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ALESSANDRA YULI TERAZAKI UMA QUESTÃO DE GÊNERO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS CANOAS, 2007 1 ALESSANDRA YULI TERAZAKI UMA QUESTÃO DE GÊNERO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Trabalho de conclusão apresentado à banca examinadora do curso de Relações Internacionais do UNILASALLE - Centro Universitário La Salle, como exigência parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Relações Internacionais, sob orientação da Prof. Dra. Ana Maria Colling. CANOAS, 2007 2 TERMO DE APROVAÇÃO ALESSANDRA YULI TERAZAKI UMA QUESTÃO DE GÊNERO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Trabalho de conclusão aprovado como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Relações Internacionais do Centro Universitário La Salle – UNILASALLE, pela seguinte banca examinadora: _________________________________________________________ Prof. Dr.Alfa Oumar Diallo UNILASALLE _________________________________________________________ Prof. Dra. Ana Maria Colling UNILASALLE _________________________________________________________ Prof. Maria Cristina Caminha de Castilhos França UNILASALLE Canoas, __ de Novembro de 2007. 3 DEDICATÓRIA A todas as mulheres que conseguiram libertar-se e para as que estão por conseguir. 4 AGRADECIMENTO A todas as mulheres que viveram por nós. Aquelas que romperam o silêncio e tornaram-se protagonistas de suas próprias vidas e histórias. Que não tiveram medo de amar. Aos meus pais por tudo que sou e pelo amor incondicional que me faz superar a saudade. 5 “Há quem observa a realidade assim como é, e se pergunta por que; e há quem imagina a realidade como nunca foi, e se pergunta por que não.” George Bernard Shaw 6 RESUMO A violência contra a mulher está fundamentada na desigualdade de poder entre os sexos, cuja causa está vinculada às estruturas políticas, econômicas, culturais, educacionais, religiosas. Afeta a vida de milhões de mulheres em todo o mundo, em todos os aspectos físicos e psicológicos. Ultrapassa todas as barreiras culturais e religiosas, impedindo o direito das mulheres à participação plena na sociedade. Ela engloba uma vasta gama de violações dos direitos humanos e deve ser encarada como uma questão de grave preocupação para a sociedade internacional. Palavras-chaves: gênero, violência, mulheres, relações internacionais. ABSTRACT Violence against women is based on the inequality of power between sexes, which cause is bond to political, economic, cultural, educational and religious structure. It affects the lives of millions of women around the world, in all physical and psychological aspects. It exceeds all cultural and religious barriers, impeding the right of women to participate fully in society. It encompasses a wide range of human rights violations and should be taken as a matter of serious concern to the international society. Keys words: gender, violence, women, international relations. RESUMEN La violencia contra la mujer esta fundada en la desigualdad de poder entre los sexos, cuya causa esta vinculada en las estructuras políticas, económicas, educacionales, religiosas. Afecta la vida de millones de mujeres en todo el mundo, en todos los aspectos físicos y psicológicos. Pasando todas las barreras culturales y religiosas, impidiendo el derecho de las mujeres a participar plenamente en la sociedad. Esto engloba una vasta gama de violaciones a los derechos humanos y debe ser encarada como una cuestión de grave preocupación por la sociedad internacional. Palabras claves: género, violencia, mujeres, relaciones internacionales. 7 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................09 2 RELAÇÕES DE GÊNERO ................................................................................................12 2.1 Gênero ...............................................................................................................................13 2.2 Sistema de pares binários – dualismo sexual .................................................................15 2.3 A dominação masculina ...................................................................................................18 2.4 Sistema patriarcal ............................................................................................................20 2.5 Feminismo .........................................................................................................................21 3 VIOLÊNCIA DE GÊNERO ...............................................................................................26 3.1 Causas da violência ..........................................................................................................29 3.2 Tipos de violência .............................................................................................................32 3.2.1 Violência doméstica ........................................................................................................33 3.2.2 Práticas tradicionais ........................................................................................................34 3.2.2.1 Mutilação genital feminina ..........................................................................................35 3.2.2.2 Preferência por filhos homens ......................................................................................35 3.2.2.3 Crimes relacionados ao dote e os casamentos precoces ..............................................36 3.2.3. Estupro ...........................................................................................................................37 3.2.4 Assédio sexual .................................................................................................................38 3.2.5 Prostituição e tráfico .......................................................................................................38 3.2.6 Violência contra a mulher migrante ................................................................................40 3.2.7 Pornografia ......................................................................................................................41 3.2.8 Violência contra a mulher sob custódia ..........................................................................41 3.2.9 Violência contra a mulher em situações de conflitos armados .......................................42 3.2.10 Violência contra a mulher refugiada ou deslocada .......................................................43 3.3 Conseqüências da violência .............................................................................................44 4 VIOLÊNCIA DE GÊNERO COMO PROBLEMÁTICA INTERNACION AL ...........47 4.1 As Organizações das Nações Unidas e as iniciativas para combater a violência de gênero ......................................................................................................................................49 4.2 Normas jurídicas internacionais .....................................................................................54 4.3 Responsabilidade do Estado ............................................................................................578 5 CONCLUSÃO .....................................................................................................................60 REFERÊNCIAS .....................................................................................................................62 ANEXOS..................................................................................................................................65 9 1 INTRODUÇÃO Utiliza-se o termo gênero para designar as relações entre homens e mulheres, pois gênero é a construção cultural e social da diferença entre os sexos. Gênero não significa o mesmo que sexo, ou seja, enquanto sexo se refere à identidade biológica de uma pessoa, gênero é um elemento das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e é uma forma primária de dar significado às relações de poder. As relações de poder, dominação e exploração instituídas ao logo dos tempos estão sob a forma de princípios de divisão que classificam todas as coisas e práticas do mundo segundo oposições. A questão dos pares binários como entre masculino e feminino, público e privado, noite e dia, etc. é a hierarquização dos pares, onde sempre um é qualificado automaticamente desqualificando o outro. Nesta lógica a mulher tem sido colocada no lado inferior, negativo e dominado nesse sistema de dualismos. Através das práticas rituais praticadas ao longo do tempo, a dominação masculina incorporou-se ao coletivo, tornando-se uma construção social naturalizada, excluindo assim todo questionamento quanto à legitimidade e continuação desta dominação em todas as culturas. Esta subordinação internalizada tem-se perpetuado ao longo dos séculos, sendo a mulher sempre submetida a uma estrutura que coíbe seus desejos e direitos e a delimita ao que foi considerado como sua natureza feminina: sua função de fêmea, mãe, esposa, dona de casa, objeto, etc. Em sua vida restrita ao privado a violência é uma constante, pois esta está intimamente ligada com sua dominação. A violência contra a mulher é a arma primeira do patriarcado, ela reflete e perpetua a dominação masculina. Não se restringe a pobreza, ignorância, a determinados países, etc. senão que ocorre em todas as sociedades, em todos os âmbitos da vida. Apresenta-se em muitas formas, desde a violência no seio da família e comunidade até a perpetrada pelo 10 Estado. Entretanto, em todas suas formas, a violência contra as mulheres acarreta inúmeras conseqüências às suas vítimas. Esta questão tem ganhado visibilidade ao logo da história, a começar com o surgimento das idéias de igualdade e direitos humanos até o atual florescimento dos movimentos internacionais de mulheres. As relações de gênero são um tema que atinge a todos, pois não possuem fronteiras geográficas, econômicas, ideológicas, religiosas e/ou raciais; estando presentes em todas as culturas da humanidade. Por este motivo, torna-se imprescindível que a comunidade internacional crie normativas para promover a igualdade entre os sexos e a eliminação da violência contra a mulher. O presente trabalho aborda inicialmente a condição de subordinação da mulher que está presente nas relações de gênero. A começar com a explanação do significado de gênero baseando-se no sistema binário de oposições, que cria assim uma dominação masculina. Esta dominação é internalizada pelas práticas e hábitos humanos perpetrando-se na forma do sistema patriarcal. Com o surgimento do movimento feminista, este sistema e as concepções existentes sobre a natureza da mulher serão contestados. A busca pela igualdade entre os sexos fez com que a mulher ganhasse mais espaço nas questões públicas, desta forma a violência contra a mulher ganha visibilidade. Assim, dando seqüência a este trabalho será abordada tal violência, seu conceito, suas causas, tipos e conseqüências. Por fim, considerando que a violência contra a mulher é uma questão internacional, faz-se fundamental conhecer o desenvolvimento da questão da mulher e da violência cometida contra ela nas Organizações das Nações Unidas, bem como as normas jurídicas internacionais pertinentes a este tema e a responsabilidade dos Estados. Cabe salientar que não serão abordadas as iniciativas das organizações não- governamentais, por estas formarem um leque muito vasto de atividades. Entretanto, sua atuação é de fundamental importância para a comunidade internacional, pois é através destas organizações que muitas vezes se colocam em prática as pesquisas no campo da violência contra a mulher, bem como são efetivadas as recomendações internacionais e nacionais para o combate e eliminação desta violência. Ainda é preciso mencionar a existência de instrumentos regionais de proteção à mulher, que por tratarem de recomendações já mencionadas nos instrumentos das Nações 11 Unidas e, por vezes, recomendações especificas, não serão citados neste trabalho. Todavia é interessante salientar que alguns destes instrumentos regionais trazem considerações e recomendações mais abrangentes que as das Nações Unidas. Este trabalho traz uma compilação de anexos considerados importantes documentos referentes à questão dos direitos humanos da mulher, assim como sobre a violência exercida contra esta. Estes são: Declaração da Mulher e Cidadã de Olympe de Gouges; Declaração Universal dos Direitos Humanos; Declaração sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher; Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher; Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher; Declaração de Pequim; Protocolo Facultativo à CEDAW. 12 2 RELAÇÕES DE GÊNERO As organizações humanas moldam-se através dos tempos. Nem sempre foram de dominação de um sexo sobre o outro do modo que vivenciamos hoje na organização patriarcal. Estudos antropológicos indicam que, no início da história da humanidade, as primeiras sociedades humanas eram coletivistas, tribais, nômades e matrilineares. Tais sociedades organizavam-se predominantemente em torno da figura da mãe, a partir da descendência feminina, uma vez que desconheciam a participação masculina na reprodução. Os papéis sexuais e sociais de homens e de mulheres não eram definidos de forma rígida e as relações sexuais não eram monogâmicas. Todos os membros envolviam-se com a coleta de frutas e de raízes, alimentos dos quais sobreviviam, bem como a todos cabia o cuidado das crianças do grupo. Pode-se supor que o domínio masculino remete-se ao paleolítico como resultado da valorização da caça como atividade fundamental. Com a descoberta da agricultura, as comunidades passaram a se fixar em um território. Aos homens cabia a caça, e às mulheres o cultivo da terra e o cuidado das crianças. Uma vez conhecida a participação do homem na reprodução e, mais tarde, estabelecida a propriedade privada, as relações passaram a ser predominantemente monogâmicas, a fim de garantir herança aos filhos legítimos. O corpo e a sexualidade das mulheres passou a ser controlado, instituindo-se então a família monogâmica, a divisão sexual e social do trabalho entre homens e mulheres. Instaura-se, assim, o patriarcado, uma nova ordem social centrada na descendência patrilinear e no controle dos homens sobre as mulheres. Conforme Muraro e Boff: Nas sociedades de caça iniciam-se as relações de força, e o masculino, que passa a ser gênero predominante, vem a se tornar hegemônico no período histórico – há oito mil anos -, quando destina a si o domínio público e a mulher, o privado. A relação homem/mulher passa ser de dominação e a violência,doravante, é a base das relações entre os grupos e entre a espécie e a natureza. Então é o principio do masculino que governa o mundo sozinho. (2002, p. 13). 13 Deste modo, a mulher passa a ocupar, como regra geral, uma posição subordinada ao homem, dando início às relações de gênero. O conceito de gênero que em sua formulação tinha como princípio a diferença de sexo em uma conotação biológica, dividindo o mundo em feminino e masculino, a partir da década de 1960 começou a ser utilizado nas ciências sociais com um significado especifico para designar um conjunto de atitudes, comportamentos e normas que cada cultura atribui a cada um dos sexos de maneira diferenciada. Daí o sistema de gênero passa a ser uma construção sociocultural dos sexos, de forma binária e de exclusão, que põe o homem e a mulher em uma relação hierárquica e de poder, especificamente de dominação de gênero masculino sobre o feminino, sendo a violência arma de coerção e de imposição de tal dominação. 2.1 Gênero Utiliza-se o termo gênero para designar as relações sociais entre os sexos. “Gênero não pretende significar o mesmo que sexo, ou seja, enquanto sexo se refere à identidade biológica de uma pessoa, gênero está ligado à sua construção social como sujeito masculino ou feminino.” (LOURO, 1996, p. 9). Em sua definição conforme Scott (1995, p. 86), gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e é uma forma primária de dar significado às relações de poder em que suas representações são apresentadas como naturais e inequivocaveis. Isto implica que a condição de subordinação da mulher não está determinada pela natureza, pelo seu sexo, mas é resultante do jogo de poder, da dominação masculina e da estrutura social e política onde esta dominação já está internalizada. Nas palavras de Joan Scott: Por gênero me refiro ao discurso da diferença dos sexos. Ele não se relaciona simplesmente às idéias, mas também às instituições, às estruturas, as práticas cotidianas, como aos rituais, e tudo o que constitui as relações sociais. O discurso é o instrumento de entrada na ordem do mundo, mesmo não sendo anterior à organização social, é dela inseparável. Segue-se, então, que o gênero é a organização social da diferença sexual. Ele não reflete a realidade biológica primeira, mas ele constrói o sentido desta realidade. A diferença sexual não é causa originária da qual a organização social poderia derivar: ela é antes, uma estrutura social móvel que deve ser analisada nos seus diferentes contextos históricos. (1998, p. 15, tradução nossa) Deste modo, as relações entre gênero podem ser interpretadas como um fato não natural, mas uma relação social construída e incessantemente remodelada ao longo dos séculos. 14 Assim, para Scott (1995, p.75) o termo gênero é uma forma de indicar as construções culturais sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres, sendo o gênero assim, uma categoria imposta sobre o corpo sexuado à qual concepção é criada pelo próprio gênero, ou seja, o gênero não é um determinismo a ser inscrito em corpos anatomicamente diferenciados. Neste sentido Butler afirma que: O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é meio discursivo/cultural pelo qual ‘a natureza sexuada’ ou ‘um sexo natural’ é produzido e estabelecido como ‘pré-discursivo’, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutral sobre a qual age a cultura. (2003, p. 25, grifo do autor). É certo que se nasce homem ou mulher, biologicamente falando, mas as representações sociais e culturais que se constituem sobre o sexo são elementos de caráter ideológico que foram elaborados em um processo histórico de cada cultura e que configuraram as identidades de gênero. Portanto, pode-se dizer, e Simone de Beauvoir (1970) já o disse: “não se nasce mulher, mas torna-se mulher”. Classificados os gêneros (feminino e masculino), lhes são atribuídos um conjunto de funções, qualidades, atividades, relações sociais, formas de comportamento, etc. de maneira distinta, que os diferenciam entre si e que se encontram estreitamente relacionados com as relações de gênero. A conseqüência de tais representações sociais dos sexos traz o consenso de que o homem é a norma, partindo do pressuposto destas construções simbólicas baseadas no dualismo sexual que colocam os sexos como opostos que se definem um ao outro. É dado que o que é simbólico avança para o político e passa a ser a realidade objetivada. Assim, a idealização objetivada torna-se subjetiva por meio das instituições formadoras de consciência que fornecem o nosso modo de viver a realidade, como se esta fosse formada por uma unidade de sentindo inquestionável. Desta forma: A humanidade é masculina, e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo. [...] A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro. (BEAUVOIR, 1970, p.14). À luz desta questão, Eagleton afirma: A mulher é o oposto, o outro do homem: ela é o não-homem, o homem a que falta algo, a quem é atribuído um valor sobretudo negativo em relação ao princípio primeiro masculino. […] A mulher não é apenas um outro ser, no sentido de alguma coisa fora de seu alcance, mas um outro intimamente relacionado com ele, a imagem 15 daquilo que ele não é e, portanto, uma lembrança essencial daquilo que ele é. (1983, p.143). Deste modo, o conceito de gênero tem a finalidade de deslocar o foco das relações entre os homens e mulheres, antes concebidas no âmbito biológico e, por conseguinte tidas como naturais, para o âmbito social e culturalmente criado, percebendo-se assim que as realidades históricas são construídas, determinando o social, o cultural e as subjetividades que definem o que é ser homem e o que é ser mulher. Para Sayão (2003, p.122), passamos a ser homens ou mulheres e as construções culturais provenientes dessa diferença são a origem de inúmeras desigualdades e hierarquias que podem ser presenciadas ao longo da história humana, produzindo significados, representações, estruturas e meios para que se perpetuem. Scott nesse sentido afirma: Gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o poder político foi concebido, legitimado e criticado. Ele se refere à oposição homem/mulher e fundamenta ao mesmo tempo o seu sentido. Para reivindicar o poder político, a referência tem que parecer segura e fixa, fora de qualquer construção humana, fazendo parte da ordem natural ou divina. Desta forma, a oposição binária e o processo social das relações de gênero tornam-se, ambos, partes do sentido do próprio poder. (1995, p.92). Analisar as relações de gênero é um modo de se compreender a dominação masculina que por se repetir em quase todas as culturas ao longo da humanidade, encontra-se cristalizada e quase acima da questionabilidade, não fosse à resistência dos sujeitos dominados que no último século desdobrou-se em marchas, protestos, reivindicações e teorizações a respeito desta disposição, até então tida como natural das coisas. 2.2 Sistema de pares binários – dualismo sexual Nossa percepção do mundo é baseada em dicotomias. Os signos são construídos binariamente o que nos leva sempre a pensar em uma realidade formada por pares que se opõe entre si. É baseado nesta conexão que a masculinidade é construída em oposição à feminilidade. Esta construção se reflete em diferentes comportamentossociais e reforçam as desigualdades de gênero. A oposição binária afirma, de forma categórica e sem equívoco, o sentido do masculino e do feminino, apresentando-os como dualidades naturalmente opostas e inconciliáveis. O sistema de oposições binárias é a transposição das diferenças biológicas para o plano da cultura estabelecendo-se oposições homólogas ancoradas em dicotomias que 16 atribuem características positivas ao masculino/homem e negativas ao feminino/mulher, assim, são estabelecidos significados ao sexo e à natureza tomando-se o masculino como referência paradigmática e o feminino como polaridade estigmatizada. Estes conceitos normativos são estabelecidos e expressos nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas; são internalizados e continuamente reafirmados pelas estruturas que os formam. Conforme Bourdieu: Se esta divisão parece estar ‘na ordem das coisas’, como se diz algumas vezes para falar daquilo que é normal, natural, a ponto de ser inevitável, é porque ela está presente, em estado objetivado, no mundo social e também, em estado incorporado, nos habitus1, onde ela funciona como um princípio universal de visão e de divisão, como um sistema de categorias de percepção, de pensamento e de ação. (1995, p. 137, grifo do autor). Deste modo: Pelo fato de estar inscrito tanto nas divisões de mundo social ou, mais precisamente, nas relações sociais de dominação e de exploração instituídas entre os sexos, como nos cérebros, sob a forma de princípios de divisão que levam a classificar todas as coisas do mundo e todas as práticas segundo distinções redutíveis à oposição entre o masculino e o feminino, o sistema mítico-ritual é continuamente confirmado e legitimado pelas próprias práticas que ele determina e legitima. Tendo sido colocadas pela taxonomia oficial, no lado do inferior, do úmido, do baixo, do curvo, do contínuo, as mulheres vêem atribuir todos os trabalhos domésticos, isto é, os trabalhos privados e escondidos e até mesmo invisíveis ou vergonhosos, como a criação das crianças e dos animais, e uma boa parte dos trabalhos exteriores, principalmente aqueles referente à água, às plantas, ao verde (como a capina e a jardinagem), ao leite, à madeira, e muito especialmente os mais sujos (como o transporte do estrume), os mais monótonos, os mais penosos e os mais humildes. Quanto aos homens, estando situados no lado do exterior, do oficial, do público, do direito, do seco, do alto, do descontínuo, eles se arrogam todos os atos ao mesmo tempo breves, perigosos e espetaculares que, como a matança do boi, a lavragem ou a colheita, sem falar do assassinato ou da guerra, marcam rupturas no curso comum da vida, e fazem intervir instrumentos fabricados pelo fogo. (BOURDIEU, 1995, p. 138). Outros tipos de associações entre sexo e fenômenos naturais, como luz e sombra, reforçam as dualidades. Neste caso o sol está associado ao homem e a lua está associada à mulher. Identificando o quente com o homem e o frio com a mulher. O quente também está associado com a vida, a luz, o dia, a claridade e a energia. O frio, ao contrário, está associado com a morte, a escuridão, a noite, a sombra e a inércia. Assim, por mecanismos diretos ou tortuosos as diferenças genitais são associadas com todas estas dicotomias. O pênis, órgão sexual externo e bastante visível penetra a vagina, órgão sexual interno e quase invisível. Daí existir uma associação da penetração como sendo 1 Surge com o sociólogo Pierre Bourdieu e é considerado como constituindo todas as experiências passadas, matriz de percepções, apreciações e ações. É uma percepção interacionista da sociedade. O habitus está inerente a cada actor social e de certa forma define-o, tal como aos seus gostos e estilo de vida, estando associado à pertença a uma classe social, e tendo de ser ajustado quando existe mobilidade. 17 um ato ativo e o ser penetrado como passivo. Mas ativo é definido como atuante, intenso, vivo, ágil e enérgico. Mesmo considerando que no ato sexual existe ação de ambas as partes, o sexismo consiste exatamente em identificar o ativo com a ação masculina e o passivo com a ação feminina, uma vez que o senso comum associa a ereção do pênis com rigidez, energia, ação e potência, que são associadas ao ativo e não ao passivo. Assim: Não é o falo (ou sua ausência) que é o princípio gerador dessa visão de mundo, mas é essa visão do mundo que, estando organizada [...] segundo a divisão em gêneros relacionais, masculino e feminino, pode instituir o falo [...] em princípio da diferença entre os sexos (no sentido de gêneros), e basear na objetividade de uma diferença natural entre os corpos biológicos a diferença social entre duas essências hierarquizadas. (BOURDIEU, 1995, p.149) Neste sentido, ao se definir a posição superior do ato sexual como naturalmente masculina, outras situações sociais passam a ser identificadas ao masculino, pois o superior não quer dizer apenas acima, mas também elevado, grau máximo, de qualidade excelente, autoridade mais elevada. Uma forma comum de se relacionar o biológico com o social é através da identificação do mundo público como um território masculino e ativo e o mundo privado e doméstico como um território feminino e passivo. Segundo Colling: Ao feminino caracterizado como natureza, emoção, amor, intuição é destinado o espaço privado; ao masculino, cultura, política, razão, justiça, poder, o espaço público. O homem público sempre foi reconhecido pela sua importância, participando das decisões de poder. Já a mulher pública, sempre foi vista como uma mulher comum que pertence a todos, não célebre, não ilustre, não investida de poder. (2004) O espaço público, por oposição ao privado, designa o conjunto dos direitos e deveres que definem a cidadania e constrói a política como o centro da decisão e do poder. As mulheres são excluídas do espaço público, são condenadas aos espaços privados e a uma censura implacável de todas as formas de expressão pública, verbal ou mesmo corporal, fazendo da sua entrada em um espaço dito masculino uma prova terrível. Assim, a mulher incorporou essa espécie de agorafobia2 socialmente imposta que pode sobreviver muito tempo à abolição das proibições mais visíveis, e que leva as mulheres a se excluírem a si mesmas da ágora3 , perpetuando assim, a concepção do espaço público ser um espaço exclusivamente masculino. 2 Fobia a ágora, aos espaços públicos. 3 Ágora era a praça principal na constituição cidade grega da Antigüidade clássica. Enquanto elemento de constituição do espaço urbano, a ágora manifesta-se como a expressão máxima da esfera pública na urbanística grega, sendo o espaço público por excelência. É nela que o cidadão grego convive com o outro, onde ocorrem as discussóes políticas e os tribunais populares: é, portanto, o espaço da cidadania. 18 A luta das mulheres pela sua inclusão na categoria de cidadãos, tanto na defesa do sufrágio universal quanto no ataque à sua menoridade civil, que as transformavam em propriedade privada de seus maridos é um exemplo concreto da dicotomia entre o público e o privado. Os valores femininos são estabelecidos como os avessos dos valores masculinos, estes tomados como a regra e padrão. O homem é o verso e a mulher o reverso. Em vários casos, a mulher é definida pelo inverso do homem, como algo menos perfeito. Ser homem é não ser mulher, diferenciação esta que está vinculada ao dualismo sexual. Assim, o sistema de pares binários transforma todos os fenômenos em um dualismo sexuado, legitimando as desigualdades de gênero na sociedade, reforçando o poder e a dominação masculina e contribuindo para limitar os direitos das mulheres. Deste modo, a mudança dos comportamentos dosindivíduos dificilmente ocorrerá sem a alteração deste sistema. 2.3 Dominação masculina É através do gênero que se constrói e implementa significados para às diferenças sexuais, por meio de um sistema de pares binários e relações hierarquizadas, bases da dominação masculina. O gênero “produz e é produzido, organiza e é organizado” (MEYER, 1996, p.49), e é o meio pelo qual os seres humanos aprendem a reconhecer-se e tornar-se homens e mulheres. As representações sociais do homem e da mulher não regulam apenas as relações inter-pessoais entre homens e mulheres, mas também entre homens e homens e mulheres e mulheres. Todavia não se restringem ao âmbito inter-pessoal, pois são igualmente marcadas pela dominação de gênero as relações no âmbito econômico, político e religioso. Isso porque a objetividade da dominação já é objetivação internalizada, pois já está no habitus humano, traduzido em estruturas, costumes, tradições e normas, assimilados como certos, normais e naturais. Deste modo, pode-se dizer que uma vez que o significado do sexo é estabelecido pelo gênero, o nosso sexo define se seremos dominados ou dominadores. Sendo o produto da inscrição no corpo de uma relação de dominação, as estruturas estruturadas e estruturantes do habitus são o princípio de atos de conhecimento e de reconhecimento práticos da fronteira mágica que produz a diferença entre os dominantes e os dominados, isto é, sua identidade social, inteiramente contida nesta relação. Esse conhecimento através do corpo é o que leva aos dominados a construir 19 para a sua própria dominação ao aceitar tacitamente, fora de qualquer decisão da consciência e de qualquer manifestação da vontade, os limites que lhes são impostos, ou mesmo produzir ou ao reproduzir por sua prática, limites abolidos na esfera do direito. (BOURDIEU, 1995, p. 146, grifo do autor). A lógica interna da dominação só funciona através da violência simbólica4, onde os dominados utilizam categorias do ponto de vista dos dominantes para reconhecer-se, o que faz com que o dominado não perceba que aquela é uma relação de forças. Assim: A violência simbólica impõe uma coerção que se institui por intermédio do reconhecimento extorquido que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante na medida em que não dispõe, para o pensar e para se pensar, senão de instrumentos de conhecimento que tem em comum com ele e que não são senão a forma incorporada da relação de dominação. (BOURDIEU, 1995, p. 142). Uma vez que dominantes e dominados possuem a mesma percepção de suas relações de gênero, a dominação masculina é tida como condição verdadeira universal, pois seus conceitos formadores acham-se inscritos na subjetividade e no habitus humano. Desta forma, o habitus é um conceito fundamental para entender como a prática da dominação adquire um caráter natural, dado e quase divino, em outras palavras, é a objetividade das práticas subjetivas. Pois segundo Bourdieu: É, com efeito, através dos corpos socializados, isto é dos habitus, e das práticas rituais parcialmente retiradas do tempo pela estereotipagem e pela repetição indefinida, que o passado se perpetua na longa duração da mitologia coletiva, relativamente libertada das intermitências da memória individual. Assim, o princípio de divisão que organiza esta visão de mundo, não se revela jamais de modo tão evidente e tão coerente quanto no caso limite e, por isso mesmo paradigmático, de um universo social onde ele recebe o reforço permanente das estruturas objetivas e de uma expressão coletiva e pública. (1995, p. 135). Bourdieu ainda afirma que os agentes específicos, o homem e a mulher, e as instituições, escolas, igrejas, Estado, família, etc. são estruturadas e estruturantes no processo de naturalização da dominação, ou seja, estes agentes ao mesmo tempo em que têm poder de moldar a sociedade são por ela moldados, na medida em que não é possível estabelecer onde essa reprodução se inicia. Assim faz com que a dominação masculina esteja “suficientemente assegurada para precisar de justificação: ela pode se contentar em ser e em se dizer nas práticas e discursos que enunciam o ser como se fosse uma evidência, concorrendo assim para fazê-lo ser de acordo com o dizer.” (BOURDIEU, 1995, p. 137). Por fim: As relações de gênero têm como transversal em sua dinâmica a dominação e o poder. O poder necessariamente implica numa relação de dominação, no nosso caso 4 Forma invisível de coação que se apóia, muitas vezes, em crenças e preconceitos coletivos. A violência simbólica se funda na fabricação contínua de crenças no processo de socialização, que induzem o indivíduo a se enxergar e a avaliar o mundo seguindo critérios e padrões do discurso dominante. 20 específico, de homens sobre mulheres. Entretanto, pensar esta dinâmica como unilateral, ou seja, como uma barbárie masculina é incorrer no erro da vitimização. A mulher também é sujeito nesta relação, sujeito dominado, heterônomo, não autônomo, mas o é. (CHAUÍ, 1985). 2.4 Sistema patriarcal O patriarcado surgiu da tomada de poder pelos homens, na criação da família monogâmica. Com o intuito de preservar seus filhos de sangue, apropriaram-se da sexualidade e reprodução da mulher, para ter garantia de ter filhos legítimos. A imposição de sua autoridade e descendência criou um simbolismo que através dos tempos perpetuou-se como a única estrutura possível. Pois, devido à dominação masculina naturalizada e incorporada ao coletivo, as estruturas sociais patriarcais vêm sendo constantemente legitimadas e perpetuadas ao longo dos séculos. Assim: Como categoria de análise, o patriarcado não pode ser entendido apenas como dominação binária macho-fêmea, mas como uma complexa estrutura política piramidal de dominação e hierarquização, estrutura estratificada por gênero, raça, classe, religião e outras formas de dominação de uma parte sobre a outra. Essa dominação plurifacetada construiu relações de gênero altamente conflitativas e desumanizadoras para o homem e principalmente para a mulher. (MURARO; BOFF, 2002, p. 55). É através dos sistemas de oposições já naturalizados, onde o masculino é mais valorizado que o feminino, que se da a dominação masculina que perpetua o patriarcado e se reafirma através dele. Conforme Bourdieu (2002, p.11) é devido aos instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos que cumprem uma função de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra. Pois a base da dominação consiste na internalizarão dos significados das diferenças entre os pares binários e uma vez naturalizada a dominação, ela passa a estruturar todas as faces da vida humana. Desta forma Castells define que: O patriarcado é uma das estruturas sobre as quais se assentam todas as sociedades contemporâneas. Caracteriza-se pela autoridade, imposta institucionalmente. Do homem sobre a mulher e filhos no âmbito familiar. Para que essa autoridade possa ser exercida, é necessário que o patriarcalismo permeie toda a organização da sociedade, da produção e do consumo à política, à legislação e à cultura. Os relacionamentos inter-pessoais e, consequentemente, a personalidade, também são marcados pela dominação e violência que têm sua origem na cultura e instituições do patriarcalismo. (2002 , p. 169). Assim, o patriarcado já internalizado nas instituições da sociedade e sua estrutura naturalizada impossibilita pensar a mudança, pois cristaliza a dominação masculina, condena 21 a mulher eternamente a ser o subordinado, o outro. “Ela não é senão o que o homem decide que seja”. (BEAUVOIR, 1970, p.14). Todas as mulheres são educadas desde a infância na crença de que o idealde seu caráter é absolutamente oposto ao homem, que não podem ter iniciativa e guiar-se segundo sua vontade, que sua natureza às restringe a submissão e ao consentimento da vontade dos demais. Na medida em que a família e as relações entre os sexos mudaram, o patriarcado também se modificou, entretanto a idéia de dominação masculina contida no patriarcado já cristalizada da dominação masculina perpetua-se, pois a estrutura patriarcal impossibilita pensar em uma mudança. Conforme Narvaz e Koller: O patriarcado moderno vigente alterou sua configuração, mas manteve as premissas do pensamento patriarcal tradicional. O pensamento patriarcal tradicional envolve as proposições que tomam o poder do pai na família como origem e modelo de todas as relações de poder e autoridade, o que parece ter vigido nas épocas da Idade Média e da modernidade até o século XVII. O discurso ideológico e político que anuncia o declínio do patriarcado, ao final do século XVII, baseia-se na idéia de que não há mais os direitos de um pai sobre as mulheres na sociedade civil. No entanto, uma vez mantido o direito natural conjugal dos homens sobre as mulheres, como se cada homem tivesse o direito natural de poder sobre a esposa, há um patriarcado moderno. (2006). A despeito das conquistas sociais e legais das mulheres, papéis e relações assentados em discriminações e desigualdades de gênero permanecem neste novo século, internalizados em nossas vidas, tidos ainda por muitos como natural. Fazendo assim que um dos objetivos dos movimentos feministas seja a busca por uma desconstrução das relações de gênero, o repensar das estruturas sociais e seus conceitos já tidos como verdades absolutas imutáveis. 2.5 Feminismo No sistema patriarcal a desigualdade entre os membros da sociedade é a norma, pois os homens gozam de privilégios negados às mulheres. A ausência de direitos políticos e liberdades ainda hoje são presenciados em algumas sociedades. Mesmo nas sociedades democráticas, baseadas nos direitos igualitários, a igualdade de fato ainda não foi alcançada culturalmente, uma vez que a concepção de uma função social da mulher circunscrita ao doméstico, aos serviços da casa, da procriação e cuidados dos filhos e sua subordinação ao homem, pai, irmão ou marido ainda existe. No século XVIII surge a idéia de igualdade moral e política no mesmo contexto que surge a de contrato social e de indivíduo. A igualdade é uma das idéias núcleos da Modernidade. 22 Assim, corria o século XVIII e os revolucionários e iluministas franceses começaram a defender as idéias de igualdade, liberdade e fraternidade. Pela primeira vez na história se questionavam politicamente os privilégios de berço e aparecia o princípio da igualdade. A 4 de julho de 1776, Thomas Jefferson redigiu a Declaração de Independência dos Estados Unidos, que na realidade consiste na primeira formulação dos direitos do homem: vida, liberdade e busca da felicidade. Na França, a Revolução Francesa teve como objetivo central a constituição da igualdade jurídica, das liberdades e direitos políticos. Em pleno processo revolucionário, em 28 de agosto de 1789, proclama-se a Declaração dos Direitos do Homem: reconhecimento da propriedade como inviolável e sagrada; direito de resistência a opressão; segurança e igualdade jurídica e liberdade pessoal garantida. Entretanto, todas as liberdades e todos os direitos políticos, sociais, econômicos, somente correspondiam aos homens. Varcárcel afirma que “o feminismo é um filho não desejado do iluminismo” (2001, p. 8). Uma vez que: O nascimento do feminismo foi inevitável porque houvesse sido um milagre que ante o desenvolvimento das novas garantias políticas – todos os cidadãos nascem livres e iguais perante a lei - e o começo da incipiente democracia, as mulheres não se houvessem perguntado por que elas eram excluídas da cidadania e de tudo o que esta significava, desde o direito a receber educação até o direito à propriedade. (VARELA, 2005, p. 29). Deste modo, conceitua-se feminismo como: Um movimento social e político que se inicia formalmente no final do século XVIII e que supõe a tomada de consciência das mulheres como grupo ou coletivo humano, da opressão, dominação, e exploração de que têm sido e são objeto por parte do coletivo de homens no seio do patriarcado sob suas distintas fases históricas de modelo de produção, a qual as mobiliza a liberação de seu sexo com todas as transformações da sociedade que a isto requer (SAU, 2000, p. 121). O feminismo busca repensar e recriar a identidade de sexo sob uma ótica em que o indivíduo, seja ele homem ou mulher, não tenha que adaptar-se a modelos hierarquizados, e onde as qualidades femininas e masculinas sejam atributos do ser humano em sua globalização. [...] Que as diferenças entre os sexos não se traduzam em relações de poder que permeiam a vida de homens e mulheres em todas as suas dimensões: no trabalho, na participação política, na esfera familiar, etc. (ALVES; PITANGUY, 1991, p. 09-10). Assim, para Varela (2005, p. 14), o feminismo é um discurso político que se baseia na justiça, onde as mulheres, depois de analisar a realidade em que vivem, tomam consciência das discriminações que sofrem pela única razão de serem mulheres e decidem organizar-se para acabar com elas, para mudar a sociedade. 23 Uma vez que todas as identidades e diferenças sociais foram historicamente construídas a partir da existência de relações sociais determinadas, a identidade das mulheres foi determinada pelas relações de dominação patriarcais. A ideologia patriarcal está tão firmemente internalizada, que seus modos de socialização são tão perfeitos que a forte coação estrutural em que se desenvolve a vida das mulheres apresenta-se para grande parte delas a imagem do comportamento livremente desejado e elegido. Estas razões explicam a crucial importância da desconstrução delas mesmas em um sistema baseado em sua inferioridade e subordinação aos homens. A teoria feminista tem como objetivo conceituar adequadamente como conflituosos e produto de relações de poder determinadas, fatos e relações que se consideram normais ou naturais, em todo caso, imutáveis. Os dois últimos séculos presenciaram-se numerosas batalhas políticas para conquistar a igualdade entre os sexos. Desde os primeiros movimentos de mulheres pós-revoluções iluministas até as mais recentes lutas, passando pelo sufragismo, as mulheres reclamaram tenaz e persistentemente os mesmos direitos que possuíam os homens. A aparição do movimento feminista significou a desconstrução da impugnação da identidade feminina como construção social patriarcal e o começo da formação de um conceito de identidade a serviço da emancipação. É a partir das grandes revoluções que o feminismo incorpora seu cunho reivindicatório e ganha força de expressão. Buscando ampliar as idéias liberais as feministas defendiam que os direitos conquistados pelas revoluções deveriam ser iguais para ambos os sexos. Segundo Olympe de Gouges5 em Os Direitos da Mulher e da Cidadã 6 A mulher nasce livre e tem os mesmos direitos que o homem. [...] Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a seguranca e sobretudo a resistência à opressão. [...] O exercício dos direitos naturais da mulher só encontra seus limites na tirania que o homem exerce sobre ela; essas limitações devem ser reformadas pelas leis da natureza e da razão. (1791). Como resultado da participação das mulheres na Revolução Francesa, registra-se, por exemplo, a instauração do casamento civil e a legislação do divórcio. Entretanto, as idéias segundo a condição da mulher não sofreram alteração, sua natureza continua sendo julgada 5 Olympe de Gouges, pseudônimo de Marie Gouze (Montauban, 7 de maio de 1748 — Paris, 3 de novembro de 1793) foi umafeminista, revolucionária, jornalista, escritora e autora de peças de teatro francesa. Devido aos escritos e atitudes pioneiras, foi acusada como contrarevolucionária e guilhotinada na praça da Revolução em Paris. 6 Documento proposto à Assembléia Nacional da França em 1791, durante a Revolução Francesa, com o intuito de igualar-se a Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão aprovada pela Assembléia Nacional. 24 como subordinada ao homem. Isso revela-se nas palavras de Rousseau, um dos principais ideólogos do Iluminismo e suas revoluções subseqüentes: Toda a educação das mulheres deve ser relacionada ao homem. Agradá-los, ser-lhes útil, fazer-se amada e honrada por eles, educá-los quando jovens, cuidá-los quando adultos, aconselhá-los, consolá-los, tornár-lhes a vida útil e agradável – são esses os deveres das mulheres em todos os tempos e o que lhes deve ser ensinado desde a infância. (ROUSSEAU apud ALVES; PITANGUY, 1991, p. 35). No século XIX, no contexto da Revolução Industrial, o número de mulheres empregadas aumenta significativamente. Sem com isso diminuir a diferença salarial entre os sexos, que tinha como justificativa o pressuposto de que as mulheres teriam quem as sustentasse. Nesse período a análise socialista ganha forma. No contexto desta visão, a situação da mulher aparece como parte das relações de exploração na sociedade de classes. Assim, o movimento feminista se fortifica como um aliado do movimento operário. Como movimento organizado, data da primeira convenção dos direitos da mulher em Seneca Falls7, Nova Iorque em 1848. Nas décadas de 1930 e 1940, as reivindicações do movimento haviam sido formalmente conquistadas na maior parte dos países ocidentais (direito ao voto e escolarização e acesso ao mercado de trabalho). A possibilidade da mulher trabalhar ganhou força principalmente no contexto das duas grandes guerras, com grande parte dos homens envolvidos com a guerra as mulheres ocuparam os postos de trabalho vagos. Ao fim de ambas as guerras surgiram campanhas para desvalorizar o trabalho feminino, mostrando que os avanços conseguidos estavam ainda restritos ao âmbito legislativo. Conforme Alves e Pitanguy (1991, p. 48) uma vez atingido o objetivo do sufragismo, o direito ao voto, acreditava-se que o feminismo estava fadado a desaparecer, entretanto, o questionamento da descriminação feminina prossegue, incorporando outros aspectos que configuram a condição social da mulher. Na década de 1960, o movimento, influenciado por publicações como O Segundo Sexo8 de Simone de Beauvoir9, passa a defender que a hierarquia entre os sexos não é uma 7A Declaração de Sêneca Falls ocorreu de 19 a 20 de julho de 1848 na localidade de Sêneca Falls, no estado de Nova Iorque, sendo a primeira convenção sobre os Direitos da Mulher nos Estados Unidos. Resultou desse encontro, pois, a publicação da famosa Declaração de Sêneca Falls ou a Declaração de sentimentos, como elas a chamaram, que foi um documento baseado na Declaração de Independência dos Estados Unidos e no qual foram denunciadas as restrições, sobretudo no campo da política, às quais estavam submetidas as mulheres: Não poder votar, não comparecer a eleições, não poder ocupar cargos públicos, não poder afiliar-se a quaisquer organizações políticas ou prestar quaisquer assistência em reuniões políticas. 25 fatalidade biológica e sim uma construção social. Assim, além da luta pela igualdade de direitos, incorpora o questionamento das raízes culturais das desigualdades. Desta forma, o feminismo afirma que os limites e insuficiências da cidadania feminina estão estreitamente vinculados a sua própria gênesis. O fato de que o cidadão, na constituição da democracia moderna, fosse homem, marcou poderosamente a noção de cidadania. Assim são numerosos os limites, e muitas vezes invisíveis, que restringem esse direito político para as mulheres, não somente o gênero, também as classes sociais, a sexualidade, as etnias e as culturas. A teoria feminista indaga as fontes religiosas, filosóficas, cientificas, históricas, antropológicas para desarticular as falsidades, preconceitos e contradições que legitimam a dominação sexual. Pode-se dizer que “o feminismo questiona à ordem estabelecida. E a ordem estabelecida está muito bem estabelecida para quem a estabeleceu, isto é, para quem se beneficia dela.” (VARELA, 2005, p. 13). A medida que a sociedade aceita os princípios feministas, o que antes parecia absurdo se torna convencional e inquestionável. O feminismo é assim “uma teoria da justiça que está mudando o mundo e trabalha dia a dia para conseguir que os seres humanos sejam o que querem ser e que vivam como querem viver, sem um destino marcado pelo sexo com que nasceram.” (VARELA, 2005, p. 20). 8 O Segundo Sexo (francês: Le Deuxième Sexe, 1949) é uma das mais conhecidas obras da francesa Simone de Beauvoir. Beauvoir escreveu o livro após a tentativa de escrever sobre si mesma. A primeira coisa que ela escreveu era que ela era uma mulher, mas ela percebeu que era necessário definir o que era uma mulher, que se tornou a intenção do livro. Trata - se de um trabalho sobre o tratamento das mulheres ao longo da história e muitas vezes considerado como um importante trabalho feminista. Nele ela argumenta que as mulheres ao longo da história têm sido definidas como o "outro" sexo, uma aberração do "normal" sexo masculino. 9 Simone de Beauvoir (9 de janeiro de 1908 - 14 de abril de 1986) foi uma filósofa e escritora francesa. Escreveu romances, monografias sobre filosofia, política e questões sociais, ensaios, biografias, e uma autobiografia. Mais conhecida por seu livro O Segundo Sexo, uma análise detalhada da opressão da mulher e um marco fundacional do feminismo contemporâneo. 26 3 VIOLÊNCIA DE GÊNERO A predisposição inata do homem à violência é facilmente explicável pela necessidade dessa característica durante a evolução da nossa espécie. Somos todos descendentes de indivíduos que souberam caçar efetivamente, que venceram a competição sexual, que sobreviveram a guerras tribais e a todos os aspectos da violência. Considera-se que a violência é um artifício efetivo da humanidade. De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de contenda. Primeira, competição; segunda, difidência; terceira, glória. A primeira leva os homens a invadir pelo ganho; a segunda, pela insegurança; a terceira, pela reputação. Os primeiros usam da violência para assenhorar-se da pessoa, da esposa, dos filhos e do gado de outros homens; os segundos, para defendê-los; os terceiros, por bagatelas, como uma palavra, um sorriso, uma opinião diferente e qualquer outro sinal de menosprezo, seja direto em suas pessoas ou, por reflexo, em seus parentes, amigos, nação, profissão ou nome. (HOBBES, 2007) Domenach (1981) chama a atenção para o fato de a violência só recentemente ter se tornado um problema central para a humanidade, apesar de presente em toda a história. Conforme este autor, tornar certas práticas sociais uma questão de violência, associa-se à própria modernidade com seus valores de liberdade e felicidade, consolidados na criação da cidadania e dos direitos humanos para todos. A partir deste momento, ações que eram percebidas como inevitáveis na ordem do mundo e mesmo desejáveis são combatidas. Assim, criação humana, a violência, como as demais práticas sociais, pode e deve ser controlada, senão erradicada. Já a “violência contra a mulher” foi expressão cunhada pelo movimento feminista há pouco mais de vinte anos. A expressão refere-se a situações tão diversas como violênciafísica, sexual e psicológica, o estupro, o abuso sexual de meninas, o assédio sexual no local de trabalho, a violência étnica e racial, a violência cometida pelo Estado, por ação ou omissão, a mutilação genital feminina, a violência e os assassinatos ligados ao dote, o estupro em massa nas guerras e conflitos armados. 27 A violência contra a mulher diz respeito ao sofrimento e agressões dirigidos especificamente às mulheres pelo fato de serem mulheres. E também quer significar a diferença de estatuto social da condição feminina, diferença esta que cria as situações de violência experimentadas pelas mulheres. As raízes da violência baseada no gênero encontram-se nos difusos sistemas de desigualdade que perpetuam a dominação dos homens e a subordinação das mulheres. Conforme reconhecida pela Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher10: Violência contra a mulher se entende todo ato de violência baseado no fato da pessoa pertencer ao sexo feminino, que tenha ou possa ter como resultado um dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para a mulher, inclusive as ameaças, a coerção ou privação arbitrária da liberdade, tanto as que se reproduzem na vida pública ou privada. (DA GUERRA, 1997, p. 117). A violência contra as mulheres é uma manifestação do poder, historicamente desigual, das relações entre homens e mulheres, e é um dos mecanismos sociais fundamentais pelos quais as mulheres são forçadas a uma posição subordinada em relação ao homem. A violência é a arma por excelência do patriarcado. Nem a religião, nem a educação, nem as leis, nem os costumes, nem nenhum outro mecanismo havia conseguido a submissão histórica das mulheres se tudo isso não houvesse sido reforçado com a violência. A violência exercida contra as mulheres pelo fato de o serem é uma violência instrumental, que tem por objetivo seu controle. Não é uma violência passional, nem sentimental, nem genética, nem natural. A violência de gênero é a máxima expressão do poder que os homens têm ou pretendem manter sobre as mulheres. (VARELA, 2005, p. 251). A subordinação da mulher, colocada como ser inferior, segundo a teoria dos dualismos hierarquizados é a raiz da violência de gênero. Na medida em que se buscam desconstruir os papéis estabelecidos, encontrando resistência dos que querem manter o “statu quo” 11, “a violência de gênero não é mais do que o resultado das relações de dominação masculina e de subordinação feminina, em que o homem pretende evitar que a mulher lhe escape, pois não deseja separar-se da mulher, mantendo-a sujeita a uma submissão sem escapatória”. (CASIQUE; FUREGATO, 2006). Pode-se concluir que a violência de gênero concentra-se em ações que transcendem o nível social refletindo, sem dúvida, a dominação de um grupo e a subordinação do outro. 10 Aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1993, a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres é o primeiro instrumento internacional de direitos humanos que explicitamente exclusivamente trata a questão da violência contra as mulheres. Ele afirma que o fenômeno viola, afeta ou impede a mulher de exercer os seus direitos humanos e liberdades fundamentais. 11 O conceito de "statu quo" origina-se do termo diplomático "statu quo ante bellum", que significa "estado actual antes da guerra". Emprega-se esta expressão, geralmente, para definir o estado atual das coisas ou situações. 28 O patriarcado está formado por uma série de características que definem a dicotomia de inferioridade e superioridade entre os sexos. A crença de “ter direito” a utilizar a violência contra as mulheres é uma característica patriarcal com uma larga história onde o fato do direito à violência foi considerado legítimo por parte dos homens, especialmente para os que tiveram papel de maridos ou pais. A lógica patriarcal gerou uma grande quantidade de mitos que dão legitimidade a violência contra a mulher, desde a violência cultural ou simbólica até a violência física que leva a morte da mulher. Assim, por internalizarem a dominação masculina e o patriarcado, muitas mulheres vítimas da violência assumem a responsabilidade desta, culpando-se e consideram-se as responsáveis por sofrerem tais atos, por não terem sido capazes de evitá-los ou sair da situação que os originou. A violência é um mecanismo de controle, vingança e poder. Não se restringe a pobreza, ignorância, países subdesenvolvidos, etc. senão que se dá em todos os âmbitos sociais, educativos e em todos os países já que sua base sustenta-se no patriarcado. A violência contra a mulher está fundamentada na desigualdade de poder entre os sexos, cuja causa está vinculada às estruturas políticas, econômicas, culturais, educacionais, religiosas etc. Afeta a vida de milhões de mulheres em todo o mundo, em todos os aspectos físicos e psicológicos. Ela ultrapassa todas as barreiras culturais e religiosas, impedindo o direito das mulheres à participação plena na sociedade. Na Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres12, realizada em Pequim em Setembro de 1995, o “Secretário - Geral das Nações Unidas, Boutros Boutros-Ghali, disse que “a violência contra as mulheres é um problema que continua a crescer e tem de ser universalmente condenado.” (ONU13, 1996). Na Plataforma de Ação de Pequim14, Governos declararam que a violência contra as mulheres representa uma violação dos direitos humanos fundamentais e é um obstáculo à realização dos objetivos de igualdade, desenvolvimento e paz. 12 A Quarta Conferência Mundial das Nações Unidas sobre a Mulher (FWCW/QCMM ou Conferência de Pequim), realizada em Pequim, China, de 4 a 15 de setembro de 1995, foi a maior e a mais influente de todas as conferências mundiais sobre a mulher. Cerca de 180 delegações governamentais e 2.500 organizações não- governamentais reuniram-se para discutir uma ampla série de questões relacionadas com a mulher. Em Pequim, pela primeira vez na história declarou-se que os direitos da mulher são direitos humanos. 13 ONU, abreviação para Organizações das Nações Unidas. 14 O Plano de Ação que resultou ao final da Convenção de Pequim afirma os direitos básicos das mulheres de todo o mundo a controlar sua própria sexualidade e o processo reprodutivo, e considera delitivos a mutilação genital e os maus tratos infligidos às mulheres no âmbito público ou privado. 29 A questão da promoção dos direitos das mulheres tem preocupado as Nações Unidas desde a fundação da Organização. No entanto, as alarmantes dimensões globais da violência feminina não foram expressamente reconhecidas pela comunidade internacional até dezembro de 1993, quando a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres. Até então, a maioria dos governos tendiam a considerar que a violência contra as mulheres em grande parte como um assunto privado entre indivíduos, e não como uma questão de direitos humanos que exigem a intervenção do Estado. 3.1 Causas da violência contra a mulher A violência entre os seres humanos foi um dos principais fatores para a violação dos direitos humanos no século XX. A guerra, a repressão e a insensibilização da vida pública e privada eliminaram toda a possibilidade de dar um caráter universal ao desfrute dos direitos humanos. Em particular, a violência de que as mulheres são vítimas, as impediu como grupo desfrutar plenamente de seus direitos humanos. Como se afirma no preâmbulo da Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher da ONU (DA GUERRA, 1997, p. 116), este fenômeno constitui uma manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre o homem e a mulher. A violência forma parte de um processohistórico que não é natural e nem nasce do determinismo biológico. O sistema de domínio masculino tem raízes históricas e suas funções e manifestações variam com o tempo. Conseqüentemente, a opressão da mulher é uma questão política e é necessário analisar as instituições do Estado e a sociedade, o condicionamento e a socialização dos indivíduos e o caráter de exploração econômica e social. O uso da força contra a mulher é somente um dos aspectos deste fenômeno, que a submete pela intimidação e medo. Segundo conclusões do Relatório Especial da ONU15 (1994), a mulher é vítima de algumas formas universais de abuso, como o estupro e a violência do lar. Como também de algumas formas culturais específicas de determinados países e regiões. Deste modo, toda tentativa de universalizar a violência contra a mulher servirá somente para esconder outras 15 Em vista do alarmante crescimento no número de casos de violência contra as mulheres em todo o mundo, a Comissão de Direitos Humanos aprovou resolução 1994/45, de 4 de Março de 1994, na qual se decidiu nomear um Relatório Especial sobre a violência contra as mulheres, incluindo a sua causas e conseqüências. O Relatório Especial tem um mandato para recolher e analisar dados completos e de recomendar medidas destinadas a eliminar a violência ao nível internacional, nacional e regional. 30 formas de opressão, como as baseadas na raça, classe, nacionalidade. Entretanto, algumas modalidades de domínio patriarcal são universais, ainda que dito domínio adote diferentes formas. As raízes da subordinação feminina encontram-se nas relações de poder históricas no seio da sociedade e nas estruturas do Estado e da sociedade civil. O Estado tem por princípio a responsabilidade não somente de abster-se de alentar todo ato de violência contra a mulher senão também de intervir ativamente para impedir tais atos. A passividade do Estado neste tipo de situação é um dos fatos mais importantes que fazem possível sua continuidade. Entre as relações de poder históricas responsáveis pela violência cabe mencionar as forças econômicas e sociais que exploram a mão-de-obra e o corpo feminino. As mulheres em situação de desvantagem econômica estão mais expostas às difamações, ao abuso sexual e a escravidão sexual. Também são vítimas da servidão e do trabalho mal remunerado em muitas partes do mundo. Quando se nega à mulher poder e independência econômica se gera uma das causas mais importantes da violência porque se prolonga sua vulnerabilidade e dependência. A menos que as relações econômicas da sociedade sejam mais eqüitativas para a mulher, seguirá existindo o problema da violência de que ela é vítima. A instituição da família também é cenário em que com freqüência se observam relações históricas de poder. Por uma parte, a família pode ser fonte de valores positivos e afeto porque as pessoas estão unidas pelo respeito e o amor mútuo. Por outra, pode ser uma instituição social em que se explora o trabalho feminino, o poder sexual masculino se expressa com violência e gera um tipo de relação que nega o poder à mulher. Por conseguinte, ainda que a família seja fonte de valores humanos positivos, em alguns casos é um lugar onde se exerce a violência contra a mulher e se produz um processo de socialização que pode acabar justificando a violência. De especial importância para o problema da violência contra a mulher no contexto histórico é a questão doa avanços na reprodução. Esta tecnologia deu a mulher mais liberdade e maiores opções a respeito da importante função da maternidade, mas também, por outro lado, a tecnologia na área da reprodução permite saber de antemão o sexo da criança, propiciando a prática de abortos seletivos. O Relatório Especial (ONU, 1994) também reconhece que no contexto das relações históricas de poder entre homens e mulheres, as mulheres também devem enfrentar o problema de que os homens dominam os sistemas de conhecimento do mundo. O homem é 31 quem domina os princípios que regem a ciência, a cultura, a religião, a linguagem e excluiu a mulher após criar sistemas simbólicos ou interpretar experiências históricas baseadas na sua dominação. Por falta de influência sobre os sistemas de conhecimento, a mulher, não só é vítima da violência, senão também é parte de um ciclo que freqüentemente à legitima. A capacidade de minimizar a experiência contra a violência da mulher impede que o Estado ou a sociedade civil adotem medidas corretivas. Além das relações históricas de poder, a questão da sexualidade feminina é outra causa da violência contra a mulher, utiliza-se a violência geralmente como instrumento para regular sua conduta sexual e por essa razão, não é raro que essa violência se expresse sexualmente. A violação, a difamação, o abuso sexual, a mutilação genital feminina são todas formas de violência que representam uma agressão à sexualidade feminina. A regulação da conduta sexual feminina tem por fim assegurar a castidade da mulher, para que somente tenha filhos de seu conjugue, e evitar alem disso que os bens sejam herdados por quem não pertença à mesma linha de parentesco. Esse desejo de garantir a castidade pode adotar distintas formas, das quais a mutilação genital feminina é a manifestação mais extrema, pois esta forma de violência contra a mulher reduz sua expressão sexual para que siga sendo casta e fiel ao esposo. Em muitas tradições, os conceitos sobre a honra vinculam-se com a sexualidade feminina, assim, a violência contra a mulher se justifica freqüentemente pelo argumento de que sua conduta sexual atentou contra a honra. Sendo a sexualidade feminina, freqüentemente, a causa da violência contra a mulher, é importante que a sociedade “proteja” a suas mulheres da violência “dos outros”. Esta proteção com freqüência acarreta restrições para a mulher, seja em forma de código social sobre sua conduta ou indumentária ou sua liberdade de circulação. Também implica que a mulher que respeita estas normas esteja protegida, enquanto que a que defende a igualdade e a independência está mais exposta à violência. A mulher que questiona estes códigos é com freqüência alvo da violência masculina. No Relatório Especial da ONU (ONU, 1994), afirma-se que o medo à violência e a agressão sexual masculina segue sendo o aspecto mais importante da vida da mulher em todas as sociedades. Considera-se que as atitudes com respeito à sexualidade feminina são os principais fatores responsáveis de violência contra a mulher. Estas atitudes não somente condicionam a conduta de homens e mulheres na sociedade, senão que terminam justificando a violência. Temas como a reivindicação da honra, os conceitos de vingança familiar e a necessidade de “proteger” mulheres “decentes” ao tempo que se castiga às outras, são alguns 32 dos fatores que condicionaram as atitudes masculinas com respeito à sexualidade feminina e o uso da violência contra a mulher. Aparte da história e da sexualidade, a existência de ideologias que justificam a posição subordinada da mulher é outra causa da violência da qual ela é objeto. Em muitas ideologias tradicionalmente, autoriza-se o uso da violência contra a mulher. Estas ideologias baseiam seus argumentos em uma interpretação especial da identidade sexual. A interpretação da masculinidade exige a capacidade de exercer poder sobre terceiros, especialmente mediante o uso da força, a masculinidade dá ao homem o poder de dirigir as vidas de quem o rodeia, em especial as mulheres. A interpretação da feminilidade nessas ideologias impõe a mulher uma atitude passiva e submissa que deve aceitar a violência como parte de sua condição de mulher. Conforme o artigo 4 da Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher (DA GUERRA, 1997, p. 118)“os Estados devem condenar a violência contra a mulher e não invocar nenhum costume, tradição ou consideração religiosa para evitar sua obrigação de procurar eliminar-la.” Lamentavelmente, a experiência internacional sinala uma realidade diferente. Freqüentemente invocam-se os costumes, a tradição e a religião para justificar o uso da violência. Algumas práticas tradicionais e aspectos da tradição são freqüentemente causa dessa violência. Uma adesão cega a estas práticas e a passividade do Estado com respeito a estes costumes e tradições há possibilitado uma violência contra a mulher em grande escala. Apesar de que os Estados estão promulgando novas leis e disposições, a esfera dos direitos das mulheres demora em aceitar a mudança, pois, por mais que as leis sejam fundamentais para a punição da violência, esta não é apenas uma questão jurídica, trata-se de um problema amplo que envolve todas as esferas da vida humana, culturais, educacionais, econômicas, políticas, etc. 3.2 Tipos de violência contra as mulheres A Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres é o primeiro instrumento internacional de direitos humanos que explicitamente e exclusivamente trata a questão da violência contra as mulheres. A definição de violência de gênero é ampliada no artigo 2 da Declaração (DA GUERRA, 1997, p. 117-8), que identifica três domínios em que a violência normalmente ocorre: 33 1) Violência física, sexual e psicológica que ocorre dentro da família, incluindo os ataques; abuso sexual de crianças do sexo feminino no lar; violência relacionada ao dote da mulher; estupro conjugal; mutilação genital feminina e outras práticas tradicionais nocivas para as mulheres; violência extraconjugal; e violência relacionada com a exploração; 2) Violência física, sexual e psicológica que ocorre dentro da comunidade geral, incluindo estupro; abuso sexual; intimidação e assédio sexual no local de trabalho, nas instituições educativas e em outras partes; tráfico de mulheres; e prostituição forçada; 3) Violência perpetrada ou tolerada pelo Estado, onde quer que ocorra. 3.2.1 A violência doméstica Para muitas mulheres e crianças, o lar é uma local de violência. A violência doméstica constitui a forma mais comum de violência contra as mulheres em todo o mundo, sem exceção de região. Outras formas de violência na família incluem o abuso sexual de mulheres e crianças, violência relacionada ao dote das noivas, violência física e sexual que comumente são acompanhadas de abuso emocional, humilhação, intimidação e controle sobre a vítima. Segundo Vlachovd e Biason (2005) entre 16 a 41% das mulheres foram agredidas fisicamente por um parceiro masculino em uma relação intima, de acordo com estudos realizados entre 1986-1997, no Camboja, Índia, Correia, Tailândia, Egito, Israel, Quênia, Canadá, Nova Zelândia, Suíça, Reino Unido, Estados Unidos e Uganda. E 40 a 70% das mulheres vítimas de assassinato são mortas pelos maridos ou namorados, frequentemente no contexto de uma relação abusiva. A violência contra as mulheres no seio da família ocorre em países desenvolvidos e em desenvolvimento também. Ela tem sido há muito tempo considerada um assunto privado por observadores, incluindo vizinhos, a comunidade e o governo. Mas esses assuntos privados têm uma tendência de se tornar tragédias públicas. Os ordenamentos jurídicos tradicionais sancionavam a violência na família ao reconhecer ao marido o “direito ao castigo”. Este direito era reconhecido pelos tribunais de muitos países, além de, muitos ordenamentos jurídicos permitirem que os homens recorressem à força para exigir o cumprimento dos “deveres conjugais”. Portanto, nos ordenamentos jurídicos fazia-se a omissão dos casos das mulheres maltratadas a menos que 34 existisse lesão grave ou escândalo público. Em alguns países a defesa da “honra” permitia a fácil absolvição dos homens que matavam suas esposas. De acordo com o Relatório Especial da ONU (ONU, 1994), muitos governos já reconhecem a importância de proteger as vítimas de abuso doméstico e tomar medidas para punir os culpados. A criação de estruturas que permitam funcionários para lidar com casos de violência doméstica e suas conseqüências é um passo significativo no sentido da eliminação da violência contra as mulheres no seio da família. O Relatório (op. cit.) ainda sublinha a importância da adoção de legislação que prevê a punição do agressor. Sublinha também a importância de um treinamento especializado de autoridades policiais, bem como médicos e profissionais forenses, e a instauração de uma comunidade de serviços de apoio às vítimas, inclusive o acesso à informação e abrigos. 3.2.2 Práticas tradicionais Em muitos países, as mulheres são vítimas de práticas tradicionais que violam os seus direitos humanos. A persistência do problema tem muito a ver com o fato de a maioria destes costumes estarem profundamente enraizados na tradição e na cultura da sociedade. Segundo o Relatório Especial (op. cit.), o delicado de por em foco o julgamento da existência destas práticas, profundamente enraizadas na tradição, na cultura e nas desigualdades de poder das sociedades, é que frequentemente elas servem de ritos de iniciação para a integração e a aceitação das jovens em uma comunidade, assim como a falta de informação e educação em muitas regiões em que existem estas praticas, são todos fatores que contribuem para a sua perpetuação. Vários países ainda se praticam crimes para “limpar a honra”. Segundo Vlachovd e Biason (2005), na Índia e Paquistão, milhares de mulheres são mortas porque seu dote é considerado insuficiente pela família do noivo; em um estudo no Egito, 47% das mulheres foram assassinadas por um parente após terem sido vítimas de um estupro por terceiros; os ataques são, na maioria das vezes, realizados com fogo ou ácido, se deixam a mulher viva, ela fica desfigurada ou cega. Estes crimes não são punidos, nem sequer julgados, uma vez que não são entendidos pelas autoridades locais como um crime e sim como o direito do homem de ter sua honra limpa e restaurada. 35 3.2.2.1 Mutilação genital feminina A mutilação feminina não está restrita a uma religião ou classe social. Sua prática está ligada à restrição da sexualidade feminina e ritos de passagem da puberdade e casamento. Em algumas comunidades, meninas que não foram submetidas à mutilação são consideradas impuras ou incapazes de casar. Segundo o Relatório Especial (ONU, 1994), a mutilação feminina possui diversas modalidades que vão desde remoção parcial do clitóris e a excisão total do clitóris e lábios menores que constituem aproximadamente 85% das mutilações genitais femininas, até a sua forma mais extrema, a remoção total do clitóris e dos lábios menores, assim como a da superfície interior dos lábios maiores e ao final a saturação a vulva, mantendo apenas uma pequena abertura para a urina e o fluxo menstrual. Ainda conforme o Relatório da ONU (op. cit.), tais operações são realizadas por parteiras tradicionais ou anciãs designadas para esta tarefa; usam-se facas especiais, tesouras, navalhas, pedaços de vidro ou laminas de barbear. Em geral não se utilizam anestésicos, nem anti-sépticos, a utilização de materiais rudimentares e a falta de higiene causam uma grande incidência de infecções e complicações à saúde da mulher. A mutilação genital causa duradouros traumas psicológicos, dor extrema, infecções crônicas, sangramento, tumores, infecções do trato urinário, infertilidade e pode até levar a morte da mulher. Em alguns casos, a mulher não pode dar a luz sem ter sua vulva cortada novamente. Conforme Vlachovd e Biason (2005) programas de erradicação da mutilação genital feminina precisam ser estreitamente ligados às comunidades
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