente pouco popular e ignorada pelos garotos da escola. Para completar o triângulo dessa relação está a mãe da Violet, Miriam, interpretada pela atriz Catherine Keener, que se apaixonou por outro homem, sendo o pivô da 3 MANO, Gustavo Caetano de Matos; WEINMANN, Amadeu de Oliveira. Cinema e Psicanálise: o silêncio de Freud. Psic. Rev. São Paulo, v. 28, n.2, 443-467, 2019 separação com o Dan, mas o fugaz romance não se sustentou. Nossa análise psicanalítica dar-se-á considerando a relação pai e filha, sob a teoria lacaniana. PAI E FILHA: UMA RELAÇÃO AMBIVALENTE A figura paterna na psicanálise é uma questão central, já que para Freud o Complexo de Édipo é um conceito universal da sua teoria. Só é possível sua existência com a figura paterna já que é parte na trama triangular amorosa entre mãe e filho (FREUD, Do mesmo modo Lacan (1999)4 vai afirmar que sem a função paterna (pai simbólico) o complexo de édipo não tem sentido. O Falo, presente na figura do pai, é símbolo de poder, força e orgulho e todos o idealizam. Contraditoriamente, esse símbolo de força é também de fraqueza, se efetivando na angústia, na menina, inicialmente por compreender que possui o falo, mas que o perde e nos meninos no medo de perdê-lo, a partir da ameaça de castração. Desta forma, o Complexo de Édipo tem relevante importância na construção do desejo paterno e muitos dos fenômenos psicológicos serão construídos a partir desse desejo (LACAN, 1999). Portanto, a figura paterna é fundamental para consolidação da estrutura psíquica a partir da conflitiva edípica (BENCZIK, 2011)5. No filme, Violet é uma adolescente que se mostra aversiva à presença do pai em decorrência da separação conjugal. Seu convívio se deu com a mãe apenas, houve, portanto, uma quebra do vínculo, ou seja, o nome do pai foi retirado do discurso pela mãe, que relata a filha que o pai não estava presente, que possui comportamento destrutivos, fazendo com que a filha, crie uma imagem ruim do pai. E assim como pontua Lacan (1957-1958)6, a função materna é o que mostra a primeira realidade a criança, e desta maneira possui grande influência dentro de sua cadeia de significantes. A relação pai e filha vai redesenhando ao longo do filme ganhando novos contornos, ao que parece, mais para o final, Violet, busca no pai um referencial de identificação, ainda que sob algumas projeções dolorosas. Vale destacar que Lacan (1999)7 concebe a estrutura edipiana a partir dos principais elementos: pai, mãe, filho e o falo como significante da diferença, cujo trânsito no complexo edipiano organizará a subjetividade. Alguns traços de apatia e rebeldia apresentada por Violet provavelmente tenha se desenvolvido pela falta de referência de um desses elementos nos três tempos lógicos 4 LACAN, J. As formações do inconsciente (1957-58). In: LACAN, J. O seminário. Tradução da Dra. Vera Ribeiro. 1. Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. (livro 5). 5 Benczik, E. B. P.. A importância da figura paterna para o desenvolvimento infantil. Revista Psicopedagogia, 28(84), 67-75, 2011. 6 em seu seminário 3, 7 Lacan, J. (1999). Seminário livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Originalmente publicado em 1958). apresentado pelo autor, responsável pela passagem do Imaginário para o Simbólico, ou seja, ainfluência das experiências ao longo do desenvolvimento tenha estruturado um complexo de Édipo mal elaborado. Imagem 2 - Conversa entre Dan e Violet, o pai a questiona pelas vestimentas curtas Fonte: Recorte do filme A teoria psicanalítica lacaniana atribui um papel privilegiado ao pai. Essa situação marca o retorno de Lacan a Freud, pois no drama edipiano freudiano, o pai desempenha um papel crucial. No caso do filme, por se tratar de uma menina, para a criança desse sexo, o processo é mais complexo. Ela deve renunciar ao desejo pela mãe para ganhar sua própria subjetividade, mas deve continuar a se identificar com a mãe para assumir seu papel sexual na sociedade. No caso dela, a ameaça de castração não é tão significativa porque, efetivamente, ela já está castrada. Ao se separar da mãe, ela deve voltar-se para o pai sem se identificar com ele, mas no final das contas renuncia ao desejo por ele. Assim, na visão de Freud, em decorrência do complexo de Édipo, a mulher se ressente da mãe por não ter pênis e inveja o pai por ter. Lacan manteve o foco de Freud no inconsciente e no drama edipiano, mas sugeriu que ambos são derivados e, por sua vez, criam um significado cultural. Lacan postulou três ordens da experiência humana: o Real, o Imaginário e o Simbólico. Embora Violet tenha ficado com a mãe após a separação, o seu comportamento junto ao pai é uma forma de chamar atenção, pois para Lacan (1972, p.465)8 a menina espera mais da mãe do que do pai, mas o pai tem uma função de libertar a criança da posição alienante em relação à mãe, chamada pelo autor de metáfora paterna. A ausência do pai torna-se então um significante de instabilidade, anormalidade e adaptação doentia dos filhos, aumentando as chances de psicose. Contudo, Lacan não fala sobre a instituição de uma figura paterna em um papel de autoridade além da mãe, seu discurso não é o de valores familiares, 8 O aturdito (1972). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003, p. 448- 497. mas alerta que a rejeição do papel do pai, suprir a função simbólica atual do pai, pode ter consequência para a criança. O filme não oferece muitos elementos para uma análise aprofundada em relação a sua relação com o pai, como propusemos a fazer. Contudo, oferece caminhos para compreender a psicanálise, na perspectiva lacaniana, do trama edipiano na formação da subjetividade. A CONSTITUIÇÃO FAMILIAR DENTRO DA PSICANÁLISE E A FUNÇÃO PATERNA A ideia de família para a psicanálise parte do princípio de que, a família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura, predominando na primeira educação. Lacan demonstra em sua obra Complexos Familiares (1938) a família organizada, segundo imagos paternas e maternas, averiguando que a mesma é responsável pelo impulso do processo de humanização do indivíduo, pela criação da subjetividade. A partir do seminário publicado (1938) por Jacques Lacan intitulado Complexos Familiares, o autor frisa a importância de como um pai interfere na constituição de um sujeito. Ele pressupõe a ideia da necessidade da criança possuir alguém que desempenhe uma função paterna, função que na teoria freudiana era desempenhada exclusivamente pelo genitor masculino. Na teoria lacaniana deve ser desempenhado por aquele que Lacan nomeia de Nome-do-pai. O que Lacan chama de Nome-do-Pai refere-se à influência da cultura e do social dentro da família, algo que tradicionalmente (especialmente nas sociedades patriarcais ocidentais) tem sido associada à própria figura do pai. Dado que Lacan pensa o Nome-do-Pai como um significante, aquilo simbólico e permite que ela funcione (não necessariamente se refere a um pai real). Isso tem uma relação clara pela referência no catolicismo no em Nome do Pai que vai além do Pai mortal. Portanto, o pai para Lacan é uma função simbólica à qual todos os membros do grupo estão sujeitos. É como se fosse uma bússola interna que indica segundo os princípios culturais e sociais. Para ele “a família não é dominada por comportamentos biológicos, mas estruturada por complexos simbólicos” (LACAN, 1987, p. 19)9 O Nome-do-Pai tem grande responsabilidade e importância na vida do sujeito, pois é incumbido da inserção deste novo sujeito na cultura. Ela é vista como função estruturante para Lacan, sua responsabilidade é de realizar a interdição, privação ou a 9 Os complexos familiares. Rio de Janeiro: Zahar, 1987. castração, ela induz o posicionamento do falo no campo do Outro. Em outras palavras é responsável pela realização do corte narcísico da criança, e deste modo com que a mesma se perceba como um ser faltante dentro do mundo, indicando assim a localização indireta do sujeito ao mundo simbólico. (Dunker, 2010). Dentro da concepção psicanalítica lacaniana, a função materna opera como encarregada por alternar no papel de presença e ausência, de dar assistência a aquela criança, e não necessariamente a mãe biológica, mas qualquer pessoa que exerça esse papel na vida da criança. A função materna apresenta o mundo ao sujeito são os pais, mas principalmente a mãe ou especificamente quem realiza a função paterna. A partir da trama, percebe-se que os pais de Violet são separados e nota-se que após um divorcio complicado Mirian, a mãe de Violet começa a tirar o pai de Violet, Dan do discurso. Ela começa a desvalorizar o Nome-do-Pai no discurso, reforçando que o pai não tem sucesso, fazendo com que os significantes de Violet em relação ao pai se confundam na formação da sua identidade. A partir do momento em que a mãe, Mirian retira o Nome-do-pai como função dentro do organismo da vida de Violet, a relação de Violet e Dan começa a ser prejudicado, pois sofre grande influência por parte da função materna. CONCLUSÃO Lacan nos ensina que a criança envolvida pelo afeto dos pais, vive a imaginação que lhe permite desenvolver e ocupar o lugar privilegiado do Outro, portanto, impedir essa situação pode desencadear diversos sintomas, entre os quais a baixa auto estima, dificuldades de manter relacionamentos sociais e a instabilidade emocional, exatamente como se pode observar em Violet, no filme. Possivelmente, não é possível concluir em virtude da falta de mais informações, ela está acometida por medo de traição e abandono. Tais comportamentos se desenvolvem em virtude do desejo do Outro ter sido impedido o lugar libidinal imaginário. Segundo o autor, quando a figura paternal é ausente da relação familiar para executar a mediação fálica, “a distância com o ideal do eu e o papel assumido pelo desejo da mãe (...) deixa(m) a criança exposta a todas as capturas fantasistas. Ela se torna o ‘objeto’ da mãe, só lhe restando a função de revelar a verdade desse objeto ao realizar a sua presença na fantasia materna” (LACAN, 1969, p. 369)10. 10 LACAN, J. (1969) Nota sobre a criança, em LACAN, J. Outros escritos, Rio de Janeiro: JZE, 2003, p. 369-370. Violet tem a oportunidade de mostrar ao pai sua habilidade musicalao pai. É o momento mais esperado pela garota, talvez, com a ausência de Dan ela não teve muita oportunidade de se interessar pela música com afinco e, talvez tenha se interessado justamente por ser uma utopia em relação ao pai. Dan vai buscar Violet na escola e a elogia, entregando, em seguida, o Cd com a faixa em que ela participa, e lhe diz que acha hilário. Violet pergunta porque hilário, ele responde: “não tinha ideia de que você era tão talentosa”. A percepção paterna de Dan está ao alcance de Violet, é o reconhecimento, a atenção que ela tanto busca bem à sua frente. Dan incentiva a filha a formar uma banda, diz também, que se compromete a produzir a banda e será algo de família. Ao chegar em frente a casa declara a filha o seu amor com a frase “eu te amo”. Para Violet pode ser o início de nova aprendizagem.
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