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10 - NORDESTE INSURGENTE - Hamilton de Mattos Monteiro


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Hamilton de Mattos Monteiro
DEDALUS - Acervo - FFLCH-FIL
Nordeste insurgente, 1850-1890 I
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NORDESTE INSURGENTE
(1850-1890)
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E CIENCIAS SOC1AI~ _\
Copyright @ Hamilton de Mattos Monteiro
Capa:
127 (antigo 27)
Artistas Gráficos
Foto de capa:
Carlos Amaro
Caricatura:
f Emílio Damiani "
Revisão:
Aníbal Mari
Carlos A. Volpato
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INDICE
Introdução 7
A região 9
As insurreições 31
As revoltas urbanas 77
Conclusão 9S
Indicações para leitura 97
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INTRODUÇÃO
Durante muito tempo, a historiografia brasileira
refletiu as histórias das elites vitoriosas e dedicou-se,
na maior parte, a acompanhar as mudanças do eixo
econômico dentro do território nacional. Assim, te-
mos vasta produção não só sobre o Nordeste colonial,
como também sobre as Minas Gerais no século
XVIII, a província fluminente e a Corte no século
XIX e São Paulo no século XX. Além do interesse
pelas mudanças econômicas, nesses pontos de atra-
ção, alguns temas são continuamente pesquisados,
entre outros a escravidão africana, a industrializa-
ção, etc. No conjunto, apesar de sua importância,
estas regiões, épocas ou temas, com seu poder de
atração, contribuíram para um relativo esquecimen-
to de outros assuntos e também da história de outras
regiões em determinadas épocas.
Modernamente, saímos desse provincialismo in-
telectual e começamos a escrever as histórias locais,
8 Hamilton de Mattos Monteiro
das épocas esquecidas. Retomamos o fio da meada,
deixado por historiadores e cronistas regionais que,
por muito tempo ignorados nas prateleiras das bi-
bliotecas, voltam a ter importância ao se escrever a
verdadeira história brasileira que não deve ser so-
mente a dos vencedores, mas também a dos vencidos,
a da Corte como a da província, a das regiões "desen-
volvidas" como a das empobrecidas e exploradas.
Aqui neste opúsculo, restauramos um pouco da
história do Nordeste brasileiro que, depois de ter sido
uma das mais importantes regiões geo-econômicas
da era moderna, fornecedora praticamente exclusiva
do açúcar consumido no mundo ocidental, é deixada
à sua própria sorte, a partir do século XIX. O Nor-
deste é uma das provas do resultado da exploração
predatória dos recursos econômicos de uma região
para atender a interesses externos, que, depois de
esgotada, é abandonada. De região heróica da época
áurea da produção açucareira e da vitória contra os
holandeses, passa a ser acusada de ignorante, faná-
tica e indolente, quando economicamente não mais
interessa.
No presente trabalho, limitar-nos-emos a escre-
ver sobre a segunda metade do século XIX, já que a
primeira será objeto da atenção de outros especia-
listas e que, no conjunto, contribuirão para dar ao
nordestino a consciência de seu passado sempre he-
róico e glorioso.
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A REGIÃO
A Paisagem
Quando nos referimos ao Nordeste brasileiro,
tratamos da área que engloba os atuais Estados do
Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Pa-
raíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia.
Esta vasta região apresenta-se subdividida em
quatro outras, consoante seu tipo de solo, clima e
vegetação. São elas a Zona da Mata, o Agreste, o
Sertão e o Meio-Norte.
A Zona da Mata abarca cerca de 18,2% da área
total, estendendo-se do Rio Grande do Norte à Ba-
hia. Seu clima é quente e úmido e ali se cultiva
principalmente cana-de-açúcar, cacau e fumo.
Estendendo-se mais para o interior, está o
Agreste. Não apresenta clima e vegetação uniformes,
contendo algumas regiões que se assemelham ao Ser-
tão e outras à Zona da Mata. Ê uma área de tran-
f"
10 Hamilton de Mattos Monteiro
sição entre essas duas outras que lhe fazem limites.
As atividades econômicas são múltiplas, destacando-
se o algodão, os gêneros alimentícios e a pecuária.
O Sertão ocupa a maior parte do Nordeste,
abrangendo cerca de 49% do total. Seu relevo é mais
uniforme e o clima mais seco. Em grande parte, a
vegetação é de caatinga e a ocupação humana mais
rarefeita. As atividades predominantes são a pecuâria
e a cultura do algodão. Nele existem algumas regiões
que são autênticas ilhas, onde se pratica uma agri-
cultura variada e hâ maior concentração populacio-
nal. São as várzeas dos rios sertanejos, as regiões
serranas e o vale do Cariri.
O Meio-Norte (Maranhão e Piauí) ê tipicamente
uma região de transição entre a floresta equatorial
(floresta amazônica) e o Sertão. A paisagem se altera
de oeste para leste. No extremo oeste do Maranhão,
a vegetação e as condições climáticas se assemelham
à Amazônia e, à medida que se avança para leste,
cada vez mais se parece com o Sertão. A pecuária
e o extrativismo vegetal predominam na atividade
econômica, se bem que ali também se desenvolvam a
produção de algodão e a de arroz.
A distribuição da Terra e a Sociedade
o elemento principal que atuou na formação da
sociedade nordestina foi a posse da terra; a partir
dela, estruturaram-se os principais grupos sociais.
Como se sabe, tem predominado ali a grande
Nordeste Insurgente (1850-1890) 11
propriedade cuja origem remonta às doações sesma-
riais. Na Zona da Mata, desenvolveu-se a cultura da
cana-de-açúcar; no Agreste, foi dada maior atenção
à pecuária e/ou à cultura do algodão; no Sertão,
a pecuária extensiva teve grande êxito e, na região do
Maranhão e Piauí, houve grande dedicação tanto ao
extrativismo vegetal quanto à pecuária,
As pequenas propriedades são poucas e dedi-
cam-se geralmente à produção de gêneros alimentí-
cios e, em alguns casos, ao algodão. No Agreste,
estas localizam-se nos chamados "brejos", regiões
mais elevadas e, portanto, beneficiadas por um clima I 1111
de maior umidade, e, no Sertão, normalmente nas I
regiões que margeiam os-rios. Muitas vezes são tão I
pequenas, entre 5 e 10 hectares, que obrigam os agri-
cultores a procurar trabalho adicional.
Por outro lado, havia também as terras arren-
dadas, onde se praticava uma agricultura geralmente
voltada para gêneros alimentícios. Na Zona da Mata,
cultivavam a cana-de-açúcar para fornecimento aos
engenhos e, no Agreste e no Sertão, também o algo-
dão, sendo que os grandes proprietários tinham
maior interesse na atividade pecuária,
Comum também era a existência de "roças"
feitas pelos moradores, também chamados agrega-
dos, os quais constituíam-se em trabalhadores even-
tuais que moravam nas fazendas e a quem era permi-
tido cultivar uma pequena área. Estas "roças" eram
quase sempre de mandioca, milho e feijão, alimentos
comuns na refeição nordestina.
Sobre esta divisão e utilização da terra, assen-
12 Hamilton de Mattos Monteiro Nordeste Insurgente (1850-1890)
mente, de onde provinham os jagunços, os cabras e
os cangaceiros.
"Nas cidades, o papel da agitação social estava
reservado a uma pequena classe média, que sofria
primeiro os efeitos da carestia e se compunha de
artesãos (alfaiates, mestres-carapinas, mestres-de-
obra e seus oficiais) e de profissionais liberais, im-
buídos, muitas vezes, de idéias de justiça social,
quando não era tal papel, com bastante freqüência,
representado pelo clero ."
. Na longa crise por que passou o Nordeste no
século XIX, estes grupos não se limitaram a esperar
pacificamente pela solução de seus problemas. Rea-
giram a seu modo, a curto ou a longo prazo.
Dos mais pobres ou empobrecidos que não emi-
graram, saíram levas de bandidos que infestavam o
Sertão e também os "sediciosos'; que colaboraram na
rebeldia dos coronéis ou rebelavam-se diretamente
contra os que os exploravam.
Dos setores médios urbanos, emergiram os
"conspiradores", que nos clubes políticos, ou através
de comícios, panfletos e jornais, não cessavam de
fazer a crítica ao regime vigente e lideravam intelec-
tualmente e na prática os motins e revoltas urbanos.Dos mais poderosos, dos grandes proprietários,
surgiram as "guerras" contra seus pares, as violên-
cias contra seus agregados, as contestações ao poder
público; isoladas ou coletivas estas últimas tomaram
os mais variados aspectos, desde a exploração cole-
tiva de 1874, quando a crise se apresentou com toda
a sua intensidade, até a abstenção com relação à
13
tava-se uma estratificação social também diversifi-
cada. Em resumo, sem querer esgotar o assunto e
tendo em vista que nosso propósito é apenas estabe-
lecer o quadro da sociedade nordestina para efeito
de melhor compreensão dos temas que serão trata-
dos, a região apresentava as seguintes camadas so-
ciais: de um lado, no ápice da pirâmide social, estava
o grande proprietário (senhor de engenho na Zona da
Mata, fazendeiro e/ou criador no Agreste e no Ser-
tão), isto é, o coronel todo-poderoso da Guarda Na-
cional, senhor de fato da região sob sua influência.
Do outro lado, estavam os escravos e os moradores,
que, embora livres, gozavam de piores condições de
vida que os próprios escravos.
Entre estes dois grupos, situava-se uma enorme
variedade de tipos sociais que englobavam desde os
pequenos e médios proprietários e arrendatários, os
"oficiais" assalariados (como os mestres de açúcar
nos engenhos e o curtidor nas fazendas de criação) ou
autônomos (como alfaiates, oficiais de cantaria, car-
pinteiros, etc.), até os profissionais liberais e os fun-
cionários públicos.
A desigual distribuição da terra iria dicotomizar
a população rural na medida em que um número
reduzido teria acesso a ela como proprietário ou
arrendatário e uma grande massa, progressivamente
aumentada, por força mesmo do crescimento natu-
ral, teria de se contentar com a condição de mora-
dores ou então perambular de propriedade em pro-
priedade como jornaleiros. Estes últimos constituíam
mão-de-obra barata e abundante, vivendo miseravel-
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14 Hamilton de Mattos Monteiro
sorte da monarquia, em 1889, já cansados de esperar
a atenção que achavam justa merecer.
Todavia, dada a importância, para a compreen-
são das lutas sociais, do papel desempenhado pelos
grandes proprietários e pelos homens pobres livres (a
quem chamaremos genericamente de lavradores),
consideramos necessário maior detalhamento sobre
estes dois grupos:"
Os grandes proprietários
Fundamentavam sua dominação no latifúndio e
na exploração da mão-de-obra, sob relações sociais
de produção que iam desde o contrato mediante sa-
lário até a escravidão, conforme suas conveniências e
lucratividade. Impuseram-se socialmente pela vio-
lência, a qual se caracterizou, desde a fase colonial,
pela expropriação do indígena, privando-o de suas
terras e, em muitos casos, de sua liberdade; pela pri-
vação da liberdade do negro e sua coação ao traba-
lho; pela apropriação da quase totalidade das terras
por uma minoria. impedindo que uma ampla ca-
mada de homens livres, cada vez maior, se tornasse
também proprietária.
Instalou-se, portanto, uma ordem caracterizada
pela violência. O grande proprietário, o "coronel",
necessitou impor-se autoritariamente sobre a popu-
lação de seu "domínio", para assegurar a posse dos
seus bens ante a maioria que se constituía em traba-
lhadores livres, escravos e jagunços, Ele se acastela
Nordeste Insurgente (1850-1890)
em sua propriedade e se cerca de um numeroso "exér-
cito" privado, com o qual comete toda a sorte de vio-
lências. Deve precaver-se contra possíveis "traições",
porque é assim que entende as discordâncias dos que
habitam sua área de mando; contra seu rival, tam-
bém grande proprietário territorial, com o qual dis-
puta a influência e até mesmo as terras, e, por úl-
timo, contra o Estado monárquico que, tentando
instalar uma ordem em certa medida racional, toma
atitudes que contrariam seus interesses.
Como centro de convergência das lutas sociais e
políticas no Nordeste, fundamentalmente no meio
rural, está, de fato, o coronel. Ele é que, direta ou
indiretamente, traçava os rumos do relacionamento
social e político. Ele era a célula de todo o sistema.
Enfeixava em suas mãos o poder econômico, jurí-
dico, político e, pela influência sobre o vigário local,
até mesmo determinava os parârnetros da ação reli-
giosa. Qualquer estudo sobre a violência da socie-.
dade local não pode ignorar a ordem social que ali se
instalou sob o primado da lei do mais forte, regida
por um código próprio, o código do coronel.
Sua ética era muito simples. Era o "divisor de
águas", e o bem e o mal se definiam a partir de seus
interesses privados. Bem era tudo que fosse a seu
favor e mal tudo que lhe fosse contra. "Conquista-
dor" de suas terras ou herdeiro de "conquista", orga-
nizador da produção local e "domador" da popula-
ção aborígene ou adventícia, o coronel era muito
cioso de suas propriedades e posses e exigia de todos
o reconhecimento de seus direitos de mando. Na sua
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lógica, nada havia de mais correto e insofismável. Ele
estava acima do julgamento dos subordinados, res-
".. tando a estes balizar seu comportamento pela fideli-
dade irrestrita ou então discordar e cair nas suas iras.
O coronelismo, fruto do latifúndio e da omissão
ou ausência do poder público, encontrar-se-ia, entre
1850 e 1889, situado entre dois fogos. De um lado, a
crise do setor exportador que, quando não o arruína,
torna sua situação econômica instável; do outro, a
tentativa da monarquia em fazer valer seu poder em
meio a esses autênticos "potentados", como os alcu-
nhava Euzébio de Queirós.
Acostumados ao mando sobre seus vastos domí-
nios, numa autoridade adquirida desde os tempos
coloniais, os coronéis sofreriam os efeitos da centra-
lização monárquica a partir do momento em que os
Braganças formaram no Brasil um Império autô-
nomo e aplicaram as idéias centralizadoras tão ao
gosto das casas reais européias. Passado o período
regencial, durante o qual a obra centralizadora es-
teve paralisada e em alguns casos retroagiu, e ven-
cida a revolta Praieira, em 1850, a monarquia reco-
meça a sua obra de centralização e de instalação de
uma estrutura político-administrativa mais racional
e menos patrimonial. Este fato provocaria atritos, se
bem que, na maior parte dos casos, estabelecessem
- o poder público e o poder privado - um modus
vivendi. Mas, apesar de tudo, os coronéis não cedem
na sua autoridade e agem como se fossem o poder
maior, descaracterizando o poder público na sua
área de influência, desmoralizando a justiça e opri-
":
mindo desapiedadamente os que estão na sua depen-
dência.
Mesmo assim, o relacionamento entre coronéis e
Estado, nessa época, foi, podemos dizer, harmo-
nioso. O coronel entendia o Estado como expressão
de seus interesses privados, e este adotava uma polí-
tica dúbia, mas lógica dentro dos objetivos nacionais.
Estávamos muito perto dos movimentos insurrecio-
nais que marcaram a primeira metade do século
XIX, e ao Império atemorizava a idéia de qualquer
convulsão interna. Diante da eclosão de algum mo-
tim, insurreição, etc., caso partisse das camadas
mais pobres, a resposta do governo imperial se fazia
pronta e enérgica, e protelatória e cuidadosa, caso
partisse dos coronéis. Ela foi violenta no caso do
"Quebra-quilos", mas aos coronéis não foi aplicado
o "colete de couro" e foram absolvidos ou anistiados.
O que se depreende desse relacionamento é que
foi feito em níveis diversos e de formas diferentes.
Em nível local, houve a submissão quase completa
das autoridades ao coronel; em nível geral, houve
uma ação decisiva, com alguns recuos táticos para
enquadrar os grandes proprietários no Estado racio-
nal que se formava. Podemos dizer que o Império,
ciente da importância do coronel como "primeira
garantia da ordem pública", no dizer de Henrique
Millet, e ciente, também, da necessidade de organi-
zar o pais em bases mais condizentes com o século,
colocou esta organização como objetivo permanente
a longo prazo, evitandouma ação imediata que pro-
vocaria reações incontroláveis. Salvavam-se a paz in-
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18 Hamilton de Mattos Monteiro
terna e a unidade política em troca da concessão de
uma parcela do poder, em nível local, aos coronéis,
enquanto a administração pública, em nível geral,
mantinha a independência relativa necessária para
alcançar seus objetivos.
Quando eclodiram os conflitos entre os coronéis
e o Império, foi porque este ou adotou medidas con-
trárias aos interes~es dos grandes proprietários ou
não atendeu às suas reivindicações. Tais confrontos
quase sempre terminaram com a conciliação, geral-
mente em detrimento do poder estatal.
Mas, se não houve conflitos que jogassem deci-
sivamente os coronéis contra o Estado, também não
podemos dizer que houve uma ligação bem alicer-
çada. A colaboração existia porque, por mais que
divergissem, tinham interesses comuns que se tradu-
ziam, por exemplo, na necessidade de defender a
manutenção da ordem numa sociedade com parcela
considerável de subempregados, marginalizados e es-
cravos. Além do mais, alimentavam a esperança de
auxílio financeiro da parte do Estado à sua economia
cada vez mais descapitalizada. Ressalte-se, ainda, o
fato de que os coronéis jamais se mostraram unidos
na oposição ao governo.
A reforma da Guarda Nacional, em 1873, a
nova lei do recrutamento militar, de 1874, a falta' do
tão solicitado financiamento estatal e o agravamento
dos problemas econômicos, a partir da grande seca
de 1877-79; serviram para o distanciamento decisivo
entre aquela elite e o regime monárquico.
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Nordeste Insurgente (1850-1890)
Os lavradores
Esta parcela da população caracteriza-se pela
heterogeneidade mas, qualquer que seja sua condi-
ção em termos sócio-econômicos, deve-se ter em
mente a imensa distância que os separava dos gran-
des proprietários e que formavam a maioria da popu-
lação regional. Compunha-se esse grupo de pequenos
arrendatários, pequenos proprietários, moradores e
jornaleiros.
Suas condições de vida e trabalho eram precá-
rias. Como moradores ou agregados de uma grande
propriedade, habitavam por favor nas terras do se-
nhor, numa situação instável, podendo a qualquer
momento ser expulsos, perdendo as benfeitorias e, in-
clusive, a "roça". Não tinham a necessária liberdade
para decidir suas vidas e mesmo a contragosto eram
convocados, não podendo se recusar, para realizar
tarefas nada legais sob o mando arbitrário do coro-
nel. Se não eram moradores, constituíam-se em força
de trabalho disponível conforme as necessidades dos
proprietários. O fato de serem trabalhadores even-
tuais, geralmente convocados nas épocas de plantio
ou colheita, sob ínfimas condições de pagamento,
fazia dessa gente uma população sofrida, subnutrida
e mendicante, muitas vezes migrando de paróquia
para paróquia, à procura de trabalho e alimentos.
Após o fim do tráfico negreiro, com problemas
de reposição de mão-de-obra, os grandes proprietá-
rios tiveram dificuldades em atrair trabalhadores ru-
rais, devido, entre outros fatores, às condições expio-
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20 Hamilton de Mattos Monteiro
ratórias que impunham. Nos finais dos anos 50,
ouve-se o clamor dos fazendeiros que exigem das au-
toridades medidas tendentes a obrigar os homens
pobres livres a trabalhar em suas terras. Em 1860,
a pedido, o Arcebispo da Bahia, Marquês de Santa
Cruz, emite uma pastoral onde afirma que a ociosi-
dade era um dos maiores pecados e concita, dessa
forma, os pobres a procurar trabalho. Na década de
70, acentuando-se o problema, os delegados de Polí-
cia são alertados para efetivar a aplicação do § 2?,
do artigo 12, do Código de Processo Criminal e do
artigo 111, do Regulamento de 31 de janeiro de 1842.
O Chefe de Polícia da Província de Sergipe seria bem
claro ao afirmar que" devido à falta de braços para a
lavoura, não se podia permitir a vadiagem". Estes
parágrafos e artigos constituíam-se em verdadeiras
leis contra a pobreza, mendicância e ociosidade. Os
que fossem encontrados sem trabalho teriam o prazo
de 30 dias para encontrar ocupação, findo o qual
poderiam receber três tipos de penas: multa até 30
réis, prisão até 30 dias e 3 meses de casa de correção
ou oficinas públicas. Reeditava-se, no Brasil do sé-
culo XIX, a versão cabocla das famosas poor-laws
inglesas do século XVI.
Estes homens pobres livres viviam praticamente
à margem da lei. Não recebiam proteção dela, pois,
no seu vasto mundo, os coronéis eram a lei suprema.
Os julgamentos e decisões dos juizes.as resoluções
das Câmaras Municipais, as ações da polícia, etc.,
tudo se colocava sob o arbítrio daqueles land-lords.
Não havia recurso diante de seu autoritarismo, a não
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Nordeste Insurgente (1850-1890)
ser abandonar a terra, acomodar-se, ou então trans-
formar-se em bandido.
O banditismo rural foi uma das soluções encon-
tradas por esta população que vivia em condições
subumanas. A falta de consciência política levou-os a
reagir instintivamente e a tornarem-se bandoleiros,
também chamados cangaceiros. Optar pelo bandi-
tismo significava a solução extrema diante da penú-
ria e de certa forma a "liberdade", se bem que em
termos individuais. Embora cometessem toda a sorte
de crimes, estes homens eram vistos como heróis e
olhados com admiração pela população em geral, da
qual, inclusive, recebiam ajuda. Sua audácia e inde-
pendência ante o coronel transformavam-nos em
exemplos vivos de saída possível. A partir da década
de 70, principalmente após a grande seca de 1877-79, .
houve um incremento considerável; deste tipo de "saí-
da", não sendo por coincidência que ocorreu justa-
mente na época em que a crise econômica se mos-
trava mais aguda, e as relações sociais se faziam mais
impessoais, e menos velado se tornava o aspecto
exploratôrio desse relacionamento. A violência ge-
rava a violência e ameaçava explodir de forma impre-
visível, com sérias conseqüências.
Os lavradores pobres, por seu turno, só se revol-
tavam quando a situação tomava-se aflitiva ou quan-
do se aproveitavam de divisões ocorridas na elite
dominante e eram insuflados por um dos lados. Des-
sa forma, saíram em campo lutando contra seus
opressores ou aqueles que identificaram como tais.
Atacaram as fazendas na revolta de 1851-52 e, entre
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22 Hamilton de Mattos Monteiro
outros, as Câmaras Municipais e Coletorias na de
1874-75. Em ambas, com o mesmo pavor de serem
escravizados, pois foi assim que entenderam (ou fo-
ram induzidos a tal) os decretos inovadores do regis-
tro civil, do sistema métrico decimal e da nova lei do
recrutamento militar. Esta atitude serve para de-
monstrar o quanto de contas tinham a ajustar com
seus "senhores". Demonstra, outrossim, que pos-
suíam certa consciência da miserabilidade, depen-
dência e opressão em que viviam e não achavam
estranha a possibilidade de virem a ser escravizados.
. Os rebeldes derrotados engrossavam as fileiras
dos bandidos e os bandos desciam do Sertão quando
as rebeliões eclodiam no Agreste ou na Zona da
Mata. Os matutos viam o banditismo como saída
possível para sua situação de penúria e explodiam em
rebelião quando a situação atingia seu ponto crítico.
Se não conseguiram atingir seus objetivos é porque
lhes faltaram a necessária conscientização e a lide-
rança saída de seu próprio meio. Quando foram
conscientizados e alertados contra quem os oprimia,
pelos radicais ou padres jesuítas, não receberam o
apoio necessário para a continuação da luta.
Diante da revolta popular, diante da revolta dos
homens "sem nenhuma importância social e menos
política", como os chamava certa autoridade, as eli-
tes se retraíam e se conciliavam. A revolta pregada
pelas elites, quando de dissenções internas ou com o
aparelho estatal, não era revolução, mas sim uma
forma de levantar esses "proletários'" para atingir
. 'objetivos que lhes interessavam. A elite, porém, não
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Nordeste Insurgente (1850-1890)
podia admitir perder o controle da situação e se isso
era provável as suas facções se conciliavam. Como
afirma José Honôrio Rodrigues, a conciliação sempre
foi feita contra e em detrimento do povo; surgia como
defesa da classe dominante contra a classe domi-
nada. Ao sentir a gravidade do problema, os mem-
bros da elite que haviam insuflado a revolta popular
preferiam esquecer as rivalidades e apoiavam a re-
pressão governamental.
As últimas décadas do século XIX foram assi-
naladas, no Nordeste, pelo incremento do bandi-
tismo rural, do fanatismo religioso e pelo desânimo
dos grandes proprietários que se desinteressaram
pela sorte da Monarquia. A violência se consolidou
como forma de relação natural entre a população
nordestina e refletia a acentuada deterioração das
condições sociais. O desenrolar dos acontecimentos
levaria ao confronto, a uma autêntica luta de classes,
caso outros fatores não contribuíssem para esvaziar a
tensão. Entre estes, colocamos como fundamental as
migrações internas que deslocaram, progressiva-
mente, para o litoral, para a Amazônia e, posterior-
mente, para o Sul, grandes levas de nordestinos.
A situação econômica
As revoltas devem ser entendidas, sem excluir
aspectos particulares e conjunturais, a partir da crise
econômica que assola a região e que se aprofunda
nas décadas finais do século XIX.
Inicialmente, não devemos esquecer que o Nor-
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ropeia. A procura de metais preCIOSOS,especianas e '~
produtos tropicais havia provocado as grandes nave-
gações dos séculos XV e XVI e colocado, à mercê dos
homens de negócios da Europa, novas áreas, muitas
das quais praticamente despovoadas. Em algumas
regiões coloniais, encontraram grande densidade
populacional e formas de trabalho que souberam
adaptar aos objetivos europeus; em outras, como no
caso brasileiro, tiveram que montar toda uma infra-
estrutura de produção, trazendo para aqui, sua téc-
nica, capitais e, inclusive, mão-de-obra forçada. De
que adiantava ter-se dinheiro, sementes e instrumen-
tos de trabalho se faltava gente para trabalhar? A
escravidão negra foi uma solução para tornar' viável
os investimentos e fechar o círculo da economia. Não
estavam em jogo os direitos humanos, mas sim a
rentabilidade econômica.
O Nordeste mostrou-se propício à produção de
alguns artigos tropicais, principalmente a cana-de-
açúcar, cujo consumo aumentava continuadamente
no Velho Mundo e, posteriormente, de outros como o
algodão e o arroz.
Seguindo estas necessidades externas, pôde a
região durante longo tempo, na época colonial, en-
trar no circuito da produção e comércio mundiais,
cujo centro achava-se nos Países Baixos, passando
evidentemente pelos portos portugueses.
Em fins do século XVI, a Zona da Mata nordes-
tina ocupava o primeiro lugar na produção mundial
Nordeste Insurgente (1850-1890) ,
do açúcar. A sua importância fica patenteada quan-
do, após o Brasil passar para o domínio espanhol, em
1580, e tendo em vista a guerra entre a Holanda e a
Espanha, os holandeses resolvem conquistar a região
para não perder tão importante fonte de lucros.
Mas tanta importância e riqueza gerada no nor-
deste brasileiro que fazia a fortuna de muitos comer-
ciantes portugueses e batavós estava assentada sobre
base instável, que iria ser a responsável pela crise que '
a região passaria nos fins do século XVIII e todo o
século XIX.
Um ponto fundamental que o leitor deve obser-
var está na própria gênese da economia local, nas-
cida a partir de necessidades externas, ou seja, vi-
sando a atender a um consumo que estava milhares
de quilômetros distante, isto é, na Europa.
Disto advêm problemas sérios:
I?) o plantador nordestino, que assumia todas
as despesas e riscos do plantio e colheita da cana e da
produção do açúcar, não tinha controle sobre o preço
e a venda do artigo que ele próprio produzia. Afas-
tado da comercialização, ficava ao sabor das flutua-
ções dos preços que, muitas vezes, não chegavam a
pagar os custos da produção, gerando o seu endivi-
damento e, em alguns casos, a ruína;
2?) não tinha a garantia de que sua produção
seria efetivamente adquirida pelos comerciantes es-
trangeiros. Investimentos holandeses.jngleses e fran-
ceses, nas Antilhas, fizeram desta região um centro
produtor de açúcar concorrente do Brasil e sua proxi-
midade da Europa, além de outros fatores, fizeram
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26 Hamilton de Mattos Monteiro Nordeste Insurgente (1850-1890)
forma de trabalho, exigia reposição contínua de
mão-de-obra;
5?) tendo sido montada como economia produ-
tora de artigos para exportação, a região tendia à
monocultura em detrimento da produção de alimen-
tos para o consumo local. A importação de muitos
alimentos de outras regiões ou países deixava, pois,
as cidades sob a ameaça da escassez e à mercê da alta
dos preços dos gêneros de primeira necessidade;
6?) tendo em vista que a principal produção da
região visava a mercados externos (não só no sentido
de estrangeiros, como de outras regiões do país), o
fazendeiro não tinha por que pagar bons salários aos
trabalhadores livres, quando os possuía, já que não
era entre estes que estavam seus principais consumi-
dores. Da mesma forma que agia com os escravos,
exigia dos homens livres cotas excessivas de trabalho
em troca de diárias irrisórias.
No Nordeste, a partir de fins do século XVIII,
encontramos todos estes problemas que se irão agra-
var no século XIX. Os produtos da região perdem,
cada vez mais, importantes fatias dos mercados tra-
dicionais; há uma queda real dos preços desses arti-
gos e observa-se o esgotamento do solo, caindo a pro-
dutividade. A redução dos lucros impede a introdu-
ção, em forma ampla, de uma modernatecnologia
que, por certo, estava além das posses da grande
maioria dos fazendeiros. Com o fim do tráfico ne-
greiro, a partir de 1850, o fazendeiro nordestino, às
voltas com esses problemas, começa a se desfazer de
seus escravos. Vende-os para o Sudeste que, em fase
27
com que o Nordeste perdesse fatia considerável deste
importante comércio. A isto acrescente-se o esforço
do continente europeu em extrair, com sucesso, o
açúcar da beterraba;
3?) na medida em que não tinha possibilidades
de influir no comércio internacional, o fazendeiro
nordestino, ao mesmo tempo que via os preços de
seus artigos. baixarem de forma real, era forçado,
numa autêntica troca desigual, a adquirir manufa-
turados europeus (implementos agrículas, objetos
de consumo pessoal, etc.) por preços que se elevavam
continuamente;
4?) a utilização do escravo como principal força
de trabalho era rentável enquanto o preço do produto
no mercado fosse elevado. O fazendeiro, ao comprar
o escravo, imobilizava nele um capital (dinheiro) e
tinha que, obrigatoriamente, fornecer casa, comida e
roupa. Quer produzisse ou não, a despesa com esta
força de trabalho era relativamente constante. Para
que se produzisse com mão-de-obra escrava, não se
podia lançar mão de instrumentos de trabalho muito
sofisticados, e necessário se tomava, também, que a
terra fosse abundante e fértil para que a técnica rudi-
mentar fosse compensada pela natureza. Visando a
retirar, no mais curto espaço de tempo possível, o
capital investido no escravo, o fazendeiro era obri-
gado a exigir dele cotas de trabalho bem maiores
(média de 14 horas por dia), o que tomava sua vida
útil muito curta. Portanto, além do alto preço de
custo do escravo, da abundância e· fertilidade da
terra, a escravidão, para continuar a existir como
28 Hamilton de Mattos Monteiro
de expansão, pode pagar elevados preços pelos ca-
tivos. Mas tal fato não significa que a recuperação do
capital imobilizado naquela força de trabalho venha
resolver seus problemas; pelo contrário, como sua si-
tuação chegara a um ponto crítico,na verdade, ele
estava desfazendo-se de seus bens para saldar dí-
vidas.
Aí está a explicação para o tráfico interprovin-
cial de escravos que, nas décadas de 60 e 70, encheu
de horror o país. A proibição do tráfico internacional
não permitira ao Brasil livrar-se deste comércio de-
gradante que então passava a ser feito às claras,
dentro do próprio território nacional.
Contudo, o fim do tráfico e a crise do setor
exportador fizeram com que a abolição da escravidão
chegasse mais cedo ao Nordeste do que no resto do
país. O braço escravo foi sendo substituído pelo livre
em condições extremas de miserabilidade. Na região,
já havia uma reserva de mão-de-obra livre suficiente
para assegurar a reprodução daquela economia ex-
portadora sem ter que pagar salários elevados. Se-
gundo cronistas que visitaram a região naquela épo-
ca, a situação desses trabalhadores livres era pior do
que a dos escravos, pois estes últimos, pelo menos,
tinham assegurados vestuário, alimentação e mora-
dia.
Em síntese, era esta a situação do Nordeste.
Perda de mercados tradicionais, queda dos preços I
dos artigos de exportação, esgotamento do solo, ren- I,
dimen to decrescente do setor agro-exportador e uma
"massa" progressivamente aumentada de homens li-
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Nordeste Insurgente (1850-1890)
vres vivendo miseravelmente. ,
Celso Furtado (1974:147-149), comparando da-
dos das duas últimas décadas do século XIX, diz
que, enquanto a população nordestina cresceu cerca
de 800/0, a renda real gerada pelo setor exportador
não ultrapassou S40/0, cabendo admitir que "houve
declínio da renda per capita da região". Este declí-
nio, no cômputo geral e no nível das classes sociais,
traduz-se no empobrecimento ainda maior dos assa-
lariados, arrendatários e meeiros e na concentração
de renda em mãos dos grandes proprietários.
Esta concentração de renda repousa e gera a
proletarização de amplas camadas sociais. Uma par-
te considerável dos grandes fazendeiros inicia um
processo de ampliação das áreas destinadas ao cul-
tivo dos artigos de exportação, às expensas das que
produziam gêneros alimentícios. Os relatórios dos
chefes de Polícia das províncias mostram uma cres-
cente relação de casos de violência praticados pelos
fazendeiros contra os moradores de suas terras. Estes
são expropriados, perdendo suas "roças". Aumenta
o número de desocupados e miseráveis.
A dinâmica e as contradições da acentuada
dependência brasileira no marco do capitalismo in-
ternacional provocavam a destruição da pequena
produção e ampliavam a economia de plantation,
Eliminavam, pouco a pouco, a produção de artigos
de subsistência (em sua quase totalidade, feita por
esses moradores) e forçavam a que todos entrassem
em uma economia de mercado, num processo que
ainda hoje não se completou. Ãpobreza e ociosidade
29
30 Hamilton de Mattos Monteiro
li"
de grande parte da força de trabalho disponível so-
mavam-se a escassez e alta dos preços dos artigos
básicos da alimentação local. Verificaram-se violen-
tas insurreições urbanas e casas comerciais foram
depredadas e incendiadas.
O Nordeste estava, neste período, à beira da
efervescência revolucionária. Tudo era motivo para
revolta e atos de violência. Nas principais cidades, de
tempos em tempos, ocorriam motins populares. As
decisões governamentais que não tinham apoio ou
compreensão popular não eram acatadas. A popu-
lação revoltava-se contra o recrutamento militar,
contra o aumento de impostos, contra o registro civil
dos nascimentos e óbitos, contra o censo geral da
população do Império, contra a aplicação dos novos
padrões de pesos e medidas, etc. Não realizava sim-
.ples passeatas de protestos, mas autênticas lutas com
mortos e feridos. Além disso, desde a Praieira (1848-
50), havia uma animosidade latente entre grandes
proprietários e trabalhadores rurais. A tudo isto so-
mava-se a atuação da imprensa e dos políticos radi-
cais, bem como a luta entre facções da elite, dispu-
tando o controle das funções públicas. A difícil si-
tuação da economia regional ocasionava o rompi-
mento da precária paz entre as classes sociais, e entre
estas e o Estado monárquico. As insurreições, con-
flitos e violência demonstravam a profundidade das
contradições econômicas que ameaçavam transfor-
mar a região em um bolsão revolucionário.
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AS INSURREIÇOES
Introdução
Denominaremos genericamente de insurreições
os violentos movimentos sociais que sacodem o Nor-
deste, nesta segunda metade do século XIX. Cabe-
nos, no entanto, antes de descrevê-Ias, distinguir in-
surreição de revolução, seguindo a lógica de U m-
berto Melotti (1971:34-36).
A diferença entre revolução e insurreição con-
siste em que a primeira tem como objetivo derrubar o
sistema existente para substituí-lo por outro que seja
a expressão das transformações sociais ocorridas,
Insurreição, por outro lado, constitui-se em um está-
gio anterior à revolução e serve para demonstrar que
o antigo equilíbrio social foi rompido. Os movimen-
tos insurrecionais podem ser dirigidos para atingir
objetivos específicos, localizados e imediatos, tais
como oposição a uma lei, a impostos considerados
32 Hamilton de Mattos Monteiro
extorsivos, à alta de preços, etc.
Os participantes dos movimentos insurrecionais,
descrentes dos aparelhos do Estado, perderam a con-
fiança na reclamação por meios legais (oficiais), mas
ainda não chegaram ao ponto de propor a transfor-
mação total. Em vista disso, acusam a autoridade
mais próxima, atacam os comerciantes, enfim, aque-
les que muitas vezes são apenas executores e/ou so-
frem os efeitos dos mesmos problemas. Não conse-
guem ainda relacionar fatos isolados e, muitas vezes,
conjunturais, com contradições estruturais. Pode ser
que com o prolongamento do movimento, no tempo e
no espaço, adquiram esta conscientização mas, neste
ínterim, já estamos nos limites de uma revolução.
É assim que devemos entender as rebeliões nor-
destinas. Elas anunciavam as transformações que se
operavam na sociedade local. Apontavam a necessi-
dade de mudanças globais, o que pode ser atestado
pelo incremento do banditismo rural e do fanatismo
religioso, com a proliferação de "santos" e "beatos"
que pregavam o isolamento ante aquela ordem in-
justa e aguardavam a salvação celeste, única espe-:
rança que lhes restava. Cangaceiros e fanáticos são
faces de uma mesma moeda. Não é por coincidência
que, no exato momento em que a crise econômica e a
seca agravam os problemas regionais, aumenta o nú-
mero de Chicos Beatos, Antônio Conselheiro, Jesuíno
Brilhante, Quirinos, Viriatos, Calangros,etc., no
rastro de uma herança que daria no século XX os
famosos Padre Cícero e Lampião, aliás, amigos entre
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Nordeste Insurgente (1850-1890)
Um dos traços mais fascinantes da história das
lutas sociais nordestinas está na própria memória
histórica que cultuaram. Os líderes revolucionários
de 1874 lembraram em panfletos os heróis de todas
as revoltas anteriores, desde 1817 a 1848, numa
prova de que as repressões passadas não haviam
conseguido torná-Ios esquecidos' entre a população
pela qual morreram.
o "Ronco da abelha" (1851-52)
Terminada a Praieira (1848-1849), grupos re-
manescentes continuaram agindo no interior do Nor-
deste, principalmente de Pernambuco, Paraíba e
Alagoas. Pedro Ivo, um dos líderes mais populares
daquele movimento, organizou nas matas de Água
Preta (Pernambuco) um dos mais importantes gru-
pos de resistência. O próprio Ministro da Justiça,
Euzébio de Queirós, em relatório apresentado em
janeiro de 1850, reconhecia a dificuldade em com-
batê-lo, '
"É necessário porém acabar quanto antes esse
germe de revoltas", exclamava enfaticamente o mi-
nistro. De fato, a existência desses pontos rebeldes
constituía-se numa ameaça à tranqüilidade da região
porquanto não só estimulava o aparecimento de ou- '
tros focos semelhantes, como também constituía-se
num excelente atrativo para que outros descontentes
viessemengrossar aquelas fileiras.
33
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34 Hamilton de Mattos Monteiro Nordeste Insurgente (1850-1890)
PRovíNCIAS DO NORDESTE
de 1851-52
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~ REGIÃO SUBLEVADA
ESC. I: 4,000.000
3S
A figura de Pedro Ivo continuava a servir de
esperança para a população insatisfeita. As notícias
que chegavam ao Rio de Janeiro davam conta de que
o líder rebelde era visto como o "predestinado",
encarregado de fazer surgir "a nova idade do ouro".
Paralelamente ao auxílio que populares presta-
vam a Pedro Ivo, o governo, extremamente preocu-
pado, aumentava suas forças para persegui-Io. Em
contraposição, em diferentes pontos da região, grupos
rebeldes se formavam e agiam isoladamente. O apa-
recimento desses "focos sediciosos", um "ato es-
pontâneo de patriotismo", no dizer da oposição,
era visto pelo governo como manobra visando a "can-
sar o governo, separar e distrair suas forças" e, as-
sim, manter vivo o espírito revolucionário.
A prisão de Pedro Ivo não foi suficiente para
eliminar os grupos guerrilheiros. Em seu relatório de
13 de maio de 1851, Euzébio de Queirós ainda se
queixava de que o "valhacouto" de Serra Negra (co-
marca de Pajeúdas Flores, Pernambuco), apesar de
tantas vezes dispersado, renasce como ponto "azado
para tais reuniões" .
Enquanto no interior a situação, de certa forma,
continuava intranqüila, o ministro mostrava-se preo-
cupado com a campanha dos políticos da oposição
que exigiam "por meios revolucionários reformas ra-
dicais nas instituições" .
O clima apresentava-se tenso. O fim da Praieira
não fora o fim do estado de agitação. A prisão dos
seus principais líderes não significou que os revoltosos
tivessem esquecido suas reivindicações. Ao mesmo
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36 Hamilton de Mattos Monteiro Nordeste Insurgente (1850·1890)
termos de Pau d'Alho, Limoeiro, Nazaré, Goiana,
Vitória, Garanhus, Rio Formoso, Igaraçu e as fre-
guesias de Ipojuca, Jaboatão, São Lourenço e Muri-
beca. Na da Paraíba, foram envolvidas as vilas de
Ingá, Campina Grande, Alagoa Nova, Alagoa Gran-
de. Na de Alagoas, as localidades de Laje do Ca-
nhoto, Mundaú-Mirim, Porto Calvo, Porto de Pe-
dras, Riachão, Arrasto, Juçara, Jacuípe, São Brás,
Salomé e Barra Grande, além dos moradores das
matas de Cocal e Angelim. Nas do Ceará e Sergipe, a
sedição limitou-se às localidades, respectivamente,
de Jiqui e Porto da Folha.
Em todos os pontos; os fatos foram idênticos.
Ataques às vilas e engenhos, fuga das autoridades e
grandes proprietários, ameaças e reuniões suspeitas
feitas por "conspiradores" que, dentro dos enge-
nhos, incitavam os moradores a tomarem das armas
"se não querem ficar reduzidos com seus filhos ao
cativeiro" .
A "plebe" revoltada clamava contra a "decla-
ração da escravidão". Espalhara-se a notícia de que
os decretos 797 e 798 visavam a "escravizar a todos os
recém-nascidos e aqueles batizados com as formali-
dades prescritas por aquela lei" que fazia parte de
um plano geral para reduzir "à escravidão as pessoas
livres" e, para enfim, "reduzir à escravidão a gente
de cor".
O momento era propício para a exploração polí-
tica dos decretos, apresentando-os como medidas
escravizadoras da parte do governo conservador. Em
1850, regulamentara-se a repressão ao tráfico de es-
n ,'-'".1 ('
37
tempo que grupos isolados agiam pelo interior do
Nordeste, numa flagrante contestação ao governo
conservador, a oposição continuava sua política de
manter vivos os grandes temas liberais e praieiros.
Formaram-se duas facções: uma mais moderada,
pedindo a convocação de uma Constituinte, e outra
mais radical que organizava "sociedades", apelando
para a "agitação" e assustando a população, no
entender do Ministro da Justiça.
Foi neste ambiente "pré-revolucionârio" que,
nos meses de dezembro de 1851 e janeiro de 1852, as
províncias de Pernambuco, Paraíba, Alagoas, com
maior intensidade, e as do Ceará e Sergipe, de forma
mais amena, foram assoladas por movimentos ar-
mados de oposição aos decretos 797 e 798, de 18 de
junho de 1851, que instituíam, respectivamente, o
Censo Geral do Império e o Registro Civil dos Nasci-
mentos e Óbitos.
O decreto 797 determinava que o arrolamento
da população para o censo seria feito no dia 15 de
julho de 1852, após afixação de editais nas Igrejas
matrizes e anúncios nos jornais, a partir de I? de
junho daquele ano. Quanto ao decreto 798, constava
que o registro civil da população, a ser feito pelos
escrivães dos juízes de Paz dos distritos, entraria em
vigor, "irnpreterivelmente", a I? de janeiro de 1852.
Foi na província de Pernambuco, "que o movi-
mento apareceu com caráter mais grave, não só pelo
número de grupos que se armaram, como por serem
mais numerosas as freguesias e os termos em que ele
se manifestou". Naquela província, levantaram-se os
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38 Hamilton de Mattos Monteiro
cravos e os grandes proprietários reclamavam da fal-
ta de braços, ao mesmo tempo em que se queixavam
da "preguiça" e "resistência ao trabalho" por parte
dos trabalhadores livres. Esta situação tenderia a
provocar da parte dos senhores de engenho, de um
lado, a exigência de maiores cotas de trabalho dos
moradores e, do outro, a solicitação de "leis repres-
soras da vadiagem, que forçassem os homens ao tra-
balho".
Quando em 1851 dois novos decretos determi-
naram que se fizesse o censo geral da população do
Império e que todo nascimento e morte fosse regis-
trado no livro do juízo de Paz, segundo a cor da pele
(como era natural no Brasil até há pouco tempo),
qualquer argumentação, mesmo simples, serviria
para levantar em sedição a população amedrontada.
Esta "gente de cor", estes "caboclos", na sua simpli-
cidade e ignorância, viam-se diante de todos esses
decretos como alvo da voracidade do senhor de en-
genho e tenderiam a reagir violentamente. Uma rea-
ção deste tipo não seria novidade, pois, por ocasião
da Praieira, ouvindo a pregação dos radicais do par-
tido da Praia, os lavradores haviam-se revoltado con-
tra os senhores.
É o povo mais pobre, principalmente moradores
e jornaleiros, que forma o "grosso" da revolta. A
correspondência vinda dos locais amotinados especi-
fica que os revoltosos são o "povo mais miúdo", são a
"gente baixa", são "a maioria da população menos
abastada", enfim, "gente da última ralé" e "sem
nenhuma importância social e menos política".
Nordeste Insurgente (1850-1890)
Torna-se claro que as autoridades locais, identi-
ficadoras da origem social dos revoltosos, procura-
ram, taxativamente, assinalar que eles não perten-
ciam à elite da região; da mesma forma procederam
os presidentes de Província e o próprio Ministro da
Justiça. Assim fazendo, procuravam descaracterizar
o movimento, visando a não estimular adesões e pro-
curando mantê-lo circunscrito às localidades já su-
blevadas, evitando transformâ-Io em outra Praieira
ou algo de maior proporção, já que sabiam do des-
contentamento que grassava no Império, principal-
mente da ala mais radical do partido liberal, "de-
posto" em 1848. O governo conservador, expressão
do "partido da ordem", tinha que aparecer perante a
nação como o restaurador da paz interna e não o
"divisor de águas"; a eclosão de uma nova Praieira
demonstraria não só sua debilidade, como também a
capacidade de resistência e luta do adversário.
Na verdade, à primeira vista, a insurreição
caracterizava-se por ser um movimento da população
rural mais pobre ("moradores", "proletários", etc.)
contra os.senhores de engenho e as autoridades nas
vilas e cidades. Mas, teriam esses "moradores" e
"proletários", sabidamente afastados da cultura da
elite, condições de por si só julgarem o conteúdo dos
decretos 797 e 798 e associarem-no ao de repressão
ao tráfico negreiro e às atitudes tomadas pelos gran-
des proprietários? Acreditamos que não.
Stavenhagem (1972:83), analisando a grande
propriedade rural monocultora da América Latina,
diz que entre o grande proprietário e os trabalha-
39
"1
40 Hamilton de Mattos Monteiro
dores existem diferenças muito grandes; para ele, a
"classe dominanteé muito politizada, na proporção
em que o campesinato dominado quase não tem
atividades nem participação políticas". Dessa forma,
à luz da documentação que consultamos, muito em-
bora não haja indicação explícita da participação de
outros grupos sociais, achamos que ela provavel-
mente existiu e partiu dos grupos remanescentes do
partido da Praia.
O partido da Praia defendera, por ocasião da
revolta de 1848, um programa de profundo cunho
social; seus ataques eram dirigidos contra os senho-
res de engenho (principalmente o poderio do "clã
feudal e parental" dos Cavalcantis) e os comerciantes
portugueses, aqueles por monopolizarem a terra e
estes, o comércio das cidades. Insuflaram os mora-
dores dos engenhos contra seus senhores, e distri-
buíram perto de cinco mil armas entre o povo. Assim
podemos entender quando Nabuco chama a Praieira
de "movimento de expansão popular" e a vê sem
"disciplina". A disciplina que lhe faltava era a limi-
tação do movimento nos parârnetros do interesse da
elite descontente, "Expansão popular" significa,
neste caso, confronto com as elites, significa de fato
um conflito social na medida em que passa a ser um
levante popular, ultrapassando os objetivos iniciais.
Quando as elites percebem as "terríveis forças" que
acionaram, retraem-se, conciliam-se e a repressão é
feita. E é Nabuco que isto observa no caso da revolta
da Praia:'
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Nordeste Insurgente (1850-1890)
"Diante da nova situação, os homens abastados,
tendo em vista que os Praieiros eram indiferentes
à sorte de sua propriedade e de suas vidas, pensa-
ram em aproximar-se uns dos outros" (Nabuco,
1975:101-111).
Por que não poderia ser a sedição de 1851-52uma
continuação da Praieira? Os problemas que levaram à
sua eclosão não haviam desaparecido. No interior,
grupos rebeldes continuavam agindo em autêntica
"guerra de guerrilhas". Os "matutos" continuavam
sob o "mando" incontestado dos poderosos senhores
de engenho. Os liberais, e, mais do que nunca, os
radicais da Praia, continuavam na oposição. Não
estaria aí formado o "pano de fundo" para a interpre-
tação dos decretos 797 e 798, de forma a exaltar
novamente a "gente baixa" e tentar com nova suble-
vação a "inversão de tudo que havia oficialmente"?
Apesar da preocupação em caracterizar o movi-
mento como da exclusiva responsabilidade do "povo
mais miúdo", as fontes deixam transparecer a parti-
cipação de elementos de outros grupos sociais.
Os primeiros as serem apontados são os párocos:
"Alguns párocos, imaginando ou fantasiando
prejuízos que da execução do decreto lhes devem
resultar, consentem se não aprovam essas dispo-
sições hostis à lei... " iapud Monteiro, 1980:124).
Em segundo lugar, na procura dos "anarquis-
tas" que fomentam a revolta da "gente rude", apon-
41
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r:
r.
I~
.',
42 Hamilton de Mattos Monteiro
tinadores" (Monteiro, 1980:125).
Além dessas medidas, foi mandado às locali-
dade sublevadas o Frei Caetano de Messina, capu-
chinho, para organizar "santas missões" e ver se,
dessa forma, acalmavam-se os descontentes. Sua
pregação seguia uma norma comum nos sermões
desse tipo: lamentava o erro dos devotos, aconse-
lhava o arrependimento e mostrava-se interessado no
bem-estar deles, ao mesmo tempo que os ameaçava
com os piores castigos caso não ouvissem sua exor-
tação; ou concordavam com ele ou seria derramado o I
"sangue dos filhos de Pau d' Alho". III
O trabalho do missionário era lento mas a cada I
dia, afluindo de vários outros lugares, ia crescendo o I
número dos que acorriam a Pau d' Alho para colo- 11
car-se sob a proteção do Frei e, portanto, a salvo da
perseguição que começara a ser feita por tropas de
primeira linha.
Estes "proletários" eram usados, sob a direção
do capuchinho, para a realização de obras públicas;
em Pau d' Alho foram reparadas as igrejas de Santa
Teresa, do Rosário e do Livramento:
Nordeste Insurgente (1850-1890) 43
"Os homens fabricanto tijolos e telhas, condu-
zindo pedras, cortando madeiras ( ... ) e as mulhe-
res conduzindo areia, tijolos e telhas, andando
todos no maior contentamento e alegria, como se
cada um dia de tanto trabalho fosse para todos a
melhor festa. Nessa missão recebi trinta e seis
clavinotes para entregá-los à competente autori-
dade" iapud Monteiro, 1980: 126).
tam os políticos do partido liberal:
"Os conspiradores continuam a fazer reuniões
em seus engenhos e a proclamar que tomem as
armas se não querem ficar reduzidos com seus
filhos ao cativeiro e que o Partido Liberal é oposto
a esse decreto e.estâ pronto a defendê-lo (apud
Monteiro, 1980:125).
De qualquer modo, a participação do clero e de
elementos identificados com os ideais "praieiros"
deu-se de forma velada. Procuraram dissimular sua
atuação, evitando um confronto direto com o go-
verno. Prepararam o terreno na esperança de um
levante geral, a partir do qual, quem sabe, pudessem
retomar à ação os antigos líderes foragidos no sertão
ou então presos. A revolta de 1851-52 demonstrava
que, embora a Praieira tivesse sido sufocada, as rei-
vindicações ainda estavam bem vivas nas mentes dos
nordestinos e que a repressão, que naquela ocasião
fora feita, não havia sido suficiente para desesti-
mulá-los.
A repressão seguiu uma escala progressiva. Ini-
cialmente, enviaram-se circulares às autoridades do
interior no sentido 'de investigar a "verdadeira ori-
gem do preconceito" contra os decretos e que se
empregassem "meios suasórios", usando "todo o
legítimo ascendente do cargo que ocupa para desva-
neceras impressões desfavoráveis"; sugeriam, tam-
bém, que se encontrasse "o melhor modo de coibir a
propagação do erro" e que se processassem os "amo-
'.,
(:'
I'~
D,.
44 Hamilton de Mattos Monteiro Nordeste Insurgente (1850-1890)
Nascimentos e Õbitos e do Censo Geral. Estando a
pouco mais de um ano do início da conciliação, o
gabinete conservador, ao que parece, já envolvido
pela atmosfera que iria resultar no ministério de 6 de
setembro, resolve conciliar. A suspensão das medi-
das pretensamente causadoras da revolta e o caráter
brando da repressão, que mais pareceu uma demons-
tração de força, confirmam esta hipótese.
Os lavradores revoltados não contaram com
uma unidade de ação, com uma liderança. Incenti-
vados ou não por elementos de outros grupos sociais,
os registros não assinalam nenhum chefe, nenhuma
organização. Embora em maior número, o levante
em grupos esparsos facilitaria a reação da classe
dominante e a repressão. Evidentemente que essa
classe, por sua própria posição, tinha mais condições
de se organizar, não só por contar com os "aparatos
ideológicos" que levavam a população em geral a
condenar o levante, mas, também, por pertencer à
Guarda Nacional que a transformava em classe ar-
mada e, finalmente, pelo apoio que tinha do Estado
através das "forças de linha" (exército regular).
A participação de elementos do Partido Liberal,
do clero, de radicais, etc., cai de importância ante o
problema maior que se apresentava: a luta de classes
que, de latente, passava a declarada.
o "Quebra-quilos" (1874-75)
Nos últimos meses de 1874 e princípios de ja-
45
Entrementes, o governo não podia deixar o fim
da sedição entregue ao lento trabalho do missionário;
afinal, as propriedades começavam a ser ameaçadas,
o que exigia pronta repressão. Do Recife, foi enviado
o 4? Batalhão de Artilharia para juntar-se ao 9? Ba-
talhão de Infantaria que já havia sido mandado ante-
riormente para Pau d'Alho e que estava acampado I
no Engenho Cajueiro, a pouca distância daquela vila.
Tendo em vista que a todo momento "chegassem
notícias desagradáveis de Nazaré, Limoeiro, Santo
Antão, Goiana e outros lugares", a Guarda Nacional
foi convocada.
Na segunda quinzena de janeiro, as autoridades
já podiam anunciar a pacificação, muito embora
apontassem ainda a existência de grupos armados.
Os lavradores, em parte, optavam pela "guerrilha",
embrenhando-se pelas matas. Estes franco-atirado-
res, à medida que não se reintegravam nas antigas
atividades econômicas, preferiam refugiar-se no inte-
rior, no Sertão, e transformavam-se em "bandi-dos" .
Na verdade, as forças governamentais não che-
garam a lutar com os sediciosos. Da mesma forma
que se abateram sobre os engenhos e vilas - de
surpresa e em ação rápida -, desapareceram sem
deixar vestígios. Alguns participantes dos grupos de
razia foram reconhecidos por pessoas da localidade
ou de fazendas invadidas, mas não houve referência
posterior sobre abertura de processo-crime.
O governo preferiu, a 29 de janeiro de 1852, pelo
decreto 907, suspender a execução do Registro dos
( ,
46 Hamilton de Mattos Monteiro Nordeste Insurgente (J850-1890)
PRovíNCIAS DO NORDESTE
Sedição de 1874 - 75
'v-,
~
o
<:
~ REGIÃO SUBLEVAOA
'<r
t-u
47
neiro de 1875, quatro províncias do Nordeste - Pa-
raíba, Pemambuco, Rio Grande do Norte e Alagoas
- foram assoladas por uma nova rebelião que aba-
lou as principais comarcas da Zona da Mata e Agres-
te de Pemambuco e Paraíba e várias localidades de
Alagoas e Rio Grande do Norte.
De maneira geral, os fatos ocorreram de forma
idêntica. A cobrança dos impostos provocava protes-
tos, e daí partia-se para a agressão, com a "turba"
descontente quebrando os pesos e medidas do novo
sistema métrico decimal e, em seguida, destruindo os
arquivos das Câmaras Municipais, Coletorias, Cartó-
rios (inclusive o de registro de hipotecas) civis e cri-
minais e até mesmo, em algumas localidades, os
"papéis" dos Correios; ou então, repentinamente,
a cidade ou vila era invadida por bandos de homens
armados, cujo número variou de 60 a 600, que reali-
zavam os mesmos "feitos" (destruição dos novos pa-
drões e incêndio dos arquivos) e partiam prometendo
voltar a qualquer momento.
O movimento teve início na vila de Fagundes, da
comarca do Ingá, na Paraíba. Por ocasião da feira,
a 31 de outubro de 1874, "o povo que ia à feira para
abastecer-se de gêneros alimentícios" pronunciou-se
contra o arrematante de impostos que cobrava o
denominado "imposto do chão". A grande quanti-
dade de pessoas que protestava e o reduzido número
da força policial deram vitória aos insurretos. "A
notícia voou." O comandante das forças imperiais na
província atribui a rápida propagação da insurreição
à vontade de sacudir, dos ombros, fardos que ele
ESC. 1·4.000.000
I
II
48 Hamilton de Mattos Monteiro
1I1
49
!
""1
supunha pesados demais à pobreza da população.
A partir de então, uma após outra, várias loca-
lidades da Paraíba sofreram os efeitos das "massas
desenfreadas". No mês seguinte, levantava-se Per-
nambuco e, em seguida, Alagoas e Rio Grande do
Norte.
Os revoltosos traziam "um rosário" de queixas.
Explodiam em rebelião por um acúmulo de proble-
mas que se acentuavam a cada ano. Algumas foram
comuns a todas as agitações: reclamação contra os
impostos (novos ou aumentados), contra a nova lei
do recrutamento militar e contra o novo sistema mé-
trico decimal.
A queixa contra os impostos era dirigida, em
primeiro lugar, ao aumento do número de taxas co-
bradas, tanto pela fazenda provincial quanto muni-
cipal, e à elevação de inúmeros deles; em segundo
lugar, ao abuso verificado na cobrança dos mesmos
pelos arrematantes.
Conforme explicamos anteriormente, as provín-
cias do Nordeste vinham sofrendo os efeitos da queda
dos preços dos seus principais gêneros de exportação
- o açúcar e o algodão - e da contínua perda do
mercado mundial. O resultado disso, no plano finan-
ceiro, foi a diminuição das rendas provinciais.
Em tais circunstâncias, por solicitação das pre-
sidências e Câmaras Municipais, as assembléias pro-
vinciais foram votando o aumento dos impostos exis-
tentes e a criação de novos.
Dentre os impostos criados, estava o que insti-
tuiu o imposto de consumo de alguns gêneros ali-
Nordeste Insurgente (1850-1890)
mentícios, entre os quais o da carne seca e da fa-
rinha, que tantos protestos iria causar.
Explicando esta sobrecarga de taxas, dizia o
presidente Lucena de Pernambuco: "convém aqui
ponderar que, sendo neste segundo período conside-
ravelmente maiores os encargos da Província e dema-
siadamente escassos os meios de ocorrer a eles, NÃO
ERA MUITO QUE SE ALTERASSE A TABELA
DE IMPOSIÇÕES, TANTO QUANTO FOSSE
BASTANTE PARA CONSEGUIR-SE RENDA SU-
FICIENTE" tapud Monteiro, 1980:132).
Tal argumento poderia ser considerado lógico,
mas não naquelas circunstâncias, onde qualquer ma-
joração ou criação de impostos não deixaria de elevar
o custo de vida. A imprensa liberal vê nessas ele-
vações uma forma de transferir para o povo, entre o
qual, principalmente, os mais afetados seriam a
"gente miúda", a responsabilidade de sustentar a
burocracia estatal, ou seja, "para fazer viver na opu-
lência a meia dúzia de ladrões" .
Quanto aos arrematadores dos impostos, sabe-
mos que, tendo arrematado ao município ou à pro-
víncia determinada taxa, procuravam eles arrecadar
o máximo que pudessem visando a aumentar "seus
lucros" ~Os expedientes por eles utilizados não têm
sido devidamente estudados, mas dois dos exemplos
citados pelo Comandante das Forças Imperiais na
Paraíba são suficientes para ter-se uma idéia dos
motivos por que as populações tinham tanta pre-
venção contra esses "capitalistas".
50 Hamilton de Mattos Monteiro Nordeste Insurgente (1850-1890)
que, nas vilas atacadas, um dos alvos quase sempre
eram as coletorias.
A arrecadação de impostos já havia ultrapas-
sado o limite natural que uma população psicologi-
camente considera como justo. Na difícil situação em
que se encontravam - os senhores de terras se desca-
pitalizando passo a passo e os "proletários" sofrendo
os efeitos da crise da lavoura -, as novas taxas eram
não só um "abuso" como um "cinismo"; aqueles,
reclamando da queda dos preços e da perda de mer-
cados, pediam financiamento e recebiam aumento de
impostos, estes, sofrendo as agruras do desemprego,
teriam que pagar mais caro até mesmo pelos ali-
mentos. Realmente, como dissera o Presidente Lu-
cena: "bastava uma faísca" .
A esse problema que consideramos o mais gra-
ve, acrescente-se, como já afirmamos, a oposição à
nova lei do recrutamento militar (Lei n? 2.556, de
26.09.1874) "que, espalharam, torna o cidadão es-
cravo".
Era um argumento semelhante ao utilizado em
1851-52. Curiosa é a preocupação, que atemorizava a
população, geralmente "mestiça", quanto a ser
transformada em escrava. Retrata uma certa descon-
fiança para com as elites ou para com o governo;
deixa perceber a imagem que as populações mais
pobres fazem da burocracia governamental e dos
senhores na medida em que não são ouvidas politi-
camente, não têm proteção legal ante os tribunais,
a não ser com apoio de uma "pessoa influente" e não
têm perspectiva de melhoria de sua situação, pois do
51
"'Um pobre homem trazia às vezes para a feira
uma certa quantidade de farinha no valor de
2$000 rs., logo que pousesse no chão o saco que
trazia, pagava imediatamente uma certa quan-
tia, porém se por qualquer circunstância ele mu-
dava de lugar tinha que pagar novamente o
imposto e pagaria quantas vezes mudasse de
lugar; de modo"que muitas vezes, sem ter ainda
vendido o que trazia, já tinha pago ao exigente
arrematador o dobro do valor do que trazia
para vender" (Arquivo, 1937:120).
"Em Pedras de Fogo o arrematante, vendo que
um homem que trazia uma pequena quantidade
de frutas no valor de 160 réis não lhe dava lugar
a cobrar o imposto no chão por não querer des-
cansar o cesto, usou o artifício de entreter com
ele conversação e oferecer-lhe um cigarro, e
assim que o homem, para acender o cigarro,
descansou o cesto, o arrematante cobra-lhe 200
réis que aquele lhe era devedor" (Arquivo, 1937:
120).
A freqüência de fatos como esses transformava a
cobrança dos impostos em momentos de grande ten-
são. Os revoltosos de Panelas queixavam-se das "ex-
torsões dos arrematantes" e os de Bom Jardim di-
ziam que o coletor "cria impostos para si". Assim,
compreendemos por que, em grande número dos ca-
sos, as agitações têm início com discussões nas feiras
sobre a legalidade dos impostos, daí partindo para as
agressões já citadas. Compreendemos também por-
52 Hamilton de Mattos Monteiro NordesteInsurgente (1850-1890)
recrutamento serviram para acionar a sedição. A isto
acrescentem-se, também, os problemas de ordem
política e religiosa (a oposição liberal ante um go-
verno conservador e a prisão do Bispo D. Vital) que
não só aproveitaram-se da crise econômica, como
também ajudaram a exaltar os ânimos.
Para se ter uma exata compreensão desta re-
volta, torna-se necessário analisar a participação dos
que nela atuaram.
Os elementos principais que formaram a maio-
ria dos revoltosos foram os grandes proprietários de
terra e os indivíduos de "baixa condição", ora deno-
minados "moradores" ora "proletários".
Além desses dois grupos, dela também partici-
param os políticos da oposição, o clero e os oficiais
da Guarda Nacional. Houve participação menor, ge-
.. ralmente em casos isolados e bem específicos, de
marchantes, negociantes, arrematadores de impostos
e inspetores de quarteirão. Podemos afirmar, por-
tanto, que a sedição teve como seus,principais atores
os grandes proprietários de terra, os "proletários",
os políticos da oposição e o clero. Vamos analisar
cada caso em separado.
A participação dos grandes proprietários de ter-
ra caracterizou-se pela ação direta, chefiando a "tur-
ba" descontente, ou, como relata o Comandante das
Forças Imperiais na Paraíba, pela neutralidade com-
prometedora, quando não era "indiferença culposa
ou uma animação mais culposa ainda". Dessa for-
ma, temos arrolados como "cabeças da sedição",
entre outros, os fazendeiros Virgínio Horácio de Frei-
53
governo nada mais esperam. A escravidão, se viesse a
cair sobre eles, não causaria estranheza, mas natu-
ralmente iriam lutar contra tudo que lhes pudesse
parecer um caminho para aquela forma de trabalho.
Além dos pobres, a repulsa à nova lei partia
também dos senhores. Acostumados a substituir os
seus parentes recrutados por escravos ou "cabras" da
área de seu domínio, ouviam agora dizer que a lei
2.556 iria impedir que os recrutados fossem pessoas
só de "baixa condição", ouviam dizer que ela iguala-
ria a todos.
Era muito para os poderosos "senhores de ho-
mens e terras". A atitude deles passa a ser a de unia
ostensiva oposição, como no caso do Tenente-Coro-
nel Luís Paulino, fazendeiro em São Bento, comarca
de Buíque, que contratou o bando de José Cesário
para ajudâ-lo a se opor à nova lei, ou como aconteceu
em Panelas, onde o juiz de Direito reclamava não ter
"encontrado por parte dos cidadãos mais prestáveis e
com os quais me hei entendido o menor indício de
coadjuvação em qualquer emergência" (apud Mon-
teiro,198O:134).
No nosso entender, o ato de quebrar os novos
padrões do sistema métrico decimal, e que dá o nome
ao movimento. - "Quebra-quilos" - situa-se na
mesma linha de destruição e incêndio dos arquivos
dos municípios, trata-se da exteriorização de uma
revolta contra o governo e seus representantes.
A revolta do "Quebra-quilos", na verdade, tem
suas origens na crise por que passava a economia
nordestina; o problema dos impostos e a nova lei do
54 Hamilton de Mattos Monteiro Nordeste Insurgente (1850·1890)
Foram indiciados como "cabeças" do grupo que
atacou a povoação de Vertentes, Umbelino de tal,
"morador na Borba", Jorge Marques Defensor do
Império, "morador na Tapada" e Manuel Francisco
da Silva, "morador no Estreito" . Em Panelas, comu-
nicava o Delegado de Polícia a 13 de dezembro de
1874 que Leôncio, "morador em Camaratuba" an-
dava "falando contra os impostos". Em todos os
pontos de revolta, a "massa" dos sublevados era
formada pelos "mercadores da feira e por grande
número de proletários" que se identificavam pela
"baixa condição" ou, como disse o Comandante do
Batalhão de Panelas, são pessoas que "não têm o que
comer" .
Fica muito difícil distinguir quem, exclusiva-
mente, pertence a uma destas 3 categorias pois um
"morador" não deixa de ser um "proletário" e am-
bos podem ser um "mercador de feira" .
Entenda-se por "morador" o indivíduo a quem é
permitido morar nas terras de um grande proprietá-
rio, com direito a ter sua "roça" e, eventualmente,
quando o senhor necessita, presta serviços em troca
de remuneração. Quanto ao termo "proletário", de
acordo com os relatórios da época, são os que estão à
procura de trabalho, conseguem ocupação normal-
mente na época do plantio e colheita recebendo por
jornada, isto é, são jornaleiros. Por conseguinte, um
jornaleiro pode ser aquele que não tem acesso à terra
de forma alguma, mas também pode ser o pequeno
proprietário, um pequeno arrendatário, foreiro ou
"morador" que procura no trabalho assalariado a
55
tas, senhor do Engenho Lajes, em Itambê, Francisco
Roma, senhor do Engenho Jatobá, em Goiana e An-
tônio José Henriques, senhor do Engenho Serra, em
Bonito.
Em ofício datado de 13 de dezembro de 1874,
o Delegado de Polícia de Panelas reclamava que os
"homens importantes" da região negaram-lhe auxílio
contra os sediciosos dizendo que estavam "alcança-
dos", não dispondo de meios para reunir o povo, isto
é, estavam endividados.
A participação direta ou a omissão desses cida-
dãos que, como diz Henrique Millet, constituem a
"primeira garantia da ordem pública", pode ser ex-
plicada a partir da difícil situação econômica em que
se encontravam. A produção de suas terras - o
açúcar e o algodão - sofria, como já dissemos, os
efeitos da perda do mercado internacional e da que-
da dos preços, ao mesmo tempo em que a crise
financeira restringia o crédito. Nesta situação extre-
mamente aflitiva, a ponto de terem de começar a se
desfazer, segundo Millet, de parte do seu capital
imobilizado, compreendemos que possuíam motivos
suficientes para rebelarem-se ou para ficarem indife-
rentes à sorte do governo que não olhava por eles.
Quanto aos "proletários", foram eles que for-
maram a "massa" dos descontentes. Foram eles que,
em grupos que variavam de 60 a 600, invadiram as
vilas e destruíram os pesos e' medidas e os arquivos.
Nessa categoria, de forma abrangente, podemos
agrupar os "moradores", os "proletários" e os "mer-
cadores das feiras" .
56 Hamilton de Mattos Monteiro Nordeste Insurgente (1850-1890)
provinciais e municipais, todas parecendo uma for-
ma de opressão do Estado. Ébem sintomático que os
movimentos de rebeldia tivessem início por ocasião
das feiras, no momento em que se dava início à co-
brança dos impostos. Estas imposições, novas ou
aumentadas, provocavam irritação pois constituíam,
por menor que fosse, uma sobrecarga aos já tão
sacrificados trabalhadores e pequenos proprietários
rurais.
Não se tratava, portanto, da simples oposição de
"população ignorante" às leis que não sabiam com-
preender; tratava-se, isto sim, da explosão de revolta
de uma população pobre, vivendo em condições
subumanas, reagindo de forma aparentemente irra-
cional contra um estado de coisas cada vez pior e sem
perspectivas aparentes de melhoria.
Quando os senhores de engenho cruzam os bra-
ços e deixam a "turba" livre para agir, ou usam-na
como forma de pressão contra as autoridades consti-
tuídas, visando a fazê-Ias olhar para a situação, o
que se vê são ações isoladas de grupos de "prole-
tários" que resolvem "acertar contas muito antigas
em suas aldeias ou regiões" (Wolf, 1972:6-8).
Ao falarmos em "acertar contas", podemos ser
levados a pensar em luta entre "proletários" e "se-
nhores", mas acontece que os trabalhadores rurais,
neste momento, vêem os grandes proprietários não
como seus exploradores, mas como indivíduos que
sofrem os efeitos do mesmo mal: De certa forma,
com eles ficam solidários, ou melhor, passam a iden-
tificar o "inimigo" real contra o qual devem reagir de
57
cornplementação da sua renda para poder adquirir
aqueles objetos que não é capaz de produzir. Depen-
dem, como diz Henrique Millet, "senão para a sub-
sistência diária, que em grande parte tiram direta-
mente, do solo, rios e matas, pelo menos para todas
as mais precisões da vida civilizada, dos salários que
lhes pagam os agricultores" (apud Monteiro, 1980:
136).
De qualquer forma, tendo acesso à terra ou não,
estes trabalhadores eventuais podem participar da
feirado arraial ou vila próximos, vendendo produtos
agrícolas que lhes sobraram de sua diminuta produ-
ção ou artesanato em madeira, couro, barro e palha
que preparam nas horas de folga. "Os produtos são
vendidos no mercado para produzir uma margem
extra de 'entradas' com as quais compram bens que
não produzem domesticamente" (Wolf, 1972:10).
Assim sendo, estas pessoas que as autoridades
locais designam como de "baixa condição", "igno-
rantes e cheias de preconceitos", são as que vivem em
condições precaríssimas em épocas normais e em si-
tuação extremamente difícil em épocas de crise,
como essa por que passava a economia nordestina
em 1874-75.
Em 1874, não só as possibilidades de trabalho
tornaram-se muito limitadas, devido à crise da eco-
nomia, como também uma série de leis novas havia
sido criada, como a que mudava o padrão de pesos e
medidas, a que estabelecia novas regras de recruta-
mento para o exército e armada, entre outras, e espe-
cialmente as que criavam e aumentavam impostos
r
S8 Hamilton de Mattos Monteiro Nordeste Insurgente (1850-1890)
Estado que nada faz em beneficio deles; trata-se de
uma luta do "campo" contra a "cidade", ou melhor,
como definiu lrineu Jofily, contemporâneo ao acon-
tecimento, uma revolta contra o "governo que cha-
mavam de doutores ou bacharéis", numa clara refe-
rência às diferenças de visões e ao div6rcio entre a
sociedade rural e a burocracia governamental (Jofily,
1892:188).
O clero participou da revolta do "Quebra-qui-
los" e foi um dos mais punidos. Os padres foram
apontados como instigadores; alguns, como o vigário
Calisto Correia da N6brega, de Campina Grande,
na Paraíba, e o Padre Manuel de Jesus, de Granito,
em Pernambuco, foram acusados de serem "cabe-
ças" de sedição; outros, como os jesuítas estrangeiros
Mário Arcioni, João Batista Royberti, Felipe Sotto-
via, Luis Cappuci, Vicente Mazzi, João Berti, Anto-
nio Aragnetti e Onoratti, foram expulsos do Império.
Os governos imperial e provincial ligaram a
questão dos bispos e a atuação do clero ao "Quebra-
quilos". A atitude dos padres tem uma característica
toda especial e deve ser vista sob ângulos diversos.
Um que merece destaque se refere à conjugação de
duas crises, uma econômica e outra político-religiosa
que tem seu desdobramento com a agitação "popu-
lar", desenrolada na mesma época.
Se acreditarmos nos relat6rios oficiais, o pro-
blema religioso prepondera sobre o econômico e,
. neste caso, os padres jesuítas tiveram papel desta-
cado na rebelião. Mas não devemos esquecer que,
atribuindo maior importância à questão da prisão
S9
imediato: o Estado.
O relacionamento entre grandes proprietários e
seus jornaleiros não é uma simples troca de trabalho
por salário. Além do compadrio que o transforma
numa ligação pessoal, com traços de afetividade, a
"Casa Grande" realiza uma enorme obra de assis-
tência social, moral e-jurídica, de que resulta a per-
missão de morar gratuitamente nas terras do senhor,
além de dar conselhos e proteção. É evidente que este
relacionamento não deve ser entendido no seu sen-
tido puro, pois existiram diferenças, de acordo com a
evolução hist6rica, com as condições econômicas e
com as necessidades e nível de entendimento dos
grupos envolvidos. Assim, as secas, como a de 1869,
que trazem do Sertão para o Agreste ou Mata os va-
queiros foragidos, transformando-os em lavradores,
dão como resultado, de certa forma, a "injeção" de
idéias de altivez e reação no tradicional ambiente
rural.
Outro ponto que não devemos esquecer é o tra-
balho de conscientização levado a efeito por grupos
políticos e religiosos que tiveram sua primeira ex-
pressão na "Praieira" e na revolta de 1851-52; nesses
movimentos, os trabalhadores rurais chegaram mes-
mo a ignorar os laços afetivos e de submissão, ata-
cando as prôprias fazendas, como demonstramos
anteriormente.
As características da crise econômica e as medi-
das administrativas governamentais serviram para
colocar, lado a lado, estes dois grupos rurais - os
trabalhadores e os grandes proprietários - contra o
60 Hamilton de Mattos Monteiro
dos bispos, desviavam-se as atenções do problema
mais grave, que era a difícil situação da lavoura
nordestina. O governo, assim, escondia seus fracas-
sos ante a crise econômica e, ao culpar o povo, lide-
rado pelos padres jesuítas, pela rebelião, tirava de si
próprio a responsabilidade, deixando-a para a idéia
vaga de "povo ignorante", ao mesmo tempo em que
tinha nos "padres estrangeiros" os necessários ele-
mentos para "sacrificar" e justificar a revolta. Ao
transformar o "Quebra-quilos" num movimento de
fundo religioso e de prova da interferência estran-
geira (da Igreja Romana) nos negócios internos do
país, o governo adquiria o papel de representante da
independência e nacionalidade ofendidas, preten-
dendo unir em torno de si o maior número de defen-
sores. Distorciam-se os fatos para beneficiar politica-
mente o gabinete conservador, que seis meses depois
(junho de 1875) não resistiria e seria mudado.
O papel desempenhado pelos padres jesuítas é
outro ponto delicado. Usaram o púlpito, escreveram
artigos nos jornais e falaram, nas "missões", contra
o Estado. Como funcionários públicos e religiosos,
ao mesmo tempo, estavam em situação difícil: defen-
dendo o Bispo D. Vital, colocavam-se contra c go-
verno imperial a quem deviam obediência; não fi-
cando a seu lado, colocar-se-iam numa posição de
rebeldia ante seu pastor. Podemos dizer que ficaram
do lado de sua consciência e por isso incorreram nas
"iras" do Estado. Mas, fica uma interrogação: até
que ponto esta simples disputa de autoridade -
entre a Igreja e o governo imperial - seria motivo
Nordeste Insurgente (1850-1890)
para levantar o povo em revolta? Se não houvesse a
crise econômica, com as implicações já vistas, os
"matutos" iriam pegar em armas contra o governo,
somente devido à prisão de D. Vital? Na nossa opi-
nião, o problema era bem mais complexo.
Em ofício de 2S de dezembro de 1874, o Juiz
Municipal de Granito (Pernambuco) acusava o Pa-
dre Manuel de Jesus, da paróquia local, de incutir
"no espírito do povo rude e ignorante idéias peri-
gosas e subversivas da ordem social". Referindo-se
ao mesmo vigário, diz o comandante do destaca-
mento policial de Granito que "não satisfeito com
sua jesuítica doutrina, na Igreja, domingo, 19 do
corrente (dezembro), NA FEIRA DESTA VILA,
PROFERIU PALAVRAS INSTIGANTES AO PO-
VO PARA NÃO SE SUJEITAR A IMPOSIÇOES
COM REFER~NCIA A ATACAR G~NEROS AN-
TES DA HORA MARCADA PELAS POSTURAS
DA RESPECTIVA CÃMARA". Este era um ponto
de suma relevância porque a cobrança de impostos
aos feirantes levara à adoção de uma norma pela
qual as feiras só teriam início com a chegada do
presidente da Câmara Municipal ou seu represen-
tante, acompanhado pelo coletor de impostos. Ora,
se cada um, à medida que fosse chegando, "ata-
casse" os seus artigos, isto é, começasse a vendê-los,
o fisco ficaria prejudicado na cobrança.
Em carta apreendida pela polícia, o professor
público de Vertentes, Xavier Ribeiro, escrevia ao
vigário de São Lourenço da Mata (Pernambuco) dan-
do conta de seu trabalho de conscientização dos
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62 Hamilton de Mattos Monteiro Nordeste Insurgente (1850-1890)
pela crise econômica.
A revolta de 1874-75 foi o renascer do "espírito
liberal-radical" que já se manifestara em 1817, 1824
e 1848. Não foi como na revolta de 1851-52 onde a
participação dos grupos político-radicais, se houve,
foi marcada pela timidez. Agora, passados quase
trinta anos, ouviam-se os mesmos gritos de luta pela
liberdade:
"O Leão do Norte será sempre o mesmo.
Sim, liberal paraibano, não terás glórias nem
martírios que pão sejam também nossos.
Patrícios de Nunes Machado, abracemos os pa-
trícios de José Peregrino!
A liberdade é o anel de ouro das núpcias dos
patriotas!
Firmes que Deus é pela liberdade!
Um pernambucano."
A fermentação política em todo o Império estava
por esta época marcada pela contestação de fato ao
regime. Desde 1868, quando os liberais foram "des-
pejados" do governo, com a queda de Zacarias,