Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
GI 11Ic:: ~ 'iiia....o lrv1édio ~ O mundo árabe },;faria Iédda' Linhares (Jriente <, Conciso e e~Çlrecedor, este livro permite conhecer a fu~do a,história do Oriente Médio e do Mun'd"oArabe. Remontando à crise do império ot~mano e à interferência de ingleses e franceses na região, ao fim da Primeira Guerra Mundial, a autora analisa as razões dós conflitos étnicos, religiosos e políticos que tornaram o Oriente Médio um verdadeiro barril de pólvora. ISBN:85-=11-02U!);;S-t\ ~~lEITURAS~~~~ @~~~ Coleção Primeiros Passos As Cruzadas Vistas pelos Árabes Amin Maalouf Ó que é Direito Internacional José Monserrat Filho Entre Árabes e Judeus Uma reportagem de vida Helena Salem o que é Geopolítica Demêtrio Magnoli As Mil e Uma Noites Vais. 1a s René R. Khawan (trad.) o que é Imperialismo Afrânio Mendes Catani o que é Questão Palestina Helena Salem Por uma História Profana da Palestina Lotfallah Soliman Coleção Tudo é História Samarcanda Amin Maalouf A Formação do 3~ Mundo Ladislau Dowbor História da Ordem Internacional Carlos Roberto Pellegrino A Poesia Árabe Moderna e o Brasil Slimane Zeghidour (J/ f~~ ft-~ ~~-Y- Maria Yedda Linhares ORIENTE MeDIO E O MUNDO DOS ÁRABES ?!l'edição SBD-FFLCH-USP 11111111111111111111111111\ 1111111111111 273550 editora brasiliense 30:;;- 131.2.- v-. .r5 3_~, ~3 Copyright © by Maria Yedda Unhares, 1982 Nenhuma parte desta publicação pode-ser gravada, armazenada em sistemas eletrônicos, fotocopiada, reproduzidapor meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor. ISBN: 85;11-02053-5 Primeira edição, 1982 3!' edição, 1992 Revisão: José W. S. Momes Capa: 123 (antigo 27) Artistas Gráficos DEDALUS - Acervo- FFLCH 1111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111I~I 20900008960 I-.;1· Av. Marquês de São Vicente, 1771 01139 - São Paulo - SP Fone (011) 67-9171 - Fax826-8708 Telex (11) 33271 DBLM BR IMPRESSO NO BRASIL ~ lNDICE Apresentação 7 O Oriente Médio e o mundo árabe 10 A formação dos Estados árabes contemporâneos 27 O mundo árabe sob o signo da mudança (1945·, 1980) 74 Conclusão: ontem e hoje 108 Indicações para leitura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 114 8 Maria Yedda Linhares citos de conquistadores de várias procedências, de comerciantes e financistas, cruzados medievais e capitalistas, em busca de poder, glória e riquezas. Ao escrever este pequeno livro, tive em mente dirigi-lo a esse leitor comum que tenta ir um pouco além das manchetes dosjornais escritos ou televisio- nados, na esperança de ajudâ-lo a perceber melhor as malhas de uma questão internacional que envolve centenas de milhões de seres humanos espalhados por uma superfície terrestre superior a dez milhões de quilômetros quadrados. Mas, na impossibilidade de tudo abranger, já que o espaço é reduzido e as questões são múltiplas, limito a temática do Oriente Médio ao mundo árabe, ao mesmo tempo em que a amplio de modo a incorporar os países do norte da África (Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia), geogra- ficamente situados fora do quadro do Oriente Médio. Dessa forma, estão excluídos, do raio de análise, países, e respectivos problemas internacionais, como o Irã, o Afeganistão e a Turquia (Ásia Menor), sendo que a questão palestina que emergiu em conseqüên- cia do surgimento do Estado de Israel receberá uma atenção lateral por ser alvo de tratamento específico em outro livro desta Coleção. Vários problemas envolvem a grafia dos nomes árabes. Tendo em vista ajudar o leitor e não intro- duzir um elemento de complicação, optei pela trans- literação corrente, influência francesa e inglesa, sem entrar em maiores discussões de caráter lingüístico. Por não se tratar de um livro de erudição e, sim, de introdução ao leitor não especialista, procurou-se Oriente Médio e o Mundo dos Árabes 9 simplificar o texto e selecionar enfoques, sobretudo aqueles de ordem política, sacrificando outros possi- velmente mais relevantes como os relativos à cultura árabe e ao Islã, cujo tratamento deverá competir a um especialista mais adequado, em momento opor- tuno, Espera-se, pois, que o caráter introdutório deste pequeno livro seja compreendido e perdoado, nas suas imperfeições e omissões, pelo leitor. o ORIENTE ~DIO E O MUNDO ÁRABE A expressão Oriente Médio tomou-se corrente a partir dos anos 40 deste século e introduziu-se, de súbito, no vocabulário político internacional para designar uma área do globo terrestre de cerca de uma dezena de milhões de quilômetros quadrados e uma população em crescimento explosivo cujas cifras ultrapassam a marca dos 200 milhões de habitantes. Englobando os países que se situam entre o Mediter- râneo Oriental, o Mar Negro meridional e o Oceano Índico, na faixa compreendida entre o golfo de Aden e as cercanias do Golfo Pérsico, engloba o Vale do Nilo, o Crescente Fértil, a península da Arábia, o planalto do Irã, a Ásia Menor e o Afeganistão. Na Antiguidade, caracterizou-se por ter sido o berço de grandes civilizações: o Egito dos faraôs, a Assíria, a Babilônia, a Pérsia, a Fenícia. Ao longo dos milê- nios, foi terra de passagem, encruzilhada das rotas r Oriente Médio e o Mundo dos Árabes que ligavam o Ocidente e o Oriente, sempre percor- rida por invasores provenientes da Ásia Central ou do continente que se passaria a chamar de Europa. Terra de impérios, hoje desaparecidos, e de conquis- tadores, da Antiguidade aos Tempos Modernos, foi também sede das religiões monoteístas, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islã. Terra sobre a qual se suce- deram, através dos milênios, povos, culturas e civili- zações as mais diversas, influências étnicas e cultu- rais as mais variadas, bem como sistemas de organi- zação social e política diferenciados. Terra e povos que, aos poucos, perderam o comando da história que construíram e foram submergidos por outras cor- rentes históricas, da Ásia Central ou da Europa. Daí a marca da decadência, do marasmo e do atraso que, sobretudo, nos últimos séculos, carrega consigo a imagem do Oriente Médio na mentalidade do homem do Ocidente capitalista, cristão e tecnicista dos nos- sos dias. Mas se a expressão Oriente Médio é recente, a de Oriente Próximo predominou até princípios deste século, distinguindo-o, assim, daquele Oriente mais longínquo, e ainda mais misterioso, o Extremo Orien- te, a Ásia do Pacífico, do velho Império Chinês e do Japão. Aplicava-se às terras e aos povos sob domínio do Império Otomano que se instalou em Constanti- nopla no século XV, e por mais de um século amea- çou a Europa. Contra os turcos que vinham da Ásia, muçulmanos convertidos, valentes na sua agressivi- dade guerreira e, nesse sentido, uma ameaça para a Europa cristã, uniram-se reis e papas. A partir do 11 12 Maria Yedda Linhares século XVII, parecia debelado o perigo. No entanto, eles se instalaram no sudeste do continente, domi- nando a Península Balcânica e o Mediterrâneo Orien- tal, os Estreitos de Dardanelos e Bôsforo, a Ásia Menor, os vales do Tigre e do Eufrates, a Síria e a Palestina, a península da-Arâbía, cruzaram o estreito de Suez e apoderaram-se do Nilo, estendendo-se so- bre o Norte da África - o Maghreb - e exercendo o seu protetorado até o Marrocos. Ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX, a pre- sença dos turcos, organizados sob a denominação de Império Otomano, e como Califado - ou seja, como organização religiosa suprema dos muçulmanos - tornou-se cada vez mais incômoda aos Estados que se fortaleciam e desenvolviam no continente europeu e, sobretudo, nas suas vizinhanças, como o Império austríaco Habsburgo e o Império Russo moscovita. O controle que exerciam sobre os povos balcânicos estendia-se do Mar Adriático (a Iugoslávia de hoje) ao Mar Negro (Rumânia e Bulgâria), abrangendo a Grécia e a Tessália, Creta e Chipre. Dessa forma, dominavam as rotas do Mediterrâneo Oriental e aquelas que conduziam ao Índico e à Ásia Central, bem como o Norte da. África, ou seja, o Mediterrâneo Meridional. A presença do Império Otomano na Eu- ropa constituiu-se, pois, um problema a preocupar, deforma crescente, os governos europeus e transfor- mou-se, ao longo do século XIX, a partir de 1815, numa das questões fundamentais da política interna- cional, entrando na linguagem diplomática daquele século como a Questão do Oriente. r Oriente Médio e o Mundo dos Árabes O ponto crucial da chamada Questão do Oriente consistia para as chancelarias européias em expulsar os turcos da Europa. Sob sua dominação encontra- vam-se além dos gregos, albaneses, búlgaros e rume- nos (os principados da Moldávia e da Valáquia), várias comunidades eslavas, como os bosníacos, os sérvios, os herzegovinos, o que provocava atritos per- manentes com a Áustria, de um lado, e com o Impé- rio tzarista, de outro. Na Ásia, tinham sob sua guarda os árabes, como expressão mais genérica, e a pequena multidão de minorias que habitavam os diferentes territ6rios sob administração civil e reli- giosa otomana. Além do mais, a guarda dos Estreitos Bôsforo e Dardanelos dava-lhes o controle sobre a entrada do Mar Negro da mesma forma como a do estreito. de Suez era fundamental como acesso ao Mar Vermelho, ao golfo de Aden e ao Oceano Ín- dico. No século da expansão do capitalismo, das lutas nacionalistas européias, do militarismo e da diplomacia do prestígio, por parte dos Estados da Europa, não é dificil compreender que em torno dos problemas otomanos se desenvolveram disputas di- plomáticas e conflitos armados. Foi no bojo dessas competições que surgiram as questões balcânicas (formação das nacionalidades e dos Estados que se libertaram da dominação turca), a questão do Egito e da construção do Canal de Suez (na segunda me- tade do século XIX) e a ocupação do Norte da África (Tripolitânia, Tunísia, Argélia e Marrocos), como parte da política imperialista européia do período. Da mesma forma, elas traduziam a decadência do 13 14 Maria Yedda Linhares Império turco, a ponto de ser este denominado na época de "O Homem Doente da Europa", cujo fim estaria próximo, tratando-se apenas de saber como apressar sua morte. Nesse momento, ou seja, ao longo do século XIX e até a Primeira Guerra Mundial de 1914-1918, cabia, primeiramente, à Grã-Bretanha maior soma de interesse nas terras asiáticas do Império Oto- mano, na medida em que elas comandavam as rotas de acesso à Índia. Interesse estratégico, portanto. Mas cabia também ao Império tzarista defender a sua política de acesso direto ao Mediterrâneo oriental (um mar quente), fazendo-o sair de sua famosa "pri- são continental", já denunciada desde os tempos de Pedro o Grande. E, para tanto, era-lhe necessário enfrentar o otomano e favorecer o seu enfraqueci- mento através do fortalecimento das aspirações na- cionalistas dos povos subjugados pelos turcos (rume- nos, búlgaros, gregos, eslavos do sul). Por outro lado, a expansão territorial do Império russo em direção ao sul colocava a questão estratégica, para os russos, de controle sobre a Pérsia (o Irã de hoje) e sobre o Afe- ganistão, originando os sucessivos atritos com o go- verno britânico que caracterizaram os episódios di- plomáticos e armados da rivalidade anglo-russa ao longo do século XIX. Quanto à França, a sua en- trada no cenário do Oriente Próximo, além das ve- lhas heranças das Cruzadas e do Reino Latino de Jerusalém do século XII, parece menos transparente à luz das estratégias imperiais. Coube-lhe o papel preponderante de, mais uma vez, se colocar como r Oriente Médio e o Mundo dos Árabes pretensa guardiã da Cruz (pleiteando resguardar o Santo Sepulcro em Jerusalém), em oposição aos rus- sos ortodoxos que também se julgavam herdeiros da fé cristã em terras otomanas, e, ainda, em se instituir ao longo do século XIX como potência moderniza- dora e protetora do Egito, vestígios da passagem de Napoleão pelo Nilo. Da mesma forma, a sua política militarista, a partir de 1830, levou-a progressiva-' mente a ocupar a Argélia e, daí por diante, como medida de "proteção" da Argélia, já no final do sé- culo, a estender-se sobre a Tunísia e o Marrocos, incorporando essas províncias turcas ao Império Francês como Protetorados. Mas é lícito ao leitor indagar se é só de interesses estratégicos que se alimentam os Impérios. Onde es- tariam, pois, os outros interesses, aqueles de cunho econômico que movem banqueiros, comerciantes, industriais e os desempregados em busca de lucros, posições sociais, empregos e aventuras? No petróleo, dirão logo alguns. No entanto, o petróleo é fato rela- tivamente recente na região e sua importância só se tornou primordial nos últimos quarenta ou cinqüenta anos. No século XIX e nos anos da Primeira Guerra Mundial, quando emergiu para as chancelarias euro- péias outro problema - a questão árabe - a tecno- logia capitalista era pouco dependente do petróleo e este ainda não tinha um papel importante nas deci- sões políticas das Potências. Poucos pareciam ser os atrativos econômicos oferecidos pelas terras do Orien- te Próximo. 15 16 Maria Yedda Linhares A geografia Embora não seja um dado permanente pois sobre ela é constante a ação dos homens, caracteriza-se a geografia da região, nos seus aspectos mais gerais, pelo clima árido, o que torna seus solos sujeitos a um processo impiedoso de erosão e difíceis as condições de desenvolvimento de uma agricultura intensiva. Na sua paisagem é comum a visão do deserto, com suas populações nômades e suas caravanas que demandam os centros de comércio. Hoje em dia, porém, estradas começam a cortar os desertos e, pouco a pouco, o caminhão, o trem e o automóvel vão se substituindo ao camelo e ao cavalo. Apesar do baixo índice pluvio- métrico característico da maior parte dessas terras, os solos não deixam de ser férteis, constituindo-se no fator preponderante para fixação das populações em núcleos de povoamento. Assim, esses se concentram ao longo das costas do Mediterrâneo, do Mar Egeu, do Mar Negro, do Mar Câspio, do Mar Vermelho, do Golfo Pérsico e do Oceano Indico, regadas pelas precipitações que as altas cadeias de montanha favo- recem; aproximadamente um terço da população to- tal vive nos vales dos cursos d'água que nascem nas montanhas, como o Nilo, o Tigre e o Eufrates. Uma. boa parte da população não-árabe, como a do Afega- nistão, do Azerbaidjã (província iraniana) e da Tur- quia oriental vive, sobretudo, nos altos planaltos do interior, bem munidos de chuvas. Quanto à vege- tação, as zonas mais protegidas por cobertura vegetal apresentam-se mais ou menos isoladas e separadas ):. f4 .t Oriente Médio e o Mundo dos Árabes . entre si por grandes extensões de desertos ou de estepe, que parecem predispor o homem à vida nô- made. o Mundo Árabe Os árabes, povo, etnia ou "nação", desempe- nharam a partir da VII século da era cristã um papel de grande importância na história da humani- dade. Tendo a Arábia como berço, estenderam-se, como conquistadores da fé de Maomé, como comer- ciantes e propagadores da cultura islâmica, da Meso- potâmia (Tigre e Eufrates) ao Marrocos. Etnica- mente pertencem ao grupo semita da raça cauca- siana. A península de onde, ao que se saiba, são originários, aparece isolada do resto do continente, como uma projeção sobre o Oceano Índico, entre o Mar Vermelho e o Golfo Pérsico, como se os grandes movimentos de povos que caracterizaram por milê- nios a história da Ásia anterior lhe tivessem perma- necido estranhos. Mas é ainda no seu próprio interior que ela mais se isola. A sua região central, o Nedj, é separada do litoral por uma extensa cadeia de montanhas e as regiões limítrofes mais facilmente se comunicam umas com as outras do que propria- mente com o seu interior. No centro, dominam os desertos, com escassa população. Na periferia, zonas mais densamente povoadas e alimentadas por chuvas - o Crescente Fértil - permitem a concentração de agrupamentos humanos sedentários e favorecem o surgimento de centros urbanos, entre os quais se dis- 17 18 Maria Yedda Linhares tinguiramBagdá e Damasco como autênticas capi- tais políticas e culturais. A localização geográfica da Arábia e do Crescente Fértil entre o Oriente e o Oci-dente, entre a Ásia, a África e a Europa; justifica sua considerável importância estratégica no cenário in- ternacional, importância ...essa que se tornou ainda mais acentuada a partir da abertura do Canal de Suez (1869), do desenvolvimento da navegação marí- tima e, nos últimos decênios, com o descobrimento e a exploração de suas ricas jazidas de petróleo. Da mesma forma, o desenvolvimento da aviação em nosso século tornou importante essa região como es- cala nas comunicações com o Sudeste Asiático e o Extremo Oriente. Pela sua própria etimologia, a palavra árabe significa "nômade que vive sob a sua tenda no de- serto". Conseqüentemente, ela diz mais respeito a um gênero de vida e de organização social do que a uma língua e, menos ainda, a uma raça. Na própria península arábica, variada é a origem dos grupos humanos que a povoam. A própria língua árabe, que se difundiu, arabizou populações e gerou mais arabi- zados do que árabes propriamente. ditos, povos que passaram a se identificar pela língua, pela religião e pelos hábitos sociais. Assim como os povos, a língua sofreu transformações e apresenta hoje variações acentuadas segundo o país e o grau maior ou menor de assimilação com populações e culturas preexis- tentes. Na Antiguidade, por alguns milênios, os nô- mades do centro da península emigraram para as terras mais férteis do norte, em direção à Mesopo- Oriente Médio e o Mundo dos Árabes tâmia e à Anatólia, mas foram detidos por hordas diferentes de hititas, huris, mitanis. Da mesma for- ma, vagas de migrantes indo-europeus lançaram- se em direção ao Mediterrâneo e fundiram-se aos árabes e outras populações já sedentarizadas. Assim, a história antiga dos árabes dificilmente poderia ser dissociada de seus contactos com os hititas, egípcios, babilônicos, persas, gregos, romanos, hebreus, e assim sucessivamente. Logo, os povos aos quais cha- mamos de árabes representam um conjunto hetero- gêneo -do ponto de vista étnico. Sua expansão, a partir do VIII século em direção ao Ocidente e atra- vés do norte da África, contribuiu, ainda mais, para essa diversidade, distinguindo-se, à parte, o mundo árabe do Oriente - Machrek - em oposição ao mundo árabe do Ocidente - o Maghreb, norte-afri- cano, pelas diferenças no falar e nos costumes. Hoje representam um conjunto em torno de 150 milhões de habitantes sobre um total de mais de meio bilhão de muçulmanos espalhados sobre dois continentes, a África e a Ásia, e abrangem os seguintes países ou Estados: Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia (ponto de encontro entre o Oriente e o Ocidente árabes), Egito, Sudão (parcialmente muçulmano arabizado e par- cialmente africano, negróides nilóticos e animistas), Arábia Saudita, República Árabe do lêmen, Repú- blica Democrática Popular do Iêmen, Mascate e Omã (ex-sultanato), os Emirados Árabes Unidos, Iraque, Síria, Líbano, Jordânia, Koweit, e, como um caso à parte, em litígio, a Palestina representada pelo movimento contestatário anti-sionista dos palestinos .. 19 20 Maria Yedda Linhares o tas o Islã não é apenas o conjunto de dogmas teo- lógicos e normas sociais que compõem a religião monoteísta pregada por Maomé, na Arábia do século XII. Ê, antes de tudo, U1J1 tipo de comunidade civil guiada pelas leis do Corãoe por uma herança cul- tural comum, no sentido antropológico, ou seja, como o "conjunto de todos os comportamentos so- cialmente adquiridos e transmitidos que se manifes- tam através de todas as suas obras; comportamentos técnicos (inclusive as técnicas do corpo), práticas econômicas, cognitivas, artísticas (inclusive as mani- festações mais humildes e mais momentâneas da pul- sação estética), jurídicas no sentido amplo (modos de agrupamento, relações de parentesco, etc.), ideoló- gicas (nas sociedades pré- modernas, a religião), etc." . (Maxime Rodinson, Les Arabes, Paris, PUF, 1979, p. 20.) Islã, ou .islame, na sua etimologia- árabe, significa resignação à vontade de Deus, e muçul- mano (do árabe muslim , ou seja, "submetido. ao is- lame") refere-se ao adepto de Maomé (ou Muham- mad) e, portanto, aos ensinamentos do Profeta con- tidos no Corão (Qurãn) o livro sagrado, o livro das revelações feitas por Deus, segundo a tradição. Sua doutrina repousa na fé de um Deus transcendente, Alá, próximo do Jeová dos judeus e dos cristãos, e cuja pedra de toque é o dogma da predestinação e cujas práticas incluem a oração cotidiana, com o crente voltado para a direção de Meca - a cidade santa - o jejum ritual, a caridade, a peregrinação Oriente Médio e o Mundo dos Árabes aos lugares sagrados (à Kaaba de Meca e ao túmulo do Profeta em Medina, pelo menos uma vez na vida do fiel), a interdição de bebidas alcoólicas e de certos alimentos, ajihad ou "guerra santa" que assegura a salvação das almas daqueles mortos em combate pela fé. Minucioso e extremamente poético na forma, o Corão condena a idolatria, o luxo e a ostentação, reconhece a escravidão como uma instituição assim como a poligamia, e sobre a posição da mulher prega o seguinte: "O homem tem autoridade sobre a mu- lher porque Deus fez um superior à outra e porque ele gasta sua fortuna mantendo-a; assim, a boa mu- lher é obediente, protegendo as partes invisíveis por- que Deus as protegeu". (Sura 4:31.) E, ainda, a desobediência pela mulher ao marido deve ser pu- nida com o banimento e castigos corporais, pontos esses hoje contestados pelos muçulmanos cujo com- portamento face à mulher tem se tornado mais li- beral. Em todo o caso, é no tocante à posição da mulher na sociedade islâmica que mais se alarga a diferença entre o mundo criado por Maomé e aquele do Cristianismo e da chamada civilização ocidental, pelo menos nos seus textos legais. A história do império islâmico, com suas seitas e dissidências internas, teve início, segundo a tradição, com a hégira, a era muçulmana, em 16 de julho de 622, dia em que o Profeta Maomé partiu de Meca para Medina. Dessa data em diante, até a morte do Profeta, a guerra se estendeu pela Arábia com o objetivo de submeter as tribos árabes à sua religião. 21 22 Maria Yedda Linhares Meca e Medina estão localizadas no Hedjaz, na parte ocidental da península. O primeiro desses centros, situado no fundo de um vale dominado pelo Abu- Kubaís, berço de Maomé e da revelação do Islã, já se distinguia como núcleo religioso e comercial, ponto de convergência de tribos....politeístas da Arábia pré- islâmica que lá se reuniam com o objetivo de adorar a Pedra Negra na velha Kaaba. Distinguia-se também como lugar de passagem das caravanas que faziam o comércio entre a Síria e o lêmen através do deserto. A destruição da "pedra negra" marcou o ponto de partida de Maomé para a conversão de seus árabes, tendo como instrumento a guerra santa. Seus suces- sores foram os califas (Khalifâ) -lugares~tenentes e herdeiros - que conjugavam ó poder civil e religioso e o impunham pela conquista. A história dos dife- rentes Califados é, por conseguinte, a longa e bri- lhante história da expansão do Islã sobre o Crescente Fértil, a Pérsia, o Egito, a Índia, o Norte da África, a Ibéria e a tentativa de penetrar na França. No sé- culo XI, os turcos originários do Turquestão oci- dental (Kazaquistão de hoje) foram convertidos ao Islã, fizeram sua primeira investida em direção ao Crescente Fértil e à Ásia Menor (o império Seldjú- cida) e impuseram uma longa dominação que se es- tendeu até o século XIV, quando emergiram os oto- manos, do noroeste da antiga Frigia, nos confins da província bizantina de Bitínia. Daí por diante, a História registra o avanço dos turcos otomanos sobre Bizâncio, até a queda de Constantinopla (1453), ou o que restava do velho Império Romano do Oriente. Oriente Médio e o ~undo dos Árabes O início dos chamados Tempos Modernos signi- fica para os árabes uma fase de decadência e de perda de poder no conjunto do mundo islâmico. O herdeiro de Maomé, o seu novo lugar-tenente, o Ca- lifa, chefe religioso supremo dos muçulmanos, seria desde então c:i Sultão otomano sediado em Constan- tinopla. Aliás, os árabes haviam perdido o seu ím-peto conquistador embora tendo deixado por toda a parte a marca civilizadora de sua passagem. O centro da península originária, no entanto, parecia perma- necer fiel às suas tradições mais puras: o árabe, beduíno do deserto, isolado das invasões, preser- vando a língua e seus costumes, infenso aos contactos mais intensos e às influências de um outro árabe que se sedentarizou, que se localizou nos centros urbanos e administrativos, tornando-se artesão, comerciante, homem de letras, burocrata, aberto a novas formas de manifestação cultural e ao intercâmbio com ou- tros povos. Por outro lado, a expansão dos navegantes do Atlântico e do Mediterrâneo europeu, com a aber- tura das rotas oceânicas em direção ao Oriente, foi, até certo ponto, fatal para a prosperidade do comér- cio árabe que fazia o tráfico de mercadorias para as cidades européias. Os Tempos Modernos abriam a nova era da Europa, modificando, com rapidez cada vez maior, o mapa econômico do mundo. Numa visão retrospectiva romântica, poder-se-ia dizer que o mundo muçulmano e, dentro dele, o mundo árabe, passou a ter contados não apenas esporádicos mas, também, em situação de inferioridade face a uma 23 24 Maria Yedda Linhares Europa que emergia como o centro de poder e de decisão da História. Enquanto aqueles pareciam permanecer imutáveis, presos .ao passado e à tradi- ção, a Europa passava a representar a explosão de um mundo em mudança: idéias, sistemas de orga- nização política e social, "estruturas econômicas que faziam revolver as sociedades humanas nos seus próprios fundamentos. O capitalismo emergente e a revolução industrial a partir do final do século XVIII, aliados às concepções políticas, sociais, filosóficas, cien tíficas e estéticas da burguesia européia em as- censão, irão marcar o mundo contemporâneo e pene- trar também no velho edifício do islamismo. A Civilização Árabe Existe um longo passado árabe anterior ao Islã. Se nos dias de hoje a população muçulmana do globo . terrestre é superior a meio bilhão de pessoas, cal- cula-se em torno de 150 milhões o número de árabes, .os quais antes de serem adeptos do islamismo conhe- cera:n o paganismo, o masdeísrno (religião dos persas e medas), o judaísmo, o cristianismo. Nas guerras de conquista pôs-Maomé, sofreram eles influências cul- turais diversas, desenvolveram outras atividades, fundiram-se a outras etnias. Ao longo dos séculos, sobretudo no Oriente Próximo, comunidades cristãs e judaicas de língua árabe permaneceram vinculadas ao arabismo, embora não-muçulmano, e exerceram um papel importante, sobretudo os cristãos, na evo- lução dos movimentos anticoloniais, a partir do sé- Oriente Médio e o Mundo dos Árabes culoXIX. Por civilização árabe, entretanto, entende-se como sendo o conjunto de fenômenos culturais e artísticos referentes ao bloco político-ideológico do Dar al-Islame (morada do Islã) em que os árabes tiveram uma importância mais do que significativa. Como se poderia definir essa unidade? Se a língua religiosa era o árabe (a língua do Corão), no entanto as grandes realizações estéticas e intelectuais foram realizadas por pessoas cuja língua materna podia tanto ser o árabe quanto o persa, o turco, o berbere ou qualquer outra. Mas será o árabe a língua lite- rária por excelência, aquela que serviu de base à ex- pansão do Islã. Inúmeros e brilhantes foram seus poetas e prosadores, como nos primeiros tempos o grande poeta lírico e satírico Imrul Kais (originário do Nedj), ou Abu Nowas (de origem persa, do X sé- culo), citando-se, ainda, os contos das Mil e Uma Noites (também de origem persa) e a grande obra de um historiador norte-africano, Ibn Khaldum, que viveu e tnorreu no Maghreb no século XIV. Através dos árabes, o Ocidente pôde conhecer os filósofos gregos cujas obras foram encontradas na biblioteca dos Ptolomeus, no Egito, as quais foram por eles comentadas. No tocante à ciência, foram notáveis vulgarizadores, desenvolvendo as matemáticas (so- bretudo a álgebra e a geometria), a partir de EucIides e Arquimedes, a medicina, a geografia, a astronomia, ministrando o ensino (universidades do Cairo, de Damasco e de Bagdá) e promovendo o saber. Nas artes, distinguiram-se na arquitetura e no desenho 25 16 Maria Yedda Unhares geométrico, de delicada e rara beleza. Segundo eles, a sua decadência começou com a dominação turca, a partir do XI e, sobretudo, do XV séculos. No entanto, é forçoso lembrar que tanto o Império Oto- mano quanto o Império Iraniano e o Mongol da Índia, no mesmo período, viveram momentos de es- plendor intelectual e artístico. Em suma, para avaliar o fenômeno da expansão árabe no murido, devem ser levados em consideração os seguintes fatores: em primeiro lugar, os laços cul- turais, lingüísticos e institucionais que uniram as tri- bos do norte e do centro da Arábia no período prê- islâmico; em segundo lugar, o papel político unifi- cador e ideológico desempenhado pelo Islã depois da Hégira do século VII, e, finalmente, segundo Ma- xime Rodinson (op. cit., p. 51), "as condições sociais e políticas que permitiram a manutenção e a difusão da língua árabe, que mantiveram em algumas tribos seus modos de vida antigos e difundiram em outras uma consciência de arabidade também presente en tre aqueles que mudaram seu modo de vida". Os que passaram a adotar a língua árabe, adquiriram, em maior ou menor grau, essa consciência de pertencer a um mundo comum. Nos últimos tempos, principal- mente a partir do século XIX, outras correntes histó- ricas, provenientes da Europa ocidental e capitalista, na fase da expansão imperialista, trouxeram novos elementos de complexidade para o mundo árabe; entre esses, os mais explosivos foram, sem dúvida, o nacionalismo, num primeiro momento, e o socia- lismo, na fase atual. li A FORMAÇÃO DOS ESTADOS ÃRABESCONTEMPORÂNEOS A crise do Império Otomano (o século XIX) As divisões de ordem teológica e política que puseram em perigo a sobrevivência da obra de Mao- mé, ainda no seu berço, com as primeiras divergên- cias sobre a sua sucessão, explicam a existência das numerosas seitas em que se fracionou o mundo árabe ainda "na fase áurea de conquista em nome da fé. Daí serem os persas chütas, as populações arabi- zadas do Norte da África, wahabitas, para não falar- mos nos sunitas, zeidistas, nosairis, drusos, metualis e outros mais que traduzem dissidências quanto à interpretação do Corão, as quais, em alguns casos, chegam a ter pouco em comum com o próprio Islã. Mas, apesar das rivalidades internas e das cisões 28 Maria Yedda Linhares subseqüentes, foi inegável o sucesso alcançado pelo avanço árabe na propagação do Islã pela Ásia Me- nor, pelo Norte da África, levando-o, via Marrocos, até a Espanha no século VIII. Ao fulgor dos suces- sivos califados, seguiram-se, porém, períodos de des- censo e lutas intestinas .até o momento em que a conquista levada a cabo pelos turcos otomanos, já islamizados, abriu uma nova era não apenas para os árabes como para o conjunto dos povos muçulmanos. Curto, porém, foi o esplendor do Império Oto- mano. Sediado em Constantinopla, comandava, .com suas famosas tropas de elite, os janízaros, as rotas que ligam o Mediterrâneo Oriental ao Oceano Ín- dico. Nos séculos XVII e XVIII, como se mencionou acima, sua história se caracterizou pela ferrenha oposição da Áustria e da Rússia, como Estados limí- trofes, e todo ao longo do século XIX, após a Revo- lução Francesa e as guerras napoleônicas, as conjun- turas internacionais aliadas às condições da evolução interna dos povos subjugados contribuíram para o maior enfraquecimento do Império Otomano e suas transformações. Fazia parte do jogo das potências européias, no apogeu da política nacionalista e de expansão político-militar, acirrar os nacionalismos dos povos eslavos, jogando' com suas contradições in- ternas, e assegurar, através de um intrincado manejo da diplomacia, o domínio sobre o Mediterrâneo oriental. Na medida em que o século avança e, com ele, tornam-se mais espetaculares os progressos da Revolução Industrial e do capitalismo,como sistema econômico em expansão, a diplomacia deixa de ser Oriente Médio e o Mundo dos Árabes um jogo enredado de palavras e artifícios entre inte- resses dinásticos para se tornar a arma pela qual se exerce a disputa de mercados, rotas estratégicas, bases de abastecimento. Disraeli, ministro inglês da era da rainha Vitória, definiu como um dos obje- tivos supremos da política da Grã-Bretanha a defesa "das fronteiras científicas", o que, em última aná- lise, significa proteger, por quaisquer meios, o acesso à Índia. Os turcos dificilmente poderiam fazer face às pressões das grandes potências que se rivalizavam pela preponderância naquelas regiões sob seu domí- nio. De um lado, a Inglaterra, desejosa de salva- guardar a integridade e, paradoxalmente, a fraqueza do arcaico edifício turco, como a melhor maneira de manter, sem interferência de outra potência, os ca- minhos que levavam à Índia em terras e águas oto- manas. Por outro lado, a Rússia dos tzares, procu- rando forçar o esfacelamento do Império Otomano a fim de obter o controle dos estreitos de Bósforo e dos Dardanelos. A França, por sua vez, em parte pre- mida por problemas de ordem interna, lança-se, num primeiro momento (primeira parte do século) sobre o Egito e a Argélia e, após 1880, sobre a Tunísia e o Marrocos. Enquanto a Áustria" também arcando com o peso de uma monarquia tradicional e estru- turas sociais e econômicas mais cristalizadas e resis- tentes às transformações que se operavam nos países da Europa de oeste, mal se limitava a vigiar os nacio- nalismos balcânicos em plena efervescência, defron- tando-se, então, com os interesses russos de um vago 29 30 Maria Yedda Linhares e hipotético pan-eslavismo. Pouco a pouco, vai-se decompondo o Império Otomano apesar das tentativas de rejuvenescimento que se fizeram através das reformas dos sultões Selim 111 e Mahmud 11 (1808-1830), de caráter militar e administrativo, ou seja," no sentido de modernizar seus instrumentos de governo, e, ainda, em 1876, a adoção de uma Constituição, de inspiração ociden- tal, a modernização da burocracia e da educação sob Abd ul-Hamid-Il pós-1878, a ascensão dos "Jovens Turcos" que, finalmente, se apoderaram do poder em 1908 e nele permaneceram até 1918. Sob o movi- mento dos "Jovens Turcos" e seus diferentes seg- mentos políticos, a Turquia deu mais um passo para a modernização de suas instituições, enfatizando o nacionalismo turco e a laícízação do Estado, com a introdução do Direito Civil, a abolição da poligamia, a emancipação da mulher e a adoção de programas de desenvolvimento econômico e social. Tais esfor- ços, no entanto, não chegaram a atingir plenamente os seus objetivos e, ao ter início a Guerra de 1914- 1918, o Império Otomano, aliado dos Impérios Cen- trais (Alemanha e Ãustria-Hungria), tentouarregi- mentar os muçulmanos, sob sua jurisdição, inclusive os árabes, mais uma vez em nome do Islã, decla- rando a "Guerra Santa" contra os exércitos da En- tente Cordiale franco-britânica e da aliança franco- russa. A guerra mundial que se iniciava iria dar o golpe de misericórdia no último Califado, o de Cons- tantinopla. Oriente Médio e o Mundo dos Árabes 31 Os primórdios do nacionalismo árabe A noção de despotismo associada à de jugo insu- portável e feroz de sultões e paxâs, indolentes e las- civos, sobre populações pobres e indefesas do Oriente parece arraigada na mentalide do "homem comum" do Ocidente, sobretudo através das imagens difun- didas pelo cinema. Não há dúvida de que à base da conquista por hordas nômades está implícita a vio- lência com a esctavização dos vencidos que se tor- nam, em alguns casos, uma casta militar, a extração de tributos e a instauração de uma autoridade civil e judicial em que imperam os mecanismos de coerção. Mas, na medida em que se organizam os Estados, com base territorial, os nômades se sedentarizam, desaparecendo como tais da cena histórica, assim como os escravos, estrangeiros, base de recrutamento militar, perdem sua força política, embora no con- junto persista a-tradição de submeter as minorias étnicas. De fato, a sociedade islâmica caracterizou- se, na sua expansão territorial, pelas tradições plura- listas e pelo estabelecimento de normas jurídicas de tipo personalista, permitindo a convivência entre muçulmanos e não-muçulmanos, numa tentativa, bem sucedida, de manter suas respectivas normas sociais. No caso da dominação turca, foi evidente a su- perposição de uma casta otomana às populações pre- existentes, árabes e outras, por sua vez, já anterior- mente hierarquizadas com seus sistemas próprios de 3( 32 Maria Yedda Linhares Oriente Médio e o Mundo dos Árabes estendia pelo conjunto dos lugares santos, inclusive sobre parte do Hedjaz. Em 1839, a Inglaterra se esta- beleceu em Aden e daí começou, lentamente, a alar- gar a sua esfera de influência. No Egito, a curta ocupação pelas tropas de Na- poleão (que também se apoderaram do sul da Síria) deu início a acontecimentos que iriam modificar no decurso do século a história dos povos árabes. Um segundo acontecimento verificou-se no coração da Arâbia, com a tentativa de formação de um reino árabe, o Wahabita. Tais fatos foram decisivos para o "renascimento" árabe que se dará daí por diante. Coube a Mohamed Ali idealizar, pela primeira vez, a criação de um Estado árabe unificado. Era ele um albanês rude e analfabeto, certamente ambicioso e inteligente. Soldado otomano na época de Mahmud 11, seguiu para o Egito ocupado por Napoleão, nos fins do século XVIII, organizou um poderoso exército, destruiu os mamelucos (casta militar dirigente) e no- meado paxá daquela província do Império realizou uma imensa obra administrativa. A tal ponto forta- leceu seu poderio, auxiliado pelas qualidades mili- tares de seu filho Ibrahim, que cedo passou a cons- tituir uma ameaça à segurança e à integridade do próprio Império Otomano. As guerras empreendidas por Mohamed Ali e por seu filho levaram os exércitos egípcios a todos os recantos da Ásia onde era o árabe falado. Além do Sudão (Dar el-Sudã, país dos ne- gros, ao sul), conquistou a Grande Síria e pacificou os wahabitas na Arábia insurrecta, fato este. que merece ser destacado. 33 estratificação, É evidente também que a participação dos "súditos" na vida política de um Estado que tem na sua base a escravidão e uma classe dirigente es- trangeira, embora associada à "aristocracia" local, não pode deixar de ser insignificante. Os segmentos inferiores das estruturas sociais tendiam a demons- trar um comportamento indiferente às manifestações do poder (soberano e camadas dirigentes), salvo "quando entram em jogo a religião, a corrupção e a opressão excessiva" (G. E. Von Grunebaun, EI Is- Iam, Siglo XXI, 1975, p. 8). De uma maneira geral, as "províncias" eram governadas com certa frouxi- dão, preservando-se um acentuado grau de auto- nomia local, pelo menos como uma tendência gene- ralizada. Mas se o mundo islâmico - o Dar al-Islã - é heterogêneo quanto às estruturas econômicas e so- ciais, assim como do ponto de vista administrativo e, até mesmo, espiritual, não se deve desconsiderar o poder da ortodoxia quanto à religião, daí a sua divi- são interna entre fiéis e infiéis, a tendência à exal- tação religiosa exacerbada e a explosões súbitas de protesto econômico e social, sob a capa da religião e da sua pureza. No século XIX, as convulsões que assolavam o Império Otomano refletiram-se, como é natural, no mundo árabe. A Mesopotâmia, a Síria, a Palestina eram províncias nas quais a dominação turca se exer- cia mais efetivamente nas cidades. A Arábia persistia no seu isolamento, dominada por xeques, emires e sultões. O xerife de Meca era um representante di- reto do Califa (sultão otornano) e sua autoridade se 34 Maria Yedda Linhares Pelo final do século XVII, nascia no Nedj, Mo- hamed Ibn Abdal-wahhab, da tribo de Tamim, o qual após estudar teologia e jurisprudência nas esco- las do Oriente, tratou de angariar discípulos com o objetivo "de restaurar a pureza original da doutrina e da vida islâmicas"(D:- Brockelmann, Histoire des Peuples et des États Islamiques , p. 296). O movi- mento por ele pregado tinha semelhança com o da Reforma de Lutero no século XVI. Repudiava a veneração do Profeta e dos outros santos, o luxo, as ornamentações suntuosas nos túmulos e mesqui- tas, o uso do tabaco, pregando, enfim, o retorno à frugalidade e à fé tradicional. Imprimiu grande entu- siasmo às suas pregações e despertou em seus adep- tos a chama do ardor belicoso há tanto tempo desa- parecido. Assim, foi convertido à nova seita refor- mada - o wahabismo - Mohamed Ibn Saud, emir do Nedj, que encetou a "guerra santa" com o fito de organizar um império árabe purificado. Após sua morte, ocorrida em 1757, seus descendentes prosse- guiram a obra iniciada. Decorrido meio século, não apenas era forte o domínio do wahabismo entre as tribos beduínas do deserto, como em todo o Hedjaz, de onde foram os otomanos expulsos, daí advindo a ocupação de Meca e Medina. Na marcha para o norte, os wahabitas apoderaram-se da Palestina e cercaram Damasco. A Mohamed Ali coube enfrentar o wahabismo, através de várias campanhas militares, no que foi bem sucedido. Apesar da repressão que se seguiu à vitória (1811-1812), o wahabismo permaneceu la- Oriente Médio e o Mundo dos Árabes tente para ressurgir um século depois na própria Arábia, ainda sob a chefia de um membro da família saudita. Quanto a Mohamed Ali, o Grande, viu-se for- çado a abrir mão de seus desígnios, ou seja, o de criar um Reino Árabe. A intervenção da Europa foi deci- siva no caso. A campanha do Sudão, com a fundação de Cartum em 1822, tinha por objetivo controlar o curso superior do Nilo e suas caravanas, bem como o tráfico de escravos, o que certamente desagradou à política inglesa. Na campanha da Síria (1831-32), ficou patente a sua superioridade sobre os otomanos. Tanto russos quanto ingleses temiam a constituição de um Estado forte naquelas paragens. Por uma segunda vez, as tropas egípcias ameaçaram Constan- tinopla(1839-40), provocando então uma crise inter- nacional na qual a França tomou posição pelo Egito. Ao final, Mohamed Ali retira suas tropas de ocu- pação da Arábia, abre mão de suas pretensões sobre Constantinopla, obtendo em troca o direito de here- ditariedade sobre o Egito que continuará dentro do Império, mas com um estatuto especial. Enfraquecido mas assegurando o poder à sua dinastia, deu continuidade à obra de modernização do país, no que foi apoiado pela França. As reformas que introduziu, como as de um "déspota ilustrado", abrangem a administração financeira, altamente centralizada e dirigida, as atividades econômicas, contrariamente ao regime das Capitulações vigorante (privilégios assegurados aos estrangeiros) e os novos acordos assinados en'tte o Império e as Potências 35 36 Maria Yedda Linhares (livre comércio nos territ6rios otomanos), instituindo o monopólio da sua dinastia sobre a terra, criando as fazendas do Estado cuja exploração é confiada a camponeses, introduzindo a cultura intensiva do al- godão de fibra longa, promovendo o desenvolvimento das manufaturas. Suas'reformas levaram ao desapa- recimento das antigas fortunas agrárias e da aristo- cracia dos mamelucos. Favoreceu de maneira extra- ordinária o desenvolvimento do ensino, a expansão de escolas técnicas, a ida de bolsistas para a Europa, permitindo, assim, a formação de uma intelectuali- dade moderna e instruída. Mas do ponto de vista social, pouco mudaram as condições de vida dos seus então cerca de três milhões de habitantes. No topo da pirâmide social encontravam-se os ulemás, elite religiosa e intelectual, distanciada do governo, a seguir os proprietários, os comerciantes, os artesãos e, abaixo de todos, os camponeses (os felás) que compreendiam cerca de 9/10 da nação, miseráveis, sujeitos ao trabalho forçado, quando recrutados, sem direitos. Outra de suas medidas foi a sedentarização dos beduínos que formavam, até então, um grupo isolado e aguerrido no deserto. Muitas das institui- ções tradicionais, como a família, não foram toca- das. No entanto, o primeiro passo estava dado no sentido de abalar o velho edifício muçulmano. Se, por um lado, a destruição de antigos grupos diri- gentes não encontrou resposta no surgimento ime- diato de uma burguesia local urbana, industrial ou comerciante, por outro, é forçoso reconhecer que as reformas encetadas, mesmo precárias e demasiada- Oriente Médio e o Mundo dos Árabes mente tuteladas pelo Estado personificado na dinas- tia que se criava, contribuíram para o despertar de uma consciência nacional. Ressalte-se, ainda, o fato de que por onde passa- vam os exércitos de lbrahim, escolas eram criadas, surgiam jornais, propagava-se o ensino do árabe; dando origem a um verdadeiro renascimento literá- rio, sementes de um nacionalismo que frutificaria. A partir da segunda metade do século, organizam-se sociedades na Síria que provocam levantes contra a dominação otomana e, no Egito, foi importante a revolta de Orabi Paxá de Alexandria (1882) contra a intervenção anglo-francesa nos neg6cios internos do país, principalmente na organização do exército e contra a fraqueza de Tewfik Paxá posto no trono pelos ingleses. Nas raizes do nacionalismo egípcio expresso na revolta de Orabi Paxá encontra-se a humilhação com a bancarrota egípcia em face de seu endividamente externo, com o controle inglês sobre sua alfândega, bem como a perda do controle financeiro sobre o Canal de Suez, com a compra das ações do governo egípcio pelo governo inglês, e, final- mente, a própria ocupação do Egito pela Inglaterra em 1882. A sucessão de Mohamed Ali (1847-1882) fora marcada pela continuação da política de moder- nização do país: obras públicas, estradas de ferro, serviços postais, irrigação, abertura do Suez, reforma agrária com a instauração da propriedade privada sobre a terra, originando o surgimento de uma nova classe de grandes proprietários de terra vinculada ao setor financeiro e industrial, nacionalização dos pos- 37 38 Maria Yedda Linhares tos superiores do exército, etc. Tal modernização mudou a face do país e colocou o Egito como o pri- meiro dos países árabes, aquele que aspiraria uma liderança nos movimentos contra a dominação es- trangeira. Outro fato também contribuiu para acirrar a hostilidade latente da população contra o ocupante e a perda da independência. Foi a perda da província meridional, o Sudão, em decorrência de uma r-evolta local de cunho religioso e que não pôde ser debelada de início pelos' egípcios (1881)- A reconquista foi empreendida em 1898 sob o comando inglês de Kitchener, com o auxílio de tropas egípcias, e, em 1899, assinou-se uma convenção que estabeleceu o condomínio anglo-egípcio sobre o Sudão. De fato, a ocupação do país caberia à Inglaterra, sendo que o governador geral do Sudão seria, daí por diante, o Sirdar (comandante-em-chefe) do exército egípcio, sendo apenas nominal a parte que cabia ao Egito na administração do condomínio. A extinção desse re- gime continuou sendo nas décadas seguintes uma das principais reivindicações do nacionalismo egípcio. Do ponto de vista econômico, acentua-se a ten- dência monocultora da economia egípcia, .desta- cando-se o algodão como seu principal produto. Crescem os investimentos estrangeiros no país (servi- ços públicos, bancos, indústrias de consumo). Em 1890, são extintas as corporações e se libera a mão- de-obra para o mercado de trabalho. A concorrência estrangeira acelera a morte do artesanato local. Ao ter início o século XX, o Egito, s~m perspectivas de Oriente Médio e o Mundo dos Árabes desenvolver seus próprios recursos, nada mais é do que uma reserva do capitalismo britânico. Sua popu- lação crescia em ritmo acelerado e eram nulas as suas possibilidades de vencer as condições de miséria, cada vez mais acentuadas. Na Síria e no Líbano (do hebraico Leban, bran- co, província turca criada em 1861) foi particular- mente notável o movimento intelectual durante a administração de Ibrahim Paxá que favoreceu a abertura de escolas americanas e francesas. Tipogra-fias foram instaladas em Beirute. Em 1866, já se inaugurava o Colégio Protestante Sírio que se trans- formaria na Universidade Americana de Beirute. Também os jesuítas aí fundaram a Universidade de São José. Em breve, alemães, russos, ingleses e fran- ceses abriam escolas e acolhiam entre seus alunos tanto muçulmanos quanto cristãos, distinguindo-se as francesas pela qualidade do ensino ministrado e pela extraordinária difusão da língua e da cultura francesas. No entanto, coube à Universidade Ameri- cana de Beirute um papel mais importante no renas- cimento da língua árabe, ao acolher alunos de todo o Oriente Próximo, favorecendo a redescoberta do seu passado e das suas tradições clássicas, o que foi fun- damental no despertar de uma consciência nacional. Nesse final do século XIX, o nacionalismo árabe apresenta duas perspectivas: 1) o renascimento pro- movido pelos cristãos libaneses manifesta-se como um movimento cultural; em 1880, organizava-se em Beirute uma sociedade nacionalista, antiotomana, que reunia cristãos, muçulmanos e drusos exigindo o 39 40 Maria Yedda Linhares árabe como língua oficial, a liberdade de expressão e a autonomia para a Síria e o Líbano; perseguições movidas pela policia otomana levaram à dissolução da sociedade e à fuga de seus líderes para o Egito; 2) o nacionalismo que emergiu no Egito, na mesma época, tinha um cunho religioso acentuado e assumia o caráter de um movimento pan-islâmico, sob a dire- ção de Jamalud-Din al-Afghani, sem a inclusão de cristãos e com características chauvinistas. No renascimento da língua e da cultura árabes, foi, em todos os sentidos, incomensurável a contri- buição da intelectualidade libanesa, sui generis na sua composição étnica e diversificada do ponto de vista religioso (maronitas, gregos orientais e católi- cos, muçulmanos, drusos, metualis). Uma vez no Egito, coube-lhe editar os primeiros jornais e revistas do país e exercer uma influência intelectual consi- . derável no restante do mundo árabe. favorecendo a preservação da língua clássica e, ao mesmo tempo, modernizando-a segundo as exigências de novos con- ceitos e de novas idéias trazidas pela ciência e pela tecnologia do Ocidente. Por outro lado, foi também notável a contribuição dos libaneses que emigraram para o continente americano, provocando o que Edward Atiyah (The Arabs, Penguin Books, Edin- burgo, 1955) classificou de "terceira·corrente de pen- samento árabe, revitalizado por influências ociden- tais" . Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, multi- plicavam-se as organizações nacionalistas árabes. No Egito, líderes como Mustafá Kemal, jornalista de Oriente Médio e o Mundo dos Árabes formação francesa, representava uma ala de es- querda liberal e ocidentalizante e, no sentido conser- vador, destacava-se a atuação do Partido da Nação (hizb al-Umma), antiotomano, por excelência, favo- rável a uma colaboração com os ingleses, tendo à frente grupos sírios e a figura de Saad Zaghlul que, mais tarde, constituirá o Wafd. Associando-se aos grupos herdeiros da organização nacionalista radical que restaram após a morte de Mustafá Kemal (1908), tornaram-se militantes eficientes a partir de 1913 numa espécie de frente nacionalista. Por outro lado, no Império Otomano, o movimento Jovem Turco (1908) restaurava a constituição (suspensa em 1876) e decretava a igualdade de todos os povos dentro do Império, sendo oferecida aos árabes participação no governo e no parlamento. Um desses deputados em Constantinopla foi Abdala, da família hachemita do Hedjaz e que se tornaria depois rei da Jordânia. Mas foi de curta duração o idílio turco-árabe e não tar- daram a surgir sociedades secretas árabes de cunho antiotornano, inclusive entre a oficialidade árabe do exército turco. Também nelas foi decisiva a parti- cipação dos grupos sírios e sua influência tendia a espalhar-se pela Mesopotâmia(Bagdá) e pelo Hedjaz, que acolhia anualmente centenas de milhares de peregrinos, apesar das dificuldades de comunicação. O projeto de construção de uma estrada de ferro ligando Damasco a Medina, com objetivos militares (melhor assegurar o controle otomano da região) ser- viu, contraditoriamente, para unir os contestatários e facilitar a luta contra o otomano quando, finalmente, 41 42 Maria Yedda Linhares i., " A guerra de 1914-1918, resultante do aguça- mento exacerbado da rivalidade interimperialista das grandes potências capitalistas, por suas repercussões nas áreas de dominação ou de influência européia, assumiu proporções de conflito mundial. Em pri- meiro lugar, ela teve uma duração muito superior à prevista pelos estadistas e chefes militares da época. Em segundo lugar, pela extensão dos campos de ba- estourou a Revolta Árabe, em 1916. Nessa conjun- tura de pré-guerra, coube a Hussein, xerife de Meca, descendente da família do Profeta (os hachemitas), antiotomano (fora exilado "forçado" em Constanti- nopla durante dezesseis anos, libertado em 1908) a tarefa de desenvolver uma política de unificação do Hedjaz, beneficiando-se, inclusive, do fato de ser o guardião dos lugares santos. Os acontecimentos liga- dos à Primeira Guerra estarão estreitamente relacio- nados com os fatos acima resumidos, bem como com a rivalidade latente entre as duas "casas" reinantes: os sauditas no Nedj e os hachemitas no Hedjaz. Per- meando toda essa complexa rede de relações, a polí- tica imperialista das potências européias represen- tava um fator fundamental de discórdias e desaven- ças internas, alianças, corrupção e perpetuação dos mecanismos de dominação social, econômica e reli- giosa, em detrimento dos segmentos mais pobres da população. A Primeira Guerra Mundial Oriente Médio e o Mundo dos Árabes . talha e pela destruição que acarretou, ela exigiu um considerável aumento do poder do Estado em todas as esferas de atividade, tanto econômica quanto so- cial. Em terceiro lugar, a entrada em cena dos Es- tados Unidos no conflito e a eclosão da Revolução Russa, ao longo de 1917, foram fatores decisivos na alteração fundamental do panorama internacional e na configuração do mundo de pós-guerra. No Oriente Próximo, suas conseqüências foram particularmente notáveis. O complexo sistema de alianças militares que caracterizara a política dos Estados europeus no período imediatamente anterior a 1914, fizera com que a Turquia, envolvida pela diplomacia alemã do Kaiser Guilherme lI, se alinhasse com os Impérios Centrais (Alemanha e Ãustria-Hungria) e entrasse em guerra (29 de outubro) contra os países aliados, Grã-Bretanha, França e Rússia. Ao terminar o con- flito, em 1918, emergiam os Estados Unidos como grande potência, credora da Europa, e desapareciam as grandes monarquias européias, os Romanovs, da Rússia, com o surgimento do primeiro país socialista da História, os Hohenzolern, da Alemanha, com a proclamação da República de Weimar e os Habs- burgos da Ãustría-Hungria, com a formação de Es- tados distintos resultantes do desmoronamento: Áus- tria, Hungria, Tchecoslováquia, Iugoslávia. Com re- lação ao Império Otomano, a derrocada de 1918 deu-lhe o golpe de misericórdia: de um lado, o movi- mento nacional turco, surgido como uma reação aos fracassos políticos e militares do Sultanato, organi- zou-se em torno de Mustafá Kemal, denominado o 43 44 Maria Yedda Linhares .',~ ,I A Revolta Árabe e a Politica Inglesa Como principais fatores da "questão árabe" que emergirá nesse período destacam-se os seguintes: 1) a política britânica de defesa das rotas do Oceano Ín- dico; 2) a política russa de avanço para o sul em di- reção à Pérsia (Irã), Afeganistão e ao Mediterrâneo oriental, incluindo o litoral do Mar Negro; 3) a polí- tica francesa em defesa de seus "tradicionais interes- ses" na região; 4) o nacionalismo árabe com suas contradições internas, ou seja, a rivalidade entre sau- ditas e hachemitas, a pretensão egípcia de liderança, a multiplicidade de reivindicações das minorias na Síria, no Líbano e no Iraque; 5) o movimento sionista que aspirava fundar um "lar nacional" na Palestina. Ao ter inicio a guerrana Europa, a Síria e a Palestina foram ocupadas pelos exércitos turco-ale- mães. Em seguida ao fracassado ataque turco contra o canal de Suez, as campanhas militares se desen- rolaram em duas frentes: a) os ingleses dirigem suas operações em direção à Palestina (EI Arish, Gaza e Jerusalém) e em setembro de 1918 (batalha de Sa- rona) é liberado o caminho para a ocupação da Síria; Ataturk (o pai dos turcos), e após conflitos e nego- ciações diplomáticas foi, finalmente, proclamada a República turca (1923) e abolido o Califado (1924); de outro lado, nas regiões árabes, a situação evoluiu de forma bastante complexa em virtude da inter- venção inglesa e dos choques de interesses imperia- listas na área . ,i " Oriente Médio e o Mundo dos Árabes b) na Mesopotâmia, as tropas inglesas sofrem revezes importantes (fevereiro de 1916) mas, logo em se- guida, apoderam-se de Bagdá (1917) e de Mossul (1918), região petrolífera. Nessa conjuntura de guerra, coube à diplomacia inglesa procurar angariar a adesão das populações submetidas à ocupação otomana (Síria e Líbano), duramente subjugadas, e também neutralizar o apelo à "guerra santa" na região, obtendo a colaboração dos muçulmanos do Egito e da Arábia. Por outro lado, minorias como os drusos e os alauítas perma- neciam recalcitrantes aos turcos e aos ingleses, gra- ças à posição de isolamento e refúgio que lhes era assegurada pelas montanhas (sul do Líbano). De- frontava-se, assim, a diplomacia inglesa com o im- passe: corno obter o apoio daquelas populações, de- fendendo ao mesmo tempo os interesses estratégicos britânicos e compatibilizando-os com as aspirações árabes de independência, aspirações essas que apre- sentavam divergências internas graves? Por outro lado, interesses políticos e financeiros (corno se verá adiante) levaram o governo britânico, após longas controvérsias, a apoiar a reivindicação do movimento sionista de criar um lar judeu na Palestina, através da Declaração Balfour (novembro de 1917). E corno que introduzindo mais um elemento de complexi- dade no tabuleiro de xadrez do Oriente Próximo, ingleses e franceses assinaram um acordo secreto (Acordo Sykes-Picot) - abril/maio de 1916 - se- gundo o qual a parte árabe do Império Otomano seria partilhada entre a França e a Grã-Bretanha, 45 46 Maria Yedda Linhares devendo caber à primeira a Síria e o Líbano e à segunda a Mesopotâmia (o Iraque) e a Palestina. Enquanto isso, a diplomacia inglesa no Cairo (o Alto Comissário Sir Henry Mac-Mahon) comprometia-se com o xerife de Meca, Hussein, chefe da família hachemita, em troca de~eu apoio militar, a reconhe- cer o futuro Reino Árabe que iria da Síria ao Hedjaz, O desenrolar dos acontecimentos comprovou que tais engajamentos, múltiplos e conflitantes, teriam con- seqüências desastrosas para a região e as populações há séculos aí radicadas. Ao terminar a guerra, os compromissos não foram honrados e o nacionalismo árabe assumiu novas proporções, já agora face ao problema da Palestina e da expansão do movimento sionista de "regresso" dos judeus à terra de Israel. Vejamos, resumidamente, alguns aspectos es- senciais do problema árabe no decorrer da guerra mundial. A partir do momento em que a Turquia concitou os muçulmanos à guerra santa, a revolta dos árabes, em desobediência ao Califa, seria um trunfo para a Inglaterra. O prestígio de Hussein e seus filhos Abdala e Fayçal era considerável, não apenas como família dominante do Hedjaz como pelos contactos já existentes entre eles e os naciona- listas da Síria e do Iraque (Bagdá). Estavam conven- cidos de que a independência árabe só se faria fora dos quadros do Império Otomano. Dessa forma, a sua participação militar na guerra era fundamental a essa estratégia nacionalista. Pensavam na constitui- ção de um Estado árabe, a Grande Síria, a leste do Suez de modo a abranger a península arábica, a .I I.' -' ,j i I Oriente Médio e o Mundo dos Árabes Síria, o Líbano, a Palestina e o Iraque, uma espécie de ressurgimento do antigo império abássida. Em- bora o nacionalismo sírio fosse mais avançado, ele sofria o mal do intelectualismo, daí a superioridade de Hussein na medida em que podia aliciar um grande número de tribos. Mas para o sucesso militar dos hachemitas, era fundamental naquele momento o suporte inglês já que se tratava de aparelhar sol- dados para uma guerra moderna . As negociações entre Hussein e Mac-Mahon no Egito (julho/191S-março/1916) desembocaram na concordância tácita por parte dos britânicos quanto às pretensões hachemitas. Hussein logo se intitulou rei dos árabes e, a seguir, califa. Â revolta árabe se associa na memória inglesa, altamente romantizada, a figura de T. E. Lawrence. Tal revolta foi impor- tante militarmente, ao proteger o flanco das tropas britânicas na Palestina e ao permitir movimentos diversionistas do exército turco. Por outro lado, a adesão hachemita serviu para contrabalançar a pro- paganda germânica nos países islâmicos. No entanto, essa atuação militar foi minimizada pela Inglaterra e, em muitos casos, escamoteada pelas autoridades indianas, assim como pela imposição política no que franceses e sionistas concordavam, de negacear a concessão de independência pleiteada pelos nacio- nalistas árabes, em 1918. Quanto ao que se poderia chamar de "oportunismo diabólico" da política in- glesa e de suas manobras imperialistas, houve, sem dúvida, e em alta dose, uma absurda e irresponsável autonomia de decisões, sem coordenação, entre os 47 48 Maria Yedda Linhares ,:~ l três órgãos oficiais do governo imperial britânico no tocante ao Oriente Médio, durante a guerra: o pró- prio Foreign Office (Ministério das Relações Exterio- res), o Arab Bureau do Cairo (Departamento Árabe) e o Governo Imperial da Índia, cada qual com dire- trizes particulares e algumas vezes rivais. O que importa assinalar é que Fayçal fez sua entrada triunfal em Damasco, em I? de outubro de 1918, ao lado das tropas inglesas. De lá, enviou um representante a Beirute onde fez hastear a bandeira hachemita. Parecia o início do Reino Árabe. No en- tanto, vários foram os obstáculos com os quais Fayçal se defrontou. Primeiramente, as pretensões francesas cujos "direitos" históricos teriam sido confirmados pelo já mencionado acordo Sykes-Picot, e cujos inte- resses econômicos, além de culturais, estavam bem plantados desde os tempos da política de Mohamed .Ali (investimentos em transportes, portos, obras pú- blicas, escolas, bancos). Pelo acordo anglo-francês, caberiam à França, como administração direta, o Líbano, a região alauíta, Alexandreta, a Cilícia, Ma- rache, Diarbekir e Mardine. À Inglaterra competiria administrar a baixa Mesopotâmia, inclusive Bagdá. Seriam reservados à constituição de estados árabes, a Síria, a região de Mossul, a média Mesopotâmia e a região compreendida entre o Eufrates, a Palestina e o Sinai. Mas a maior parte da Palestina, em virtude dos lugares santos, deveria ficar sob uma adminis- tração internacional e com a participação do xerife de Meca. O segundo obstáculo concreto à constitui- ção do sonho árabe hachemita foi a presença maciça " ," ,J " ) f ,Oriente Médio e o Mundo dos Arabes do exército inglês, com destacamentos franceses, sobre toda a região. O terceiro obstáculo foi a "inter- nacionalização" da questão, ou seja, a sorte do mundo árabe, assim como () contorno do seu mapa político ficaram entregues à parlamentação nas chan- celarias européias (dos países interessados) e em torno das mesas que decidiriam sobre os acordos de paz. Em vão, Fayçal tentou obter junto aos gabinetes de Londres e Paris o reconhecimento de suas pre- tensões (ou de seus "direitos"). No Hedjaz, Hussein, após render a guarnição turca de Medina, não aban- donou o seu título de rei e, em Damasco, Fayçal se fez proclamar rei da Síria pelo congresso geral sírio. Mas, apenas decorrido um mês, a Conferência de San Remo (1920) decidiu: 1) partir geograficamente a Síria em três: uma Síria reduzida (Damasco, Homs, Hama, Alepo e seu hinterlandt, a Palestina e o Líbano, ficando o Líbanosob a administração di- reta da França, a Síria sob mandato francês, consti- tuindo um Estado árabe (capital Damasco); 2) a Inglaterra ficaria com o mandato sobre a Palestina, com a obrigação de ai estabelecer o lar nacional judeu prometido na Declaração Balfour e teria um mandato sobre o Iraque, inclusive a região de Mos- sul. Lembre-se, ainda, que um dos princípios que deveriam reger a reorganização da paz era o da auto- determinação dos povos. Não é difícil compreender a frustração dos na- cionalistas árabes, sobretudo dos membros hache- mitas. Fayçal foi expulso de Damasco pelas tropas francesas e, como Jacó, em vez da tão sonhada Síria, 49 50 Maria Yedda Linhares A Revolta dos Beduinos A Arábia se achava dividida pela rivalidade de xeques e ernires. Coube, porém, a um chefe waha- bita, Abdul-Azíz lU Ibn Saud fundar uma dinastia e .criar um Estado teocrático unificado, através de uma série de campanhas vitoriosas 'contra seus inimigos e da submissão das tribos beduínas. Seu longo reinado se estendeu de 1902 a 1953 e fortaleceu-se extraor- dinariamente a partir da Segunda Guerra Mundial, graças ao petróleo encontrado no seu subsolo. Na sua política de unificação da península, combateu o xe- rife de Meca e Medina, e terminou por expulsar do Hedjaz o chefe da família hachemita, Hussein, de forma definitiva em 1925. Em 1926, proclamou-se rei do Nedj, do Hedjaz e dependências. Quanto a Hus- sein, nada mais lhe restou do que abdicar, em nome de seu filho Ali, e fugir para Chipre, Autocrata, de- receberia o Iraque em recompensa, sob mandato britânico da Sociedade das Nações. Desse momento em diante, continuará ora latente, ora aberto, o con- flito entre ingleses, franceses, sionistas e árabes da Síria, do Líbano, do Iraque e da Palestina. Quanto à Jordânia, que foi destacada da Palestina pelo Colo- nialOlfice sob a direção de Winston Churchill, em 1922, para constituir a Transjordânia (a leste do rio Jordão), na qualidade de mandato britânico, foi ela entregue a Abdala, irmão de Fayçal. Quanto a Hus- sein, abandonado pelos ingleses, sua sorte será deci- dida na própria Arábia. ,, i, I" /', ,- ) Oriente Médio e o Mundo dos Árabes 51 cnw ai«a:« cn Oo ~w ~o « C!'::::; Vi ~-< ~ o '"~a: ~ -. ,.__.<{ ~ -, ~"Sl<!P --, ", '., ', <{ ,\ o: -, ·w S1z li!•.. « Ul wcz«cr:u, .'"'...s;: • <::I li")-õ ....• ~ c:i, ~ori ~~~ ....• t.!:.l • '-'~. o ~~•...• =: <::s E '~'ll_~ ~~ . \: ~ '~.g I: ~ O :E w w m«a:.« Oo Z::::l :E O « Ulwoz«a:u.. ...Jszwc Õo «o ã:u.. .<{ , "" '----,--- 52 Maria Yedda Linhares fensor da pureza da fé islamita, Ibn Saud governou com mão de ferro os seus beduínos, de forma obscu- rantista e retrógrada. A rivalidade que persistira entre sauditas e hachemitas do Iraque e da Jordânia será mais um fator de desunião do mundo árabe. Na península, pouco mais restava, a partir da unificação saudita: o Iêmen, também governado teocratica- mente, isolado do Ocidente, a colônia britânica de Aden, Koweit, Bahrein, Qatar, pequenos sultanatos que mal se apercebiam das mudanças que se opera- vam no outro lado do mundo árabe. Acontecimentos posteriores iriam também influir sobre os seus des- tinos, nos quais a ideologia nacionalista, acionada contra a constituição do Estado de Israel, o petróleo, com seu imenso poder corruptor e a política ame- ricana viriam a ser fatores decisivos de mudança da Arábia dos beduínos. :~. ): ." 1" "i' ,1 ; r Os movimentos nacionais Os países árabes que emergiram da débãcle oto- mana defrontavam-se, sem exceção, com problemas graves; entre e1es situavam-se as relações com os países mandatários, a Inglaterra e a França, e, ain- da, a questão das minorias "nacionais" no interior dos novos Estados. Como corolário, o problema da Palestina aparecia como o pivô dos desentendimen- tos, dividindo em campos. opostos e irreconciliáveis o nacionalismo árabe e o nacionalismo judeu. Oriente Médio e o Mundo dos Árabes A Sociedade das Nações criada pelo tratado de Versalhes estabelecera um estatuto jurídico especial (os mandatos), com a duração de vinte e cinco anos, aos diversos nacionalismos emergentes no Oriente Próximo. Caberia aos mandatários, como tutores, "preparar" esses países para a independência. O panorama internacional que antecede a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) será conturbado pelas reivindicações nacionais desses povos, cabendo à In- glaterra desempenhar um papel importante na re- gião num complexo jogo de poder do qual ela saiu como grande perdedora. oproblema das minorias nacionais À guisa de ilustração, vejamos dois desses nacio- nalismos: o drnzo e o curdo. O povo druzo representa uma minoria sui generis, De língua árabe, muçul- mano heterodoxo (remanescente do ismaelismo), constitui, hoje, uma população superior a 200000 pessoas que vivem entre o sul do Líbano, a região montanhosa Hauran, ao sul da Síria e a Galiléia, no norte do Estado de Israel atual. Sua seita religiosa data do século X e é considerada herética pelos mu- çulmanos. Até por volta de 1860, viveram pacifica- mente com os maronitas (católicosdo Líbano), quan- do se voltaram com violência contra as aldeias cris- tãs. Os franceses, defensores por tradição do cristia- nismo na região, pediram a intervenção otomana e, a partir desse momento, foram os druzos alvo da severa repressão turca. Daí a sua hostilidade aos oto- 53 54 Maria Yedda Linhares manos e a sua simpatia para com a insurreição árabe de 1916-1918. Em 1925, promoveram um levante contra a ocupação francesa que queria forçar a sepa- ração do Djebel Druzo (região montanhosa do Hau- ran) da Síria, e ganharam notoriedade como imba- tíveis na resistência civ..il.Com o fim do mandato francês, os druzos obtiveram direito de representação autônoma tanto no Líbano quanto na Síria. Quanto ao Estado de Israel, foram os druzos da Palestina os únicos árabes a ter reconhecidos os seus direitos de plena cidadania, o que, certamente, não lhes facilita o trânsito entre os outros palestinos. Quanto aos curdos, o problema é mais com- plexo. Geograficamente, .estão localizados, desde tempos remotos, na região montanhosa entre a Ar- mênia e a Mesopotâmia, penetrando no Irã através dos montes Zagros. Pela língua, são indo-europeus e, pela religião, são majoritariamente muçulmanos su- nitas, incluindo minorias cristãs (os assírios), Prati- cam a agricultura e o pastoreio e sempre se distin- guiram como valentes guerreiros, ciosos de sua inde- pendência. Existem, hoje, em tomo de dez milhões de curdos, espalhados pela Turquia, o Iraque, o Irã, a Síria e a URSS. Sua hist6ria, sobretudo, a partir da guerra de 1914-1918, foi marcada por revoltas e in- surreições sangrentas contra seus diferentes domina- dores, principalmente os turcos e os iranianos. Quan- to aos curdos do Iraque, uniram-se ingleses e hache- mitas no sentido de impedir a constituição de um Curdistão íraquiano. A sua hist6ria mais recente não tem sido mais tranqüila e, apôs guerras sucessivas, .') .- ' '" .~'. " r ,) ;t r ~, I, Oriente Médio e o Mundo dos Árabes avanços, tréguas e recuos, num estado permanente de guerra civil, em que o petróleo de Kirkuk se introduziu como mais um fator de agravamento da situação, os curdos obtiveram (1970) o reconheci- mento de um estatuto autônomo nos quadros da República do Iraque. No entanto, a nação curda permanece "irredenta" numa região extremamente conturbada por uma conjuntura internacional instá- vel, destacando-se ai a atuação do Irã (de instiga- dora) e a política dos grupos vinculados aos interes- ses petrolíferos do Iraque. oproblema dos mandatos O mandato inglês sobre o Iraque terminou for- malmente em 1930. Dois anos depois, o Iraque in- gressava na Sociedade das Nações, não sem antes assinar um tratado de aliança permanente com a Inglaterra, prova de sua fidelidade à causa britânica e de infidelidade à causa do povo árabe. Sua posição no conjunto dos interesses ingleses continuava funda- mental na região, sendo apenas sobrepujada pela do Egito. Além do mais, foi ele o primeiro pais do Oriente Médio ase apresentar como produtor de petróleo. A presença britânica e sua ascendência sobre os hachemitas conseguiu paralisar o naciona- lismo iraquiano, na medida em que jogava, como peças de xadrez, com a minoria curda (que constituía um quinto da população total) contra a maioria nô- made e esta contra as burguesias que emergiam nos centros urbanos. (A. Razak Abdel-Kader, Le monde 55 56 Maria Yedda Linhares ;~ i arabe à Ia veille d'un toumant ; Paris, Maspero, 1966, pp. 44-46.) A insurreição que estourou em 1922 contra a presença inglesa resultou, de fato, na instauração de uma monarquia árabe fantoche, ten- do à frente o hachemita Fayçal, frustrado no seu sonho de uma Grande.Síria, Foi ele não apenas im- posto pela Inglaterra, tendo como seu chefe militar um herdeiro de Lawrence, antigo oficial turco deser- tor,-Nuri EI Said, como levou o país sobre o qual se instalava a ser um mero joguete da política inglesa. Do ponto de vista étnico e religioso, não é um país homogêneo: ao norte, os curdos sunitas, no centro e ao sul, árabes mesclados de iranianos chiitas. A agri- cultura nas suas planíceis de aluvião permitira na Antiguidade alimentar possivelmente dez milhões de pessoas. Em 1920, era insuficiente para suprir as necessidades elementares de seus, aproximadamente, dois ou três milhões. Suas estruturas sociais se carac- terizavam pelos extremos desníveis entre as grandes famílias de chefes teocráticos, senhores da terra e detentores do poder, e a grande massa dos deser- dados. No entanto, o petróleo de Mossul-Kirkuk começava a alterar a face do país. Da mesma forma, o desenvolvimento de serviços públicos, a abertura de estradas, o aumento de intercâmbio comercial favo- receram um certo florescimento urbano e o desenvol- vimento de uma intelectualidade nacionalista, mas sem penetração popular. A diplomacia anglo-hache- mita foi complexa: com os sauditas da Arábia, rivais de tradição, tratava-se também de regulamentar os direitos de passagem das caravanas, até chegar a um , l. :- :. t. h ti, I ~ Oriente Médio e o Mundo dos Árabes modus vivendi em 1930 (pacto entre Fayçal e Ibn Saud); contra a Turquia, tratava-se de assegurar a anexação de Mossul ao Iraque; contra a França, tratava-se de apoiar os druzos e suas pretensões na Síria; e, ainda, como que revivendo o projeto da Grande Síria., recriar a unidade árabe do Crescente Fértil (Iraque , Síria, Líbano, Palestina e Transjor- dânia). O tratado anglo-iraquiano de 1930 reconhe- cia à Inglaterra o direito de participar "em todas as questões de política exterior" do país, cabendo ao Iraque fornecer "todas as facilidades para a utili- zação das estradas de ferro, dos rios, portos, campos de aviação e meios de transportes", e, como garan- tia, era a Inglaterra autorizada a ocupar militar- mente alguns aeroportos. Por essa época, a revolta dos assírios de Mossul (minoria cristã) foi cruelmente reprimida, daí a fuga de seus líderes, em grande nú- mero, para a Síria, engrossando as fileiras das mino- rias religiosas em luta pelo respeito à autonomia. A morte de Fayçal (1933) abriu um período de convulsões internas no país, entre nacionalistas e pró-britânicos. No momento em que se iniciou a guerra na Europa, era majoritária no governo a ten- dência britânica e o Iraque, proclamando neutrali- dade face ao conflito, rompeu relações diplomáticas com a Alemanha nazista. Com relação à Transjordânia, permaneceu sem- pre o mais fiel dos aliados britânicos. "Nada a dis- tingue dos países vizinhos", a mesma estepe, as mes- mas tribos, afirma um autor. (Pierre Keller, La Question Arabe, Paris, PUF, 1948, pp. 63 e ss.) 57 58 Maria Yedda Linhares Os limites de seu território de 65 000 km 2 e menos de 3()()OOO habitantes, no seu nascedouro e na sua maio- ria nômades, sem indústria e sem agricultura, eram meramente arbitrários. Sua única "riqueza" era a, pequena pecuária e algum potássio na região do Mar Morto. Sua criação só encontra justificativa nos inte- resses imperiais britânicos do pós-guerra. Sem finan- ças e sem exército, sua receita foi um dom inglês e sua defesa caberia à Legião Árabe também de cria- ção' e direção inglesas. A situação de seu emir, o hachemita Abdala, nem sempre foi fácil face aos chefes das tribos locais e à sua docilidade com rela- ção à Inglaterra. Por outro lado, suas aperturas fi- nanceiras levaram-no, em 1933, a alugar aos sionis- tas parte de suas terras pessoais, o que provocou violentos protestos tanto dos seus concidadãos quan- to dos britânicos. A Transjordânia só terá a sua inde- pendência reconhecida em 1946, com o término do mandato britânico e a proclamação do Reino Hache- mita da Jordânia em 1949. Em 1951, acusado de trai- ção, o rei Abdala foi assassinado em Jerusalém e daí por diante a sua história muda de rumo, em grande parte pela substituição do protetorado inglês pelo americano, quando novas correntes passam a atuar nos destinos do Oriente Médio. O mais complexo, porém, dos mandatos ingle- ses foi o da Palestina. O movimento sionista, nascido em 1880, na Europa central, ganhou vulto em vir- tude dos terríveis massacres de populações judias (pogroms) no império tzarista, o que motivou a emi- gração de centenas de milhares de membros das " "), I. I- -; I' " t, I. )~ II I. t: Oriente Médio e o Mundo dos Árabes comunidades israelitas da Rússia para várias partes do mundo e também para a Palestina sob domínio turco. O anti-semitismo feroz que caracterizou o final do século XIX, fenômeno esse que não era exclusi- vamente russo, mas se estendia ao conjunto da Eu- ropa, motivou o jornalista austríaco Theodor Herz1 a desenvolver a idéia do Estado Judeu (Der Juden- staat), exprimindo o desejo da Sociedade dos Amigos de Sion de encontrar um refúgio para os judeus contra as perseguições que os afligiam de forma inu- mana. Em 1897, reuniu-se, então, em Basiléia, o pri- meiro congresso do sionismo. Tratava-se já aí de pleitear um "lar nacional" judeu e não apenas um refúgio; tal lar só poderia ser na terra de seus ances- trais. A imigração na Palestina, embora proibida pelos turcos, foi contínua nos anos anteriores a 1914 de modo que, ao ter início o conflito na Europa, já se encontravam aí instalados SÜOOO judeus. Com o de- senrolar da guerra, Londres passou a ser a capital do sionismo, onde pontificava a personalidade do emi- nente cientista Chaim Weizmann, com grande pene- tração nos meios políticos britânicos, contando sem- pre com o apoio eficaz do império financeiro do barão de Rothschild. Outro fator que explica, na- quela conjuntura de guerra, a simpatia do governo inglês à causa sionista, foi o fato de que a grande maioria dos judeus residentes, não apenas na Pales- tina como também nos Estados Unidos, era de ori- gem alemã, daí a necessidade de angariar a sua adesão à causa da Inglaterra em guerra contra os impérios alemão e austro-húngaro. Por outro lado, 59 60 58 r- Os 30 ria rm pe , M ,', :1, re ,I: ç~ ,', St,', '"" ç~ :1: h: ,', c! -, çi )1 fi I t. v t I I I, Maria Yedda Linhareshriente Médio e o Mundo dos Árabes as reticências partiam de judeus integrados a outras nações, como a inglesa, e que temiam perder os seus direitos de cidadania naqueles países. Foi o caso, por exemplo, de Edwin Montague, membro do Gabinete britânico, judeu e cidadão britânico radicado. E, ainda, a ansiedade expressa por aqueles, como lord Curzon, com relação à sorte das populações árabes, por sua vez radicadas por muitos séculos na própria Palestina. Nessas condições, as negociações que cul- minaram com a Declaração Balfour, já anterior- mente mencionada, foram lentas e complexas. Sua forma final refletia, na realidade, uma fórmula de compromisso bastante ambíguo: "O Governo de Sua Majestade encara com sim- patia o estabelecimento na Palestina de um lar nacional judeu e envidará seus melhores esfor- ços para facilitar a realização desse objetivo, fi- cando claramente entendido que nada será feito que possa prejudicar os direitos civis e religiosos das comunidades não-judaicas na Palestina nem os direitos
Compartilhar