Prévia do material em texto
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA SOCIOLOGIA JURÍDICA - T03 - PROFª CLAUDIA NOGUEIRA ALUNOS: JEIEL BARBOSA, BÁRBARA GUIMARÃES, CAROLINA ARAÚJO, ÍTALO SANTOS FILME: QUE HORAS ELA VOLTA? (2015) - ANÁLISE CRÍTICA EM RELAÇÃO AOS TEXTOS “RACISMO ESTRUTURAL - SILVIO ALMEIDA” E “RAÍZES DA DESIGUALDADE SOCIAL NA CULTURA POLÍTICA BRASILEIRA - TEREZA SALES” INTRODUÇÃO “Que horas ela volta?” é um filme produzido no ano de 2015 que narra a história de Val, uma mulher pernambucana que se mudou para São Paulo, com a expectativa de garantir melhoria de vida para si e para sua filha Jéssica, que é deixada em sua cidade natal para que Val possa trabalhar. A protagonista, se torna empregada doméstica ao chegar em São Paulo e trabalha por muitos anos na casa dos mesmos patrões, até que Jéssica vai morar com ela para prestar vestibular. A vida de Val se torna mais turbulenta, pois ao chegar em São Paulo, sua filha se instala na casa dos patrões junto com a mãe e não concorda com o tratamento subalterno, mesmo que de modo implícito, que os patrões proferem à sua mãe. O filme retrata de forma clara a relação patrão versus empregados, além de relatar a segregação que há entre essas duas classes, que possuem diferenças de privilégios tão discrepantes. Por meio do filme, em conjunto com as obras de Silvio Almeida e Tereza Sales, o presente trabalho irá abordar questões, como desigualdade social e racismo, que são a base das relações de dominação da sociedade brasileira. RACISMO ESTRUTURAL - SILVIO ALMEIDA A princípio, é necessário traçar algumas perspectivas básicas sobre as temáticas que vão envolver a discussão crítica e analítica no decorrer do texto. Primeiramente, cabe ressaltar que o autor Silvio Almeida, na obra Racismo Estrutural, versa sobre os principais conceitos norteadores da pauta racial. Buscando analisar o conceito de raça e suas peculiaridades é possível entender que apesar dos diversos significados, há uma abordagem antropológica-social. Tal narrativa é construída pensando nos primórdios da revolução francesa e seus aspectos iluministas que ao longo da história desencadeiam uma política liberal e civilizadora, sendo essa, razão pela qual podemos entender como esse conceito surge. Ademais, tal realidade filosófica, oriunda na Europa, não se espalhou pelo mundo tão facilmente, sem que, antes, não houvessem pretensões desiguais, apesar do discurso fascinante de liberdade, o autor aborda a Revolução Haitiana como um marco representativo da revolta dos povos nativos para com o colonialismo liberal e suas facetas que se materializam até os dias de hoje na nossa sociedade. Em um paralelo, é possível notar que a empregada doméstica, Val, também é vítima do sistema que vem torturando latino-americanos até então, tendo em vista a promessa de uma democracia justa e liberal, que para se fazer cumprir, é necessário seu deslocamento geográfico para uma grande metrópole, deixando família e filha para trás em nome de um futuro de um sucesso, que nem sempre alcança a todos. É bem verdade que nessa trajetória a empregada doméstica lida e enfrenta fatores desencadeadores do racismo estrutural, principalmente, por se encaixar na classe econômica mais baixa, que possui altos índices de população negra. Tais conceitos são abordados pelo autor que busca fazer a distinção clara entre preconceito, sendo esse os “juízos baseados em estereótipos", a discriminação racial, sendo “o tratamento diferenciado a membros do mesmo grupo” e o racismo que trás consigo cargas materiais da discriminação racial. Em sua obra, Silvio Almeida aborda três concepções de racismo, sendo elas: a concepção individual, a concepção institucional e por fim, a concepção estrutural. Entretanto, as duas últimas são de maior ênfase para essa análise. Sendo assim, o racismo estrutural será o cerne da discussão para entendermos como ele influencia a manutenção das desigualdades sociais e econômicas do Brasil. A priori, a partir da abolição da escravidão, foram criadas leis que vetavam direitos cidadãos e fundamentais às pessoas negras. Além disso, a Lei de Obtenção de Propriedade e de Voto, por exemplo, eram privilégios de senhores brancos detentores de latifúndios, nessa temática, a abolição da escravidão apenas retirou os povos escravizados do domínio direto de escravocratas, mas na prática não desenvolveu políticas de amparo, como medidas de apoio econômico e social. Ao retomarmos o filme “Que horas ela volta?”, Val, que é empregada doméstica em uma casa de patrões abastados financeiramente, vive em uma tácita situação de segregação social, pois os patrões ao referir-se a ela como uma pessoa da família “apazigua” todo o contexto excludente envolto na relação. Quando sua filha, Jéssica, chega de Pernambuco para morar com ela, consegue ver claramente a relação que há entre a mãe e os empregadores e não fica satisfeita com tal situação. Por meio, disso, é latente a presença da exclusão institucional, pois, no âmbito de trabalho, Val não pode usufruir dos mesmo privilégios e dependências dos patrões, como há também a presença da segregação estrutural, pois a protagonista foi ensinada que empregada doméstica deve aceitar a situação na qual está inserida e que, jamais poderá desfrutar de benefícios como os dos seus patrões. Dessa forma, de acordo Sílvio Almeida, a estrutura é restritora, quando visa a manutenção de privilégios a uma pequena minoria da sociedade. Em contrapartida, o sonho de uma vida melhor, como é almejado por Val, ao sair de sua cidade de origem, é uma grande utopia para muitos, pois o sistema ordenador da sociedade desenvolve políticas de exclusão, segregação e preconceitos. O filme retrata a história de vários brasileiros, que se deslocam para cidades tão distantes em busca de mudança, como nordestinos e nortistas. Entretanto, as instituições que mantêm o poder acerca das relações sociais precisam manter essa estrutura subalternizante para que o seu monopólio não desabe. Sendo assim, no momento em que Jéssica questiona Val acerca do tratamento que ela obtém de seus patrões assim como, compartilha dos mesmos privilégios que eles, a patroa de Val se sente ameaçada com as atitudes da jovem. Esse é o contexto da realidade brasileira, assim como a Revolução do Haiti gerou assombro para os brancos privilegiados das metrópoles europeias, a elite brasileira tem o mesmo sentimento ao ver populações marginalizadas reivindicar seus direitos de cidadania e igualdade. Nesse cenário, as elites potencializam seus discursos hegemonizadores como forma de manter seus privilégios. Por meio disso, as desigualdades sociais e econômicas são formas, mesmo que veladas, da herança escravocrata brasileira. Desse modo, de nada adianta retirar pessoas do domínio de senhores e colocá-las sob a tutela de um Estado opressor, que visa a manutenção de um sistema segregador. RAÍZES DA DESIGUALDADE SOCIAL NA CULTURA POLÍTICA BRASILEIRA - TEREZA SALES Em sua obra “Raízes da desigualdade social na cultura política brasileira”, Tereza Sales pauta o fato de que a formação da sociedade brasileira foi marcada por elementos que caracterizam a desigualdade social no cerne das relações de poder. Historicamente, as raízes latentes do sistema colonial apresentaram em seu seio, lógicas latifundiárias, escravagistas, patriarcais, clientelistas e patrimonialistas. Tais pontos se traduzem em concentrações fundiárias aos mandos do senhorio, modificando-se do Senhor da Casa Grande para Coronel. Isso, até hoje, representa uma falsa mudança, pois esse poder permanece centralizado nos mesmos pares, através da manutenção de privilégios, muitas vezes hereditários, construindo narrativas de méritos ilusórios. Nesse sentido, o escravagismo fomentou os vínculos exploratórios e subalternizantes, se estruturando por papéis de mando e subserviência enquanto base da história brasileira. Isso se tornou mais evidente durante a abolição, que foi observada enquanto movimento oportuno para beneficiar osinteresses republicanos, em detrimento das reivindicações negras por direitos anteriormente vilipendiados e que seguiram a mesma dinâmica. Paralelamente, na obra cinematográfica analisada, essa perspectiva é notória ao observar as relações assimétricas entre Val e a família, estabelecidas respectivamente dentre as atribuições de empregada doméstica e patrões, alicerçadas pela sujeição, o que remonta o contexto colonial supracitado. Dentre os conceitos que a autora cunha, a cidadania concedida representa um falso consentimento de direitos cidadãos a uma parcela pobre e livre da população, oriunda do processo abolicionista. Esse paradigma implementou meios de coerção em forma de favores, que ameaçam os despossuídos, e diante das necessidades, esses sujeitos se veem obrigados a realizar os mandos dos quais são forçados. No filme, essa concepção fica evidente com a “consideração” da empregada doméstica como sendo parte da “família”, porém as condições oferecidas a ela são inferiores e marcadas por um tratamento desigual. Além disso, há uma abdicação constante da sua própria vida para servir aos caprichos dos patrões. Ademais, a cultura política da dádiva se constrói a partir da alienação no imaginário popular de que direitos básicos seriam favores, sob a ideia de que os indivíduos devem seguir um padrão comportamental estabelecido pela figura dominante, o que fomenta posições desiguais. Em alusão ao filme, a empregada doméstica tem uma noção de que seus patrões são benfeitores por proporcionar o básico para o exercício do seu trabalho laboral, porém essas demandas, na verdade, são direitos mínimos. Não obstante, a protagonista, que aqui representa uma continuidade do trabalhador livre e pobre, não tem noção dessa condição, pelo fato de não ter acesso a essa “seguridade” em outros locais, senão dentro da casa dos patrões. Em última análise, o fetiche da igualdade social seria o juízo fictício de uma suposta conciliação de classes, que visa inibir reivindicações daqueles que são inferiorizados. Em contraponto, a realidade destoa dessa concepção, o que é demarcado no filme à medida que Jéssica, filha da empregada doméstica, passa a questionar os tratamentos desiguais, se entendendo enquanto igual. Descortina-se as relações que se dizem afetuosas, quando na verdade, são de dominação. Tal ponto entra em destaque, no momento em que Jéssica é aprovada no vestibular e o filho dos patrões não atinge a mesma conquista, o que causa um incômodo, porque isso não representa o curso daquilo que eles acreditam que seja natural, ou seja, pessoas desfavorecidas economicamente estando no papel de subalternas e não passíveis à ascensão social.