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O Nascimento da Medicina Moderna 
 
 
As concepções de doença variaram muito ao longo da História. Basta compararmos, por 
exemplo, essas concepções na medicina hipocrática - um desequilíbrio entre os humores – e no 
período anterior a Hipócrates: um produto de forças externas ao homem ou um castigo dos deuses. 
Para nossa compreensão atual, o corpo humano constitui o local de origem e desenvolvimento 
das doenças, o espaço cujas mínimas características a anatomia vê em detalhe. Esta é, 
entretanto, apenas uma das maneiras da medicina situar as doenças, nem a primeira, nem a única. A 
coincidência do “corpo da doença” com o corpo humano é relativamente recente, e evidente apenas 
para o homem moderno. Os espaços de existência da doença e o de sua localização no corpo só 
coincidiram, na experiência médica, na medicina do século XIX com os privilégios concedidos à 
anatomia patológica. 
 
I - A “Medicina Classificatória, ou das Espécies” 
 
Thomas Sydenham (1624-1689) foi a 
figura dominante na medicina clínica do 
século XVII, na Inglaterra, e o iniciador do 
pensamento classificatório. Graças à 
observação de que, por exemplo, no sarampo, 
na sífilis e na gota, o quadro clínico se repetia, 
em diferentes pacientes, em diferentes 
lugares, ele propôs a existência de doenças 
distintas e específicas. Sugeriu também que 
algumas dessas enfermidades se deviam a 
agentes específicos, em luta, contra os 
poderes curativos, naturais, do corpo. 
Nessa época, as doenças eram 
classificadas segundo um modelo botânico, 
que não levava em consideração relações de 
causa e efeito, ou a ordem dos eventos no 
tempo, ou mesmo sua localização no corpo do 
doente. Para classificar as várias “espécies” 
de doença, o critério de análise era a forma, a 
aparência. Ao médico cabia identificar a 
“espécie” e, para fazê-lo, era preciso saber 
separar os sintomas próprios da doença 
daqueles acrescentados pelas características 
individuais do paciente. Ou seja, para 
conhecer a doença, o médico precisava 
“esquecer” o doente. Assim, nesta “medicina 
classificatória” ou “medicina das espécies”, 
ou ainda, “medicina das crises”, o médico é 
um decifrador de doenças, e o doente apenas 
um exemplo, um lugar de manifestação das 
enfermidades. 
Para a medicina do século seguinte (o 
século XVIII), a doença era uma luta entre a 
natureza sadia do indivíduo e o mal que o 
atacava, a contra-natureza. Cabiam ao médico 
o diagnóstico e o prognóstico, pois a 
intervenção terapêutica era mínima. A doença 
aparecia “através” do corpo, no qual o olhar 
médico não tem razões para demorar-se. Para 
a medicina classificatória, a doença atingir um 
órgão não a definia, pois a doença podia ir de 
um ponto de localização a outro, ganhar 
 
 
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outras superfícies corporais, mas permanecer 
idêntica em sua natureza. O espaço do corpo e 
o espaço da doença têm liberdade de se 
deslocar um em relação ao outro. Quem 
deseja conhecer a doença deve subtrair o 
indivíduo. 
Assim, a comunicação do “corpo 
essencial” da doença com o “corpo real” do 
doente não se dá, portanto, através dos pontos 
de localização, nem dos efeitos da duração. É 
a qualidade: o cérebro dos loucos é leve, seco 
e friável, pois a loucura é uma doença viva, 
quente, explosiva; o dos tuberculosos, será 
esgotado e lânguido, na medida em que a 
tuberculose se alinha na classe geral das 
hemorragias. O conjunto qualitativo a 
distinguir a doença deposita-se em um órgão, 
que serve, então, de suporte aos sintomas. A 
doença e o corpo só se comunicam através da 
“qualidade”. 
Quais são os princípios desta 
configuração primária da doença? Segundo os 
médicos do século XVIII, ela se dá em uma 
experiência “histórica”, por oposição ao saber 
“filosófico”. 
Por exemplo, é histórico o conhecimento 
que define a pneumonia por seus quatro 
fenômenos: febre, dificuldade de respirar, 
tosse e dor lateral. Será filosófico o 
conhecimento que põe em questão a origem, o 
princípio e as causas: resfriamento, derrame 
seroso, inflamação da pleura. O histórico 
reúne tudo o que, de fato ou de direito, cedo 
ou tarde, direta ou indiretamente, apresenta-se 
ao olhar. Uma causa que se vê, um sintoma 
que, pouco a pouco, se descobre não são da 
ordem do saber “filosófico”, mas de um saber 
“muito simples”, que “deve preceder todos os 
outros”, e se situa no cotidiano da experiência 
médica. 
Nestas condições, compreende-se que a 
medicina se afaste de uma forma de 
conhecimento “matemático”. Nenhuma 
medida do corpo humano pode, em suas 
particularidades físicas ou matemáticas, dar 
conta de um fenômeno patológico. 
 
II - Mecanicismo e Vitalismo 
 
Duas correntes doutrinárias ligadas ao 
Iluminismo marcaram a Medicina do século 
XVIII, o mecanicismo e o vitalismo, ambas 
com orientações hipocráticas. Estas duas 
correntes vão persistir e, às vezes coexistir e 
disputar a explicação dos diferentes 
fenômenos. Na Universidade de Halle, 
fundada em 1693, dois médicos naturistas 
dividem o ensino e as duas visões de mundo: 
Stahl (1660-1734), vitalista e Hoffmann 
(1660-1742), mecanicista. Ambos tornaram-
se célebres e patronos de suas respectivas 
concepções no campo da terapêutica. 
 Para Stahl, uma alma conservadora é 
responsável pela integridade do organismo, 
que não pode, em absoluto, ser considerado 
como uma soma de peças que se ajustam. Um 
ser vivo é sempre considerado um todo 
indivisível. As leis da mecânica nada 
explicam dos movimentos do organismo, que 
 
 
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se dão através de um agente vital, a alma 
racional, que não é uma força material, mas a 
própria natureza. O elemento mais 
característico do vitalismo é a noção de que o 
dinamismo vital, as transformações e os 
movimentos corporais, têm uma origem 
diferente daquela das leis que regem o 
movimento dos corpos inanimados. Para se 
conhecer e compreender o organismo, é 
necessário escutar a natureza. E a doença é 
um distúrbio dos movimentos vitais, mais do 
que uma agressão externa que ataca o 
organismo. Estes movimentos vitais voltam-
se, espontaneamente, para a cura. Stahl é 
místico, seu vitalismo é animista: a alma e o 
princípio vital não prescindem da idéia de 
Deus. Mais tarde surgirão propostas vitalistas 
não-animistas, isto é, que atribuem 
singularidade ao fenômeno vital, mas não 
recorrem a explicações de cunho religioso. 
Friedrich Hoffmann (1660-1742) é 
mecanicista e se diz também hipocrático. Sua 
confiança na natureza também provém da 
sabedoria divina, que engendrou esta máquina 
tão bem regulada, o corpo vivo. O organismo 
é regido pelo movimento dos humores, 
nascido da contração e dilatação mecânica dos 
órgãos. O corpo é uma máquina hidráulica. A 
força curativa da Natureza consiste, assim, em 
uma operação mecânica, o espasmo que 
contrai os órgãos e redistribui os humores 
desequilibrados. 
Entretanto, tanto Stahl quanto Hoffmann 
preconizam que o melhor meio de se obter a 
saúde é o cuidado de si, a observação do que é 
bom ou nocivo para o próprio organismo, é 
recorrer, o mínimo, a um médico. Cada um 
deve conhecer sua própria natureza e, assim, 
ser o médico de si mesmo. 
 
III - A Medicina dos Sintomas 
 
No início do século XIX, o olhar do 
médico se afasta do “modelo botânico” e se 
aproxima do “modelo químico”. A doença 
passa a ser uma combinação de elementos 
mais simples, os sintomas. Os médicos devem 
aprender a reconhecer os sintomas mais 
importantes de cada doença, que ganham um 
valor de sinal. A “medicina dos sintomas” 
mantém a mesma atitude da “medicina das 
espécies”: ver, identificar e isolar traços 
idênticos e classificá-los. Mas o olhar se 
organiza de uma nova maneira. Agora, há 
uma identificação entre a essência da doença 
e o conjunto de sintomas através dos quais ela 
se manifesta. O sintoma não é mais um 
indicador de doença, é, junto com os demais 
sintomas, a doença. A medicina clássica é, 
portanto, uma medicina classificatória, que se 
elabora segundo o modelo da história natural.Os sintomas são o ser da doença, definir uma 
doença é enumerar seus sintomas. 
Principais características: 
1 - Não existe essência patológica além 
dos sintomas: A coleção de sintomas forma o 
que se chama doença. Os sintomas nada mais 
 
 
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são do que uma verdade inteiramente exposta 
ao olhar; 
2 - A intervenção de um “saber” (do 
médico) transforma o sintoma (do paciente) 
em sinal. O sintoma se torna sinal sob um 
olhar (do médico) que sabe distinguir 
diferenças. A análise e o olhar clínico 
compõem e decompõem, para revelar uma 
ordenação, que é a própria ordem natural. 
Para o bom médico, todos os sintomas podem 
transformar-se em sinais. 
O olhar clínico incorpora também o 
modelo matemático; à medicina importa, 
agora, o saber probabilístico. Cada fato 
isolado é confrontado a um conjunto, toma 
lugar em uma série de acontecimentos, ajuda 
a estabelecer graus de certeza. O olhar clínico 
não é o de um olho intelectual, é um olhar da 
sensibilidade concreta, que vai de corpo em 
corpo. Para a clínica, toda verdade é verdade 
sensível. O “golpe de vista” do médico, o 
“olho clínico”, que muitas vezes vence a mais 
vasta erudição e a mais sólida instrução, é o 
resultado de freqüente, metódico, e justo 
exercício dos sentidos. Nesta nova imagem 
que dá de si mesma, a experiência clínica se 
prepara para explorar um novo espaço: o 
espaço palpável do corpo. 
Esta medicina “clínica”, aprendida pela 
observação do doente à beira do leito, pela 
repetição dos fenômenos nas epidemias, 
concretizada em um “conjunto de sintomas” e 
em uma “estatística de casos”, aliar-se-á, 
durante o século XIX, à anatomia. Então, 
pouco a pouco, entrará em regressão, para 
desaparecer diante da medicina dos órgãos, da 
sede e das causas, diante de uma clínica 
inteiramente ordenada pela anatomia 
patológica, diante da base da medicina 
contemporânea.
 
IV - A Medicina anátomoclínica 
 
Até o século XVIII, era apenas através 
dos sintomas visíveis que se podia identificar 
o “invisível-Ser-da-doença”. No século XIX, 
este processo inverteu-se. Partindo-se dos 
cadáveres para conhecer os vivos, descobriu-
se que o invisível durante a vida pode ser 
visível após a morte. A doença assumiu, 
então, o caráter de um conjunto de fenômenos 
reais, a ocorrerem no próprio corpo, a torná-lo 
doente. 
No século XVII, o médico suíço 
Théophile Bonet (1620-1689) reuniu um 
material muito vasto, próprio e alheio, que 
publicou nos três volumes do livro 
“Sepulchretum” (1679), em que mostrou a 
utilidade de cadáveres para a prática clínica. 
Quase cem anos depois, Giovanni Battista 
Morgagni (1682-1771), ao publicar “De 
sedibus et causis morborum per anatomen 
indagatis” (Veneza, 1761), firmou 
definitivamente a anatomia patológica como 
disciplina médica indispensável para a 
compreensão da doença. 
Morgagni morreu aos 89 anos de idade, 
tendo sido professor de anatomia em Pádua, 
Itália, durante 56 anos. Durante todo esse 
 
 
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tempo, trabalhou diariamente, dissecou, fez 
experimentos, viu pacientes, leu e escreveu. 
Morgagni inaugurou o “conceito anatômico” 
de prática médica, e é, hoje, considerado o 
“Pai da Patologia”. Quando a maioria dos 
médicos insistia em perguntar “o que é a 
doença?”, Morgagni se preocupava em saber 
“onde está a doença?” (“Ubi est morbus?”). 
Ou seja, Morgagni investigou as enfermidades 
como um anatomista e, assim, não considerou 
a natureza da doença como seu principal 
problema. Não casualmente, o título de sua 
grande obra se inicia com “A sede das 
doenças …”. 
A principal obra de Morgagni foi a 
demonstração de que as diferentes 
enfermidades se localizam em órgãos 
distintos, e que assim se explica a grande 
variedade de sintomas clínicos. Enquanto o 
sinal clínico remetia à própria doença, o sinal 
anátomoclínico remete à lesão. O olhar 
médico vai, desde então, apoiar-se nessa nova 
experiência, não mais a de um “olho vivo”, 
mas a de um olho que viu a morte. 
O próximo grande passo neste campo, 
deu-o Bichat. Marie François Xavier Bichat 
(1771-1802) morreu aos 31 anos de idade, 
depois de trabalhar apenas quatro anos. Sua 
descoberta principal foi o princípio de 
decifração do espaço corporal. Em sua obra 
“Anatomie Générale”, Bichat afirmou: 
“Durante 20 anos, noite e dia se tomarão 
notas, ao leito dos doentes, sobre as afecções 
do coração, dos pulmões e da víscera gástrica 
e o resultado será apenas confusão nos 
sintomas, que, a nada se vinculando, 
oferecerão uma série de fenômenos 
incoerentes”. Em vista disso, recomenda: 
“Abram alguns cadáveres: logo verão 
desaparecer a obscuridade que apenas a 
observação não pudera dissipar”. 
Em sua “Teoria dos Tecidos”, Bichat 
considerava que o organismo era constituído 
por órgãos, e estes por tecidos, a se 
associarem entre si da mesma forma que os 
elementos químicos (oxigênio, carbono, 
nitrogênio, etc.) se combinam para formar 
compostos químicos. As propriedades vitais 
adotam um caráter diferente em cada tecido 
que, por isso, são afetados de forma diferente. 
De início, a anatomia patológica tomou 
aspecto de um fundamento, enfim objetivo, 
real e indubitável de descrição das doenças. 
Mas, Bichat fez muito mais do que dar um 
campo de aplicação objetivo aos métodos de 
análise, pois transformou a anatomia 
patológica em um momento essencial do 
processo do adoecimento. Ele encontrou a 
doença no próprio corpo; descobriu, na 
profundidade do corpo, a ordem da superfície, 
isto é, dos sinais e sintomas. 
Mas como é possível ajustar a percepção 
anatômica à leitura dos sintomas? Como 
poderia um conjunto simultâneo de 
fenômenos espaciais fundar a coerência de 
uma série temporal que lhe é, por definição, 
inteiramente anterior? Uma clínica dos 
sintomas procura o corpo vivo da doença; a 
anatomia só oferece o cadáver. Cadáver 
duplamente enganador, pois aos fenômenos 
que a morte interrompe acrescentam-se os que 
ela provoca e deposita nos órgãos em um 
tempo que lhe é próprio. Bichat resolveu esta 
 
 
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questão ao formular o seguinte princípio: “Só 
existe fato patológico comparado”. 
A possibilidade de abrir imediatamente 
os corpos, de diminuir o mais possível o 
tempo entre o falecimento e a autópsia, 
permitiu fazer coincidir, ou quase, o último 
momento do tempo patológico e o primeiro 
do tempo cadavérico. Assim, os efeitos da 
decomposição orgânica serão, pouco a pouco, 
suprimidos, ao menos em sua forma mais 
exagerada. Além disso, era preciso estar 
habituado à dissecção dos corpos sadios, para 
saber decifrar uma doença em um cadáver e, 
também, comparar os indivíduos que 
morreram da mesma doença; confrontar enfim 
o que se vê do órgão alterado com o que se 
sabe de seu funcionamento normal. 
Rudolf Ludwig Carl Virchow (1821-
1902) nasceu na Pomerania, um pequeno 
povoado no noroeste da Alemanha. 
Simultaneamente a seu trabalho clínico, 
Virchow iniciou estudos de química e 
histologia. Em 1849, aos 28 anos de idade, 
assumiu a primeira cátedra alemã de anatomia 
patológica. Neste cargo permaneceu por sete 
anos, a trabalhar nas investigações cuja 
culminância foi o desenvolvimento do 
conceito de patologia celular. Entretanto, seus 
interesses não se limitavam a este campo, pois 
ele empenhou-se em estudos de 
epidemiologia e de saúde pública. Virchow 
reunia estes universos aparentemente distantes 
para dar sua explicação sobre o processo do 
adoecimento. Dizia ele: “O que é a doença? A 
vida em condições anormais. E onde está a 
doença? Nas células, porque é onde a vida 
está”. 
É preciso, portanto, que o olhar 
médico percorra um caminho que, até então, 
não lhe havia sido aberto, siga uma via 
vertical, que vai da superfície sintomática à 
superfície tissular, uma via que, desde o 
manifesto, caminha em direção ao oculto. A 
doença não é mais um feixe de características 
espalhadas pela superfície do corpo e ligadas 
entre si por coincidências ou sucessões 
observáveis, é um conjunto de formas e 
deformações, figuras, acidentes, elementos 
destruídosou modificados que se encadeiam 
uns com os outros, segundo uma geografia 
que se pode seguir passo a passo. Não é mais 
uma espécie patológica a ser inserida no 
corpo, onde é possível; é o próprio corpo a 
adoecer. A noção de “sede” substitui, 
definitivamente, a de “classe”. 
Com relação à prática médica, era 
normal que a medicina clássica, ao final do 
século XVIII, deixasse na sombra as técnicas 
de exame físico (palpação/percussão) que, 
“artificialmente”, faziam aparecer um sinal 
onde não havia sintoma. Mas, a partir do 
momento em que a anatomia patológica 
recomenda à clínica interrogar o corpo em sua 
espessura orgânica, e fazer aflorar à superfície 
o que só se dava em camadas profundas, a 
idéia de um artifício técnico capaz de 
surpreender a lesão ganha fundamento 
científico. Assim, o olhar médico envolve 
mais do que diz a palavra “olhar”. Encerra, 
em uma estrutura única, diferentes sentidos. A 
trindade visão-tato-audição define uma 
possibilidade perceptiva em que a lesão é 
trazida à superfície e revelada. Em resumo, a 
 
 
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medicina dos órgãos sofredores comporta três 
momentos: 
1º) Determinar qual órgão sofre; 
2º) Explicar como um órgão se tornou 
sofredor; 
3º) Indicar o que é preciso fazer para 
que deixe de sofrer. 
É curioso contrastar a contribuição de 
Morgagni, que morreu aos 89 anos de idade, 
depois de trabalhar 56 anos, e deixou a 
patologia firmemente estabelecida sobre a 
base da correlação dos sintomas clínicos com 
alterações nos órgãos, com a obra de Bichat, 
que faleceu aos 31 anos de idade e, em apenas 
quatro anos de trabalho, conseguiu fazer a 
patologia caminhar dos órgãos para os 
tecidos. 
Assim, a medicina deixa de ser um 
“saber histórico” - a enumeração dos sintomas 
no tempo – e passa a ser um “saber 
geográfico”, a se preocupar com a sede e os 
deslocamentos dos sintomas. Os sinais, agora, 
não identificam mais a essência da doença, 
mas o lugar da mesma. O problema é tornar 
visível, ainda em vida, o que se esconde na 
profundidade do corpo. Para isso, o olhar 
clínico vai associar à visão outros sentidos, 
como o tato e a audição. Se, na “medicina das 
espécies”, as características individuais de 
cada paciente deviam ser afastadas, para não 
disfarçar ou distorcer a essência da doença, na 
medicina anátomoclínica essas variações são 
parte integrante da doença em cada corpo. 
 
V - A Fisiologia se incorpora à Anatomoclínica 
 
Entretanto, se a doença é a lesão de 
algum elemento da anatomia, o que dizer das 
doenças sem qualquer achado 
anatomopatológico? Os médicos da época 
tentaram várias formas de contornar este 
obstáculo, desde a simples negação, até as 
classificações complexas e contraditórias, n a 
tentativa de justificar o que era injustificável, 
à luz das concepções utilizadas. 
Foi François Joseph Victor Broussais 
(1772-1838) que, em 1816, ao reunir as 
conclusões de experiências e trabalhos de 
vários médicos, estabeleceu um esquema 
causal em que todas as doenças se incluíam. 
Para Broussais, a doença seria uma reação dos 
tecidos a uma “causa irritante” e a chamada 
sede da doença, nada mais do que o ponto do 
organismo em que esta “causa” se fixou, 
ponto determinado tanto pela irritabilidade do 
tecido quanto pela força irritativa do agente. 
Assim, se apagará a distinção entre distúrbio 
funcional e doença orgânica, cuja diferença 
passa a ser apenas o grau de visibilidade aos 
nossos olhos. A sede não é mais a doença em 
si, mas o ponto inicial da perturbação 
fisiológica. Assim, Broussais abriu caminho 
para a incorporação da fisiologia à medicina 
anátomoclínica. Com suas concepções neo-
hipocráticas, Broussais via no equilíbrio entre 
o organismo e o seu meio ambiente o segredo 
da saúde. A origem de todas as doenças 
residia no excesso, ou na deficiência, de 
 
 
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excitação dos diversos tecidos, acima ou 
abaixo do grau considerado normal. A maior 
dificuldade de aceitação da chamada 
“medicina fisiológica”, de Broussais, é que 
sua fisiologia era exclusivamente 
especulativa, sem dados concretos que a 
comprovassem. 
Esta dificuldade permaneceu, 
relativamente intacta, até o aparecimento de 
Claude Bernard (1813-1878). Claude Bernard 
iniciou seus estudos com os jesuítas, dos quais 
recebeu educação de caráter mais humanista 
do que científico. Atraído pela carreira teatral, 
escreveu uma comédia, que obteve algum 
sucesso, e um drama em cinco atos, que 
submeteu à apreciação de famoso crítico de 
sua época, que o estimulou a continuar os 
estudos de medicina. 
Em Paris, sob a orientação de François 
Magendie, ele aprendeu a técnica de 
vivissecção. Com base nesta, Bernard criou 
novos métodos de experimentação e se tornou 
célebre graças ao extraordinário rigor de suas 
investigações. Em 1854, ganhou o posto de 
primeiro professor de Fisiologia Experimental 
da Sorbonne. Entre suas descobertas mais 
importantes encontram-se: 
- (1845): o controle da corrente 
sangüínea pelo sistema nervoso. Ao seccionar 
o nervo simpático cervical de um coelho, 
Claude Bernard verificou que o lado 
correspondente da cabeça do animal tornara-
se mais quente, devido ao relaxamento da 
constrição dos capilares sangüíneos; 
- a do transporte do oxigênio pelos 
glóbulos vermelhos; 
- a da participação do suco pancreático 
no processo da digestão de gorduras. 
Deduziu-o pela observação da ação desse 
suco sobre a gordura, em um tubo de ensaio e 
ao aparecimento de um líquido branco no 
intestino de cobaias, mas abaixo do ponto em 
que o ducto pancreático desemboca no 
duodeno; 
- (1857): a do armazenamento da glicose 
pelo fígado, sob a forma de glicogênio; 
Claude Bernard, assim, deu início ao 
conhecimento do metabolismo dos 
carbohidratos, que teve conseqüências 
práticas, por exemplo, no tratamento do 
diabetes. Primeiro demonstrou que se um cão 
era alimentado com uma dieta contendo 
açúcar, aparecia glicose na veia porta e nas 
veias hepáticas. Porém, quando o animal 
recebia uma dieta à base de proteínas, não 
havia glicose na veia porta, mas mantinha-se 
alta concentração da mesma nas veias 
hepáticas. 
Claude Bernard desenvolveu um modo 
de encarar o fenômeno da doença que se 
baseava na identidade entre os estados normal 
e patológico: a concepção de que a diferença 
entre eles é apenas quantitativa. Assim, se as 
doenças são explicadas por variações 
quantitativas, qualquer concepção de 
patologia deve basear-se em um 
conhecimento prévio do estado normal. Os 
fenômenos da doença coincidem, 
essencialmente, com os fenômenos da saúde, 
e só diferem dos mesmos pela intensidade. 
É Claude Bernard quem afirma: “Toda 
doença tem uma função normal 
correspondente, da qual é, apenas, uma 
 
 
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expressão perturbada, exagerada, diminuída 
ou anulada. Se não podemos, hoje em dia, 
explicar todos os fenômenos das doenças, é 
porque a fisiologia ainda não está bastante 
adiantada e porque ainda há uma quantidade 
de funções normais que desconhecemos”. 
“A saúde e a doença não são dois modos 
que diferem essencialmente, como talvez 
tenham pensado os antigos médicos e como 
ainda pensam alguns. É preciso não fazer da 
saúde e da doença princípios distintos … Na 
realidade, entre essas duas maneiras de ser há 
apenas diferenças de grau: a exageração, a 
desproporção, a desarmonia dos fenômenos 
normais constituem o estado doentio”. 
No século XIX, Claude Bernard 
procurou construir uma ciência fisiológica, 
base de uma patologia científica que desse 
sustentação à terapêutica racional. Claude 
Bernard formulou, no campo médico, a 
exigência profunda de uma época que 
acreditava na onipotência de uma técnica 
científica. Ele trouxe, para sustentar seu 
princípio geral de patologia, argumentos 
controláveis, protocolos de experiências e, 
sobretudo, métodos de quantificação dos 
conceitos fisiológicos. Entretanto, rechaçava 
uma interpretação mecânica e simplista dos 
processos vitais. Por isso, introduziu o 
conceito de “meio interno”, para dar conta da 
constância daquímica interna do corpo e da 
regulação coordenada de suas várias partes, 
mecanismos essenciais à saúde. 
 
VI – Conclusão 
 
A racionalidade científica moderna 
nasceu e se consolidou em um longo 
processo, desde o Renascimento até o século 
XIX. E, durante três séculos enfrentou pelo 
menos duas outras “razões”: a moralidade 
racional, de origem religiosa, e a 
racionalidade mística das “ciências 
alquímicas”: astrologia, alquimia e magia. A 
hegemonia do saber anatomofisiopatológico, 
no campo da medicina, deve ser 
compreendida dentro do quadro mais amplo 
da constituição da racionalidade científica 
moderna. 
Esse saber constituiu-se sobre os 
seguintes elementos: 
- Antropocentrismo: separam-se as 
concepções de Deus, Homem e Natureza. O 
Homem passa a ter uma existência objetiva, 
independente da natureza. A Natureza é 
desdivinizada, separada do sagrado e do 
humano, passa a ser objeto de conhecimento, 
sobretudo com o intuito de ser “controlada”; 
- Experimentalismo: o método para 
produção de novos saberes é exploratório, 
interventor. A racionalidade científica não é 
um conjunto de verdades, mas um método de 
produção de verdades. Esta racionalidade está 
permeada de rupturas dualistas: matéria-
espírito, qualidade-quantidade, natureza-
homem, objeto-sujeito, instinto-razão. 
Assim, um saber médico objetivo, sobre 
doenças localizadas no corpo orgânico, e 
comprovável experimental e 
quantitativamente, está perfeitamente 
 
 
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integrado ao conjunto do saber científico 
moderno. 
A anátomoclínica não é simplesmente a 
articulação entre duas formas analíticas: de 
um lado, o olhar clínico, que busca entender o 
significado dos sintomas; do outro, o olhar 
anatômico, que busca ler as alterações dos 
tecidos. Com a síntese proporcionada pela 
abertura do cadáver, o olhar médico se 
deslocou de um espaço ideal, pré-clínico, para 
o espaço real, corporal. Ao estabelecer um 
caminho entre as dimensões heterogêneas dos 
sintomas e dos tecidos criou-se um novo 
espaço: o corpo doente. A doença se localiza 
no corpo; a lesão de um órgão explica os 
sintomas. Para diagnosticar a doença, o olhar 
médico deve penetrar verticalmente no corpo: 
desde a superfície sintomática até a superfície 
tissular. A fundação da clínica moderna deve-
se à transformação da relação entre o "visível" 
e o "invisível". A clínica moderna torna 
visível o que era invisível à medicina clássica. 
Durante 150 anos, repetiu-se a 
mesma explicação: a medicina só chegou ao 
que a fundava, cientificamente, ao contornar, 
com lentidão e prudência, os obstáculos e 
preconceitos que impediam a abertura de 
cadáveres. Esta explicação é historicamente 
falsa. Morgagni, em meados do século XVIII, 
não teve dificuldades em fazer autópsias. 
Desde 1754, a clínica de Viena tinha uma sala 
de dissecção, assim como a de Pádua, 
organizada por Tissot. Portanto, não havia 
nenhuma escassez de cadáveres no século 
XVIII, nem sepulturas violadas ou missas 
negras anatômicas. Essa ilusão tem um 
sentido preciso na história da medicina, pois 
funcionou como justificativa retrospectiva. 
Bichat e seus contemporâneos, quarenta 
anos depois de Morgagni, têm a sensação de 
“redescobrir” a anatomia patológica. Quarenta 
anos, o tempo de latência em que se formou o 
método clínico. Aí está a correta explicação: a 
clínica, preocupada em estabelecer parentesco 
entre os sintomas e compreender sua 
linguagem, era, por princípio, estranha à 
investigação dos corpos. As causas e as sedes 
a deixavam indiferente, a clínica era história e 
não geografia. 
Anatomia e clínica não têm o mesmo 
espírito, por mais estranho que hoje possa 
parecer, agora que a coerência anátomoclínica 
está estabelecida e enraizada no tempo. E, 
durante quarenta anos, o pensamento clínico 
impediu a medicina de ouvir a lição de 
Morgagni.
 
 
Referências Bibliográficas 
 
FOUCAULT, M. La crisis de la medicina o la crisis de la antimedicina (Conferência ditada no curso 
de medicina social, realizado em outubro de 1974, no Instituto de Medicina Social da UERJ, Rio 
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MACHADO, R. Ciência e Saber: A Trajetória da Arqueologia de Michel Foucault . Rio de Janeiro: 
Graal, 1981. 
 
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TAMAYO, P.R. El Concepto de Enfermedad - Su evolución a través de la historia - Tomo I. 
Guadalajara: Fondo de Cultura Economica, 1988.

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