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HISTÓRIA MEDIEVAL Rodrigo Vieira Pinnow A Igreja e o cristianismo Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Avaliar a influência do cristianismo no processo civilizador dos reinos germânicos. Demonstrar de que forma o cristianismo foi influente no desenvolvi- mento das estruturas social, política e cultural da Idade Média. Definir a organização hierárquica eclesiástica medieval. Introdução Ao longo do tempo, diferentes escolas historiográficas buscaram com- preender e construir narrativas sobre o cristianismo, religião monoteísta derivada do Judaísmo e surgida no Oriente Médio. Atualmente, o cris- tianismo é a maior religião do Planeta, com forte influência no mundo ocidental, seja na política, na cultura ou no imaginário social. A Igreja Católica, alicerçada pelo cristianismo, promoveu a difusão de dogmas contidos em seu livro sagrado, a Bíblia. Por meio dele, criou uma lógica de pensamento que foi adotada no decorrer da Idade Média. Todos esses saberes assentaram as práticas da Igreja Cristã no Ocidente e ainda estão presentes na atualidade. Neste capítulo, você vai ver como a influência da Igreja e do cristia- nismo no tecido social da Idade Média consolidou estratégias de atuação que ultrapassaram a questão religiosa. Além disso, você vai verificar como a Igreja fundamentou a sua estrutura e a sua organização por meio de uma lógica de universalismo que muito se aproximou dos ideais políticos dos reinos que estavam surgindo na época. O cristianismo como processo civilizador Alguns estudiosos relacionam a queda do Império Romano com a consoli- dação defi nitiva do cristianismo ou até mesmo com o triunfo dele. De fato, existe uma série de conexões entre os dois acontecimentos, mas será que isso faria da Igreja e, consequentemente, do cristianismo os principais agentes do processo civilizador nos reinos germânicos? Para Le Goff (2005), a principal característica da sociedade medieval era a insegurança. Tendo a Igreja per- cebido tal sentimento, seja nos aspectos materiais ou morais, não havia outra saída a não ser ofertar a solidariedade da fé cristã. Le Goff (2005) compreende que o período posterior à queda do Império Romano foi muito importante, pois simbolizava o prelúdio do novo Ocidente medieval, uma nova maneira de travar e compreender as relações sociais. A Igreja Cristã contribuiu decisivamente em termos de valores e de caráter civilizatório, principalmente na Alta Idade Média. A construção do conhecimento histórico sobre a Igreja e a difusão do cristianismo é pautada por alguns preconceitos criados a partir das decisões que essa instituição tomou em sua trajetória. Apesar disso, não se pode desconsiderar, desmerecer ou ignorar o seu papel. Como entidade humana, hierarquizada por dogmas, a Igreja também esteve em risco, batalhando por alternativas viáveis em cada momento histórico. Assim, juntamente à sociedade, sofreu mudanças no decorrer de sua jornada. Suas decisões foram consequência de suas conexões com o tecido social, mas as ideias de universalidade e expansionismo foram marcas de seu legado. Para Barros (2009, documento on-line), no novo mundo medieval, a organização se dava em torno da Igreja Cristã: Decisivamente, a ideia de universalidade que antes residia no Império vai se deslocando para a Cristandade consolidada institucionalmente na Igreja, e este confronto entre dois projetos universais — na vida política ou imaginária — em breve se estenderá pelos séculos posteriores como uma longa reminiscência do jogo de encaixes e desencaixes entre os dois sistemas. Mas o novo mundo medieval, efetivamente, tenderá a se organizar em torno da Igreja Cristã, o que já representa um novo sistema em construção. Para Sancovsky et al. (2010), no processo de migração dos povos ger- mânicos entre os séculos III e V d.C. para dentro das fronteiras do Império Romano, não havia o desejo de acabar com a cultura romana e a sua estrutura organizacional, e sim o intuito de fazer parte dela. A autora lembra que os muitos povos germânicos, de certa maneira, se aculturaram, incorporaram costumes e também crenças. Obviamente, também trouxeram consigo parte significativa de seus costumes para as regiões romanas onde se instalaram. A Europa do Ocidente, no período medieval, reunia três concepções de mundo distintas: o romanismo, o germanismo e o cristianismo. A Igreja e o cristianismo2 Como você já viu, a Igreja foi a única instituição a resistir à queda do Império Romano do Ocidente, em meio a duas formas singulares de visão de mundo, duas formas de existência e sobrevivência antagônicas. Portanto, foi necessário um esforço de evangelização para ampliar a doutrina cristã e, consequentemente, implementar um processo de conversão dos povos germânicos. Sancovsky et al. (2010) destacam que, quando se fala de povos germânicos, fala-se: dos visigodos, instalados nas Gálias e, após conflito com os francos, deslocados para a Península Ibérica; dos ostrogodos, que, entre 476 e 493, controlavam parte da Península Itálica sob o comando de Teodorico, general-rei que manteve fidedignamente as estruturas do Império Romano; e da disputa pela Europa do norte e central por francos, alamanos e burgúndios. Sancovsky et al. (2010) destacam os francos, que, sob o comando do general- -rei Clóvis, dominaram, em 481 d.C., grande parte da Europa central, na região à margem esquerda do rio Reno. Cada povo necessitava de uma estratégia de ação diferente por parte da Igreja. Segundo Franco Júnior (2001), alguns germânicos não eram pagãos, mas eram convertidos ao arianismo, crença considerada herética pelo Concílio de Niceia, relizado em 325 d.C. Muitos povos germânicos adeptos do arianismo desenvolveram uma tradução da Bíblia para o gótico. O objetivo era que os cultos pudessem ser celebrados em suas línguas nativas, reforçando a conversão de mais fiéis ao movimento religioso. Além disso, conforme lembram Sancovsky et al. (2010), outro fator muito importante foi a “simplificação” da doutrina cristã em esquemas “ingênuos”, esvaziando a normativa da teologia dog- mática, característica da Igreja. Com isso, a nova “tradução” foi voltada para uma lógica moral e militar, de poder, de energia e com excesso de moral heroica. Com a narrativa focada nesses elementos, os germânicos promoveram uma grande adesão à doutrina ariana, como explica Franco Júnior (2001, p. 116): Mais importante foi a questão religiosa, já que ostrogodos, visigodos, vândalos, burgúndios, suevos e lombardos adotaram o arianismo, heresia que os afastava da população romana católica. Talvez essa opção religiosa tenha mesmo sido outra forma de os bárbaros conservarem sua identidade, o que explicaria o fato de os godos terem colocado obstáculos jurídicos à adoção do arianismo por parte dos romanos. Igualmente funcionando como obstáculo, francos, alamanos, alanos, anglos e saxões permaneceram ligados ao paganismo. Empecilho que foi sendo removido a partir do mo- mento em que os francos, em 496, e os visigodos, em 587, se converteram ao catolicismo e acabaram em diferentes momentos sendo limitados pelos demais germânicos. 3A Igreja e o cristianismo O arianismo foi o grande risco enfrentado pelo catolicismo nos tempos medievais. Dessa forma, o foco da estratégia cristã foi a aproximação com os monarcas germânicos para a cristianização desses povos. Além disso, foram construídos monastérios em lugares mais isolados, como parte do processo de fortalecimento da doutrina católica. A ideia era evangelizar e demonstrar que o cristianismo era o grande trunfo do processo civilizatório do mundo medievo. O arianismo foi uma crença herética que surgiu na Igreja primitiva em decorrência dos ensinamentos do sacerdote alexandrino Ario (256–336). Devido à dificuldade teológica de conciliar a divindade de Cristo com a unidade de Deus, Ario propôs a seguinte noção: Cristo não era coeterno com o pai. No Concílio deNicea, o debate envolveu saber se o filho era “da mesma substância” que o pai. Atanásio defendeu a perspectiva que se tornou ortodoxa: o pai e o filho eram efetivamente da mesma substância. Assim, o arianismo foi condendo, e Ario, banido. O pensamento de Ario, contudo, continuou muito influente. Diversas tribos germânicas que habitavam além da fronteira do Império Romano foram convertidas por missionários. Desse modo, o cristianismo ariano se tornou predominante entre alguns ostrogodos na Itália (até meados do século VI), visigodos na Espanha (até fins do século VI) e vândalos no norte da África (LOYN, 1997). Concílios: o processo civilizador da Igreja Os concílios são uma das maneiras de a Igreja debater e interpretar temas rela- cionados à constituição teológica dos preceitos da doutrina eclesiástica. Também são espaços de discussão sobre as decisões relacionadas a temas que podem, de alguma maneira, tanto enfraquecer quanto empoderar os rumos da Igreja. Segundo Franco Júnior (2001, p. 252), os concílios podem ser defi nidos como: [...] literalmente “assembleia”, especificamente assembleia de clérigos para legislar sobre doutrina religiosa e disciplina eclesiástica. Suas decisões são os cânones, fundamento do Direito Canônico. Há três tipos de concílio: o ecumênico, ao qual comparecem todos os bispos convocados pelo papa; o provincial, que dirigido pelo arcebispo congrega os bispos de sua província eclesiástica; o sínodo, pelo qual o bispo reúne todo o clero de sua diocese. Conforme o autor, há indícios de que o costume dos concílios remete aos encontros realizados no período anterior à Idade Média, ainda na Antiguidade Clássica, em meados do ano 50 d.C., por grupos supostamente orientados por A Igreja e o cristianismo4 apóstolos. A pauta estava ligada a temas relacionados ao ensinamento da então nova religião. Ou seja, tais encontros organizaram e promoveram a expansão do cristianismo. Poulat (2002) afirma que tais reuniões estavam longe de consolidar uma instituição dogmaticamente alicerçada, pois ainda possuíam um caráter bastante informal. Por isso, apenas nos séculos posteriores, na passagem da Antiguidade Clássica para a Idade Média, é que ocorrem os concílios basilares de maneira institucionalizada. A sequência histórica de concílios começa com quatro concílios inaugu- rais e norteadores da cristandade: o Concílio de Niceia (325), o Concílio de Constantinopla (381), o Concílio de Éfeso (431) e o Concílio da Calcedônia (451). Conforme Metz (1971), a importância dos concílios para a formação da Igreja Católica é tamanha que obrigou papas e inúmeros autores eclesiásticos a criarem relações entre os encontros e os Quatro Evangelhos, interpretando-os como os “quatro rios do paraíso”. Segundo Bellito (2010), existem diversas formas de estudar a história da Igreja, mas uma das mais profundas é considerar as decisões dos concílios. Com quase 2 mil anos de existência, a Igreja organizou 21 concílios gerais e considera o Concílio de Jerusalém, encontro relatado nos Atos dos Apóstolos, como parte integrante do seu cânone. O autor esclarece que existem regras específicas para a convocação de um concílio por um papa. É necessário que as decisões da Igreja estejam sendo contestadas, em crise. Também pode haver o simples desejo da autoridade eclesial de esclarecer determinados pontos de convergência ou divergência. De forma prática, os 21 concílios gerais da Igreja podem ser divididos em quatro períodos distintos. Cada concílio ficou identificado pelo nome do local onde as autoridades eclesiásticas se reuniram para debater os conteú- dos referentes à fé e à doutrina cristã. A seguir, veja a divisão dos concílios usualmente aceita (BELLITO, 2010). Concílios do primeiro milênio: Niceia I (325), Constantinopla I (381), Éfeso (431), Calcedônia (451), Constantinopla II (553), Constantinopla III (680–681), Niceia II (787) e Constantinopla IV (869–870). Concílios da Idade Média: Latrão I (1123), Latrão II (1139), Latrão III (1179), Latrão IV (1215), Lyon I (1245), Lyon II (1274) e Vienne (1311–1312). Concílios sobre a Reforma: Constança (1414–1418), Basileia-Fer- rara-Florença-Roma (1431–1445), Latrão V (1512–1517), Trento (1545–1548/1551–1552/1562–1563). Concílios da Idade Moderna e Contemporânea: Vaticano I (1869–1870) e Vaticano II (1962–1965). 5A Igreja e o cristianismo Por fim, Franco Júnior (2001) destaca que transcorreram 19 concílios ecumênicos entre os séculos IV e XVI. Com isso, se a Igreja teve papel pre- ponderante no processo civilizador da Idade Média, os concílios “civilizaram” e normatizaram os dogmas eclesiásticos durante o mesmo período para que alcançassem os seus objetivos expansionistas e de universalização da fé cristã entre a sociedade medieval. A ascensão do cristianismo na Idade Média Um processo de descentralização política marcou a Idade Média. Com a au- sência de um poder político que unifi casse o continente europeu, bem como os inúmeros povos que nele viviam, o cristianismo, sob a égide da Igreja Católica, consolidou uma série de estratégias para propagar e difundir a sua doutrina. Os dogmas criados se baseavam na crença em Cristo. Logo, a instituição constituiu uma espécie de regramento social, um modelo de conduta que condicionou os indivíduos a determinados comportamentos para que pudes- sem chegar ao paraíso celeste. Os cristãos eram instruídos a não pecarem, seguindo de maneira fiel mandamentos divinos e com foco no próximo, por meio da caridade. Segundo Perry (1985), o enaltecimento do modo de vida a partir do sa- crifício, com base na promessa das inúmeras recompensas post-mortem, foi uma das estratégias mais bem elaboradas e bem-sucedidas do cristianismo no processo de conversão desses povos. O objetivo criado para o cristão estava na vida pós-morte, especificamente no paraíso, ignorando o processo natural das coisas, desistindo do individua- lismo e dos objetivos da vida secular e investindo na esperança da existência eterna no céu. Segundo Franco Júnior (2001, p. 141), uma escola filosófica fundamentava a estratégia da Igreja, a corrente patrística: Na essência, ela procurava provar que a doutrina cristã não conflitava com a razão, demonstrando assim a falsidade do paganismo. Para tanto, ela recorreu à filosofia grega, sobretudo ao platonismo, que se adequava melhor à mensagem cristã. O aristotelismo foi se tornando pouco conhecido, a não ser por umas poucas obras daquele filósofo, traduzidas por Boécio em princípios do século V. Somente mais de 700 anos depois o pensamento de Aristóteles passaria a predominar no Ocidente medieval. O grande nome da Patrística, e uma das figuras que, sem dúvida, maior influência exerceram por toda a Idade Média, foi Santo Agostinho. Para acompanhar seu pensamento, é preciso lembrar que para ele as verdades da fé não podem ser demonstráveis pela razão, mas esta pode confirmar aquelas: “compreender para crer, crer para compreender”. A Igreja e o cristianismo6 A Igreja Católica, com o intuito de combater a filosofia greco-romana, buscou na própria filosofia antiga o antídoto para reforçar e fundamentar a conexão entre a fé e a razão. Um dos filósofos escolhidos foi Platão, jun- tamente ao neoplatonismo. Portanto, a patrística surgiu da necessidade de diálogo entre o cristão e os não crentes, do aprimoramento e do desenvolvi- mento da teologia, com foco em sua preservação. Assim, foi promovido um processo conciliatório, uma ponte entre a teologia cristã e os seus dogmas e o pensamento greco-romano, naturalizando-o e ampliando as estratégias de conversão dos pagãos. A patrística acaba se tornando, durante a Alta Idade Média, uma prática educacional, pois os padres da Igreja também agiam como educadores, re- forçando e consolidando as verdades teológicas da doutrina cristã. O desen- volvimento das estruturas sociais, políticas e culturais da Idade Média esteve diretamente ligado ao foco da Igreja no ensino dogmático de suadoutrina. Em tal ensino, se propôs a apropriação e a difusão do conhecimento, bem como a manutenção das leis de convívio social por meio da força, estabelecendo-se os conceitos de ética e moral. Todo esse processo teve apoio e fundamentação de grandes pensadores e mestres, como bem lembram Sancovsky et al. (2010). Entre tais mestres, destaca-se Santo Agostinho (354–430), certamente um dos maiores teóricos da teologia e legitimadores da doutrina cristã. Em suas obras, ele evidencia as regras de comportamento e de costumes por meio de instruções. O diálogo de Santo Agostinho (1995, p. 26) com Evódio é um bom exemplo: Ag. – Julgas a instrução ser algo de bom? Ev. – Quem se atreveria a dizer que a instrução é um mal? Ag. – E caso não for nem um bem nem um mal? Ev. – A mim parece-me que é um bem. Ag. – Por certo! Com efeito, a instrução comunica-nos ou desperta em nós a ciência, e ninguém aprende se não for por meio da instrução. Acaso tens outra opinião? Ev. – Penso que por meio da instrução não se pode aprender a não ser coisas boas. No decorrer da Idade Média ocidental, pela falta de um Estado efetivamente forte, que pudesse manter o controle sobre a população, o cristianismo e a Igreja se tornaram os principais guias da sociedade. Os membros da Igreja foram os mentores das camadas que comandavam a política e, consequente- mente, colocaram em prática a fusão citada por Barros (2010) entre império e universalização da fé. 7A Igreja e o cristianismo A transformação dos padrões morais do mundo ocidental, promovida por meio da ascensão do cristianismo como forma de doutrina religiosa única na sociedade, representa um dos processos mais notáveis da história mundial. Afinal, uma religião que outrora era considerada uma seita, perseguida e condenada, tornou-se a fonte de poder, ética e moralidade no mundo medieval. O cristianismo transformou efetivamente as relações sociais, as maneiras de cultuar e o imaginário social. Além disso, promoveu a transformação de um mundo politeísta num mundo monoteísta. Para muitos historiadores do Medievo, o cristianismo somente prevaleceu no mundo ocidental porque soube dar espaço e esperança, de certa forma, para grupos desacreditados, sem chance de ascensão social, motivando-os a crer em outra vida, na entrega, no sacrifício. Dessa maneira, todo o sofrimento no mundo secular seria apenas uma transição para o paraíso. Para Veyne (2011), o cristianismo representa uma criação do coletivo sobre a compaixão de um Deus, criador de todas as coisas e com um amor imensurável pela humanidade. De acordo com o autor, a vitória do cristianismo é o reflexo de como ele foi elaborado, propondo que cada homem fosse responsável pela conversão de seus semelhantes e pela resposta ao questionamento sobre qual seria a religião verdadeira. Idade Média ou Idade das Trevas: as perspectivas historiográficas sobre a ascensão do cristianismo Segundo Almeida (2010), durante muito tempo existiu, em certa medida, um desprezo pela Idade Média, mas tal sentimento sempre foi passível de mudanças e ressignifi cações. A alcunha “Idade das Trevas” foi consolidada a partir de uma autêntica proposição que buscou simplifi car mil anos de conhecimento histórico ocidental. Isso contribuiu para que a vulgarização do conhecimento da Idade Média fosse tão pouco contestada. Há uma síntese sobre o período que é comumente propagada: a Idade Média foi um período histórico do Ocidente marcado por uma sociedade estamental, com amplo domínio da nobreza (por meio da força das armas) e controle da Igreja. Esta, na figura do clero, realizava o controle dogmático da fé religiosa, submetendo a sociedade da época a um intenso controle ideológico. Segundo Almeida (2010, documento on-line): Essa síntese sumária de todo um período histórico, absolutamente improvável de ser aplicada pelos historiadores a qualquer outra época, é reconhecida, sem remorsos, como válida e suficiente para a Idade Média. A autossuficiência A Igreja e o cristianismo8 dessa definição estrita oculta toda uma época sob algumas poucas palavras pretensamente "esclarecedoras" e "verdadeiras". Podemos dizer mesmo que neste ocultamento está encerrada a função histórica do período. Desde que respeitados os limites bem estabelecidos de suas "Trevas", a Idade Média pode prestar-se a todos os conteúdos. Toda época histórica merece um processo de reescrita, e a Idade Média talvez seja o período histórico com maior necessidade de esforços de “ressig- nificação” para um melhor entendimento sobre as suas nuances. A limitação sobre o contexto social do Medievo em fontes é uma realidade. A construção de conhecimento histórico sobre o cotidiano, a vida religiosa e até mesmo a sexualidade da sociedade da época dão indícios sobre as sistematizações ou fórmulas criadas para a contextualização dos mil anos de história do período. A dualidade de eventos considerados ora como pagãos, ora como cristãos também é legatária de uma história construída a partir de quem controlava o período, ou seja, a Igreja. Uma proposta bastante relevante para a releitura sobre a Idade Média é men- cionada por Barros (2010). Para ele, o papado e o império foram os responsáveis por projetos universalistas cujo entendimento é imprescindível para a análise das especificidades do período medieval. Fugindo das generalizações sobre o tema, a aliança do mundo da fé com os diversos reinos formados durante o Medievo traz à tona uma série de problematizações que podem dar um novo rumo aos debates historiográficos sobre o período. Dessa forma, é evidente que a interpretação sobre a influência do cristia- nismo no processo de desenvolvimento das estruturas social, política e cultural da Idade Média exige novas perspectivas de análise. Levar em conta a ideia de projetos de universalização, tanto por parte da Igreja como por parte dos novos reinos, e considerar as estratégias de construção do imaginário social dos dois projetos são perspectivas que podem redesenhar as conjecturas do período. Assim, abre-se uma miríade de possibilidades para a compreensão da cristandade e do poder. A organização hierárquica eclesiástica na Idade Média Com o objetivo de consolidar a infl uência conquistada no século IV, a Igreja, por meio dos bispos, principais representantes da instituição, estabeleceu um modelo hierárquico e uma sistematização semelhantes aos do Império Romano. A instituição, com as suas estratégias, promoveu um processo de 9A Igreja e o cristianismo conciliação e, por que não dizer, união no mundo medieval descentralizado e enfraquecido pela queda do Império Romano. Com a missão de propagar a doutrina dos apóstolos, a Igreja, por meio do cristianismo, manteve-se cada vez mais distante do mundo secular, focada em seus dogmas, difundindo suas normativas e ganhando prestígio e respeito por parte da sociedade medieval. Veja o que afi rma Franco Júnior (2001, p. 67): [...] a linha tendencial da Igreja na Idade Média revela-se com clareza. Num primeiro momento, a organização da hierarquia eclesiástica visava à conso- lidação da recente vitória do cristianismo. A seguir, a aproximação com os poderes políticos garantiu à Igreja maiores possibilidades de atuação. Em uma terceira fase, o corpo eclesiástico separou-se completamente da socie- dade laica e procurou dirigi-la, buscando desde fins do século XI erigir uma teocracia que esteve em via de se concretizar em princípios do século XIII. Segundo Silva (2014), seria impossível fazer o mapeamento específico de cada elemento constitutivo do supracitado “projeto” normativo da Igreja, focado em sua estruturação; talvez pela ausência de uma sistematização, ou então pela incerteza de que as informações estejam por completo num único documento, entre muitas outras razões. Conforme Franco Júnior (2001), o processo de formação e hierarquização eclesiástica promoveu indiretamente um elemento que ameaçava a própria existência da Igreja: as chamadas heresias, frutoda sincretização entre os muitos povos e crenças. Elas tinham um papel dúbio para o cristianismo: de fortalecimento e, ao mesmo, de risco. O autor esclarece que as suspeitas de heresia eram então encaminhadas para a análise do bispo local. O próximo passo seria o compartilhamento da referida suspeita com os pares nas assembleias episcopais, ou sínodos, que se reuniam desde meados do século II para tratar de tudo que interessasse à igreja local. Por outro lado, as questões referentes ao âmago da doutrina em si eram debatidas nos chamados concílios ecumênicos, com a participação de bispos de todas as regiões, demonstrando a total universalidade da Igreja. Segundo Le Goff (2005), paralelamente ao revigoramento e à defesa dos inte- resses eclesiásticos, ocorre a ampliação do papel político da Igreja: a negociação com os germânicos para a ampliação da jurisdição. A Igreja tinha o objetivo de atuar também fora das comunidades cristãs, participando da administração citadina, trabalhando e tendo interface no campo social, protegendo pobres (a difundida esmolagem) e militando com as armas da fé em prol do mundo secular. Nesse contexto, a implantação de uma teocracia cristã ocorreria natural- mente. Contudo, alguns fatores impediram tal processo. A Igreja passa a ser questionada, uma vez que apresenta comportamentos invasivos no mundo A Igreja e o cristianismo10 secular, fugindo de sua missão primordial, que era cuidar do espírito e das coisas sagradas. Os cristãos que viviam em mosteiros condenavam o luxo e a ostentação dos bispos. Cabe ressaltar que existiam dois tipos de clero no mundo medieval: um secular, focado nas questões políticas e administrativas, e um regular, dedicado ao trabalho social e espiritual. As contradições e supostos escândalos começaram a ser muito mencio- nados entre a sociedade estamental do Medievo. Gradativamente, a Igreja foi desgastando a sua imagem, ao mesmo tempo em que criava estratégias de fortalecimento, pautadas pelos dogmas estabelecidos. As consequências quase sempre drásticas para a resolução de questões heréticas repercutiam negativamente entre a população de fiéis e também internamente, uma vez que muitas divisões fragmentaram o poder eclesiástico. Existe um consenso entre os autores, entre eles Franco Júnior (2001), Le Goff (2005), Sancovsky et al. (2010) e Silva (2014), de que igreja desenhou estratégias para legitimar o seu poder espiritual sobre o secular. Por inúmeras vezes, houve um esforço de retomar as escrituras sagradas e as obras dos pais da Igreja, como Santo Agostinho, com o objetivo de retirar a instituição daqueles considerados leigos ou incapazes, que se aproveitavam do fator territorial com congregações particulares. Os autores também concordam que a meta dos dirigentes da Igreja era constituir uma autonomia imbatível para controlar ainda mais a sociedade medieval, conforme esclarece Franco Júnior (2001, p. 89): a figura dos concílios não eliminava uma tendência que se fazia sentir desde os primeiros tempos, a da constituição de uma monarquia eclesiástica. Havia para isso uma fundamentação religiosa (um só Deus, uma só fé, uma só Igreja) e a crescente necessidade de se preservar aquela unidade. Os conflitos provocados pela questão ariana tinham enfraquecido a autoridade moral dos sínodos, que se contradiziam, mostrando que era preciso um poder acima de todos, uma monarquia como a que Cristo exerce sobre o universo. Foi em razão disso que o bispo de Roma se sobrepôs a seus pares, podendo usar a partir de fins do século IV o título de papa, quer dizer, pai de todos os cristãos. Baseado em quê o Bispo de Roma pretendeu tal supremacia? Segundo Silva (2014), a maioria dos padres do século IV blindava a imagem do bispo, pois era de interesse da organização eclesiástica demonstrar que o ministro de Deus não era falho e que se distanciava das vicissitudes dos pagãos e dos seculares quadros da administração imperial. Por sua vez, os padres do século VII também precisavam reforçar a sua imagem e fortalecer a propagação do cristianismo, o que estava diretamente ligado à reorganização da igreja local. 11A Igreja e o cristianismo A história das formas de pensar e organizar o cristianismo estão diretamente associadas às estratégias de expansão do Império Romano. Segundo Sancovsky et al. (2010), a partir do século XVI, com a colonização europeia da Ásia e da América, a expansão da doutrina cristã relembra em muitos detalhes as ações do antigo Império Romano. A partir daí, a administração da Igreja se estruturou em localidades autônomas chamadas “dioceses”, controladas por bispos subalternos ao papa. No decorrer de sua história, a Igreja incorporou processos normativos de administração e de organização pública de diferentes culturas, tais como a grega (no que se refere a Atenas) e à romana; inclui-se aí também a sua com- preensão apurada das estruturas organizacionais dos povos germânicos. Dessa forma, a Igreja usou a seu favor, em sua organização, conceitos hierárquicos de autoridade, noções de Estado maior e núcleos de coordenação funcional. Segundo Franco Júnior (2001), nos primeiros séculos do Medievo, a organi- zação eclesiástica estava dividida de duas maneiras: a secular e a regular. O clero secular era formado por presbíteros, diáconos, bispos metropolitanos, patriarcas e papa. Conforme o autor, a denominação se referia ao contato dos componentes desse clero com indivíduos do mundo secular, ou seja, não eclesiástico. Já o clero regular era formado por diferentes ordens religiosas e tinha como características as práticas espirituais e a pregação de valores cristãos, entre os quais, conforme Franco Júnior (2001, p. 93), destacam-se a oração e o trabalho: Oração e trabalho num duplo sentido, numa dupla forma de alcançar Deus: rezar é combater as forças maléficas, contribuindo para a salvação não ape- nas da alma do próprio monge, mas também de toda a sociedade; trabalhar é afastar a alma de seus inimigos, a ociosidade e o tédio, é alcançar por meio dessa forma de ascese uma fonte de alegria. Tanto quanto o trabalho manual, o intelectual, a leitura de textos sagrados, prepara a alma para a oração. Enfim, orar é uma forma de trabalhar, trabalhar é uma forma de orar. Embora a sua organização tenha sido modelo para inúmeros estudos — por sua abrangência territorial, seu poder e sua interferência —, a Igreja teve rupturas internas oriundas de movimentos cismáticos. Exemplo disso é a chamada Cisma do Oriente, ocorrida em 1054, responsável por uma ruptura interna no mundo eclesiástico, dando origem à Igreja Bizantina. Conforme Sancovsky et al. (2010, p. 11): A separação total entre a Igreja Católica, com sede em Roma, e as Igrejas Ortodoxas de Bizâncio e da Rússia ocorreu definitivamente no ano de 1054, no famoso “Cisma do Oriente”. Essas Igrejas foram consideradas “pecadoras” A Igreja e o cristianismo12 ou “heréticas” pelos papas medievais, por apresentarem sérias diferenças na maneira como explicavam a natureza do poder e da divindade de Jesus, gerando polêmicas sobre o dogma católico da Trindade. Há diversas problematizações historiográficas referentes às práticas da Igreja no passado e no presente. Além disso, existem distintas generalizações no imaginário social e ocorre a reprodução de algumas incoerências. Por isso, refletir acerca do papel dessa instituição religiosa e da sua organização no transcorrer da Idade Média é um trabalho minucioso, mas também uma fonte de conhecimento sobre o mundo medieval e as suas implicações na atualidade. No link a seguir, acesse o site oficial do Vaticano, em que há exemplos de organização hierárquica eclesiástica. https://qrgo.page.link/z3XkV ALMEIDA, N. de B. A idade média entre o "poder público" e a "centralização política": itinerários de uma construção historiográfica. Varia Historia, v. 26, n. 43, 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-87752010000100004&script=sci_ abstract&tlng=pt. Acessoem: 14 jul. 2019. BARROS, J. D'A. Cristianismo e política na idade média: as relações entre o papado e império. Horizonte, v. 7, n. 15, dez. 2010. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/in- dex.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2009v7n15p53/2477. Acesso em: 14 jul. 2019. BARROS, J. D'A. 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