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29 O Nascimento da Medicina Moderna As concepções de doença variaram muito ao longo da História. Basta compararmos, por exemplo, essas concepções na medicina hipocrática - um desequilíbrio entre os humores – e no período anterior a Hipócrates: um produto de forças externas ao homem ou um castigo dos deuses. Para nossa compreensão atual, o corpo humano constitui o local de origem e desenvolvimento das doenças, o espaço cujas mínimas características a anatomia vê em detalhe. Esta é, entretanto, apenas uma das maneiras da medicina situar as doenças, nem a primeira, nem a única. A coincidência do “corpo da doença” com o corpo humano é relativamente recente, e evidente apenas para o homem moderno. Os espaços de existência da doença e o de sua localização no corpo só coincidiram, na experiência médica, na medicina do século XIX com os privilégios concedidos à anatomia patológica. I - A “Medicina Classificatória, ou das Espécies” Thomas Sydenham (1624-1689) foi a figura dominante na medicina clínica do século XVII, na Inglaterra, e o iniciador do pensamento classificatório. Graças à observação de que, por exemplo, no sarampo, na sífilis e na gota, o quadro clínico se repetia, em diferentes pacientes, em diferentes lugares, ele propôs a existência de doenças distintas e específicas. Sugeriu também que algumas dessas enfermidades se deviam a agentes específicos, em luta, contra os poderes curativos, naturais, do corpo. Nessa época, as doenças eram classificadas segundo um modelo botânico, que não levava em consideração relações de causa e efeito, ou a ordem dos eventos no tempo, ou mesmo sua localização no corpo do doente. Para classificar as várias “espécies” de doença, o critério de análise era a forma, a aparência. Ao médico cabia identificar a “espécie” e, para fazê-lo, era preciso saber separar os sintomas próprios da doença daqueles acrescentados pelas características individuais do paciente. Ou seja, para conhecer a doença, o médico precisava “esquecer” o doente. Assim, nesta “medicina classificatória” ou “medicina das espécies”, ou ainda, “medicina das crises”, o médico é um decifrador de doenças, e o doente apenas um exemplo, um lugar de manifestação das enfermidades. Para a medicina do século seguinte (o século XVIII), a doença era uma luta entre a natureza sadia do indivíduo e o mal que o atacava, a contra-natureza. Cabiam ao médico o diagnóstico e o prognóstico, pois a intervenção terapêutica era mínima. A doença aparecia “através” do corpo, no qual o olhar médico não tem razões para demorar-se. Para a medicina classificatória, a doença atingir um órgão não a definia, pois a doença podia ir de um ponto de localização a outro, ganhar 30 outras superfícies corporais, mas permanecer idêntica em sua natureza. O espaço do corpo e o espaço da doença têm liberdade de se deslocar um em relação ao outro. Quem deseja conhecer a doença deve subtrair o indivíduo. Assim, a comunicação do “corpo essencial” da doença com o “corpo real” do doente não se dá, portanto, através dos pontos de localização, nem dos efeitos da duração. É a qualidade: o cérebro dos loucos é leve, seco e friável, pois a loucura é uma doença viva, quente, explosiva; o dos tuberculosos, será esgotado e lânguido, na medida em que a tuberculose se alinha na classe geral das hemorragias. O conjunto qualitativo a distinguir a doença deposita-se em um órgão, que serve, então, de suporte aos sintomas. A doença e o corpo só se comunicam através da “qualidade”. Quais são os princípios desta configuração primária da doença? Segundo os médicos do século XVIII, ela se dá em uma experiência “histórica”, por oposição ao saber “filosófico”. Por exemplo, é histórico o conhecimento que define a pneumonia por seus quatro fenômenos: febre, dificuldade de respirar, tosse e dor lateral. Será filosófico o conhecimento que põe em questão a origem, o princípio e as causas: resfriamento, derrame seroso, inflamação da pleura. O histórico reúne tudo o que, de fato ou de direito, cedo ou tarde, direta ou indiretamente, apresenta-se ao olhar. Uma causa que se vê, um sintoma que, pouco a pouco, se descobre não são da ordem do saber “filosófico”, mas de um saber “muito simples”, que “deve preceder todos os outros”, e se situa no cotidiano da experiência médica. Nestas condições, compreende-se que a medicina se afaste de uma forma de conhecimento “matemático”. Nenhuma medida do corpo humano pode, em suas particularidades físicas ou matemáticas, dar conta de um fenômeno patológico. II - Mecanicismo e Vitalismo Duas correntes doutrinárias ligadas ao Iluminismo marcaram a Medicina do século XVIII, o mecanicismo e o vitalismo, ambas com orientações hipocráticas. Estas duas correntes vão persistir e, às vezes coexistir e disputar a explicação dos diferentes fenômenos. Na Universidade de Halle, fundada em 1693, dois médicos naturistas dividem o ensino e as duas visões de mundo: Stahl (1660-1734), vitalista e Hoffmann (1660-1742), mecanicista. Ambos tornaram- se célebres e patronos de suas respectivas concepções no campo da terapêutica. Para Stahl, uma alma conservadora é responsável pela integridade do organismo, que não pode, em absoluto, ser considerado como uma soma de peças que se ajustam. Um ser vivo é sempre considerado um todo indivisível. As leis da mecânica nada explicam dos movimentos do organismo, que 31 se dão através de um agente vital, a alma racional, que não é uma força material, mas a própria natureza. O elemento mais característico do vitalismo é a noção de que o dinamismo vital, as transformações e os movimentos corporais, têm uma origem diferente daquela das leis que regem o movimento dos corpos inanimados. Para se conhecer e compreender o organismo, é necessário escutar a natureza. E a doença é um distúrbio dos movimentos vitais, mais do que uma agressão externa que ataca o organismo. Estes movimentos vitais voltam- se, espontaneamente, para a cura. Stahl é místico, seu vitalismo é animista: a alma e o princípio vital não prescindem da idéia de Deus. Mais tarde surgirão propostas vitalistas não-animistas, isto é, que atribuem singularidade ao fenômeno vital, mas não recorrem a explicações de cunho religioso. Friedrich Hoffmann (1660-1742) é mecanicista e se diz também hipocrático. Sua confiança na natureza também provém da sabedoria divina, que engendrou esta máquina tão bem regulada, o corpo vivo. O organismo é regido pelo movimento dos humores, nascido da contração e dilatação mecânica dos órgãos. O corpo é uma máquina hidráulica. A força curativa da Natureza consiste, assim, em uma operação mecânica, o espasmo que contrai os órgãos e redistribui os humores desequilibrados. Entretanto, tanto Stahl quanto Hoffmann preconizam que o melhor meio de se obter a saúde é o cuidado de si, a observação do que é bom ou nocivo para o próprio organismo, é recorrer, o mínimo, a um médico. Cada um deve conhecer sua própria natureza e, assim, ser o médico de si mesmo. III - A Medicina dos Sintomas No início do século XIX, o olhar do médico se afasta do “modelo botânico” e se aproxima do “modelo químico”. A doença passa a ser uma combinação de elementos mais simples, os sintomas. Os médicos devem aprender a reconhecer os sintomas mais importantes de cada doença, que ganham um valor de sinal. A “medicina dos sintomas” mantém a mesma atitude da “medicina das espécies”: ver, identificar e isolar traços idênticos e classificá-los. Mas o olhar se organiza de uma nova maneira. Agora, há uma identificação entre a essência da doença e o conjunto de sintomas através dos quais ela se manifesta. O sintoma não é mais um indicador de doença, é, junto com os demais sintomas, a doença. A medicina clássica é, portanto, uma medicina classificatória, que se elabora segundo o modelo da história natural.Os sintomas são o ser da doença, definir uma doença é enumerar seus sintomas. Principais características: 1 - Não existe essência patológica além dos sintomas: A coleção de sintomas forma o que se chama doença. Os sintomas nada mais 32 são do que uma verdade inteiramente exposta ao olhar; 2 - A intervenção de um “saber” (do médico) transforma o sintoma (do paciente) em sinal. O sintoma se torna sinal sob um olhar (do médico) que sabe distinguir diferenças. A análise e o olhar clínico compõem e decompõem, para revelar uma ordenação, que é a própria ordem natural. Para o bom médico, todos os sintomas podem transformar-se em sinais. O olhar clínico incorpora também o modelo matemático; à medicina importa, agora, o saber probabilístico. Cada fato isolado é confrontado a um conjunto, toma lugar em uma série de acontecimentos, ajuda a estabelecer graus de certeza. O olhar clínico não é o de um olho intelectual, é um olhar da sensibilidade concreta, que vai de corpo em corpo. Para a clínica, toda verdade é verdade sensível. O “golpe de vista” do médico, o “olho clínico”, que muitas vezes vence a mais vasta erudição e a mais sólida instrução, é o resultado de freqüente, metódico, e justo exercício dos sentidos. Nesta nova imagem que dá de si mesma, a experiência clínica se prepara para explorar um novo espaço: o espaço palpável do corpo. Esta medicina “clínica”, aprendida pela observação do doente à beira do leito, pela repetição dos fenômenos nas epidemias, concretizada em um “conjunto de sintomas” e em uma “estatística de casos”, aliar-se-á, durante o século XIX, à anatomia. Então, pouco a pouco, entrará em regressão, para desaparecer diante da medicina dos órgãos, da sede e das causas, diante de uma clínica inteiramente ordenada pela anatomia patológica, diante da base da medicina contemporânea. IV - A Medicina anátomoclínica Até o século XVIII, era apenas através dos sintomas visíveis que se podia identificar o “invisível-Ser-da-doença”. No século XIX, este processo inverteu-se. Partindo-se dos cadáveres para conhecer os vivos, descobriu- se que o invisível durante a vida pode ser visível após a morte. A doença assumiu, então, o caráter de um conjunto de fenômenos reais, a ocorrerem no próprio corpo, a torná-lo doente. No século XVII, o médico suíço Théophile Bonet (1620-1689) reuniu um material muito vasto, próprio e alheio, que publicou nos três volumes do livro “Sepulchretum” (1679), em que mostrou a utilidade de cadáveres para a prática clínica. Quase cem anos depois, Giovanni Battista Morgagni (1682-1771), ao publicar “De sedibus et causis morborum per anatomen indagatis” (Veneza, 1761), firmou definitivamente a anatomia patológica como disciplina médica indispensável para a compreensão da doença. Morgagni morreu aos 89 anos de idade, tendo sido professor de anatomia em Pádua, Itália, durante 56 anos. Durante todo esse 33 tempo, trabalhou diariamente, dissecou, fez experimentos, viu pacientes, leu e escreveu. Morgagni inaugurou o “conceito anatômico” de prática médica, e é, hoje, considerado o “Pai da Patologia”. Quando a maioria dos médicos insistia em perguntar “o que é a doença?”, Morgagni se preocupava em saber “onde está a doença?” (“Ubi est morbus?”). Ou seja, Morgagni investigou as enfermidades como um anatomista e, assim, não considerou a natureza da doença como seu principal problema. Não casualmente, o título de sua grande obra se inicia com “A sede das doenças …”. A principal obra de Morgagni foi a demonstração de que as diferentes enfermidades se localizam em órgãos distintos, e que assim se explica a grande variedade de sintomas clínicos. Enquanto o sinal clínico remetia à própria doença, o sinal anátomoclínico remete à lesão. O olhar médico vai, desde então, apoiar-se nessa nova experiência, não mais a de um “olho vivo”, mas a de um olho que viu a morte. O próximo grande passo neste campo, deu-o Bichat. Marie François Xavier Bichat (1771-1802) morreu aos 31 anos de idade, depois de trabalhar apenas quatro anos. Sua descoberta principal foi o princípio de decifração do espaço corporal. Em sua obra “Anatomie Générale”, Bichat afirmou: “Durante 20 anos, noite e dia se tomarão notas, ao leito dos doentes, sobre as afecções do coração, dos pulmões e da víscera gástrica e o resultado será apenas confusão nos sintomas, que, a nada se vinculando, oferecerão uma série de fenômenos incoerentes”. Em vista disso, recomenda: “Abram alguns cadáveres: logo verão desaparecer a obscuridade que apenas a observação não pudera dissipar”. Em sua “Teoria dos Tecidos”, Bichat considerava que o organismo era constituído por órgãos, e estes por tecidos, a se associarem entre si da mesma forma que os elementos químicos (oxigênio, carbono, nitrogênio, etc.) se combinam para formar compostos químicos. As propriedades vitais adotam um caráter diferente em cada tecido que, por isso, são afetados de forma diferente. De início, a anatomia patológica tomou aspecto de um fundamento, enfim objetivo, real e indubitável de descrição das doenças. Mas, Bichat fez muito mais do que dar um campo de aplicação objetivo aos métodos de análise, pois transformou a anatomia patológica em um momento essencial do processo do adoecimento. Ele encontrou a doença no próprio corpo; descobriu, na profundidade do corpo, a ordem da superfície, isto é, dos sinais e sintomas. Mas como é possível ajustar a percepção anatômica à leitura dos sintomas? Como poderia um conjunto simultâneo de fenômenos espaciais fundar a coerência de uma série temporal que lhe é, por definição, inteiramente anterior? Uma clínica dos sintomas procura o corpo vivo da doença; a anatomia só oferece o cadáver. Cadáver duplamente enganador, pois aos fenômenos que a morte interrompe acrescentam-se os que ela provoca e deposita nos órgãos em um tempo que lhe é próprio. Bichat resolveu esta 34 questão ao formular o seguinte princípio: “Só existe fato patológico comparado”. A possibilidade de abrir imediatamente os corpos, de diminuir o mais possível o tempo entre o falecimento e a autópsia, permitiu fazer coincidir, ou quase, o último momento do tempo patológico e o primeiro do tempo cadavérico. Assim, os efeitos da decomposição orgânica serão, pouco a pouco, suprimidos, ao menos em sua forma mais exagerada. Além disso, era preciso estar habituado à dissecção dos corpos sadios, para saber decifrar uma doença em um cadáver e, também, comparar os indivíduos que morreram da mesma doença; confrontar enfim o que se vê do órgão alterado com o que se sabe de seu funcionamento normal. Rudolf Ludwig Carl Virchow (1821- 1902) nasceu na Pomerania, um pequeno povoado no noroeste da Alemanha. Simultaneamente a seu trabalho clínico, Virchow iniciou estudos de química e histologia. Em 1849, aos 28 anos de idade, assumiu a primeira cátedra alemã de anatomia patológica. Neste cargo permaneceu por sete anos, a trabalhar nas investigações cuja culminância foi o desenvolvimento do conceito de patologia celular. Entretanto, seus interesses não se limitavam a este campo, pois ele empenhou-se em estudos de epidemiologia e de saúde pública. Virchow reunia estes universos aparentemente distantes para dar sua explicação sobre o processo do adoecimento. Dizia ele: “O que é a doença? A vida em condições anormais. E onde está a doença? Nas células, porque é onde a vida está”. É preciso, portanto, que o olhar médico percorra um caminho que, até então, não lhe havia sido aberto, siga uma via vertical, que vai da superfície sintomática à superfície tissular, uma via que, desde o manifesto, caminha em direção ao oculto. A doença não é mais um feixe de características espalhadas pela superfície do corpo e ligadas entre si por coincidências ou sucessões observáveis, é um conjunto de formas e deformações, figuras, acidentes, elementos destruídosou modificados que se encadeiam uns com os outros, segundo uma geografia que se pode seguir passo a passo. Não é mais uma espécie patológica a ser inserida no corpo, onde é possível; é o próprio corpo a adoecer. A noção de “sede” substitui, definitivamente, a de “classe”. Com relação à prática médica, era normal que a medicina clássica, ao final do século XVIII, deixasse na sombra as técnicas de exame físico (palpação/percussão) que, “artificialmente”, faziam aparecer um sinal onde não havia sintoma. Mas, a partir do momento em que a anatomia patológica recomenda à clínica interrogar o corpo em sua espessura orgânica, e fazer aflorar à superfície o que só se dava em camadas profundas, a idéia de um artifício técnico capaz de surpreender a lesão ganha fundamento científico. Assim, o olhar médico envolve mais do que diz a palavra “olhar”. Encerra, em uma estrutura única, diferentes sentidos. A trindade visão-tato-audição define uma possibilidade perceptiva em que a lesão é trazida à superfície e revelada. Em resumo, a 35 medicina dos órgãos sofredores comporta três momentos: 1º) Determinar qual órgão sofre; 2º) Explicar como um órgão se tornou sofredor; 3º) Indicar o que é preciso fazer para que deixe de sofrer. É curioso contrastar a contribuição de Morgagni, que morreu aos 89 anos de idade, depois de trabalhar 56 anos, e deixou a patologia firmemente estabelecida sobre a base da correlação dos sintomas clínicos com alterações nos órgãos, com a obra de Bichat, que faleceu aos 31 anos de idade e, em apenas quatro anos de trabalho, conseguiu fazer a patologia caminhar dos órgãos para os tecidos. Assim, a medicina deixa de ser um “saber histórico” - a enumeração dos sintomas no tempo – e passa a ser um “saber geográfico”, a se preocupar com a sede e os deslocamentos dos sintomas. Os sinais, agora, não identificam mais a essência da doença, mas o lugar da mesma. O problema é tornar visível, ainda em vida, o que se esconde na profundidade do corpo. Para isso, o olhar clínico vai associar à visão outros sentidos, como o tato e a audição. Se, na “medicina das espécies”, as características individuais de cada paciente deviam ser afastadas, para não disfarçar ou distorcer a essência da doença, na medicina anátomoclínica essas variações são parte integrante da doença em cada corpo. V - A Fisiologia se incorpora à Anatomoclínica Entretanto, se a doença é a lesão de algum elemento da anatomia, o que dizer das doenças sem qualquer achado anatomopatológico? Os médicos da época tentaram várias formas de contornar este obstáculo, desde a simples negação, até as classificações complexas e contraditórias, n a tentativa de justificar o que era injustificável, à luz das concepções utilizadas. Foi François Joseph Victor Broussais (1772-1838) que, em 1816, ao reunir as conclusões de experiências e trabalhos de vários médicos, estabeleceu um esquema causal em que todas as doenças se incluíam. Para Broussais, a doença seria uma reação dos tecidos a uma “causa irritante” e a chamada sede da doença, nada mais do que o ponto do organismo em que esta “causa” se fixou, ponto determinado tanto pela irritabilidade do tecido quanto pela força irritativa do agente. Assim, se apagará a distinção entre distúrbio funcional e doença orgânica, cuja diferença passa a ser apenas o grau de visibilidade aos nossos olhos. A sede não é mais a doença em si, mas o ponto inicial da perturbação fisiológica. Assim, Broussais abriu caminho para a incorporação da fisiologia à medicina anátomoclínica. Com suas concepções neo- hipocráticas, Broussais via no equilíbrio entre o organismo e o seu meio ambiente o segredo da saúde. A origem de todas as doenças residia no excesso, ou na deficiência, de 36 excitação dos diversos tecidos, acima ou abaixo do grau considerado normal. A maior dificuldade de aceitação da chamada “medicina fisiológica”, de Broussais, é que sua fisiologia era exclusivamente especulativa, sem dados concretos que a comprovassem. Esta dificuldade permaneceu, relativamente intacta, até o aparecimento de Claude Bernard (1813-1878). Claude Bernard iniciou seus estudos com os jesuítas, dos quais recebeu educação de caráter mais humanista do que científico. Atraído pela carreira teatral, escreveu uma comédia, que obteve algum sucesso, e um drama em cinco atos, que submeteu à apreciação de famoso crítico de sua época, que o estimulou a continuar os estudos de medicina. Em Paris, sob a orientação de François Magendie, ele aprendeu a técnica de vivissecção. Com base nesta, Bernard criou novos métodos de experimentação e se tornou célebre graças ao extraordinário rigor de suas investigações. Em 1854, ganhou o posto de primeiro professor de Fisiologia Experimental da Sorbonne. Entre suas descobertas mais importantes encontram-se: - (1845): o controle da corrente sangüínea pelo sistema nervoso. Ao seccionar o nervo simpático cervical de um coelho, Claude Bernard verificou que o lado correspondente da cabeça do animal tornara- se mais quente, devido ao relaxamento da constrição dos capilares sangüíneos; - a do transporte do oxigênio pelos glóbulos vermelhos; - a da participação do suco pancreático no processo da digestão de gorduras. Deduziu-o pela observação da ação desse suco sobre a gordura, em um tubo de ensaio e ao aparecimento de um líquido branco no intestino de cobaias, mas abaixo do ponto em que o ducto pancreático desemboca no duodeno; - (1857): a do armazenamento da glicose pelo fígado, sob a forma de glicogênio; Claude Bernard, assim, deu início ao conhecimento do metabolismo dos carbohidratos, que teve conseqüências práticas, por exemplo, no tratamento do diabetes. Primeiro demonstrou que se um cão era alimentado com uma dieta contendo açúcar, aparecia glicose na veia porta e nas veias hepáticas. Porém, quando o animal recebia uma dieta à base de proteínas, não havia glicose na veia porta, mas mantinha-se alta concentração da mesma nas veias hepáticas. Claude Bernard desenvolveu um modo de encarar o fenômeno da doença que se baseava na identidade entre os estados normal e patológico: a concepção de que a diferença entre eles é apenas quantitativa. Assim, se as doenças são explicadas por variações quantitativas, qualquer concepção de patologia deve basear-se em um conhecimento prévio do estado normal. Os fenômenos da doença coincidem, essencialmente, com os fenômenos da saúde, e só diferem dos mesmos pela intensidade. É Claude Bernard quem afirma: “Toda doença tem uma função normal correspondente, da qual é, apenas, uma 37 expressão perturbada, exagerada, diminuída ou anulada. Se não podemos, hoje em dia, explicar todos os fenômenos das doenças, é porque a fisiologia ainda não está bastante adiantada e porque ainda há uma quantidade de funções normais que desconhecemos”. “A saúde e a doença não são dois modos que diferem essencialmente, como talvez tenham pensado os antigos médicos e como ainda pensam alguns. É preciso não fazer da saúde e da doença princípios distintos … Na realidade, entre essas duas maneiras de ser há apenas diferenças de grau: a exageração, a desproporção, a desarmonia dos fenômenos normais constituem o estado doentio”. No século XIX, Claude Bernard procurou construir uma ciência fisiológica, base de uma patologia científica que desse sustentação à terapêutica racional. Claude Bernard formulou, no campo médico, a exigência profunda de uma época que acreditava na onipotência de uma técnica científica. Ele trouxe, para sustentar seu princípio geral de patologia, argumentos controláveis, protocolos de experiências e, sobretudo, métodos de quantificação dos conceitos fisiológicos. Entretanto, rechaçava uma interpretação mecânica e simplista dos processos vitais. Por isso, introduziu o conceito de “meio interno”, para dar conta da constância daquímica interna do corpo e da regulação coordenada de suas várias partes, mecanismos essenciais à saúde. VI – Conclusão A racionalidade científica moderna nasceu e se consolidou em um longo processo, desde o Renascimento até o século XIX. E, durante três séculos enfrentou pelo menos duas outras “razões”: a moralidade racional, de origem religiosa, e a racionalidade mística das “ciências alquímicas”: astrologia, alquimia e magia. A hegemonia do saber anatomofisiopatológico, no campo da medicina, deve ser compreendida dentro do quadro mais amplo da constituição da racionalidade científica moderna. Esse saber constituiu-se sobre os seguintes elementos: - Antropocentrismo: separam-se as concepções de Deus, Homem e Natureza. O Homem passa a ter uma existência objetiva, independente da natureza. A Natureza é desdivinizada, separada do sagrado e do humano, passa a ser objeto de conhecimento, sobretudo com o intuito de ser “controlada”; - Experimentalismo: o método para produção de novos saberes é exploratório, interventor. A racionalidade científica não é um conjunto de verdades, mas um método de produção de verdades. Esta racionalidade está permeada de rupturas dualistas: matéria- espírito, qualidade-quantidade, natureza- homem, objeto-sujeito, instinto-razão. Assim, um saber médico objetivo, sobre doenças localizadas no corpo orgânico, e comprovável experimental e quantitativamente, está perfeitamente 38 integrado ao conjunto do saber científico moderno. A anátomoclínica não é simplesmente a articulação entre duas formas analíticas: de um lado, o olhar clínico, que busca entender o significado dos sintomas; do outro, o olhar anatômico, que busca ler as alterações dos tecidos. Com a síntese proporcionada pela abertura do cadáver, o olhar médico se deslocou de um espaço ideal, pré-clínico, para o espaço real, corporal. Ao estabelecer um caminho entre as dimensões heterogêneas dos sintomas e dos tecidos criou-se um novo espaço: o corpo doente. A doença se localiza no corpo; a lesão de um órgão explica os sintomas. Para diagnosticar a doença, o olhar médico deve penetrar verticalmente no corpo: desde a superfície sintomática até a superfície tissular. A fundação da clínica moderna deve- se à transformação da relação entre o "visível" e o "invisível". A clínica moderna torna visível o que era invisível à medicina clássica. Durante 150 anos, repetiu-se a mesma explicação: a medicina só chegou ao que a fundava, cientificamente, ao contornar, com lentidão e prudência, os obstáculos e preconceitos que impediam a abertura de cadáveres. Esta explicação é historicamente falsa. Morgagni, em meados do século XVIII, não teve dificuldades em fazer autópsias. Desde 1754, a clínica de Viena tinha uma sala de dissecção, assim como a de Pádua, organizada por Tissot. Portanto, não havia nenhuma escassez de cadáveres no século XVIII, nem sepulturas violadas ou missas negras anatômicas. Essa ilusão tem um sentido preciso na história da medicina, pois funcionou como justificativa retrospectiva. Bichat e seus contemporâneos, quarenta anos depois de Morgagni, têm a sensação de “redescobrir” a anatomia patológica. Quarenta anos, o tempo de latência em que se formou o método clínico. Aí está a correta explicação: a clínica, preocupada em estabelecer parentesco entre os sintomas e compreender sua linguagem, era, por princípio, estranha à investigação dos corpos. As causas e as sedes a deixavam indiferente, a clínica era história e não geografia. Anatomia e clínica não têm o mesmo espírito, por mais estranho que hoje possa parecer, agora que a coerência anátomoclínica está estabelecida e enraizada no tempo. E, durante quarenta anos, o pensamento clínico impediu a medicina de ouvir a lição de Morgagni. Referências Bibliográficas FOUCAULT, M. La crisis de la medicina o la crisis de la antimedicina (Conferência ditada no curso de medicina social, realizado em outubro de 1974, no Instituto de Medicina Social da UERJ, Rio de Janeiro, Brasil). Educ med salud, 10 (2), 1976. ___________ . O Nascimento da Clínica . Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977. 38 CANGUILHEM, G. O Normal e o Patológico . Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1978. MACHADO, R. Ciência e Saber: A Trajetória da Arqueologia de Michel Foucault . Rio de Janeiro: Graal, 1981. MARGOTTA, R. The Hamly History of Medicine. London: Reed International Books Ltda., 1996. TAMAYO, P.R. El Concepto de Enfermedad - Su evolución a través de la historia - Tomo I. Guadalajara: Fondo de Cultura Economica, 1988.
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