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1 MARIA EMÍLIA MELO TAMANINI ZANQUETTA A ABORDAGEM BILÍNGÜE E O DESENVOLVIMENTO COGNITIVO DOS SURDOS: UMA ANÁLISE PSICOGENÉTICA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação para a Ciência e o Ensino de Matemática da Universidade Estadual de Maringá, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação para a Ciência e o Ensino de Matemática. Orientadora: Profª Drª Clélia Maria Ignatius Nogueira Co-orientadora: Profª Drª Regina Maria Pavanello MARINGÁ 2006 2 MARIA EMÍLIA MELO TAMANINI ZANQUETTA A ABORDAGEM BILÍNGÜE E O DESENVOLVIMENTO COGNITIVO DOS SURDOS: UMA ANÁLISE PSICOGENÉTICA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação para a Ciência e o Ensino de Matemática da Universidade Estadual de Maringá, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação para a Ciência e o Ensino de Matemática. Aprovado em BANCA EXAMINADORA Profª. Drª. Clélia Maria Ignatius Nogueira Universidade Estadual de Maringá - UEM Prof. Dr. Adrian Oscar Dongo Montoya Universidade Estadual Paulista - UNESP Prof. Dr. Luciano Gonsalves Costa Universidade Estadual de Maringá - UEM 3 À mãe-professora-pesquisadora, por acreditar no meu trabalho, compartilhando comigo mais esta caminhada na educação de surdos. Aos meus pais, Juliano e Madalena, pelo incentivo. Aos surdos protagonistas desta história. 4 AGRADECIMENTOS É tão bom poder agradecer às pessoas que comigo compartilharam na construção do mestrado, mas considero uma tarefa difícil, pois posso esquecer alguém. O primeiro agradecimento a Deus, por ter direcionado os passos em toda a minha caminhada. À orientadora, Drª Clélia Maria Ignatius Nogueira, um agradecimento especial, primeiramente pela mestra que é, deixando marcas na minha vida pessoal e profissional, e pela maneira de conduzir esta orientação, compartilhando comigo de um ideal para a educação de surdos. Aos professores Dr. Adrian Oscar Dongo Montoya e Dr. Luciano Gonsalves Costa, pelas contribuições e sugestões valiosas por ocasião do Exame de Qualificação. Pai e mãe, o meu muito obrigada; vocês souberam mostrar o caminho da força interior e da persistência para alcançar meus objetivos. Ao Luís, companheiro de todas as horas, pois soube ser sempre importante em minha vida. À filhinha Maria Luísa, perdão pela ausência nesses dois primeiros anos da sua vida; mas foi também por você que realizei esta caminhada. Aos irmãos Júlio e Carlos e suas famílias, pelo apoio e solidariedade. Aos adolescentes surdos, em especial aos participantes desta pesquisa e suas famílias, obrigada pela contribuição fundamental na realização desta dissertação. Às professoras Edna de Lourdes Machado, Marta Belinni e Regine Maria Pavanello, pela atenção e boa vontade oferecida. 5 Aos professores do PCM, que me ajudaram a pensar novas maneiras de olhar a Educação. Aos meus colegas de turma, em especial a Magda, Fábio e Lucilene, que, com seu companheirismo, compartilharam comigo os melhores e piores momentos desta caminhada. À Vânia, secretária do programa do PCM, que, com sua grande disposição, sempre facilitou nossa vida de aluno. A todos da ANPACIN, que são tão especiais na minha formação profissional: Yara, Ana Dalva, Mari, Alexandra, Luzia, todos os 40 professores, os 5 profissionais surdos; os 118 alunos; as 2 fonoaudiólogas, os 2 secretários e os 5 profissionais do serviço geral; a vocês meu muito obrigada pela acolhida como pesquisadora e o auxilio na realização deste trabalho. Aos meus amigos, em especial Maria José, Maria das Graças, Deborah, Patrícia, Neusa, Sandra, Ana, Elisângela, Alice, Gislaine e Marcos: cada um, a seu modo, soube se fazer presentes em horas importantes. Ao casal de professores Carla e Valdeni, pelo exemplo profissional e incentivo. Ao meu grupo de estudo de educação matemática, GIEPEM, por ter proporcionado o crescimento profissional. 6 RESUMO Com base na teoria piagetiana, este trabalho objetivou investigar o desenvolvimento cognitivo dos adolescentes surdos educados numa abordagem bilíngüe e comparar os resultados com os de uma outra pesquisa realizada em 1996 com surdos educados numa abordagem oralista, cujos os resultados apontaram uma defasagem cognitiva de cerca de 2 anos em relação aos ouvintes de mesma faixa etária (12 a 14 anos). Para a consecução da pesquisa, foram realizadas seis provas, que identificaram o pensamento operatório concreto (a prova de inclusão de classe, as provas de conservação: de objetos descontínua, de líquido, de peso, de volume, de área), e duas provas para o pensamento formal (flutuação de corpos e quantificação de probabilidades), junto a um grupo de 11 adolescentes surdos, com idade entre 12 e 14 anos e que há pelo menos sete anos eram educados numa abordagem bilíngüe. Os resultados mostraram que os surdos da pesquisa atual possuem um vocabulário melhor em relação aos sujeitos da pesquisa anterior e também um conhecimento escolar (grau de escolaridade) superior, porém esses avanços não se traduziram num desenvolvimento cognitivo maior. Isso nos levou a investigar como se processam as trocas simbólicas destes adolescentes, com a intenção de fornecer indicativos para uma atuação pedagógica mais eficaz. Palavras-chave: Surdez. Psicologia Genética. Bilingüismo. 7 ABSTRACT Based on Piaget's theory, this work aimed to investigate the cognitive development of deaf teenagers educated in a bilingual approach and to compare the results with 1996 research where they were educated in an oral approach, which showed a cognitive devaluation about two years compared to sound students with the same age (12 to 14 years). For this research were made six tests that identify the concrete concerning (the inclusion class test, the conservation tests: discontinue objects, liquid, weigh, volume, area) and two tests for formal concerning ( bodies flotation and probabilities quantification) with a group of 11 deaf teenagers, aged among 12 and 14 years old and that for up seven years were educated in a bilingual approach. The results showed that deaf of the present research have a better vocabulary than ones of last research and also a higher academic understanding (school degree), in spite of no translation in a bigger cognitive advance. This fact, take us to investigate how is the process of symbolic changes of this students, with the intention to provide indicatives for a pedagogical performance more efficient. Keywords: Deafness. Genetic Psychology. Bilingualism. 8 LISTA DE QUADROS Quadro 1 Padrão ANSI (1969)......................................................................... 52 Quadro 2 Padrão Devis e Silvermann ............................................................ 52 Quadro 3 Descrição dos dados pessoais do adolescente surdo .................... 68 Quadro 4 Roteiro realizado para obter dados sobre a escola.......................... 70 Quadro 5 Roteiro realizado para obter dados iniciais sobre os alunos............ 70 Quadro 6 Prova da conservação de quantidades descontínua I..................... 73 Quadro 7 Prova da conservação de quantidade descontínua II...................... 74 Quadro 8 Prova da conservação de quantidades contínua com líquido......... 76 Quadro9 Prova da conservação de substância............................................. 77 Quadro 10 Prova de conservação de peso....................................................... 80 Quadro 11 Prova de conservação de volume................................................... 81 Quadro 12 Prova de conservação de área........................................................ 84 Quadro 13 Prova de inclusão de classe............................................................ 86 Quadro 14 Prova de probabilidade.................................................................... 88 Quadro 15 Roteiro da entrevista com os pais.................................................... 96 9 LISTA DE TABELA TABELA 1 Níveis de respostas frente às provas de conservação .................... 63 TABELA 2 Níveis de respostas frente à prova de inclusão de classes............. 63 TABELA 3 Níveis de respostas frente à prova de flutuação de corpos............. 64 TABELA 4 Níveis de respostas frente às provas de conservação ................... . 102 TABELA 5 Níveis de respostas frente à prova de inclusão de classes............ 110 TABELA 6 Níveis de respostas frente à prova de flutuação de corpos............. 111 TABELA 7 Níveis de respostas frente à prova de quantificação das probabilidades.................................................................................. 113 TABELA 8 Níveis de respostas frente às provas de conservação realizadas nas duas pesquisas.......................................................................... 131 TABELA 9 Níveis de respostas frente às provas de inclusão de classes realizadas nas duas pesquisas........................................................ 134 TABELA 10 Níveis de respostas frente às provas de flutuação de corpos realizadas nas duas pesquisas........................................................ 135 10 LISTA DE ABREVIATURAS, SIGLAS E SÍMBOLOS ANSI American National Standards Institute CES Centro de Estudos Supletivos DA Deficiência auditiva DM Deficiência Mental F1 Mãe 1 F2 Mãe 2 F3 Mãe 3 F4 Mãe 4 F5 Pai 5 F6 Mãe 6 F7 Pai 7 FENEIS Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos LIBRAS Língua Brasileira de Sinais L1 Primeira Língua LS Língua de Sinais P Pesquisadora S Sujeito S1 Surdo 1 S2 Surdo 2 S3 Surdo 3 S4 Surdo 4 S5 Surdo 5 S6 Surdo 6 S7 Surdo 7 11 S8 Surdo 8 S9 Surdo 9 S10 Surdo 10 S11 Surdo 11 SEED – PR Secretaria de Estado da Educação do Paraná 12 1 SUMÁRIO INTRODUÇÃO......................................................................................................... 15 1 A EDUCAÇÃO DE SURDOS E NOSSO PERCURSO PROFISSIONAL 18 2 O APORTE TEÓRICO.............................................................................. 39 2.1 ALGUNS CONCEITOS BÁSICOS DA TEORIA DE PIAGET................... 39 2.2 OS ESTÁGIOS DE DESENVOLVIMENTO.............................................. 43 2.2.1 O período sensório-motor...................................................................... 45 2.2.2 O nível pré-operatório............................................................................ 46 2.2.3 O período operatório concreto.............................................................. 48 2.2.4 As operações formais............................................................................ 49 2.3 A LINGUAGEM E O PENSAMENTO DOS SURDOS............................. 51 2.3.1 A surdez................................................................................................... 51 2.3.2 As pesquisas........................................................................................... 53 2.3.2.1 As pesquisas no Brasil.............................................................................. 54 3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS................................................. 66 3.1 TIPO DE PESQUISA................................................................................ 66 3.2 OS SUJEITOS.......................................................................................... 66 3.2.1 Os surdos................................................................................................ 67 3.2.2 Os pais..................................................................................................... 69 3.3 A INVESTIGAÇÃO.................................................................................... 70 3.3.1 Organização escolar............................................................................... 70 3.3.2 As provas................................................................................................. 71 3.3.2.1 Conservação............................................................................................. 72 3.3.2.1.1 Conservação de quantidades descontínuas I........................................... 73 3.3.2.1.2 Conservação de quantidades descontínuas II.......................................... 74 3.3.2.1.3 Conservação de quantidades contínuas com líquido............................... 75 3.3.2.1.4 Conservação substância.......................................................................... 77 3.3.2.1.5 Conservação de peso............................................................................... 79 3.3.2.1.6 Conservação de volume........................................................................... 81 13 3.3.2.1.7 Conservação de área............................................................................... 84 3.3.2.2 Operações lógicas.................................................................................... 85 3.3.2.2.1 Operação lógica: Inclusão de classes...................................................... 85 3.3.2.2.2 Operação formal: Quantificação da probabilidade.................................... 87 3.3.2.2.3 Operação formal: Flutuação de corpos..................................................... 93 3.3.2.3 Sistema de transcrição da libras............................................................... 95 3.3.3 A entrevista com os pais........................................................................ 96 4 RESULTADOS DA PESQUISA EXPERIMENTAL.................................. 98 4.1 CARACTERÍSTICA DA ESCOLA ............................................................ 98 4.2 RESULTADOS DAS PROVAS................................................................. 101 4.2.1 Conservação............................................................................................ 102 4.2.1.1 Conservação de quantidades descontínuas............................................. 102 4.2.1.2 Conservação de quantidades contínuas: de líquido................................. 103 4.2.1.3 Conservação de quantidades contínuas: de substância.......................... 105 4.2.1.4 Conservação de peso............................................................................... 106 4.2.1.5 Conservação de volume........................................................................... 107 4.2.1.6 Conservação de área................................................................................ 108 4.2.2 Operação lógica...................................................................................... 109 4.2.2.1 Operação lógica: Inclusão de classes...................................................... 109 4.2.2.2 Operação formal: flutuação de corpos...................................................... 111 4.2.2.3 Operação formal: quantificação da probabilidade.................................... 113 4.3 AS ENTREVISTAS COM OS PAIS.......................................................... 115 4.3.1. Abordagem sobre a surdez....................................................................115 4.3.1.1 O diagnóstico, a etiologia e a reação em relação à surdez...................... 116 4.3.2. A interação: familiar, social e escolar................................................... 119 4.3.2.1 Atividades que meu filho realiza............................................................... 120 4.3.2.2 A comunicação......................................................................................... 121 4.3.2.3 A LIBRAS na vida do meu filho................................................................. 124 4.3.2.4 Os sonhos e o futuro................................................................................. 125 43.2.5 A escola.................................................................................................... 126 5 CONFRONTANDO OS DADOS DA PESQUISA..................................... 129 5.1 OS SUJEITOS.......................................................................................... 129 14 5.2 OS PESQUISADORES............................................................................. 130 5.3 AS PROVAS............................................................................................. 131 5.3.1 Conservação............................................................................................ 131 5.3.2 Operação lógica...................................................................................... 133 5.3.2.1 Operação lógica: Inclusão de classe........................................................ 133 5.3.2.2 Operação formal: flutuação de corpos...................................................... 134 6 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS E CONSIDERAÇÕES FINAIS......... 137 REFERÊNCIAS........................................................................................................ 142 APÊNDICES........................................................................................................... 146 APÊNDICE A. ........................................................................................................ 147 APÊNDICE B......................................................................................................... 148 APÊNDICE C........................................................................................................ 149 ANEXOS................................................................................................................ 150 ANEXO A............................................................................................................... 151 15 INTRODUÇÃO Quando o pensamento científico e filosófico dominante em uma determinada cultura inicia um certo caminho, os pensadores da geração seguinte retomam o fio condutor iniciado por aqueles, seja para continuá-lo ou para opor-se - nesse caso devem demonstrar sua invalidade – mas, de qualquer maneira, não podem esquivar- se dele e da influência que exerce em seu próprio pensamento. MARIMÓN O contato com os surdos é uma experiência no mínimo curiosa. À primeira vista, os sentimentos que afloram possuem características pejorativas e de espanto, como quando dizemos: “coitado, ele é surdo” ou “ele fala!”. Entretanto, o convívio com o surdo ou com um grupo de surdos permite que se lance um novo olhar sobre eles, um olhar sobre as semelhanças e diferenças. Percebe-se que, ao mesmo tempo que os consideramos tão diferentes, somos, ouvintes e surdos, tão parecidos! Este contato com o surdo e o estudo sobre a surdez faz-nos despertar algumas indagações, como, por exemplo: “Se quando penso, falo comigo mesma, como pensa o surdo?” E foi compartilhando dessa e de outras indagações que realizamos a proposta de investigar o desenvolvimento cognitivo dos adolescentes surdos educados numa abordagem bilíngüe e comparar os resultados encontrados com os dados de uma outra pesquisa realizada com surdos educados numa abordagem oralista; com as duas investigações tendo como pressupostos teóricos a teoria piagetiana. A pesquisa tencionou também: • Identificar as trocas simbólicas que existem entre os adolescentes e o meio, em geral, e com seus pais e familiares, em particular. O presente estudo partiu dos resultados de duas pesquisas realizadas com crianças surdas educadas segundo a abordagem oralista e que objetivavam analisar, sob o enfoque da psicologia genética, o desenvolvimento cognitivo dessas crianças. 16 Na primeira pesquisa de Nogueira e Tito (1989), realizada com crianças surdas de idade entre 4 e 6 anos, os resultados não indicaram defasagem significativa no desenvolvimento cognitivo, em relação às crianças ouvintes. Na segunda pesquisa de Nogueira e Machado (1996), realizada com adolescentes surdos de idade entre 12 e 14 anos, os resultados apontaram para uma defasagem de cerca de 2 anos em relação aos ouvintes de mesma faixa etária. As pesquisadoras ficaram, na época, impedidas de concluir se a educação na abordagem oralista contribuía para esta defasagem, por não existirem sujeitos na mesma faixa etária, na cidade de Maringá, educados numa abordagem que privilegiasse a LIBRAS. Passados quase dez anos da última pesquisa, a educação de surdos no Paraná, e mais especificamente em Maringá, vive nova realidade, tanto no que se refere à concepção que se tem do indivíduo quanto ao seu contexto escolar. A grande mudança é conseqüência do reconhecimento da LIBRAS, (Língua Brasileira de Sinais) como primeira língua dos surdos. Desta forma, hoje existem sujeitos que, há pelo menos sete anos, estão sendo educados numa abordagem bilíngüe, o que possibilitou verificar a questão levantada. Este texto está desenvolvido em seis capítulos. O primeiro capítulo, A educação de surdos e nosso percurso profissional, enfoca, em linguagem narrativa, o contexto histórico da educação de surdos relacionada com a pesquisa bem como os motivos que nos levaram a desenvolvê-la. No segundo capítulo, que denominamos de O Aporte Teórico, justificamos a nossa opção por Piaget, e discorremos sobre pesquisas com surdos, considerando diferentes aspectos da teoria piagetiana, mas que nas suas conclusões apontam caminhos convergentes. 17 No capítulo terceiro, Procedimentos Metodólogicos, especificamos os sujeitos da pesquisa e a metodologia adotada. No quarto capítulo, intitulado Resultados da Pesquisa Experimental, apresentamos a análise parcial dos dados coletados, com divisão em três temas: o primeiro tema apresenta a escola na qual a pesquisa foi realizada; o segundo trata das provas realizadas com os adolescentes surdos educados numa abordagem bilíngüe e o terceiro relata a entrevista com os pais desses adolescentes. No quinto capítulo, Confrontando os Dados das Pesquisas, cotejamos os resultados das provas piagetianas realizadas nesta pesquisa com uma outra desenvolvida em 1994, onde foram aplicadas as mesmas provas a surdos educados numa abordagem oralista. No sexto e último capítulo, Discussão dos resultados e Considerações Finais, discutimos os dados dos resultados encontrados e procuramos apontar contribuições do nosso estudo para a educação de surdos. 18 1 A EDUCAÇÃO DE SURDOS E NOSSO PERCURSO PROFISSIONAL Meu discurso é o lugar de encontro de vozes milenares. Quantas vozes o povoam? Dezenas, centenas, milhares... De que tempo? De todos os tempos. De que verdades? De todas as verdades e meias-verdades. FERNANDES Após muitas reflexões, decidimos apresentar este capítulo em forma de narrativa, sempre com a atenção voltada nestes enfoques: a) o contexto histórico da educação de surdos relacionada com a pesquisa; b) os motivos que nos levaram a desenvolver a pesquisa. Implicitamente, este capítulo auxiliou nas reflexõesda conclusão da pesquisa, pois, apesar de o discurso apresentado ser a história de vida de uma profissional, reflete, de certa maneira, a concepção dos profissionais envolvidos com a educação especial vigente. Ao mostrar a trajetória histórica, procuramos apresentar dados levantados na pesquisa de campo inicial. Como ponto de reflexão inicial, considero importante ilustrar com um pouco da história da educação de surdos. Na Europa, existe uma longa história da surdez, muito interessante. Com um rápido passar de olhos na história da surdez, percebemos que estamos no mesmo ponto em relação ao ano de 1970, na França. É como uma história circular: aparece a língua de sinais na escola e é proibida; então aparece a língua oral, que fracassa; recomenda-se a língua de sinais; pergunta-se se serve ou não; os surdos se reúnem entre si, os ouvintes de outras filosofias também e a proposta é que se tem que começar com a língua oral, retoma-se e volta-se ao mesmo ponto (ALISEDO, 1994, p.12). Conforme a sociedade foi se transformando, a concepção que os ouvintes tinham do indivíduo surdo também se transformou, isto é, foram sendo vistos de diferentes modos. Ao acompanhar tais transformações, as terminologias utilizadas para designar estes sujeitos também se transformaram. 19 No Brasil, mais especificamente no Paraná, nas décadas de 1950 e 1960, os surdos eram vistos como “doentes” e, praticamente, inexistiam pesquisas científicas desenvolvidas na área educacional. A forma de atendimento estava voltada à filantropia e ao assistencialismo; os surdos não eram vistos como cidadãos produtivos ou úteis à sociedade e não havia a preocupação com a formação acadêmica ou profissional deles (STROBEL, 2000). Na década de 1970 e 1980, a surdez é vista como “deficiência”. O surdo neste contexto histórico é conhecido como deficiente auditivo. Inicia-se uma nova fase, onde os surdos recebem atenção dos segmentos institucionais organizados, inclusive da educação e, com isso, tem-se a expansão do atendimento especializado nos municípios do Estado. A educação de surdos se caracterizou, nesse período, pelo predomínio de modelos clínicos, nos quais, em detrimento dos objetivos educacionais, imperavam os objetivos de reabilitação – o aluno como paciente e o professor como terapeuta. Persistiu a aplicação de inúmeros métodos oralistas, geralmente estrangeiros, buscando estratégias de ensino que pudessem transformar em realidade o desejo de ver o surdo falando e ouvindo, com auxílio de próteses. Eram vistos como deficientes e proibidos de utilizar sinais para se comunicar; na escola, eram poupados dos conteúdos escolares mais complexos e, quando matriculados no ensino regular, eram empurrados de uma série para outra (STROBEL, 2000). Da década de 1990 até hoje, a surdez é vista muito mais como “diferença” do que como “deficiência”. E como autodenominação dada pelos próprios surdos a expressão utilizada neste contexto é surdo (STROBEL, 2000). O estágio em que nos encontramos hoje é conseqüência de muita luta dos surdos, seus familiares, professores e profissionais da área, que resultaram em conquistas fundamentais, tais como: o reconhecimento da diferença lingüística do surdo; a oficialização da LIBRAS, em nível municipal (Lei nº 512); estadual (Lei nº 12095/98) ambas em 1998 e a nível federal (Lei nº 10.436) em 2002; a potencialização do pedagógico em detrimento do clínico na educação; a possibilidade da educação bilíngüe numa dimensão política; o apoio ao fortalecimento e qualificação da comunidade surda; a formação e capacitação do professor e instrutor surdo; a formação de intérpretes de 20 LIBRAS e Língua Portuguesa e, particularmente, um crescente número de pesquisas na área da surdez . A minha concepção sobre o “indivíduo surdo” durante a trajetória profissional mudou; assim, durante a narrativa são utilizadas duas terminologias para se dirigir aos mesmo sujeitos. A primeira é a de deficiente auditivo, utilizada na descrição de um período que refletia uma concepção do surdo como deficiente e, para torná-lo eficiente, a ênfase no trabalho era a de reabilitação1. A segunda expressão utilizada, na descrição do período que se inicia em 1996 observada é surdo, que acarreta um outro olhar a respeito deste sujeito, compartilhando das palavras de Poker: [...] a expressão “surdo”, por ser a que melhor permite enfatizar o significado da surdez na duplicidade de sua condição orgânica e social. Além disso, é a autodenominação escolhida pelos próprios surdos, que desejam ser aceitos não como pessoas deficientes, ou seja, como “ouvintes” que têm ausência de algo, mas como pessoas que teriam muito mais de igual do que de diferente, pessoas igualmente capazes e que se diferenciam dos ouvintes por desenvolverem sua linguagem através de outros recursos mais relacionados à natureza viso-motora (linguagem orofacial, gestual, dactilológica, etc. ) (1995, p. 2). Acaso, interesse ou vocação? E foi assim que tudo começou. No ano de 1991, ao passar diariamente em frente de uma casa, olhava pelo portão e encantava-me com as crianças que brincavam. Comentava que um dia iria trabalhar naquele lugar: era uma casa com ar de escola. Nela funcionava uma “espécie” de escola para deficientes auditivos2; era um Centro de Reabilitação de Menores para Deficientes Auditivos, com 65 alunos e 23 funcionários. Como sua sede não estava pronta, a Prefeitura havia alugado aquele espaço. Trabalhava no ensino público como professora das séries iniciais há dois anos, e este meu lado professora ficava inquieto, pois queria saber como aquelas crianças 1 É o trabalho de reabilitar a audição e a fala, na tentativa de minimizar os efeitos provocados pela alteração auditiva. 2 Terminologia usada para os surdos na época. 21 aprendiam e se comunicavam. Uma professora de deficientes auditivos do Instituto Estadual de Educação achava interessante o meu “encantamento” pelos alunos e, no início de 1992, convidou-me para fazer um curso oferecido pela Secretaria de Estado da Educação denominado “emergencial para D.A.”; esse curso era um pré- requisito para o trabalho com os deficientes auditivos. Como a abordagem da época era o oralismo, as disciplinas ministradas tinham esse enfoque; os profissionais envolvidos eram muito “fiéis” aos pressupostos deste método, dos quais destaco: A abordagem de enfoque oralista se coloca radicalmente contra o uso da Língua de Sinais ou de qualquer código gestual pelo entendimento de que, sendo a dimensão gestual-visual a mais cômoda para o surdo, esse não irá despender o esforço necessário para aprendizagem de uma língua na modalidade oral, que exige um trabalho difícil, diligente, intenso e muitos vezes enfadonho (SÁ, 1999, p.82). [...] de acordo com os oralistas, a educação do surdo deve começar o quanto antes e deve aproveitar todos os recursos disponíveis para se desenvolver a linguagem interior da mesma forma como acontece aos ouvintes. Para isso é preciso um trabalho complexo que tentará, através do uso de eventuais resíduos auditivos, da leitura labial, das atividades de sensibilização das vibrações vocais, desenvolver no surdo uma linguagem interna sem imagens auditivas (POKER, 1995, p.87). O Oralismo ou filosofia oralista visa à integração da criança surda na comunidade de ouvintes, dando-lhe condições de desenvolver a língua oral (no caso do Brasil, o português). A noção de linguagem, para vários profissionais desta filosofia, restringe-se à língua oral, e esta deve ser a única forma de comunicação dos surdos. Para que a criança surda se comunique bem é necessário que ela possa oralizar. O Oralismo percebe a surdez como uma deficiência que deve ser minimizada através da estimulação auditiva (GOLDFELD, 1997, p.31). O únicocontato que tive com os deficientes auditivos neste curso foi numa peça teatral: “A Branca de Neve e os Sete Anões”, apresentada pelos alunos de uma escola especial. Como queria saber mais, por iniciativa própria comecei visitar a escola e conhecer como eles aprendiam. Alguns professores se incomodavam com a minha curiosidade; vim saber, tempos depois, que diziam: que tanto essa “menina quer saber”? Foi assim que, no final daquele ano, no mês de outubro, recebi um convite para trabalhar, não como professora e sim como atendente: iria realizar a função 22 de auxiliar na educação precoce e cuidar do banho e do almoço de um grupo de crianças que permaneciam na escola por tempo integral. Já trabalhava no ensino comum um período, porém, como queria muito trabalhar com os deficientes auditivos, aceitei o convite imediatamente e iniciei minha trajetória no ensino especial. No ano seguinte, como funcionária municipal, assumi uma turma com seis alunos, de idade em torno de seis anos. Nessa turma atuava como reabilitadora, terminologia usada pela abordagem oralista. Como o próprio nome diz, a função era reabilitar a fala, a audição, a leitura orofacial; essas atividades ainda eram resquícios de uma metodologia, a verbotonal3. Sentia-me muitas vezes como uma terapeuta, não uma professora; e esse era um dos motivos que justificava o número reduzido de alunos por sala. Era um trabalho de repetição e exaustão. No entanto, a educação de surdos, desde 1990, já caminhava para uma outra visão do deficiente auditivo. Adotava-se a metodologia materno-reflexiva4, ainda voltada para a oralização do deficiente auditivo e, como o próprio nome sugere, como ponto de partida da relação mãe e filho. O trabalho que desenvolvia com a minha turma segundo a metodologia materno- reflexiva, estava centrado no interesse da criança e nas atividades de vida prática, explorando, a princípio, basicamente, o vocabulário familiar. Assim, ao determinar o tema a ser explorado, conversávamos primeiramente sobre ele e realizávamos visitas, se necessário, aos seus lares dos alunos, ao comércio, a outras escolas. Num segundo momento, havia uma montagem de textos acerca do tema escolhido; fazíamos leitura receptiva, que é a fase da exploração do vocabulário; por último, fazíamos o estudo da estrutura do texto. Contava muito com o apoio dos pais; comunicava-lhes o trabalho que estávamos realizando; as crianças eram estimuladas a contar o texto aos pais e estes a ajudar na construção do vocabulário envolvido. No entanto, no grupo com o qual trabalhava, por ser um grupo de pouca oralização e pouco resíduo auditivo, um dos maiores problemas que encontrava era 3 Método estrangeiro, criado por Peter Guberina, na Iuguslávia. Trata-se de um método oral multi- sensorial, pois visa à habilitação do indivíduo para a fala e a constante reabilitação da audição do deficiente. 4 Outro método estrangeiro, que tem como precursor Van Uden. 23 a agressividade das crianças. Apesar de o trabalho ser interessante, tornava-se cansativo, pois, por não conseguirem expor o que queriam e também por não entenderem o que eu queria, geravam-se conflitos. Iniciaram-se, informalmente, naquele ano, duas modalidades de ensino; os alunos tinham um período de reabilitação e outro de escolarização. Enquanto isso, no outro período de trabalho, comecei a trabalhar também com a educação especial, numa outra modalidade de atendimento da abordagem oralista: a sala especial para D.A. Em muitas cidades, era o período em que se dava o reforço escolar do ensino regular comum e a parte de reabilitação. Os alunos, porém, naquele ano não freqüentariam o ensino regular. Eram cinco alunos com idade entre 13 e 16 anos, com um histórico escolar de total insucesso; eles estavam cansados de atividades relacionadas a uma primeira série e da reabilitação da fala exaustiva e quase sem resultado. A sala especial funcionava em uma escola de 1ª a 4ª série, num município vizinho, e dividíamos a nossa sala com uma sala de D.M. (alunos com deficiência mental). Por apresentarem uma idade superior bem como pela falta de comunicação que gerava a agressividade e mesmo pela fala nada inteligível e cheia de grunhidos, os meus alunos eram conhecidos como os “doidinhos” e “bobinhos”. Isso me perturbava muito, pois até então não tinha vivido com essas situações e esses sentimentos; na outra escola, não havia presenciado nada disso, pois era uma escola só de deficientes auditivos: “viviam entre os iguais”, as discussões de todos os funcionários eram voltadas para eles. O meu trabalho na sala especial era solitário e de “tartaruguinha”. Contudo, queria fazer o melhor para eles, mas por onde começar? E foi na primeira visita da coordenadora responsável pela educação especial representante do Núcleo Regional de Educação5 à escola - visitas estas costumeiras e que tinham como objetivo verificar como o trabalho estava sendo desenvolvido - que eu disse que procuraria estabelecer um vínculo de comunicação mais efetivo com os meus alunos, por meio de desenhos, de sinais combinados, e que iria centrar o meu 5 Órgão responsável pela Educação (Infantil, Especial, Supletiva, Fundamental e Médio) de uma determinada região, subordinado à Secretaria Estadual de Educação do Paraná (SEED-PR). 24 trabalho na metodologia materno-reflexivo e o treinamento da fala; o treinamento auditivo e da leitura labial não seriam privilegiados. Começamos, assim, a explorar o contexto, o máximo possível, a partir de temas principalmente relacionados ao mercado de trabalho. A respeito da imagem que a comunidade escolar tinha dos alunos surdos procurei minimizá-la, por meio de palestras aos professores e alunos, nas quais explanava sobre as diferenças, as dificuldades e, principalmente, das potencialidades de meus alunos. Após dois anos de trabalho, foram percebidos resultados significativos; contudo recebi uma proposta de permanência na escola de deficientes auditivos nos dois períodos que aceitei. A sala especial foi fechada, apesar da tentativa de deixá-la em funcionamento, pois passaram pela sala no período de um mês três professores, que não se adaptaram; assim, estes alunos tiveram atendimento somente um ano depois no CES6. Uma das coisas que mais me fascinou na escola de deficientes auditivos, desde o começo, foi a abertura para as discussões sobre a educação dos surdos; a escola sempre procurou proporcionar cursos, viagens a congressos, a seminários, para não ficarmos “isolados” nos próprios muros da escola. Uma ano após, fui escolhida para assumir a educação precoce7 e continuei com as metodologias citadas. Trabalhei com uma turma, por três anos; muitos dos sujeitos da pesquisa são esses alunos. Eles vivenciaram pelo menos de dois a três anos uma abordagem oralista. Trabalhava com o treinamento auditivo, da fala e da leitura orofacial, acreditava tanto no meu trabalho que falava para os pais que as crianças iriam falar e os requisitava a participar e ajudar nessa terapia. Uma das atividades que envolvia os pais era a notícia. Estes tinham que enviar para a escola algo interessante que acontecera com seus filhos. Os pais escreviam o ocorrido e a criança ilustrava, pois ela deveria “dar a notícia” para os colegas. 6 Centro de Estudos Supletivos. 7 Atendimento a crianças de 0 a 3 anos. 25 Em uma outra atividade, que objetivava o treinamento de vocabulário, pedíamos para os pais colarem nos móveis da casa etiquetas com as palavras que os denominavam; por exemplo, as cadeiras eram etiquetadas com a palavra “cadeira”. Fato interessante é que todos os pais seguiam praticamente à risca as nossas orientações.Constatei isso quando o tema a ser trabalhado foi “A nossa casa” e fomos fazer as visitas; não havia uma casa que não tivesse papéis espalhados com o nome de todos os objetos possíveis. A ênfase do modelo terapêutico na abordagem educacional oralista implica que as famílias sejam sobrecarregadas com diversas tarefas como: praticar os treinamentos fonoarticulátorios em casa; passar todo o tempo informando disciplinadamente palavras e frases orais, chamando a atenção da criança para a leitura labial; usar muito do seu tempo diário em terapias de diversos tipos, além do horário escolar; usar os familiares como suportes no ensino escolar, etc. Nessa visão, a responsabilidade pelo sucesso da abordagem educacional é, portanto, dividida entre família, terapeutas e escola (geralmente nessa ordem) (SÁ, 1999, p 95). O que acho interessante no meu discurso é que no trabalho com os surdos adultos utilizava muitos sinais, que convencionamos; com a turma de pequenos hesitava um pouco, mas se fosse necessário utilizava-os. Estávamos numa época de um oralismo menos “radical”. No ano de 1993, fiz o adicional, que corresponde ao 4º ano do magistério, muito semelhante ao emergencial, mas com uma maior profundidade, com a mesma filosofia do emergencial. No final de 1994, ao adquirir sede própria, a escola já contava com alunos freqüentando a 3ª série ainda de maneira informal; No Centro de Reabilitação de Menores para Deficientes Auditivos montou-se um processo para a criação de uma escola de ensino regular. Tal processo foi apresentado ao Departamento de Ensino de 1º Grau da SEED-PR para apreciação, com fins de regulamentação da vida acadêmica dos alunos. Em decorrência disso, contando com o apoio e incentivo do Departamento de Educação Especial da SEED, em janeiro de 1995, através da Resolução nº 195, criou-se na escola o ensino de 1º grau8. Os alunos foram 8 Denominação correspondente ao ensino fundamental. 26 submetidos a um exame classificatório com provas elaboradas de acordo com os conteúdos referentes à série anterior a que o aluno se encontrava. Uma banca, composta por professores, coordenação do Núcleo de Educação e coordenação pedagógica da escola, aplicou e corrigiu as provas; ficou, assim, regularizada a situação dos alunos. No ano de 1995, oficializada a escolaridade dos alunos, com uma 1ª turma de 5ª série, alguns profissionais de área específica (matemática, português,...) foram contratados sem uma formação destinada ao trabalho com deficientes auditivos; tinham experiência somente no ensino regular. E por vários anos a falta de profissionais especializados foi (ou ainda é?) um dos problemas para a escola, o que, por outro lado, contribui para vivenciarmos outras experiências. Em 1995, um grupo significativo de profissionais da escola resolveu fazer especialização na área de deficiência auditiva. Foi quando boa parte dos profissionais, inclusive eu, ouviu pela primeira vez outro tipo de conversas sobre a educação dos deficientes auditivos, como “a questão da língua dos surdos”. Para nós, profissionais insatisfeitos com os resultados de desempenho acadêmico obtido e com um nível de comunicação nada efetivo entre professor e aluno, a orientação dada no curso veio ao encontro de nossos interesses, refletia um novo modo de agir na educação do deficiente auditivo. Este pensamento vinha sendo divulgado em todo o estado do Paraná. No Congresso de Milão, em1880, marcou-se o abandono voluntário da língua de sinais nas escolas das crianças surdas. Mas, ela não desapareceu. As línguas orais, que sofrem repressão dessa natureza, desaparecem. Por que a língua de sinais se mantém? Por que resiste? Por que passa de criança para criança. É em conseqüência de algo mais universal. É a língua que os surdos se outorgaram a si mesmo. Essa me parece ser a razão fundamental pela qual nenhuma maioria conseguirá fazer com que ela desapareça. A única maneira da língua de sinais desaparecer será quando desaparecer a surdez. Enquanto a surdez existir, existirá a língua dos surdos (ALISEDO, 1994, p. 13). [...] Fica evidente, na última década, a pressão de um novo discurso sobre a surdez que se encontra refletida no posicionamento assumido pelas professoras, exercidas principalmente pela literatura especializada na área e pelos governos em suas políticas oficiais. No Paraná, particularmente, desde 1995 a política de capacitação 27 docente esteve ligada à implantação de um proposta de educação bilíngüe no sistema de ensino (FERNANDES, 2003, p.56). [...] Em conseqüência desta nova visão e dos investimentos realizados, houve uma significativa transformação na educação de surdos, no Estado do Paraná, tanto no que se refere às questões ideológicas subjacentes à prática, como na qualidade da proposta de atendimento educacional aos surdos. Das múltiplas contribuições para essa mudança, os aspectos mais relevantes constituem-se na difusão dos modelos bilíngüe/multiculturais na educação e o aprofundamento nas concepções sócio-antropológicas da surdez (PARANÁ, apud FERNANDES, 2003, p.57). No 2º semestre de 1996, na escola iniciamos as leituras sobre bilingüismo. O bilingüismo tem como pressuposto básico que o surdo deve ser Bilíngüe, ou seja, deve adquirir como língua materna a língua de sinais, que é considerada a língua natural dos surdos e, como segunda língua, a língua oficial de seu país. [...] O conceito mais importante que a filosofia Bilíngüe traz é de que os surdos formam uma comunidade, com cultura e língua próprias (GOLDFELD , 1997, p. 39). Tornar-se letrado numa abordagem bilíngüe pressupõe a utilização de língua de sinais para o ensino de todas as disciplinas. Proporcionada como primeira língua (L1), o aprendizado da língua de sinais é oferecido aos surdos em situações significativas, como jogos, brincadeiras e narrativas de estória, mediante a interação com outros surdos adultos competentes em língua de sinais. Faz também parte do projeto bilíngüe que todo o corpo de funcionários da escola, surdos e ouvintes, e os pais, aprendam e utilizem a língua de sinais (BOTELHO, 2002, p. 112). Mas que não se percam os esforços. A inauguração de uma nova etapa histórica não significa que todos os problemas estejam resolvidos. Em seguida se verá a realidade e funcionamento do modelo bilíngüe, se apreciarão seus alcances e sua limitações, e novos conhecimentos sustentarão os atuais, mostrando suas insuficiências e seus erros. O modelo bilíngüe tende a ser aperfeiçoado e, eventualmente, superado. Mas nesse processo que se inicia temos os surdos como protagonistas e poderemos dialogar com eles num plano de igualdade, unidos por vínculos solidários na construção de um futuro melhor para todos. A prepotência, a segregação e o desprezo serão coisa do passado, e “não terão uma segunda oportunidade sobre a terra” (SÁNCHEZ, apud QUADROS, 1997, p. 41). 28 Os estudos foram centrados principalmente na LIBRAS9, reconhecendo-a como a língua natural do surdo, que deve ser adquirida e usada tanto pelos alunos, quanto pelos profissionais. Neste ano, foi contratada a primeira instrutora surda, com a função de ensinar a língua de sinais para os funcionários e alguns alunos da escola. A Língua de Sinais, já reconhecida como língua, cumpre perfeitamente o papel de suporte lingüístico, dando acesso à dimensão simbólica à subjetividade, de modo semelhante ao papel que exerce a língua na modalidade oral no desenvolvimento de uma criança ouvinte (SÁ, 1999, p. 170). “Língua de sinais e língua oral apresentam semelhanças e diferenças do ponto de vista operacional, mas a comunicação em língua de sinais é tão eficaz quanto na língua oral. Os dois tipos de língua apresentam uma estrutura hierárquica dos elementos que participam dos processos de codificação e decodificação.Em ambas o mecanismo de produção é influenciado por fatores, como a quantidade de produção possível, a criatividade semântica das mensagens, a estruturação sintática das frases. Nas duas línguas o tratamento das mensagens exige uma análise interativa tanto quanto paralela (CICCONE, apud, ALMEIDA, 2000, p.2). Uma experiência que considerei significativa para a aprendizagem da língua de sinais foi nas atividades oferecidas aos alunos no contraturno, das quais participavam alunos maiores com menores, proporcionando aos menores uma interação comunicativa real em situação cotidiana. Deixou-se o caráter de reabilitação e passou-se a um caráter educacional, nos dois turnos. A reabilitação da audição e fala passou a ser feita pelo setor de fonoaudiologia, com quatro profissionais, que ficaram responsáveis pelo atendimento. Os alunos acima de seis anos freqüentavam até então a escola em período integral. Percebeu-se que as atividades em período integral levaram os alunos a um desgaste físico e mental. Reduziu-se, então, a dois dias de permanência integral dos alunos, pois acreditávamos que estávamos “roubando a infância e o convívio familiar”, e, ainda, quando esses estavam em casa, tinham que realizar atividades relacionadas a orientações dos profissionais da escola. Por isso, ficou estabelecido 9 LIBRAS – língua brasileira de sinais – é o modo como a FEDERAÇÃO NACIONAL DE EDUCAÇÃO E INTEGRAÇÃO DOS SURDOS (FENEIS) resolveu se referir à língua de sinais dos surdos brasileiros. Essa denominação foi estabelecida em Assembléia convocada pela FENEIS, em outubro de 1993, tendo sido adotada pela World Federation of the Deaf, pelo MEC, por pesquisadores, educadores e especialistas, (SOUZA,1998, p.1). 29 que três tardes por semana seriam livres para que pudessem fazer outras atividades e para que a família se responsabilizasse pela educação (não a acadêmica) dos filhos. A escola tinha até então um caráter assistencialista em muitos aspectos, tais como: fornecia boa parte do material escolar, almoço, banho, entre outras coisas. Em 1996, recebi um novo convite: assumir a disciplina de matemática na 5ª e 6ª série, para trabalhar em uma das etapas do projeto “O ensino de Matemática para deficientes auditivos: uma visão psicopedagógica”, que já estava no seu terceiro ano de execução. Conhecer e participar do projeto foi importante para mim. Quando pensava no desafio, os sentimentos misturavam-se: o do medo e da curiosidade. Medo, sim, por ser apenas uma recém-formada em matemática a desenvolver um trabalho em companhia de uma professora-pesquisadora de muita competência na discussão da matemática na educação especial; e curiosidade, por querer vivenciar novos passos. Das leituras iniciais da pré-fundamentação do projeto acima citado e das conversas com a pesquisadora, que denominarei de “mãe-professora-pesquisadora”, conheci o porquê do seu desenvolvimento. A maioria dos pais e profissionais envolvidos com os deficientes auditivos tem como principal preocupação o desenvolvimento da linguagem e as possibilidades de comunicação da criança deficiente auditiva. A pesquisadora, que não era professora de deficientes auditivos, mas mãe de surdas e professora universitária de matemática, preocupava-se com a seguinte questão: “Se quando penso, falo comigo mesma, como pensa o surdo?” A “mãe-professora-pesquisadora” realizou anos de pesquisa bibliográfica sem achar argumentações convincentes que viessem ao encontro de seus anseios, até conhecer uma outra professora universitária-pesquisadora que, como ela diz, apresentou-a a Piaget; afinal, para este pesquisador, [...] o argumento decisivo contra a posição de que as estruturas lógico- matemáticas originam-se unicamente das formas lingüísticas é o de que, no decorrer do desenvolvimento intelectual de cada indivíduo, as estruturas lógico-matemáticas estão sendo construídas antes do 30 aparecimento da linguagem. A linguagem aparece por volta da metade do segundo ano, mas antes disso, por volta do primeiro ano ou começo do segundo, há uma inteligência prática com sua própria lógica de ação. (PIAGET`; INHELDER, apud NOGUEIRA, 1999, p. 83) Motivadas pelo estudo de Piaget, as duas, a professora-pesquisadora e mãe- pesquisadora-professora, desenvolveram a pesquisa intitulada “As estruturas lógicas elementares e a noção de número em crianças deficientes auditivos: subsídios para o ensino de Matemática”, no período de 1987 a 1989. O objetivo foi analisar se a deficiência auditiva constituía um fator que comprometesse significativamente o desenvolvimento lógico operatório infantil. Os resultados indicaram não haver defasagens significativas no desenvolvimento cognitivo dessas crianças em relação aos períodos determinados pela Psicologia Genética (NOGUEIRA; TITO, 1989). Os trabalhos na área, pelas duas pesquisadoras, ficaram interrompidos por quatro anos, justificados pela “mãe-professora-pesquisadora” “de que não bastava preparar os filhos para a sociedade, era preciso também transformá-la para recebê-los”. Foi assim que ela assumiu diversos cargos políticos importantes para a educação especial; seu objetivo específico era resgatar a questão da escolaridade. Em 1994, as pesquisadoras retomaram os trabalhos na área. É quando começa a ser desenvolvida, como conseqüência da primeira pesquisa, a que foi denominada “O ensino de Matemática para deficientes auditivos: uma visão psicopedagógica”, da qual participei e segundo as pesquisadoras, o maior desafio do trabalho consistia em buscar compreender o processo do desenvolvimento cognitivo da criança surda. A compreensão do desenvolvimento cognitivo da criança surda e de como processam-se as estruturas lógico-matemáticas foram realmente o grande desafio do presente projeto, uma vez, que o estudo da relação: comunicação verbal e pensamento matemático deve ser subjacente à qualquer proposta metodológica que objetive não apenas o ensino da matemática em si, mas que principalmente, contribua para a educação e independência do surdo. (NOGUEIRA; MACHADO, 1996, p.60) O projeto esteve centrado em três etapas distintas e complementares: um período inicial de estudos, o período de avaliação cognitiva e o período de aplicação de atividades em sala de aula. 31 Durante o período de estudo, com seminários semanais, fez-se o levantamento de informações acerca do deficiente auditivo e da proposta teórica da psicologia genética acerca do pensamento lógico-matemático. Esse estudo bibliográfico foi desenvolvido durante todo o trabalho, atendendo às necessidades específicas. Participaram desse estudo a “mãe-professora-pesquisadora”, a equipe pedagógica da escola, representada pela supervisora e psicóloga, uma professora do ensino regular e a professora que iria desenvolver as atividades em sala de aula com os alunos (no caso, eu). Foi nesses encontros que “eu” fui apresentada a Piaget. Achava dificílimas as leituras e as nossas conversas, mas me fascinava pelos estudos sobre cada fase do desenvolvimento cognitivo, que vinham ao encontro do que queria saber. [...] É evidente que a pesquisa psicogenética pode fornecer conhecimentos científicos precisos e necessários sobre os quais a pedagogia pode se apoiar. Esse foi o ponto de vista de Piaget sobre a relação entre a pesquisa psicológica e a pedagogia. Assim, para ele, todo educador deveria conhecer não apenas as matérias a ensinar, mas igualmente os mecanismos subjacentes às operações da inteligência e, por isso mesmo, as diferentes noções a ensinar. (MONTOYA, 2004, p.65) O período da avaliação cognitiva foi realizado em 1994. Buscou-se a compreensão do desenvolvimento cognitivo da criança surda e, em especial, a análise de como se processam as estruturas lógico- matemáticas. Concomitantementeao período de avaliação cognitiva, foram aplicados questionários aos professores de 1º grau do ensino regular e especial e aos professores de Departamento de Matemática. Os questionários tinham como finalidade a definição de conteúdos essenciais a serem abordados nos materiais instrucionais na sala de aula da 5ª série. Uma vez estabelecido o perfil do aluno e os conteúdos a serem trabalhados, buscou-se identificar formas de trabalho e materiais adequados que contribuíssem para a consecução dos objetivos. No ano de 1996, desenvolvi o trabalho juntamente com a ”mãe-professora- pesquisadora”. Foi uma experiência e tanto. Por motivos de aprimoramento de sua 32 formação acadêmica, ela deixou o projeto, continuando, porém, a contribuir como orientadora. Nos dois anos que se seguiram, levei o trabalho sempre sob sua orientação, sendo o mesmo encerrado em 1998. A metodologia adotada foi o ensino dirigido, com fichas escritas, que permitiam um mínimo de material escolar, evitando assim fatores desviantes da atenção. Outro fator importante a se destacar é a questão do respeito aos tempos individuais: como existia sempre uma quantidade razoável de material preparado, à medida que um aluno vencia um conteúdo, recebia imediatamente outro. Nogueira e Machado (1996), ao analisar os resultados encontrados na segunda pesquisa frente à questão do atraso dos dois anos no desenvolvimento cognitivo, que não apareceu na primeira pesquisa realizada, indagaram se a abordagem oralista não teria sido determinante nos resultados encontrados e se ressentiam da falta de condições para responder a essa indagação, por não existirem, naquele momento, surdos educados em abordagem diferente da oralista. E esta foi uma indagação de que, por anos, compartilhei. Em 1997, deu-se continuidade ao trabalho escolar numa proposta bilíngüe. Eu, como professora, iniciei com meus alunos, a aprendizagem da língua de sinais. A aquisição por parte deles foi muito rápida; primeiro, pela necessidade de comunicação; segundo, pelas trocas entre eles e os surdos mais velhos. A sensação na sala de aula, em muitos momentos, era de “quem ensinava o quê”, “quem ensina para quem”; eles ensinavam a língua de sinais que também estavam aprendendo, e eu ensinava o “conteúdo”. No entanto, como não temos muitos sinais para os conceitos matemáticos, como potenciação, álgebra, muitas vezes convencionávamos os sinais. Uma postura característica minha na sala de aula nesse período e que persiste algumas vezes atualmente apesar da recomendação contrária, é o uso simultâneo da linguagem de sinais e da oralidade. Considero que é porque em todas as minhas salas há surdos com uma boa linguagem emissiva; assim, necessito falar. E é muito 33 interessante que, quando esses alunos se reportam a minha pessoa, falam, e, quando vão conversar com os amigos de sala, usam os sinais. [...] Tipicamente há uma sedução de um compromisso – que um sistema “combinado”, usando os sinais e a fala, permita aos surdos se tornarem eficientes nos dois. Há uma sugestão de compromisso, contendo uma profunda confusão: uma linguagem intermediária entre o inglês e Sinal (ou seja, inglês sinalizado). Essa categoria de confusão vem de longa data – remonta aos “Sinais Metódicos” de De l’Epée, que foram uma tentativa de expressão intermediária entre o francês e Sinal. Mas as verdadeiras linguagens de sinais são na verdade completas por si mesmas: uma sintaxe, gramática e semântica são completas, mas possuem um caráter diferente de qualquer linguagem falada ou escrita. Assim, não é possível efetuar a transliteração de uma língua falada em Sinal palavra por palavra ou frase por frase – as estruturas são essencialmente diferentes. Imagina- se com freqüência, vagamente, que a linguagem de sinais é inglês ou francês: não é nada disso; é ela própria, Sinal (SACKS, 1990, p.46). . No ano de 1997, voltei a trabalhar no ensino regular com ouvintes. Vivíamos um momento na escola em que os nossos alunos surdos consideravam que a “escola era fraca”, pois comparavam os “conteúdos” que eram ensinados para eles com os dos amigos deles ouvintes. Procurei trabalhar no ensino regular com as mesmas séries em que atuava na escola de surdos. O convívio com outros profissionais da mesma área foi interessante. Não conseguia acompanhá-los: eles “voavam” com o “conteúdo”, eu estava sempre atrasada, não conseguia simplesmente “passar o conteúdo” no quadro, dar lista de exercícios e ir adiante; a minha prática não condizia com essa forma de conduzir o ensino. Considero para isso dois pontos relevantes: ter iniciado o meu trabalho como professora nas séries iniciais e trabalhar com a educação especial. Você, como professora dessas duas modalidades do ensino, adquire um outro olhar para o seu aluno, procurando acompanhar as individualidades da aprendizagem de cada educando. A forma como conduzia as minhas aulas - com jogos, situações-problemas, pesquisa de campo - era considerado pelos demais professores como “loucura” e “perda de tempo” e ainda indagavam como eu iria fazer para vencer todo aquele conteúdo do livro. Realmente, não era um trabalho fácil, mas gratificante; refletia nos comentários de outros profissionais: “como seus alunos gostam da aula”; “não acredito que este 34 menino está estudando”. O meu trabalho era reconhecido e muitas vezes fui convidada para apresentá-lo em cursos ou em reuniões. Quanto aos conteúdos, justificava que não adiantava nada eles trabalharem com o simples cumprimento destes; no ano seguinte não iriam saber nada, pois a questão da cobrança em relação aos “conteúdos“ estava relacionada aos pré-requisitos para o ano subseqüente. Estava consciente nas minhas convicções de que a prática docente adotada estava possibilitando um ensino-aprendizagem mais ideal, no que tange à qualidade das aulas. De 1997 a 2003, trabalhei no ensino regular e na educação especial como professora de matemática. Parei com as atividades do projeto em 1998, por três motivos: o primeiro, por estar com uma sobrecarga de trabalho (quantidade de horas-aula): não conseguia elaborar os materiais, “as fichas escritas”, precisava de muito tempo para preparar; o segundo é que a forma do trabalho do projeto tinha refletido de 1ª a 4ª série, observamos um maior envolvimento dos professores com a matemática; e o terceiro motivo foi que os meus alunos argumentavam que gostavam das aulas, mas queriam aprender “igual aos amigos ouvintes”, pois ao comparar os seus cadernos com amigos ouvintes falavam que estava diferente, os dos amigos ouvintes tinham muito mais conteúdo que os deles. E dizia-lhes que estava trabalhando no ensino regular com as mesmas coisas, mostrava até as “provas”; e muitas vezes eles tinham ido até melhor. Num primeiro momento ficavam felizes, contudo diziam que eu era diferente dos outros professores de matemática, tinha mais paciência, explicava de muitas maneiras. Nesta época, realizamos uma atividade na qual eles foram assistir a algumas aulas junto com os ouvintes na escola em que eu trabalhava, para comprovar que o programa era o mesmo. O currículo escolar deve envolver os conteúdos desenvolvidos nas escolas comuns. Estes conteúdos são trabalhados na língua nativa das crianças, ou seja, na LIBRAS. A Língua Portuguesa deverá ser ensinada em momentos específicos das aulas e os alunos deverão saber que estão trabalhando com o objetivo de desenvolver esta língua. Em sala de aula será trabalhada a leitura e a escrita da Língua 35 Portuguesa. A oralização deverá ser feita por pessoas especializadas, caso a escola inclua este aspecto no ensino da Língua Portuguesa. Tendo em vista o tempo desprendido para a oralização, esta deverá ser feita fora do horário escolar para não prejudicar e limitar o acesso aos conteúdos curriculares pelos alunos surdos(QUADROS, 1994, p.21). A nossa primeira turma de ensino fundamental se formou no ano de 1998 e em 2000 a escola começou a oferecer o ensino médio. A escola, nesse período, pela especificidade de atendimento, contratou muitos profissionais que inicialmente só tinham formação na área específica (química, biologia...) e não para atuar na educação especial. Este fato resultou em muitas alterações no quadro docente, pois muito não se adaptaram à educação especial. Nessa mesma época, o livro didático e as apostilas ganharam maior influência na escola, desde os anos iniciais até o ensino médio. Pelo que analiso, a necessidade de “igualar” o nosso ensino ao do ensino regular, o livro didático parecia transmitir uma “sensação de segurança”, apesar de perceber que os professores continuavam com suas “velhas” estratégias. Particularmente, percebi uma pequena alteração na forma de conduzir minhas aulas. Sempre gostei de trabalhar de 5ª a 8ª série, mas, por querer continuar com as primeiras turmas de 5ª série, conforme os alunos iam passando de uma série para outra, eu também os acompanhava, acabando por me fixar como professora do ensino médio. Considero que os anos de experiência como professora me fizeram lidar com as situações de comportamento e aprendizagem com mais “naturalidade” e “tranqüilidade”. No entanto, percebo que, ao me fixar no ensino médio, obtive um ganho na questão de uma melhor fundamentação matemática, perdendo, porém, em outros aspectos. Como exemplo, pelos muitos anos de convivência com as mesmas turmas, houve uma acomodação natural, pois os problemas comportamentais foram amenizados, eles acabaram entrando no meu ritmo de trabalho (ou fui eu que “entrei no ritmo deles”?); quanto à aprendizagem, você também já se acostuma com as particularidades de cada um. A respeito da matemática, houve uma formalização maior dos “conteúdos”. Este se tornou mais técnico, com uma linguagem própria. Após alguns anos só no ensino 36 médio, apesar de todo aquele suposto vinculo afetivo criado, meu envolvimento com os alunos aos poucos se tornou mais acadêmico, mesmo considerando a necessidade de trocas referentes a assuntos da vida particular; pois, em função do número restrito de pessoas com as quais os alunos surdos em geral podem se comunicar, eles sabiam muito da nossa vida e nós da deles. Nas turmas atuais, percebo que há um distanciamento dessa intimidade, apesar de, se comparado com o ensino regular, neste último a distância ser bem maior. Considero que um dos motivos é de estarmos recebendo um maior número de alunos da 5ª série em diante, pois muitos alunos até esta série estão estudando nos seus municípios, em salas inclusivas; constroem, assim, um outro tipo de vínculo afetivo. A primeira e a segunda turma da escola, que iniciaram em 1995 e 1996, terminaram o ensino médio no ano de 2002. Hoje, alguns desses alunos já estão no ensino superior, em diferentes cursos: Artes Visuais, Odontologia, Pedagogia, Letras. O envolvimento dessas famílias com a escola, apesar de um pequeno distanciamento nos últimos anos, sempre foi efetivo. Percebo que o envolvimento dos pais com a escola, nestes últimos anos, está distante, assemelhando-se ao do ensino regular. Considero isso prejudicial ao trabalho, pois: Cada vez mais os estudos na área da Educação Especial apontam relevância da parceria família-profissional, não só do ponto de vista da promoção do desenvolvimento da pessoa com necessidades especiais, mas também como suporte social para todos os envolvidos, tendo em vista as estratégias de enfrentamento dos problemas decorrentes da condição de deficiência (TUMBULL & TUMBULL, 1997; MATSUKURA, 2001; ARAÚJO, 2001 apud ARAUJO, 2004, p. 175) Atualmente o quadro de funcionários da escola conta com seis profissionais surdos, que atuam como professores de língua de sinais, monitores, bibliotecária e zeladora. Como temos regularmente cursos, reuniões e palestras, é interessante que participem e opinem, para uma melhor educação escolar. Referente à formação acadêmica, os surdos procuram melhor aprimoramento: dos seis profissionais, temos uma formada e três cursando Pedagogia e uma cursando Letras. 37 Durante toda minha vida profissional procurei estar sempre envolvida em discussões sobre a educação, com participação em projetos, cursos, seminários, grupos de estudos, tudo que era possível. No ano de 2001, queria aperfeiçoar o meu conhecimento acadêmico e iniciei a busca pelo mestrado. Não pretendia fazer na área da “matemática pura”, queria na área de educação matemática; como este programa só era oferecido na cidade de Londrina, tentei e não fui selecionada na 1ª vez. Fiz algumas disciplinas como aluna especial. Mas no ano de 2003, a UEM implantou um programa de mestrado na área e tive a oportunidade de participar da seleção do mestrado em Educação para a Ciência e o Ensino de Matemática; muito mais preparada, consegui ser selecionada e iniciei a realização dessa pesquisa. A respeito do meu projeto de pesquisa, duas sempre foram as minhas paixões: a educação de surdos e a matemática; centrada nisso, realizei este trabalho privilegiando pelo menos uma das minhas paixões. Fui alertada de que muitos anos de convivência na escola poderiam atrapalhar no desenvolvimento da pesquisa. Ninguém, contudo, me convencia a desenvolver uma outra pesquisa; e queria fazê-la no meu próprio local de trabalho. Alegava acreditar na continuidade do meu trabalho com a educação de surdos, não somente por entender os “ganhos” mas também pela possibilidade de uma maior reflexão pessoal. Realmente, em determinados momentos da pesquisa abalei-me psicologicamente, principalmente por não encontrar o resultado que supostamente esperava, pois sabia que o meu trabalho também estava sendo analisado e não é fácil apontar as nossas falhas ou mesmo percebê-las, quando está em jogo todo um sistema de ideologia educacional. No segundo capítulo, apresento a minha opção pela teoria piagetiana, e a fundamentação teórica que serviu de suporte para a compreensão dos resultados encontrados na pesquisa. 38 Como esta pesquisa objetiva cotejar seus dados com uma pesquisa anterior realizada, que tem como referencial teórico adotado a teoria piagetiana, essa mesma opção nesse trabalho é decorrência natural. Além disso, a teoria piagetiana é a que melhor dá respostas às minhas indagações acerca do desenvolvimento cognitivo. Mas o argumento decisivo para a nossa opção pela teoria piagetina é que o pensamento é produto da ação interiorizada e que a sua origem não é diretamente atribuível à aquisição da linguagem, embora ela seja fundamental para o seu desenvolvimento qualitativo posterior. A partir de um rigoroso conjunto de experiências, Piaget infere que o pensamento é o produto da ação interiorizada. Segundo ele, a gênese da inteligência na criança não é diretamente atribuível à aquisição da linguagem, embora ela forneça ao pensamento os quadros categoriais que lhe permitem organizar melhor a experiência, coordenar as ações interiorizadas em sistemas de conjuntos e disto abstrair princípios da ação independente do eu (FERENCZI, 1974, apud FERNANDES, 1990, p. 41). Assim, por esta teoria demonstrar que a linguagem é necessária, porém não suficiente para o desenvolvimento cognitivo, entendo ser o referencial teórico mais adequado para uma pesquisa em que os sujeitos investigados são surdos. 39 2 O APORTE TEÓRICO [...] eu não sou nem empirista e nem um inatista. Eu sou um construtivista, isto é, eu penso que o conhecimento é um processo de construção de novas estruturas, decorrente da interação do sujeito com o real; ele não é pré-formado; há criatividade contínua. PIAGET Desenvolvemos este capítulo em três tópicos:no primeiro tópico, descrevemos alguns conceitos básicos da psicogenética que servem de suporte para a compreensão da pesquisa; no segundo, apresentamos os estágios de desenvolvimento cognitivo, utilizando a linguagem como fio condutor; no terceiro e último tópico, discorremos sobre a linguagem e o pensamento dos surdos, à luz da teoria piagetiana, a partir dos resultados de pesquisas realizadas no Brasil. 2.1 ALGUNS CONCEITOS BÁSICOS DA TEORIA DE PIAGET O postulado básico de Jean Piaget é que o conhecimento do sujeito provém de uma lógica, a lógica da ação. Diferentemente do empirismo clássico, que via o conhecimento como cópia do real, e do inatismo, que o concebia como produto de uma razão a “priori”, Piaget elaborou, no século XX, uma epistemologia afirmando o papel da interação sujeito e objeto na construção do conhecimento. Essa construção desempenhada pelo sujeito significa que este elabora o conhecimento. Para Piaget, “a palavra não tem o significado que o senso comum lhe empresta. Para ele, o termo ‘conhecer’ tem sentido claro: organizar, estruturar explicar, porém, a partir do vivido (do experimentado)” (CHIAROTTINO, 1988, p.3). Foi a partir da observação no desenvolvimento dos seus próprios filhos e de muitas outras crianças, que Piaget chegou à conclusão de que estas não pensam como os adultos. Alegou que, além de lhes faltarem certas habilidades, a maneira de pensar é diferente. 40 Os estudos de Piaget partiram da biologia, para entender os processos de pensamento. Foi o exame de diferentes espécies vivas que o levou à conclusão de que existem, em todas as formas de vida (animal ou vegetal), algumas funções que se mantêm invariantes e que são inerentes ao próprio conceito e funcionamento da vida. Essa funções são a adaptação e a organização. Todo ser vivo, desde o mais simples, como, por exemplo, uma ameba, até os mais complexos, como o ser humano, incluindo nesta relação os vegetais, possuem uma atividade interna que organiza seus processos e os regula com o meio. Cada órgão possui estruturas que funcionam de modo ordenado e definido, que o diferenciam dos demais e permitem sua integração no organismo total. Toda essa lógica, própria ao funcionamento biológico, revela a organização que está presente em todos os seres vivos. Da mesma maneira, todos os organismos adaptam-se às condições ambientais, modificando-se para melhor sobreviver em cada realidade. Podemos dizer que a organização e a adaptação são funções invariantes em todas as espécies vivas e, também, em todos os estágios do desenvolvimento cognitivo. [...] Do ponto de vista biológico, a organização é inseparável da adaptação: são dois processos complementares de um mecanismo único, sendo o primeiro o aspecto interno do ciclo, do qual a adaptação constitui o aspecto exterior. [...] A “concordância do pensamento com as coisas” e a “concordância do pensamento consigo mesmo” exprimem essa dupla invariante funcional da adaptação e da organização. Ora, esses dois aspectos do pensamento são indissociáveis: é adaptando-se às coisas que o pensamento se organiza e é organizado-se que as estruturas as coisa (PIAGET, 1987, p. 18-19). O processo de adaptação no ser humano realiza-se por meio da ação. A ação é um elemento nuclear na teoria piagetiana. É a partir da ação reflexa que a criança vai construir os esquemas motores. Exemplificando, temos: o esquema de pegar deriva do reflexo de preensão. Quem pega, pega algo, seja a chupeta, a mamadeira, o chocalho, etc. Para Piaget, não interessa o que a criança pega, mas sim como pega. As modificações introduzidas através de cada objeto (textura, tamanho, espessura, etc) fazem com que o esquema de pegar vá se modificando, diferenciando alguns elementos de outros. À medida que as experiências vão se tornando mais ricas, a 41 criança tem maiores e melhores oportunidades de inserir o objeto do conhecimento num sistema de realizações, construindo desse modo as estruturas mentais. Segundo Piaget (apud Chiarottino, 1988), há três tipos de estruturas no organismo humano: • as estruturas totalmente programadas: como as do aparelho reprodutor, que nos capacitam a prever determinados comportamentos em determinadas épocas (ex.: maturação sexual); • as estruturas parcialmente programadas: como as do sistema nervoso, cujo desenvolvimento e construção dependem em grande parte do meio; • as estruturas nada programadas: que são as estruturas mentais, específicas para o ato de conhecer. Esta última estrutura é trazida pela teoria de Piaget: [...] saber supõe estruturas subjacentes que denunciam o funcionamento das estruturas mentais com sua lógica, que é a mesma para toda a espécie humana. As “diferenças” se explicam em termos da interação organismo-x-meio. As possibilidades orgânicas dos assim chamados indivíduos sadios são as mesmas, mas as construções, tanto endógenas quando exógenas, vão depender da solicitação do meio. O importante é que a lógica das ações é a mesma em qualquer parte do planeta. Os conteúdos é que variam. Não tem sentido, por exemplo, dizer que a lógica dos índios é diferente da nossa (CHIAROTTINO, 1988, p. 22). Piaget considera como estrutura mental a estrutura que contém elementos e as relações que os ligam, sem ser possível caracterizar ou definir estes elementos independentes das relações em jogo. Piaget acredita, portanto, que existem estruturas específicas para o ato de conhecer – as estruturas mentais - que sendo orgânicas, não estão programadas no genoma; sua ‘’construção” vai depender das solicitações do meio. Essa posição supera a dicotomia meio-x- organismo. De fato, as estruturas mentais, sendo orgânicas, aparecem como fruto da interação entre os dois – colocando, assim, uma terceira possibilidade que sobrepuja a “contradição” presente na idéia de 42 organismo, pois no que se refere às estruturas mentais, o orgânico já pressupõe o meio (CHIAROTTINO, 1988, p.9). Em cada estágio, a criança constrói estruturas diferentes (sistema de relações) para explicar o mundo que a cerca. Assim, as estruturas são variáveis e construídas no sentido de uma equilibração progressiva, servindo cada estágio de suporte para novas construções. [...] numa perspectiva de equilibração, uma das fontes do progresso no desenvolvimento dos conhecimentos deve ser procurada nos desequilíbrios como tais, que por si só obrigam um sujeito a ultrapassar seu estado atual e a procurar o que quer que seja em direções novas (PIAGET, 1976, p.18). Piaget descreve que são quatro os fatores explicativos do desenvolvimento humano. A maturação é o primeiro fator que influencia o desenvolvimento: É evidente, de início, que não se poderia interpretá-los em função apenas do amadurecimento do sistema nervoso, pois que, se a ordem de sucessão das fases permanece constante, a idade cronológica média que caracteriza cada uma delas pode variar de um ambiente para outro um função das influências sociais e da experiência adquirida (cf. os resultados de Elkind em Boston e de Laurendeau- Pinard em Montreal, a cerca de 250 milhas de distância) (PIAGET, 1975, p. 29) O segundo fator é o relacionado com a experiência ou contato com objetos. A experiência adquirida e as aprendizagens que ela provoca desempenham naturalmente um papel essencial e constituem uma condição necessária para o desenvolvimento operatório. Mas ela não é mais suficiente, pois uma conservação como a de substância não se pode apoiar sobre nenhum dado perceptivo direto (PIAGET, 1975, p.29) A transmissão social é o terceiro fator que influencia no desenvolvimento. Como exemplo, podemos destacar o papel da linguagem no desenvolvimento cognitivo, pois, a partir de uma certa idade, a transmissão do conhecimento é marcado pela possibilidade de trocas verbais. Na adolescência, é inquestionável
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