Buscar

Havelock - A revolução da escrita na Grécia - capítulo 8 - A transcrição alfabética de Homero-1 (1)

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 26 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 26 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 26 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

ERIC A. HAVELOCK
A REVOLUÇÃO DA ESCRITA 
NA GRÉCIA E SUAS
CONSEQÜÊNCIAS CULTURAIS
Tradução de 
Ordep José Serra
UNESP
Fundação para o 
Desenvolvimento 
da UNESP PAZ E TERRA
FUNDAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO DA UNESP
Presidente do Conselho Curador 
Arthur Roquete de Macedo 
Diretor-Presidente 
Amilton Ferreira
Diretora de Fomento à Pesquisa 
Hermione Elly Melara de Campos Bicudo
Diretor de Publicações 
José Castilho Marques Neto
EDITORA UNESP
Diretor
José Castilho Marques Neto
Conselho Editorial Acadêmico 
Aguinaldo José Gonçalves, Anna Maria Martinez Corrêa, Antonio Carlos Massabni, 
Antonio Celso Wagner Zanin, Antonio Manoel dos Santos Silva, 
Carlos Erivany Fantinati, Fausto Foresti, José Ribeiro Júnior, 
José Roberto Ferreira, Roberto Kraenkel
Editores Assistentes 
José Aluysio Reis de Andrade, Maria Apparecida F. M. Bussolotti, Tulio Y. Kawata
SOCIEDADE BRASILEIRA DE ESTUDOS CLÁSSICOS
Presidente
Haiganuch Sarian (USP) 
Secretário 
Jacyntho José Uns Brandão (UFMG) 
Conselheiros 
Anna Lia Amaral de Almeida Prado (USP), Haiganuch Sarian (USP), Jacyntho José 
Lins Brandão (UFMG), José Antônio Dabdab Trabulsi (UFMG), 
José Perozin (UNESP), Marcelo Pimenta Marques (UFMG), 
Margareht H. Bakos (UFRGS), Maria das Graças de Moraes Augusto (UFRJ), 
Maria Luiza Corassin (USP), Maria Sylvia Carvalho Franco (USP-UNICAMP), 
Ordep José Trindade Serra (UFBa), Zelia de Almeida Cardoso (USP)
CAPÍTULO 8
A TRANSCRIÇÃO ALFABÉTICA DE HOMERO1
Em algum ponto entre 700 e 550 a.C., a Ilíada e a Odisséia foram, 
como se diz, “confiadas à escrita”. Esta maneira de exprimir o feto em 
apreço descreve uma operação que, nas condições modernas, ocorre 
dezenas de milhares de vezes a cada hora, em todo o mundo letrado. O 
ato original foi bem diferente; foi alguma coisa como um rimbombar de 
trovão na história do homem, estouro que o viés de nossa familiaridade 
converteu num roçar de papéis numa escrivaninha. Constituiu uma 
irrupção nos domínios da cultura que seus resultados comprovaram 
irreversível. Lançou as bases para a destruição do modo de vida oral e 
das maneiras de pensar orais. Essa é uma forma extremada de colocá-lo, 
com a intenção de dramatizar o feto com relação a nós mesmos. Como 
letrados, herdeiros de 2.500 anos de experiência com a palavra escrita, 
estamos afestados a uma grande distância das condições em que a palavra 
escrita penetrou pela primeira vez na Grécia, e requer algum esforço de 
imaginação compreender quais elas eram e como afetaram o modo pelo 
qual aquele evento teve lugar. Para ser mais preciso, em vez de felar de 
destruição, deveria dizer que o que se instaurou com a transcrição 
alfabética de Homero foi um processo de erosão da “oralidade” que se 
estendeu ao longo de séculos de experiência européia, um feto que deixou 
a cultura moderna desigualmente dividida entre modos de expressão, 
experiência e vivência, em um caso letrados, em outro, orais.
164 ERIC A. HAVELOCK
Todas as sociedades fundam sua identidade e a reforçam por meio 
da conservação de seus mores. Uma consciência social, erigida como um 
consenso, é, por assim dizer, continuamente estocada para reutilização. 
Sociedades letradas fazem-no por meio de documentos; as sociedades 
pré-letradas obtêm o mesmo resultado pela composição de narrativas 
poéticas que servem também como enciclopédias de conduta. Essas 
narrativas existem e são transmitidas por meio de memorização, e à 
medida que são continuamente recitadas constituem um apanhado - 
uma reafirmação - do éthos comunitário, e também uma recomendação 
de observá-lo. Tais eram os poemas homéricos, enclaves de lingua­
gem criativamente elaborada existentes ao lado da coloquial. Sua elabo­
ração foi uma resposta às regras de memorização oral e à necessidade de 
transmissão segura. Enunciados lingüísticos só podem ser recordados e 
repetidos tal como foram especialmente configurados: estes existiam ape­
nas como som, memorizado através dos ouvidos, e praticados pelas bocas 
de pessoas vivas. Esta seqüência sonora foi subitamente posta em contacto 
com uma série de símbolos escritos que possuíam uma eficiência fonética 
única. Deu-se entre os dois um casamento automático; ou, para mudar 
de metáfora, num líquido contido num vaso gotejou-se uma substância 
que cristalizou os conteúdos e precipitou um depósito no fondo.
Depois de milênios de experimentação com esquemas que chama­
mos de “escrita” - um procedimento abandonado na Grécia depois da 
queda de Mícenas - a palavra falada e recordada encontrara, por fim, 
um instrumento perfeito para sua transcrição. E assim em “Homero” 
confrontamos um paradoxo único na história: dois poemas que podemos 
ler em forma de documento escrito, a primeira “literatura” da Europa, 
os quais constituem, porém, o primeiro registro completo de “oralidade”, 
ou seja, de “não-literatura” - verossimilmente o único de que dispomos: 
uma declaração de como o homem civilizado viveu e pensou durante 
muitos séculos, ao longo dos quais ele era de todo inocente da arte (ou 
artes) da leitura.
A aplicação do alfabeto à língua homérica constituiu um ato de 
“transferência” do som para a vista. E o alcance integral desta arte o que 
deve ser firmemente enfatizado, e portanto o alcance integral de seu 
apanhado de experiência humana. A eficiência fonética significou a 
remoção daquela ambigüidade no processo de reconhecimento que 
limitara todos os anteriores sistemas de escrita quanto a seu uso.2 Vamos 
supor - a suposição é infundada - que o conhecimento e o uso da “Linear 
A REVOLUÇÃO DA ESCRITA NA GRÉCIA 165
B” tivessem sobrevivido na helenidade arcaica. A “reportagem” épica do 
estilo de vida e do mores helênicos teria continuado a ser praticada e 
recitada em meio a uma população predominantemente oral. Os escribas, 
servos do palácio ou burocratas dos templos, teriam produzido o que 
podemos chamar de epítomes dessa matéria épica, versões simplificadas, 
acomodadas aos limites inerentes à dificuldade de reconhecimento, 
exigindo economia e repetição de vocabulário, com um mínimo de 
variação dos tipos de enunciado. Catálogos e quantitativos abundariam, 
análise psicológica ficaria de fora. Embora o metro fosse conservado, os 
recitais não seriam populares, mas litúrgicos, reservados para grandes 
ocasiões. Entrementes, “Homero” podería continuar a ser composto e 
recitado em meio ao povo, mas é verossímil que a qualidade da arte oral 
em prática sofreria com o desviar-se dos melhores cérebros linguísticos 
da comunidade para os centros de escribas. A complexidade formular de 
Homero, única entre os remanescentes da poesia oral, dá testemunho de 
uma cultura totalmente não-letrada, em que o monopólio da sofisticação 
linguística era detido pelo bardo.
Um dilúvio registrado em cuneiforme
Não temos nenhuma epopéia em “Linear B” com que fundamentar 
a hipótese já proposta. Poderá ela ser baseada numa comparação com 
documentos silábicos de outras culturas, ou seja, em documentos pré- 
alfabéticos? Há uma passagem da Epopéia de Gilgamesh que atinge um 
grau de vivacidade narrativa sem paralelo no resto do poema. Isto parece 
dever-se ao emprego de um vocabulário insolitamente rico de palavras 
que descrevem atos e ocorrências bastante concretas e específicas - 
pormenorizadas, diriamos. Pelo menos é esta a inferência que um 
estudioso ignorante do cuneiforme - como este escritor - pode permitir- 
se extrair da tradução inglesa realizada pela erudição de especialistas nas 
culturas próximo-orientais.3 O narrador é um tal Utnapishtim, o Noé 
babilônio; pode-se reconhecer o seu relato do dilúvio como o modelo da 
história paralela encontrada no Livro do Gênesis:
Ao primeiro raiar da aurora
Uma nuvem negra ergueu-se do horizonte,
No seu interior Adad troveja,
Enquanto Shulatt e Hanish vão a sua frente
166 ERIC A. HAVELOCK
5 Como arautos avançando por sobre monte e planície. 
Erragal os troncos derruba
Ninurta se põe em marcha e faz que os diques o acompanhem. 
Os Anunnaki erguem as tochas
Fazendo com seu esplendora terra inflamar-se.
10 Chega aos céus a consternação por causa de Adad 
Que tomou em negrume tudo o que era luz. 
A ampla terra foi partida como [um vasoll 
Durante um dia [soprou] o furacão do sul 
Criando rapidez à medida que soprava, [afundando as montanhas]
15 arrebatando gente como numa batalha.
Não pode ninguém reconhecer o seu semelhante, 
Nem podem as gentes ser reconhecidas do céu. 
Os deuses se encheram de pavor com o dilúvio 
E assustados, subiram ao céu de Anu...
20 Seis dias e (seis noites]
Sopra o temporal do dilúvio, e o furacão do sul varre a terra. 
Quando o sétimo dia chegou,
O furacão do sul, [trazedor do] dilúvio, fez trégua na batalha 
Que como um exército combatera,
25 O mar quietou, a tempestade fez-se calma, cessou a inundação. 
Reparei no tempo: estabelecera-se a calma 
E todos os homens tinham retomado ao barro.
A paisagem era tal qual a superfície de um telhado raso
Qual a variedade de vocabulário que, por assim dizer, foi compactada 
nessa passagem? Obviamente, a tradução por si mesma não pode facultar 
uma contagem precisa de palavras do original. Via de regra, ela tende a 
ser um pouco mais rica, cedendo à tentação de prover variantes, em 
contextos distintos, para o que, na realidade, são termos idênticos. 
Todavia, em vista de fins estritos, pode fazer-se uma certa contagem de 
palavras: preposições e conjunções serão ignoradas, assim como as 
flexões, e os nomes dos deuses serão contados uma vez só, representando 
o processo, um catálogo. Com todas essas cláusulas condicionais, a 
passagem traduzida oferece um total de 90 palavras, dos quais 69 têm 
ocorrência singular; as repetições contam-se como segue:
duplicatas: negro ... negrume (2, 11); vão à frente... põe-se
em marcha (4,7) 
A REVOLUÇÃO DA ESCRITA NA GRÉCIA 167
todos, tudo (11,27); batalha (15,23); gente (15,17); 
pode (16,17) 
seis (20); calma (25, 26)
triplicatas: terra (9,12, 21); céus (10,17,19); dia (13, 20, 22);
soprar (14,14, 21);
furacão do sul (13, 21, 23)
quadruplicatas: dilúvio e inundação (se equivalentes) (18, 21,
23, 25).
A porcentagem de palavras repetidas é 23%.
Mais significativos (pois menos sujeitos à distorção através da 
tradução) vêm a ser os enunciados duplicados, não necessariamente 
equivalentes, mas a exprimir sentidos que parafraseiam uns aos outros. 
O fenômeno não ocorre nos primeiros 12 versos. Mas em seguida, como 
que a “originalidade” verbal da composição começa a exaurir-se, e 
encontramos as seguintes séries de sentenças repetitivas:
a) 13 durante um dia soprou o furacão do sul
14 criando rapidez à medida que soprava
20 seis dias e seis noites
21 sopra o furacão do dilúvio e o furacão do sul varre a terra
b) 16 não pode ninguém reconhecer o seu semelhante
17 nem podem as gentes ser reconhecidas
c) 18 os deuses se encheram de pavor
19 e assustados
d) 15 arrebatando gente como numa batalha
23 fez trégua na batalha
24 que como um exército combatera
25 o mar quietou, a tempestade fez-se calma, cessou a inundação
26 estabelecera-se a calma
A descrição do dilúvio é interrompida por uma digressão de 13 
linhas que descreve o conclave dos deuses apavorados. Intervém entre 
as linhas 19 e 30 desse trecho, tal como o grafemos, e é como segue:
Os deuses se abaixaram como cães
Encolhidos contra o muro exterior.
Ishtar gritava como uma mulher em trabalho de parto.
A Senhora dos [Deuses], de linda voz, gemia alto:
168 ERIC A. HAVELOCK
5 “Ai, os dias antigos em barro se tomaram, 
Por que invoquei o mal na Assembléia dos deuses. 
Como é que pude invocar o mal na Assembléia dos deuses, 
Prescrevendo a batalha para a destruição de meu povo, 
Quando fui eu quem dei a luz a meu povo?
10 Como a ova dos peixes, eles enchem o mar!”
Os Anunnaki choram com ela,
Os deuses, de todo humilhados, sentam-se e choram, 
Apertando os lábios ... eles todos.
É óbvio o caráter repetitivo, para não dizer ritualístico, desta passa­
gem: o verso 7 repete o 6; a palavra deuses é recorrente seis vezes em 12 
linhas; seis verbos conformam três pares de variantes: abaixaram-se - 
encolhidos; gritava - gemia alto; choram com ela - sentam-se e choram; 
e há repetição de motivos contidos na passagem do dilúvio.
Um dilúvio registrado no alfabeto
Agora convém comparar a passagem acima com uma descrição de 
um dilúvio que produz conseqüências análogas, tal como essa descrição 
se dá no texto de Homero. No Livro XII da llíada, o próprio poeta trata 
de explicar por que não mais existem as fortificações construídas pelos 
gregos para proteger seu acampamento:
12.17 Então Poseidon e Apoio o plano conceberam
De arrasar a muralha, com o impacto de rios potentes 
Que desde os montes do Ida correm no rumo do mar
20 O Reso, o Heptáporo, mais o Careso e o Ródio
O Grânico, o Esopo e o Escamandro divino
E Simoente, onde muitos elmos e escudos de couro de boi 
E umá geração de homens quase divinos tombaram na lama. 
Suas bocas todas voltou num rumo só Febo Apoio
25 Por nove dias dirigiu-lhes o curso contra a muralha; e Zeus choveu 
Para que logo submersa no mar a muralha deitasse 
Enquanto o próprio Poseidon, com seu tridente na mão 
Ia à frente e atirava às ondas os fundamentos todos 
De pau e pedra que com labor os Aqueus deitaram
30 E os aplanou na margem do multifluente Helesponto
E de novo cobriu de areia o grande litoral
A REVOLUÇÃO DA ESCRITA NA GRÉCIA 169
Tendo a muralha arrasado; os rios tomou a dirigir
Ao curso por onde outrora tocavam (suas] águas de belo fluir.
Ignorando-se as partículas gregas, contando-se Poseidon-Apolo 
como um termo só, mas Zeus em separado, e contando-se o catálogo de 
rios como uma unidade, essa passagem apresenta um total de 71 palavras, 
das quais seis são irrepetidas; as repetições contam-se como segue:
duplicatas: arrasar (18,32); rios (18,32); dirigiu (25,33); deitar
(26, 29); curso (25, 33);
todos (24, 28)
quadruplicata: muralha (18, 25, 26, 32)
A porcentagem de palavras repetidas é 14%.
Dessas duas descrições épicas de eventos similares, a grega manipu­
lou um vocabulário proporcionalmente maior. A diferença entre 14% e 
23% pode não parecer muito grande, mas assume importância quando 
se tem em mente que o teor vivido e concreto da descrição babilônia é 
atípico em relação à maior parte do que se encontra na versão traduzida 
da epopéia, enquanto a passagem grega é típica da epopéia grega. 
Quando, no caso grego, procuramos enunciados não necessariamente 
duplicados, mas com sentidos que se parafraseiam um ao outro, desco­
brimos apenas um:
18 de arrasar a muralha
32 tendo arrasado a muralha
É certo que três sentenças covariantes descrevem o assalto das águas 
da inundação:
18 com o impacto de rios potentes
24 suas bocas voltou
25 contra a muralha dirigiu o curso
Mas o que essas sentenças fazem é dividir o assalto das águas em 
três estágios sucessivos, expondo pormenores que não constituem repe­
tição uns dos outros, antes são cumulativos. Quanto aos dois hexâmetros 
conclusivos (32, 33), embora eles encerrem ecos dos versos 19, 24 e 25, 
170 ERICA. HAVELOCK
seu vocabulário e sintaxe foram cuidadosamente manipulados para 
descrever uma inversão da situação anterior.
É justo concluir que a descrição grega, alfãbetieamente transcrita, de 
uma inundação, é menos tautológica, menos ritualizada que a cuneifor- 
me. Aplica-se à execução da tarefa descritiva um arranjo vocabular que é 
mais expressivo, como nós costumamos dizer, porque mais rico em 
variedade de nomes, verbos e adjetivos, e menos propenso à sintaxe 
repetitiva, isto é, a variações dos mesmos enunciados. Ambas as passa­
gens constituem versões de discurso oralmente composto, e portanto 
formular e repetitivo num grau inusitado para o discurso letrado. Mesmo 
admitindo-se isso, na versão grega somos postos em contacto direto com 
as complexidades da fala humana descritiva, em seq nível mais concreto; 
a versão babilônica, por contraste, simplifica o relato, reduzindo-o a um 
enunciado arquetípico, que pode ser chamado de “versão oficial”.4
Um crítico educado segundo os cânones letradosreportaria essa 
diferença a duas diferentes percepções da “poética”, a duas diferentes 
convenções, ou “estilos”, à escolha de uma determinada língua; e 
valer-se-ia do caráter repetitivo do babilônio como pretexto para atribuir- 
lhe qualidades de solenidade, grandeza, simplicidade espiritual e coisas 
do gênero. Mas é possível uma explicação bem diferente, baseada na 
superioridade fonética do alfabeto sobre o cuneiforme. De acordo com 
este ponto de vista, as deficiências do cuneiforme como instrumento de 
reconhecimento acústico-visual não encorajaram o autor a condensar em 
seu verso uma plena variedade de expressão que uma descrição do tipo 
ensejado requer; o alfabeto, por outro lado, aplicado à transcrição da 
mesma experiência, não obstaculiza a sua completa transposição fonética.
Se é certo isso, segue-se, provavelmente, uma outra conclusão: os 
cidadãos de todas as culturas urbanas do Oriente Próximo, não menos 
que os gregos, dispunham da capacidade de descrever plenamente a 
experiência humana, em linguagem adequada. Todavia, essa capacidade 
era passível de expressão oral, e não se achava ao dispor de escritores. 
Devemos presumir, portanto, que por trás da versão de escriba do 
dilúvio, que é tudo quanto temos, jaz para sempre oculta, e, para nós, 
perdida para sempre, uma epopéia muito mais rica, lingüisticamente 
falando, ou uma série de epopéias que, obedecendo às leis de estocagem 
cultural, desempenharam para aquelas culturas a função que a de 
Homero desempenhou para a Grécia pré-letrada. Esta seria a poesia do 
povo, em seus lábios, em suas memórias, composta por bardos mesopo- 
A REVOLUÇÃO DA ESCRITA NA GRÉCIA 171
tâmíos com emprego de ritmos formulares comparáveis aos gregos, 
embora, como indiquei, provavelmente menos sofisticados. O que temos 
em cuneiforme não são as palavras tais como eram faladas, mas epítomes 
transcritas para récitas em ocasiões formais, mesmo que a epopéia de 
Gilgamesh seja classificada pelos eruditos como um poema secular.
As mesmas limitações do discurso expressivo que se fazem valer no 
poema de Gilgamesh estão presentes em toda a assim chamada “literatura” 
do Oriente Próximo. Seja-me permitido citar o julgamento de uma 
autoridade no assunto:
A primeira deficiência que se acusa nos textos mesopotâmicos é a falta 
de qualquer expressão da singularidade daquela civilização em face do 
entorno estrangeiro ... A segunda característica negativa, intimamente 
relacionada com a primeira, é a ausência de qualquer polêmica na literatura 
cuneiforme. Não se vê aí argumentação contra pontos de vista contrários, 
nada do diálogo revelador que, na vida e no pensamento dos gregos, tinha 
expressão nos palácios, no teatro e na sala de leitura. Esta bem pode ser a 
razão principal de conhecermos tão pouco sobre as atitudes dos mesopo- 
tâmios diante das realidades que os rodeavam [são meus os itálicos], e tanto 
sobre as dos gregos ... Não se faz qualquer esforço no sentido de referir a 
um mesmo quadro conceituai diferenças de enfoque e apreciação. Por isso, 
todos os textos cuneiformes têm de ser cuidadosamente interpretados 
tendo-se em mente essas restrições cuidadosamente inibidoras, e em última 
análise falsificadoras.5
Como teria ficado o relato homérico da inundação se fosse confiado 
a um silabário, em vez de a um alfabeto? E claro que não temos nenhum 
meio de o saber; é-nos impossível recriar os processos mentais de um 
escriba mesopotâmio ou micênico. Se a Linear B tivesse sobrevivido para 
ser aplicada a Homero, o modo como isso seria feito pode apenas ser 
conjecturado. Uma narrativa muito rica para a escrita seria posta sob 
controle por meio de uma simplificação de vocabulário e sintaxe, reten- 
do-se o essencial. Uma transcrição das primeiras quatro linhas da 
passagem que evocamos pode apresentar poucas dificuldades de reconhe­
cimento, pois a seqüência tem fácil curso, e a mente do deciffador 
prontamente faria as conjecturas acústicas corretas. O catálogo podería 
ter o contorno formular de uma lista consensual. Porém uma versão 
sumária podia ver-se tentada a sacrificar o sentido do verso 19, pois não 
envolve a perda de nenhum conteúdo essencial, e certamente seria 
ERIC A. HAVELOCK172
tentada a suprimir os versos 22 e 23, que interrompem a descrição com 
um novo pensamento, o qual momentaneamente transfere a atenção 
mental para outra parte. Os sentidos dos versos 26, 32 e 33 seriam 
igualmente dispensáveis. O que motivaria essas omissões seria o intento 
de reduzir o esforço de reconhecer não só palavras novas, mas também 
novos arranjos de palavras, intento não menos poderoso por ser incons­
ciente. Estas sugestões são aqui apresentadas como mera especulação, 
mas nãó constitui especulação o feto de que acontecia a simplificação do 
discurso quando se o transcrevia em sistemas pré-alfebéticos.
Retomamos, pois, àquele paradoxo singular: um Homero em alfe- 
beto. Pela aplicação de uma nova tecnologia da palavra escrita, tomou-se 
disponível em forma de documento o primeiro relato completo de uma 
cultura não documentada, não apenas o primeiro do gênero, mas o único 
em todos os tempos, pois algum contágio de arte letrada desde então 
invadiu todas as culturas orais onde quer que tenham sido contactadas, 
privando o pesquisador de um confronto pleno com a oralidade total 
apresentada pelo texto homérico.
A vantagem fundamental que o alfabeto apresentou em relação aos 
sistemas de escrita anteriores foi dar a possibilidade de documentar o 
relato oral de modo fluente e exaustivo. A linguagem dos dois poemas é 
tão abrangente quanto seu conteúdo. A medida que a narrativa progride, 
encenam-se o nómos e o êthos de toda uma sociedade. Quanto a isso, o 
mais próximo símile não se acha nos bolsões de poesia oral praticada às 
margens de burocracias letradas, como, por exemplo, nos Bálcãs, na 
Rússia e na Finlândia, pois esse tipo de poesia não comporta responsa­
bilidades enciclopédicas. Se em algum canto existem, os similares dos 
poemas homéricos estariam nas epopéias resgatáveis em sociedades 
africanas e polinésias que não foram contagiadas pelo uso de documen­
tos. Todavia, esses símiles são necessariamente imperfeitos; as sociedades 
que deram de si espécimes tão puros de oralidade parecem ser, quanto 
à estrutura, relatívamente simples, em comparação com a grega, e 
portanto as exigências aí feitas de armazenamento de informações são 
correspondentemente simples. Se o campo de experiência humana, a 
variedade de dilemas humanos que requerem ajuda, em termos de 
orientação, no contexto de famílias e aldeias, são menos complexos, a 
epopéia que supre essas orientações será menos complexa. Além disso, 
a transcrição de sua oralidade se faz em termos diferentes. No caso grego, 
os usuários da língua foram eles próprios os descobridores da nova 
A REVOLUÇÃO DA ESCRITA NA GRÉCIA 173
técnica de transcrição, e a aplicaram diretamente ao que eles mesmos 
diziam, sem ajuda de qualquer intermediário estrangeiro. A recitação oral 
contínua de discurso elaborado e sua transcrição contínua desenvolve­
ram-se lado a lado por longo tempo, na mesma comunidade; mas, no 
caso das culturas africanas e polinésias, o antropólogo alienígena teve de 
aprender uma língua que não era a sua, antes de transcrever-lhe os sons 
em um sistema de signos que não é deSsas culturas. Ele não pode juntar 
signo e som com a mesma intimidade imediata e instintiva que os antigos 
gregos empregaram. Por fim, como um tradutor, ele empregará expres­
sões de sua própria língua, assim repetindo e importando 2.500 anos de 
desenvolvimento letrado da consciência humana, que intervém entre ele 
e a fala que está a traduzir.
O momento da mimese
As condições vigentes na sociedade oral em que os poemas homéri- 
cos vieram à existência tomam impossível para o crítico distinguir entre 
composição criativa e repetição mecânica, como se estas representassem 
duas categorias mutuamente exclusivas, a primeira das quais fosse 
substituída pela segunda. Fazer essa distinção,tal como ela é comumente 
feita, é confiar em critérios de julgamento oriundos de nossa experiência 
da literatura como um fenômeno letrado. Em todos os estágios do 
processo homérico, ora perdidos na névoa do anonimato, só poderiamos 
falar de forma simultânea em autor-recitador, em cantor rapsodo. Fosse 
que, em casos individuais, sua capacidade atingisse o nível do gênio, ou 
se limitasse à mera perícia, consistia sempre na manipulação de dois tipos 
de encantamento, ou antes de um encantameno dirigido a dois diferentes 
rumos: de um lado, ao próprio cantador e sua boca; de outro, a sua 
audiência e aos ouvidos dela. Em ambos os casos, o encantamento era 
tomado urgente pela necessidade de memorizar enunciados verbais 
dispostos numa ordem fixa, com extensão variável: desde fórmulas 
constitutivas de parte de um hexâmetro, às fórmulas tópicas incorporadas 
em situações narrativas, ou a essas narrativas em si mesmas, e ainda a 
séries de situações que perfaziam um episódio, e por fim a um determi­
nado número de episódios que compunham uma narração total.
O esforço mental requerido é, para uma mente letrada, difícil de 
imaginar de um modo pleno; mas é claro que significava uma concen­
174 ER1C A. HAVELOCK
tração total, uma imersão do intelecto no ato da recitação. Platão o 
descreveu com o termo mímêsis, que, no contexto, chega perto de 
significar o “mimo” de um mito, sua encenação por meio de uma 
identificação simpática com os personagens e ações descritas.6 O canta­
dor, em resposta a uma instigação de sua mente - ou de sua audiência 
- pôr-se-ia a fãlar-nos, por exemplo, de Pátroclo e Aquiles, de como 
Pátroclo lutou e tombou em lugar de Aquiles. Assim se empenharia em 
recordar o começo de uma determinada seqüência sonora que levasse ao 
mito, e se envolvería numa recordação paralela do assunto deste. Não 
era um ato indeterminado: tinha princípio, meio e fim, dos quais o 
cantador tinha ciência ao começar a recita; à medida que ele avançava, a 
realização do ato se tomava cada vez mais definida, primeiro para ele 
mesmo, e depois para seus ouvintes, que lhe haviam de seguir o canto a 
murmurá-lo de si para si. Uma audiência moderna de um recital de 
música gosta de demonstrar sua sofisticação conservando-se imóvel 
enquanto as melodias lhe chegam aos ouvidos; este isolamento intelec­
tualizado não era nunca possível para os membros de uma cultura de 
comunicação e memorização oral.
Essa concentração controlada pelo ritmo das palavras, dos instru­
mentos e do corpo significava que, durante uma determinada recitação, 
o declamador permanecia indiferente por completo à existência de 
quaisquer mitos - a não ser o que lhe sucedia, então, estar recitando. 
Não podia pensar nesses outros mitos, nem relatá-los, a não ser que 
aquele ao qual se dedicava se tivesse completado como um movimento. 
Então, e só então, sua memória podia convocar de suas reservas um 
outro, ligado ao primeiro. Sua recordação rítmica dava-se por meio de 
elocuções que se perfaziam em momentos de atividade marcados por 
concentração intensa. A memória varia de acordo com a capacidade 
individual. Portanto, variavam os cantadores quanto à capacidade de 
tratar de um mito sem cometer lapsos, e quanto à capacidade de lidar 
com todo um repertório mítico.
A sofistificaçâo da técnica de versificação, assim como o estilo de vida 
dos personagens das histórias contadas, depõe em favor de um período 
de composição oral que amadureceu com o desenvolvimento da cidade- 
estado grega na Jônia. A de Homero não é uma poesia camponesa. Por 
um século ou mais, antes que começasse o processo de transcrição, um 
ou dois grupos de bardos, digamos, especializaram-se não só na história 
da Guerra de Tróia como ainda em dois motivos pertinentes a ela, 
A REVOLUÇÃO DA ESCRITA NA GRÉCIA 175
conhecidos como A cólera e O retorno. Talvez alguns desses bardos 
individualmente fossem capazes de recitar todas as partes, todos os mythoi 
particulares que vieram a compor a Ilíada e a Odisséia, em nossos textos. 
Nunca o saberemos. Mas todos eles tinham um conhecimento do 
panorama de conjunto, isto é, do contexto geral - um termo letrado —; 
conheciam todos a “epopéia ideal”, como a chamaram alguns críticos.7 
Um cantador podia interromper quando lhe aprouvesse a narrativa 
panorâmica, sem estar consciente de sua seqüência nos termos precisos 
em que isto se requer em nossos textos atuais. Parte do que é, para nós, 
um conjunto definido com uma seqüência necessária, podia ser recitado 
numa ordem que, de nosso ponto de vista, seria de retrocesso; ou 
enunciado no que nós, com nossos textos fixos diante dos olhos, 
chamaríamos de série de peças selecionadas (outro termo letrado, como 
se a feia consistisse de trechos alfebeticamente transcritos, a ser coligidos). 
Um poeta podia voltar a atenção para um outro trecho ou mythos de sua 
epopéia - quantos ele podería assim ter sob controle, dependia de sua 
capacidade individual — trecho que teria de lembrar como começava, 
recordando, ao fezê-lo, seus versos iniciais. Ao prosseguir, porém, ele 
temporariamente esquecería o que estivera a dizer, passando, de contí­
nuo, de uma série de concentrações para uma outra, substituindo um 
momento de memória por outro.
Em suma, a memória acústica é associativa, mas não compreensiva; 
vive e funciona por dedicação total temporária a uma extensão de mythos, 
antes de volver-se, em transição, para um novo mythos, correspondente 
a um novo ato de recordação. Mas o segundo há de compartir o mesmo 
éthos do primeiro, pois ambos, em sua expressão, refletem e preservam 
o mores da cultura; ambos são parte da mesma enciclopédia cultural; 
assim, digressão e repetição à parte, e admitidas algumas inconsistências 
inevitáveis, o estilo e a substância do poema permanecem uniformes, a 
um grau que um “comitê” de poetas letrados nunca podería atingir.
Deve-se concluir que nossa Ilíada e nossa Odisséia eram esporadica­
mente recitadas em exibições independentes de episódios destacados.8 
Não podemos distinguir quais seriam: a organização textual que depois 
se aplicou ao poema documentado foi extremamente hábil. Adotando-se 
as divisões de texto que hoje temos, qualquer tentativa de imaginar como 
seriam aqueles recitais sofre a tentação de estimar que eles se regeríam 
pela divisão atual em 24 livros. Só podemos dizer que essa divisão 
representa decisões tomadas pelo olho letrado de eruditos de tempos de­
176 ERIC A. HAVELOCK
pois. Quanto ao espírito do empreendimento, deu-se ele mais ou menos 
em conformidade com a índole original das apresentações orais - isto é, 
os episódios, no texto canônico, separam-se uns dos outros por meio de 
cortes naturais, na maioria dos casos. Não há razões para supor que eles 
correspondem fielmentte ao processo original de recitação. De feto, 
estamos a indagar quais eram as partes componentes de cada um desses 
dois poemas que, depois do registro documental, foram reunidas, com 
toda a probabilidade, em Atenas, e ordenados na seqüência que hoje 
temos. Nunca o saberemos, embora seja um pouco mais fócil de 
conjecturar no caso da Odisséia. A expedição e o retomo de Telêmaco, 
por exemplo, e as viagens narradas por Odisseu, podiam ser recitadas 
como rn.yth.oi independentes, no todo ou em parte. Fazer conjecturas 
sobre a Ilíada é mais difícil, por que sua ordenação atual é mais intrincada. 
Em muitos poucos casos, um livro inteiro, ou a maior parte de um livro 
desta obra se afirma como um mythos independente. Isto é certo no caso 
do Livro XXIV (o resgate de Heitor) e no que toca ao XXIII, a partir do 
verso 259 (os jogos fúnebres), assim como no caso do livro X (uma 
epopéia de proezas noturnas) e no que tange ao Livro II, do verso 87 ao 
483 (o pânico e o reagrupamento do exército grego, depois de nove anos 
de guetra). Uma recitação, evidentemente, não carece de confinar-se aos 
limites de um só livro. Há umas poucas seqüências de livros que, tais 
como se apresentam, podiam informar uma recitação: os livros XVI e 
XVIInarram as feçanhas e a morte de Pátroclo; o VIII e o IX descrevem 
o avanço troiano, a retirada grega e 0 apelo dos gregos a Aquiles por 
socorro. Por um processo mais complicado, pode-se reconhecer que 
livros agora separados, no texto do qual dispomos, tinham uma conti­
nuidade que permitia recitá-los feito seqüências temáticas. Assim, o Livro 
I, que descreve o fracasso em resolver uma disputa cujos efeitos fatais 
para os gregos foram preditos, pode ser seguido pelo Livro VIII, em que 
esses efeitos se verificam, e em seguida pelo Livro IX, em que se fez uma 
segunda tentativa de remediar essa situação. Ainda mais complexamente, 
o que hoje se pode considerar como trechos seletos em nosso texto, pode 
ter constituído partes, ora redistribuídas, de uma recitação integral. A 
femília divina, presidida por seu autocrata, é apresentada no Livro I, do 
verso 493 em diante; mais tarde vemos Hera e Atena descendo do 
Olimpo para interferir na ação (Livro V, do verso 711 para diante), 
enquanto Zeus ordena aos seus que mantenham neutralidade, e em 
seguida retira-se para o Monte Ida (Livro VIII, 1-52), tão-só para ser se­
A REVOLUÇÃO DA ESCRITA NA GRÉCIA 177
duzido por Hera (XIV, 153-353), de modo que a família olímpica possa 
abandonar a neutralidade enquanto ele dorme - até que ele desperta, 
enfurecido, e despacha ordens que compelem seu pessoal teimoso a 
restabelecer o status quo (Livro XV, w. 4-235). Esta combinação produ­
ziría uma única récita memorizável de um mythos sobre os deuses, cantável 
num tom coerente de realismo cômico.
Essas sugestões foram apresentadas como exemplos, intéiramente 
hipotéticos, de tipos de recitação que se enquadrariam nas linhas de 
continuidade do que ora chamamos Ilíada e Odisséia. Estes poemas, tais 
como hoje os conhecemos, oferecem um número muito grande de 
possibilidades de comutação e permutação para que possamos aceitar 
qualquer arranjo proposto como autenticamente original. Qualquer parte 
dele, cantada em uma instância única, contém alusões em que a epopéia 
inteira se acha implícita. O recitador está consciente da existência desta 
epopéia ideal, presente por implicação. Mas a atenção do cantador 
cinge-se ao seu tema imediato; sua memória embebe-se nele temporaria­
mente, excluindo outras considerações.
O princípio do eco
Por trás da dedicação psicológica ao ritmo e ao fluxo da palavra 
rítmica é possível determinar uma lei acústica em ação, a qual serve para 
estabelecer conexões, como um princípio de ligação que entrelaça feixes 
de situações. Pode este ser chamado de princípio do eco, a ressoar no 
ouvido, combinado ao princípio do reflexo no espelho, que se apresenta 
aos olhos da mente. O primeiro livro da Ilíada oferece um exemplo 
singelo disso: no começo da história, há um sacerdote na praia, dirigindo 
suas queixas a Apoio; esperamos um pouco, a história prossegue, e lá 
está Aquiles na praia queixando-se a sua mãe. As fórmulas usadas no 
primeiro caso repetem-se, com a variação necessária, no segundo, e um 
cenário natural uma vez empregado reflete-se na sua contraparte. O 
princípio pode estender-se de modo a incluir ações e situações mais 
amplas e complexas. Assim, no Livro I, a narrativa conta como se reuniu 
a ágora, como Nestor, com uma apropriada exortação tentou mediar a 
disputa, e como Agamênon enviou emissários a Aquiles para tomar-lhe 
Briseis. No Livro IX, o mythos deslocou-se, mas o eco retorna. O recitador 
narra como a ágora se reuniu mais uma vez; como ela deu lugar a um 
conselho, em que Nestor, com apropriada exortação, mais uma vez in­
178 ERIC A. HAVELOCK
terveio, na condição de mediador; e como Agamênon enviou emissários 
a Aquiles para devolver-lhe Briseida. O princípio do eco é operativo a 
ponto de três personagens utilizarem, no segundo caso, fórmulas usadas 
por dois, no primeiro. Este tipo de mecanismo é diretamente acústico e 
indiretamente imagístico. E persistente em ambos os poemas e foi bem 
documentado pelos eruditos homeristas, porém com a diferença de que 
o interpretam apenas em termos visuais e o descrevem como um padrão 
de desenho, em vez de uma ressonância: como se quadros paralelos 
fossem ordenados em seqüências de tipo aba, abba, abcba e similares, à 
feição de figuras pintadas num altar.9 Mas era o ouvido, não o olho, que 
tinha de ser seduzido e conduzido por esses arranjos, fundando-se em 
sons reais, de palavras idênticas ou similares, encerradas em fórmulas e 
parágrafos de análogo soar.
O eco é uma coisa que o ouvido do cantador e o de sua audiência 
estão treinados para esperar. Sua utilidade mnemônica estimula a ante­
cipação. Podemos dizer que a segunda ocorrência ecoa a primeira, ou 
que a primeira prediz a segunda. O mythos oral é continuamente estendido 
desta maneira, à medida que é enunciado, a fim de apoiar a recordação, 
na mente do recitador, de como há de prosseguir, qual será a trama. O 
eco, porém, é modificado. Não é uma duplicata, pois uma duplicata não 
diría nada mais do que já fora dito; a narrativa degeneraria em repetição sem 
sentido. O eco deve acompanhar um novo enunciado de uma ação nova, 
mas esta não pode ser sobrecarregada de novidade, ou inventiva; para aten­
der às necessidades da memória, deve haver semelhança bastante com o 
dito anterior, a fim de induzir a mente à tentação de saltar de um a outro, 
ao mesmo tempo tentando a boca a segui-la com a enunciação adequada. 
A necessidade constante de um mecanismo de antecipação e confirmação 
explica, entre outras coisas, a importância eminente que têm, na poesia 
oral, a profecia e os enunciados proféticos, postos na boca de personagens 
no próprio momento em que executam uma ação no presente. Aquiles 
previne Pátroclo de não ir muito longe — assim prevemos que ele o fará, 
e talvez perigosamente; Apoio, no concilio dos deuses, protesta que 
devem parar os maus tratos infligidos por Aquiles a Heitor - assim ficamos 
sabendo que eles vão parar; Calcante deve falar, mas tem medo de ofender 
algum potentado - assim somos prevenidos de que esta ofensa se dará, 
e que provavelmente se seguirá uma amarga contenda.
A língua falada é um continuam, uma trilha sonora fabricada pela 
laringe e transportada em ondas no ar, acusticamente divisível em 
A REVOLUÇÃO DA ESCRITA NA GRÉCIA 179
momentos, mas não espacialmente em quadros extensos. Momentos que 
antecipam e ecoam outros são consonantes, não simétricos. Um episódio 
em que se descreve o combate marcial está cheio de sons lingüísticos que 
evocam luta, ou se lhe associam; uma cena de banquete encerra palavras 
evocativas do comer, do beber e do rejubilar-se. A expedição de Telêmaco 
ao Peloponeso desenvolve-se em locuções repetidas que descrevem cavalos 
e carruagens a correr, arreios postos e tirados, taças de hospitalidade a 
encher-se, libar-se e esvaziar-se, trocas de saudações. Há um elevado 
componente de onomatopéia na composição oralmente memorizada.
São esses os mecanismos mnemônicos que controlam e orientam a 
encantação dos versos e lançam na consciência do cantador, assim como 
na de seu auditório, o necessário feitiço verbal. Se nos demoramos aqui 
em sua exposição, foi para reforçar a conclusão anteriormente enunciada 
de que tanto a composição oral como a recitação que lhe corresponde 
ocorrem em momentos de intensa atividade, entendendo-se o momento, 
no caso, em termos de uma movimentação que se cinge ao âmbito de 
um mythos determinado, durante cuja apresentação fica suspensa a 
memória de outros episódios. O recitador fica absorto no seu contexto 
presente, e nele se desloca desde o começo à conclusão, com total 
indiferença relativamente a outros contextos exteriores ao período de seu 
desempenho.
A jornada e o sonho
A Grécia protoletrada, depois de Homero, num tempo em que os 
conceitos de atividade intelectual e os procedimentos discursivos estavam 
a aflorar na consciência, teve certa dificuldade de verbalizá-los, de definir 
e descrever o processo cognitivo. Uma palavra adotada para descrevê-lo 
foi hodós, uma jornada ao longode um caminho, um itinerário; a palavra 
tanto indica a estrada como o curso que se toma através dela. O filósofo 
Parmênides recorre a esta metáfora, e Platão a revive. Como um elemento 
de terminologia, ela habita a terra de ninguém entre o hábito letrado e 
o não-letrado; ela capta o sentido do processo oral de conexão, e é 
significativo o fato de ambos os pensadores sugerirem que, na mente, 
essa rota pode ser circular. Ela implica o sentido que tem o consignar-se 
do recitador de composição oral a uma trilha de som e feia que ele segue, 
180 ERIC A. HAVELOCK
mais que rege. Ele é ainda o viajor a deslocar-se pela estrada a pé, absorto 
em observar a direção que lhe foi dada, mirando os sinais postos à beira 
do caminho. Com ffeqüência, ele há de voltar sobre seus passos: “é tudo 
o mesmo para mim, onde quer que comece” diz Parmênides, reprodu­
zindo fielmente o mergulho do bardo num meio de que só emerge ao 
fim de sua narrativa.
Uma outra metáfora empregada por Platão para descrever a situação 
psicológica do poeta e de sua audiência é a do sonho de que ambos, 
enfeitiçados pelas imagens a passar diante deles, tal como sonâmbulos, 
têm de ser despertados, antes que possam tomar consciência de “o que 
é”.10 O platonismo erige seus alicerces sobre este estado de consciência 
vigilante, e designa a condição que o precede pelo termo grego dóxa, de 
que a tradução por “opinião” não é muito feliz. Pode-se avaliar a 
relevância da metáfora do sonho para descrever a absorção do poeta oral, 
tanto no ato da composição quanto na execução (mímêsis), tendo em 
mente que, em si mesma, a composição é um ato de memória, enquanto 
a execução é o ato que procura imprimir ém outros essa memória. O 
sonho é algo que toma conta de nós, não o contrário. Rendemo-nos a ele, 
e essa rendição, embora temporária, é total, no sentido de que qualquer 
conexão com outros estados mentais vem a ser interrompida, sejam eles 
outros sonhos ou o estado de vigília da consciência controlada, identificá­
vel com a intelecçâo. Todo um contexto abrangente de “significação”, ou 
de relevância para a experiência em geral, está ausente. Só por uma 
reestruturação da linguagem que usa, pode uma pessoa buscar a configu­
ração de semelhante contexto, e isso significa reestruturar a psicologia da 
pessoa. O sonho é equivalente ao momento de recitação rapsódica.
A datação de Homero
O historiador letrado da Grécia arcaica, justamente por que é letrado, 
quando aborda o próblema de quando e como os poemas homéricos 
foram escritos, inclina-se a visualizá-lo como um evento único, a postular 
que, uma vez inventada a técnica do alfabeto, ela havería de aplicar-se 
integralmente à transcrição de uma obra preexistente em forma oral - à 
maneira como um escritor de hoje confia sua composição ao papel, e o 
papel datilografado é então entregue ao editor, para que saia do prelo 
como um volume completo. Bem assim, imagina-se o “escritor” grego, 
A REVOLUÇÃO DA ESCRITA NA GRÉCIA 181
seja ele visto como rapsodo ou como escriba, sentado a uma escrivaninha 
(tabuinhas no colo não bastariam) a fim de transcrever em rolos de papiro 
(talvez tiras de couro, embora isso seja improvável) a Iliada e a Odisséia.
Esse é um quadro improvável; a invenção do código alfabético, peló 
acréscimo de vogais à série fenicia, foi uma coisa; sua aplicação fluente à 
transcrição de enunciados lingüísticos em quantidade apreciável foi outra 
bem diferente. Escrever nessa escala pressuporia um hábito já desenvol­
vido ao pontó da arte. Devemos, em vez disso, indagar: dado que a 
epopéia desfrutava de uma existência restrita de forma exclusiva ao 
auditório, sendo memorizada e repetida oralmente, qual terá sido o 
motivo provável de pôr em contacto esta fala criativamente elaborada com 
os signos do alfabeto? A resposta provável é a que foi apresentada em 
observações posteriores, em Píndaro e Esquilo;11 é também a que surge 
da própria repetição oral. O motivo foi mnemônico, uma resposta às 
mesmas pressões psicológicas que inspiraram e dirigiram a técnica oral; 
os signos alfabéticos ofereciam um suplemento às energias requeridas 
para a memorização.
Como havia isso de fazer-se com uma técnica ainda na sua infância, 
no que tange a emprego fluente? Com certeza, por meio da transcrição 
de parcelas de composições orais em verso, usadas como lembretes para 
advertir a um recitador como iniciar, ou, eventualmente, como parar. 
Esses lembretes talvez pudessem chegar a pequenas epítomes de episó­
dios que o recitador, por outro lado, teria de cor, como seu repertório 
preferido. Gradualmente, e com o reconhecimento da diminuição do 
esforço que se daria se fossem relidas, essas transcrições se estenderíam 
até o ponto de registrar trechos inteiros da composição versificada. Seja 
uma ilustração hipotética dessa prática: os versos introdutórios da Iliada 
podiam tornar-se uma peça de escrita conveniente, pois eles predizem o 
curso da trama - a predição é o método da mnemônica oral - e assim o 
bardo podia acolher como bem-vinda a oportunidade de a ler, para 
recordar-se dos principais elementos dessa história, antes de lançar-se a 
ela. O catálogo no Livro II foi seguramente um dos trechos mais antigos 
da Iliada confiados à escrita. Os dois concilios dos deuses na Odisséia, 
que, em momentos sucessivos, deflagram partes da ação, poderíam ser 
exemplo de outras passagens que, se transcritas, viríam a ser especial­
mente úteis. Nunca saberemos pormenores desse tipo, mas seguramente 
não é fantasiosa a hipótese de que uma transcrição parcial de “lembretes” 
constituiría a modalidade de uso original a que se aplicou o alfabeto.
182 ERIC A. HAVELOCK
Isso leva a dizer que, originalmente, a aplicação do alfabeto veio a 
ser função da recitação oral; as duas coisas estavam entrelaçadas. Se era 
assim, a fim de entender as circunstâncias nas quais se completou a 
difusão do alfabeto, devemos considerar as condições prováveis de 
execução oral durante o período em que, de acordo com a nossa hipótese, 
Homero estava a ser parcial e imperfeitamente transcrito em escrita 
alfabética. As inscrições mais antigas — um pequeno grupo - agrupam-se 
à volta de 700 a.C. São metrificadas, e se encontram amplamente 
dispersas.12 Por outro lado, a primeira composição lírica que podemos 
estar certos de que foi efetivamente transcrita em vida por seu autor, 
diretamente por sua mão, ou por seu ditado, foi obra de Arquíloco de 
Paros, na metade do século VII. Essa talvez seja uma inferência excessi­
vamente cautelosa, baseada na escassez extrema tanto de obras remanes­
centes de poetas mais antigos quanto de tradições relativas a seus nomes. 
Será possível que partes da Iliada e da Odisséia não tenham sido trans­
critas antes que os poemas de Arquíloco? É claro que nunca saberemos 
a resposta exata, mas a questão não é descabida. Quanto ao terminus ante 
quem, o ponto em que podemos supor que tanto a Iliada como a Odisséia 
alcançaram a existência textual completa com que estamos familiarizados, 
não cabe contestar a tradição, já corrente antes do fim do século V,13 que 
declarava que os poemas homéricos foram ordenados de algum modo 
em Atenas, durante o governo de Pisístrato ou de seus filhos.14 A 
transcrição alfabética de Homero, no sentido em que conhecemos 
Homero, pode ter-se completado em data tão tardia como 520 a.C., ou 
antes. Quanto ao fato de que esta tradição foi rejeitada, deveu-se isto, 
antes de mais nada, ao pressuposto de que a Grécia era plenamente 
letrada pelo menos desde 700 a.C., e talvez mais cedo, caso em que fora 
provável que os poemas homéricos fossem escritos e lidos, no que 
podemos chamar sua forma canônica, muito antes do reinado de 
Pisístrato. Mas a suposição de que a Grécia era plenamente letrada antes 
de 500 a.C. (ou de fato antes de 430 a.C.) parece não ter fundamento.15
O ato de integração visual
A medida que tem lugar a documentação, um infatigável e movimen­
tado mar de palavras congela-se na imobilidade. Cada momento auto-su­
ficiente derecitação - um episódio ou série de - vem a ser aprisionado 
numa ordem não mais acústica, mas visível. Cessa de ser uma trilha 
A REVOLUÇÃO DA ESCRITA NA GRÉCIA 183
sonora e toma-se quase um objeto tangível. À medida que semelhantes 
objetos são escritos e reunidos, tem lugar um arranjo espacial ordenado 
deles. Como eles agora são preservados fora das memórias individuais 
daqueles que os escrevem e coligem, o reunidor não precisa mais 
render-se total e temporariamente à absorção em qualquer um deles. Pode 
vê-los em massa, tornar-se consciente deles como uma soma, uma 
totalidade. Na medida em que ele fez isso, começa a despertar do sonho. 
A sua consciência relaxada permite que seu olho, não seu ouvido, vagueie 
pela soma total, e à medida que o fez ele começa a comparar visualmente 
as partes, umas com as outras. Uma parte da atenção previamente 
concentrada na recitação de uma dentre elas vem a dirigir-se para a 
contemplação do conjunto.
Uma recitação individual de composição oral, sendo em si um 
mythos, conta um conto em seqüência temporal, sem retrocessos ou 
maiores digressões. Mas uma vez que os mythoi sejam vistos em conjunto, 
perceber-se-á que a recitação A, descrevendo a história das aventuras de 
Odisseu, digamos, durante suas errâncias, e a recitação B, a história de 
sua retenção pela ninfe Calipso, sua liberação e naufrágio; e a recitação 
C, a história da ida de Telêmaco à procura de seu pai, todas tratam de 
períodos de vida que se recobrem. Ou digamos que a história de como 
os gregos perderam o ânimo depois de nove anos de guerra e romperam 
as fileiras, e depois se reagruparam e retomaram a ofensiva, carece de ser 
relacionada em termos temporais, com a história de como Aquiles e 
Agamênon querelaram e de como isso acarretou a ofensiva troiana; e 
também do mesmo jeito a história do forioso ataque de Aquiles aos 
troianos, e de como ele os fez fogir em massa e matou Heitor. Natural­
mente ocorreu ao olho reflexivo que o princípio da seqüência temporal 
que se aplicara às recitações individuais devia aplicar-se, se possível, à 
massa total. Como ajuntar as peças num conjunto similar? Isso não pode 
ser feito, simplesmente porque as recitações originais expunham eventos 
separados, muitos dos quais, quando vistos em conjunto, dão-se a 
perceber como tendo lugar em espaços de tempo que se sobrepõem. De 
resto, além do princípio do eco, aplicado no interior de cada uma delas, 
cada recitação continha predições ou declarações alusivas que, de passa­
gem, feziam referência ao que havia de acontecer a um personagem, ou 
já lhe tinha acontecido, fora do contexto de uma determinada recitação. 
Esses dados constituem fogazes lembranças do feto de que existe uma 
epopéia ideal maior do que qualquer recitação singular. Assim acontece 
184 ERIC A. HAVELOCK
um compromisso. Os pedaços da história são escolhidos e enumerados 
de modo a alcançar o efeito de uma única seqüência temporal abrangente 
que avança, mas com interrupções, retrocessos, digressões, rumo a um fim 
assinalado. Assim sutgiu o arranjo de nosso texto atual, corretamente desig­
nado pelos críticos homéricos como uma ardo artificialis,16 sendo esta ordo a 
obra de um olho, não de um ouvido, uma obra realizável apenas quando 
várias partes de uma trilha sonora foram alfobeticamente transcritas.
É neste ponto, quando a organização visual se sobrepõe à acústica, 
que se toma concebível uma arquitetura lingüística na qual se ajustam 
ps princípios fonéticos de conexão. Toda a terminologia letrada e literária 
hpje cojnumente aplicada ao discurso organizado começa a ganhar 
pertinência. O autor de qualquer discurso preservado toma-se não mais 
um cantador, mas um “compositor”; seu discurso devém uma “obra” 
dotada de um “padrão”, ou de uma “estrutura”, regida por “tema”, 
“tópico”, ou “assunto”. Até os seus atores tomam-se “personagens”, 
“caracteres”. Sua atividade, no caso dos poemas homéricos, toma-se 
“monumental”.17 Estes, e dezenas de outros termos, são extraídos da 
experiência visual e tátil de manejo de uma escrita alfabética. Situam-se 
fora do mundo pensado de uma cultura oral e dos cantadores que 
originariamente entoaram os cantos que chamamos de homéricos. A 
partir de então, toma-se possível que venha a existir uma “literatura” 
grega, no sentido letrado do termo.
Deve-se, porém, enfatizar que a essência da linguagem como um 
sistema fonético não pode ser transcendida, e não o foi até hoje. As obras 
de literatura grega posteriores à transcrição de Homero aconteceram e 
foram compostas em uma tensão crescente entre o gênio da composição 
oral e o da escrita. Como a oralidade permanecia muito próxima dos 
gregos pelos fins do século V, e de foto continuou a sê-lo no século IV, 
o grau dessa tensão foi único na literatura do período. O drama ateniense, 
além de ser rítmico, obedece a regras associativas e de predição, próprias 
da composição oral; compõe-se com base no princípio do eco e se concebe 
como uma apresentação a ser ouvida, vista e memorizada, mas não lida. 
Também se compõe como um registro cultural, um suplemento ateniense 
à enciclopédia homérica. Todavia, é muito claro que também emprega a 
arquitetura de composição, que só o olho de um escritor podia prover. 
Representa uma arte intermediária, que retém energias específicas, laten­
tes na encantação oral, embora submetendo-as ao controle reflexivo de 
um intelectualismo nascente.
A REVOLUÇÃO DA ESCRITA NA GRÉCIA 185
A documentação do discurso, na Grécia, levou tempo; originalmen­
te, limitou-se à escrita do que antes fora composto em forma metrificada, 
de acordo com regras orais. Demorou ainda mais a efetuar-se a invenção 
de uma prosa que realizaria o pleno potencial da palavra escrita, o campo 
de expressão tomado disponível quando a palavra já não necessitava mais 
de memorização para sobreviver. Este progresso pode ser observado nos 
textos de Heródoto, Tucidides e Platão. As razões da demora residem 
numa lei que é fundamental para a história da palavra humana: as 
modalidades do discurso letrado, quaisquer que sejam, não podem ser 
entendidas à parte da compreensão das que correspondem ao discurso 
não-letrado. Estão as duas intimamente interligadas: as modalidades 
orais, porque elas não existiríam para nós sem os recursos da escrita; as 
letradas, porque a própria sofisticação de seu vocabulário e sintaxe 
desenvolveu-se a partir de mudanças e transposições no vocabulário e na 
sintaxe oral, e elas não podem ser adequadamente compreendidas sem 
que se chegue a perceber quais foram tais mudanças. A própria tarefe a 
que se dedica a comunicação letrada - a criação e conservação de 
conhecimento, tecnológico e cultural - foi primeiro enfrentada e resolvi­
da em incontáveis milênios de experiência oral, quando o homem não 
sabia de outro conhecimento além do que se achava contido nos sons 
de sua linguagem, no que eles eram pronunciados.
Notas
1 Problemas relativos à transcrição da poesia oral chamaram a atenção dos estudiosos 
a partir da publicação dos capítulos 6 e 7 do livro de A. B. Lord, Singer of Tales, 
Hatvard, 1960. Ver também G. S. Kirk, Songs of Homer, Cambridge, 196,2 cap.l 4;
A. M. Party, Have We Homer’s Iliad?, YCS, XX, 1966. A preparação do presente 
artigo baseou-se em argumentação desenvolvida em algumas de minhas publicações 
anteriores: Preface to Plato, Hatvard, 1963, caps.1-4; Prologue to Greek Literacy, 
in: University of Cincinutti Ciassical Studies Semple Lectures, v.II, Oklahoma, 1973; 
Origins of Western Literacy: Ontario Institute for Studies in Educadon Monograph 
Series, v.14, 1976; The Preliteracy of the Greeks, in: New Literary History, 
University of Virgínia, v.VIII, n.3, 1977. Ver também Robert Kellog, Oral 
Literature, in: New Literary History, v.V, n.l, 1973. São também relevantes dois 
artigos escritos por J. A. Davison sobre Literatura and Literacy in Ancient Greece, 
in: Phoenix, v.XVI, n. 3 e 4, 1962 assim como o são os argumentos com que o 
mesmo autor, em A Companion to Homer, Cambridge,1962, advoga a autenticidade 
da tradição que situa na era de Pisistrato uma consolidação do texto homérico.
2 Ver Origins, p.22-50; cf. nota supra.
186 ERIC A. HAVELOCK
3 The Ancient 'Near East: An Anthology of Texts, editada por James B. Pritchard, 
Princeton, 1958, p.68-9.
4 Origins, p.34, G. K. Gresseth, em The Gilgamish Epic and Homer, C. J., v.70, 
n.4,1975, p.l -18, defende a tese de uma congruência estilística maior entre as duas 
poéticas: ambas “pertencem ao mesmo gênero literário, a epopéia heróica” (p.l 7).
5 A. Leo Oppenheim, The Position of the Intellectual in Mesopotamian Society, 
Daedalus, Primavera de 1975, p.38.
6 Preface (cf. supra, nota 1), capítulo 2.
7 Tomo de empréstimo esta expressão a Kellog (cf. supra, nota 1), p.59.
8 Os termos homéricos correspondentes são aoídl, oímS, mythos e também mólpl e 
hymnos. As descrições encontradas em ambos os poemas (especialmente na 
Odisséia) a récitas poético-musicais aludem sempre à recitação de episódios.
9 C. H. Whitman em Homer and Heroic Tradition sublinha o paralelo entre a 
padronização homérica e a arte geométrica.
10 Preface, p.190, 238 ss.
11 Pindaro, Ol. 10.1. ss. Ésquilo, Supl. 179; Coeph. 450, Eum. 275; P. v.460,789-90.
12 Cf. Preliteracy (supra, nota 1).
13 0 Panegírico de Isócrates provavelmente alude a ela; e a relata o Hiparco de Platão 
(um diálogo incluído no cânon antigo e aceito por muitos eruditos platonistas). 
Embora estas obras tenham sido escritas no começo do século IV a.C., seus autores 
nasceram em 436 e 429, respectivamente.
14 Cf. Davison, no Companion (v. supra, nota 1).
15 Cf. Preliteracy e Preface, capitulo 3.
16 Como diz Davison, no Companion.
17 Kirk, Songs (cf. supra, nota 1).

Continue navegando