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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL ROSANA CRISTINA FRANKLIN DA SILVA Serviço Social: os limites e as possibilidades do assistente social no atendimento às famílias de presos do sistema prisional do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2019 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL ROSANA CRISTINA FRANKLIN DA SILVA Serviço Social: os limites e as possibilidades do assistente social no atendimento às famílias de presos do sistema prisional do Rio de Janeiro Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Orientadora: Profª. Doutora Lobelia da Silva Faceira Rio de Janeiro 2019 ROSANA CRISTINA FRANKLIN DA SILVA Serviço Social: os limites e as possibilidades do assistente social no atendimento às famílias de presos do sistema prisional do Rio de Janeiro Aprovado em: _____/_____/_____ _____________________________________________________________ Profa. Dra. Lobelia da Silva Faceira - Orientadora Professora de Graduação do Curso de Serviço Social – UNIRIO ______________________________________________________________ Profa.Dra. Janaina Bilate Martins Professora de Graduação do Curso de Serviço Social – UNIRIO ______________________________________________________________ Profa Dra. Susidarley Fidelis da Mota Professor de Graduação do Curso de Serviço Social – UNIRIO Rio de Janeiro 2019 Agradecimentos Dedico este trabalho à Deus que me fortalece todos os dias, e a toda minha família que, de perto ou de longe acreditaram na minha força e determinação. Aos meus amigos que entenderam e apoiaram a minha escolha de abrir mão de muitos momentos junto com eles em detrimento a minha formação. Agradeço a Escola de Serviço Social da UNIRIO e a todos os docentes com suas reflexões e provocações em sala de aula que me proporcionaram um crescimento não só como discente, mas como pessoa. Em especial a professora doutora Lobelia Faceira, minha orientadora, que percebeu ainda antes que eu mesma tivesse percebido, o meu interesse pelo atendimento às famílias. Sua paciência, eficiência e organização ao mesmo tempo que me transmitia segurança também me deu medo de falhar com a professora e agora amiga. Aos meus colegas de turma que foram uma família e tornaram o meu processo de formação mais leve e prazeroso. Não vou citar nominalmente todos, mas para representá-los exemplarmente, agradeço a minha amiga Lílian Melo, que sempre nos incentivou e motivou com sua alegria e energia contagiante. Não posso deixar de agradecer a todos que, por não acreditarem, me fizeram ser mais determinada e mostrar a mim mesma que, sim eu sou capaz! “Dentre as características do pensamento conservador, destaca-se sua vocação para o passado, terreno, germinativo da inspiração para a interpretação do presente. O passado é experimentado como virtualmente presente. A sociedade tende a ser apreendida como constitutiva de entidades orgânicas, funcionalmente articuladas, cujo modelo é família e a corporação. Os pequenos grupos são tidos como fonte de relações interpessoais, da sociedade e da moralidade. Os elementos sagrados, irracionais, não utilitários da existência, são valorizados, em contraposição ao primado da razão. tradição e costumes legitimam a autoridade. O conservador pensa à base do “nós”; o indivíduo não é uma partícula isolada e atomizada na sociedade, mas é parte de unidades mais amplas, dos grupos sociais básicos Reage a toda igualdade externa, que desconheça as particularidades individuais. Radicaliza-se a individualidade: os homens são seres essencialmente desiguais, porquanto particulares. A liberdade é subjetivada: consiste na habilidade de cada indivíduo em desenvolver-se de acordo com as possibilidades e limitações de sua personalidade, com o núcleo de seu ser O ser mais profundo do homem é sua individualidade e sua essência moral. Assim a liberdade é levada, restritivamente, à esfera privada e subjetiva da vida, enquanto as relações “externas” e sociais devem ser subordinadas aos princípios da ordem, da hierarquia e da disciplina”. Marilda Villela Iamamoto. Resumo A monografia tem o objetivo de estudar o trabalho do assistente Social com famílias no sistema penitenciário do estado do Rio de Janeiro, problematizando os limites e as possibilidades no âmbito do exercício profissional e da consolidação do projeto ético político. O estudo tem os objetivos específicos deestudar a trajetória histórica do Serviço Social no cenário brasileiro; e identificar os limites e possibilidades do trabalho do Assistente Social junto às famílias no sistema penitenciário do Rio de Janeiro. A pesquisa é de natureza qualitativa, sendo desenvolvida por meio de revisão bibliográfica e da análise do documentário “Do lado de fora”, produzido por Paula Zanettini e Mônica Marques, que retrata a situação de seis mulheres, mães, companheiras e esposas de presos do Sistema Prisional do Rio de Janeiro. A pesquisa também realizou a análise de conteúdo do documento “Programa de assistência às famílias, elaborado por Elisabeth Queiroga e Leila Moraes Freire (2004) e que orienta a organização do trabalho do serviço social com famílias no sistema penitenciário. Palavras-chave: Serviço Social - Família - Prisão Abstract This monograph aims to analyze the work of a social assistant towards families dealing with incarceration in the State of Rio de Janeiro's penitentiary system. By that, the scenario's limitations and possibilities are provoked in light of the professional practice and setting of an ethic and political project. Moreover, in order to specifically study the historical path of the Social Work in the Brazilian context, the limits and possibilities of the social assistant's work together with those families were identified. This study is of a bibliographic nature and it's developed primarily based on the analysis of the documentary Do Lado de Fora, produced by Paula Zanettini and Mônica Marques. The film portrays the condition of six women, mothers, partners and wives of inmates in Rio de Janeiro's penitentiary system. Furthermore, the study also counts on the analysis of the document Programa de Assitência às famílias, elaborated by Elisabeth Queiroga and Leila Moraes Freire (2004) which guides the social assistant's work with families in incarceration conditions. Keywords: Social Work - Family - Incarceration Siglas: ABAS - A Associação Brasileira de Assistentes Sociais ABESS - Associação Brasileira de Escolas de Serviço Social ABEPSS - Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social APAS - Associação Profissional de Assistentes Sociais ANAS - Associação Nacional Sindical dos Assistentes Sociais CBAS - Congresso Brasileiro de Assistente Sociais CBCISS - Centro Brasileiro de Cooperação e Intercâmbio de Serviço Social CEAS - Conselho Estadual de Assistência Social CENEAS - Comissão Executiva Nacional de Entidades Sindicais de Assistentes Sociais CFAS - Conselho Federal de Assistentes Sociais CFESS - Conselho Federal de Serviço Social CRAS - Conselhos Regionais de Assistentes Sociais CRESS – Conselho Regional de Serviço Social ECA - Estatuto da Criança e Adolescente ENPESS – Encontro Nacional de Pesquisadoras (es) em Serviço Social LBA - Legião Brasileira de AssistênciaLEP - Lei de Execução Penal LOAS - Lei Orgânica da Assistência Social ONG - Organização Não governamental SEAP - Secretaria de Estado de Administração Penitenciária Sumário Introdução......................................................................................................... 10 1. Dimensões sócio histórica do Serviço Social no Brasil..................................13 1.1. Serviço Social e o Movimento de Reconceituação no cenário brasileiro........19 1.2. A importância do Movimento de Reconceituação do Serviço Social Latino Americano na Renovação do Serviço Social brasileiro: processo de construção de uma nova imagem.............................................................................................................. 24 1.2.1 Perspectiva Renovadora - Intenção de Ruptura........................................ 30 1.3. A construção do Projeto Ético-Político..........................................................42 2. Serviço Social e Família na Contemporaneidade.............................................58 2.1. Família e a relação com o sistema de privação de liberdade ........................65 Considerações Finais......................................................................................... 79 Referência..........................................................................................................84 10 Introdução A motivação e o interesse inicial do Trabalho de Conclusão de Curso foi desenvolver um estudo sobre os limites e aspossibilidades do trabalho dos Assistentes Sociais do sistema prisional em atendimento às famílias dos presos. A partir da minha inserção como bolsista de Iniciação Científica, vinculada ao Projeto de Pesquisa Memória Social e Prisão: reflexões sobre as políticas públicas no âmbito da execução penal, e da minha participação na disciplina de Família no Brasil, comecei a me interessar pelos temas prisão e família. A partir desse interesse inicial, assisti o documentário “Do Lado de Fora”, que relata a situação de mulheres que passam a ter a sua realidade social caracterizada pela restrição da liberdade dos seus maridos, companheiros, filhos e amigos. Coincidentemente, comecei a observar no Bairro em que moro situação similar a apresentada no referido documentário. Por residir próximo ao Presídio Ary1 Franco, no bairro de Água Santa, observar as filas que se formavam ainda na noite anterior a visita, fila essa formada por pessoas de várias idades, em grande maioria mulheres. A partir desta observação empírica, comecei a questionar que pouca coisa mudou desde a produção do documentário no ano de 2004 até 2019, ano em que este Trabalho de Conclusão de Curso é desenvolvido. Neste sentido, o interesse era em desenvolver uma pesquisa teórico empírica na Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro Porém, os limites foram impostos ainda no início da pesquisa, a partir da dificuldade em obter as devidas autorizações, junto a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária - SEAP RJ e ao comitê de ética em pesquisa - A partir deste entrave, reorganizarmos os procedimentos metodológicos, no sentido de problematizar o objeto de estudo por meio de análise documental e revisão bibliográfica. Em função da impossibilidade de construção da pesquisa de campo, o estudo foi realizado inicialmente a partir das publicaçõe de : Behring e Boschetti (2011) , Iamamoto (2014), Mioto (2010), Netto (1999-2015), Ortiz (2010), Faceira e Farias (2015), 1 O Presídio Ary Franco, porta de entrada do sistema penitenciário do Rio de Janeiro, foi inaugurado em 1974 no governo Chagas Freitas quando a cidade do Rio de Janeiro ainda tinha seu território no estado da Guanabara. Fica localizado na Rua Violeta n°15 no bairro da Água Santa, nas proximidades do pedágio da Linha Amarela.https://pt.wikipedia.org/wiki/Pres%C3%ADdio_Ary_Franco (visualizado em 06/07/2019) 11 Sales, Matos e Leal (2006). A pesquisa é de natureza qualitativa, sendo desenvolvida por uma revisão de literatura sobre as categorias teóricas do Serviço Social, Família e Projeto Ético Político. Além da revisão de literatura, realizamos uma análise do documentário “Do Lado de Fora”, e do Programa de Atendimento à família de SEAP. O documentário foi produzido por Paula Zanettini e Mônica Marques em 2004, problematizando a situação de seis mulheres que acompanham suas famílias em privação de liberdade. O programa de atendimento à família da Coordenação de Serviço Social da SEAP foi produzido no mesmo ano.. Logo, consideramos relevante analisar os dois documentos, que foram produzidos no mesmo ano, um abordando o olhar das famílias sobre a prisão, e outro que expressa o esforço de sistematização do trabalho com famílias, realizado pelo Serviço Social e assistentes sociais da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro. Ressaltamos que não temos informação se o programa de atendimento à família foi operacionalizado em todas as unidades prisionais e se o mesmo está em vigor na atualidade. A pesquisa se restringe a análise documental e sua problematização frente a literatura. O programa foi elaborado para estabelecer e instituir novas diretrizes técnicas e políticas para o processo de trabalho dos assistentes sociais junto às famílias do sistema Penitenciário do Rio de Janeiro, e o documentário foi produzido para mostrar a situação das mulheres que visitam os presos no Sistema Prisional do Rio de Janeiro. Utilizamos como técnica de análise de dados a análise de conteúdo que é caracterizada pela atenção ao “nível de realidade que não pode ser quantificado”, pois trabalha com as “ações e relações humanas”(Minayo, 2002). A pesquisa tem o objetivo geral de estudar e problematizar o trabalho do assistente Social com famílias no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro, tendo como objetivos específicos:Estudar a trajetória histórica do Serviço Social no cenário brasileiro; Identificar os limites e as possibilidades do trabalho do Assistente Social junto às famílias no sistema penitenciário do Rio de Janeiro. Gostaríamos de ressaltar ainda a limitação de bibliografias sobre o trabalho com famílias no sistema penitenciário, o que também conferiu limites para o processo de elaboração da presente monografia. O trabalho está dividido em dois capítulos. No primeiro capítulo apresentamos brevemente a históriado Serviço Social no Brasil, destacando o Movimento de 12 Reconceituação e a discussões sobre o fazer profissional como uma profissão produtora e reprodutora das relações sociais, e como o movimento de Intenção de Ruptura foi crucial para a renovação da profissão e para a construção do Projeto Ético Político. No segundo capítulo abordaremos a atuação do Serviço Social com as famílias e os novos arranjos familiares. Em um segundo momento problematizamos os limites e as possibilidades do trabalho com famílias de presos do Sistema Prisional do Rio de Janeiro. 13 1 Dimensão Sócio Histórica do Serviço Social no Brasil. Neste primeiro capítulo foi traçado brevemente a historicidade do Serviço Social no Brasil. Esclarecemos que não é a proposta do capítulo analisar minuciosamente os fatos históricos da profissão no cenário brasileiro, mas destacar momentos que são importantes para a compreensão do trabalho do Serviço Social com famílias do Serviço Social. Ou seja, a proposta do capítulo é rememorar períodos históricos da profissão e as modificações no âmbito do trabalho com famílias. A primeira parte relatando a gênese da profissão no Brasil a partir do trabalho caritativo das mulheres burguesas e da igreja, e a criação do Centro de Estudos da Ação Social (CEAS), considerado o “embrião” doServiço Social, e todo o processo de desenvolvimento da profissão, com a criação da primeira escola do Serviço Social no Brasil e a inclusão dos profissionais no funcionalismo público para atender as demandas do agravamento da „questão social‟, como executores das políticas sociais, que o Estado começa a implantar em atendimento à essas demandas. A importância da criação do CEAS, da Associação Brasileira de Escolas do Serviço Social (ABESS), da Associação Brasileira de Assistentes Sociais (ABAS), entre outras associações no amadurecimento da profissão, e a elaboração do 1º código de Ética que legitimou a profissão sob a Lei nº 1889/1953. Logo após, será abordado o Movimento de Reconceituação no cenário brasileiro contextualizando o Serviço Social no período da ditadura militar. A reformulação da profissão em consonância às necessidades da classe trabalhadora e os seminários que avançam no debate teórico-metodológico da profissão. Finalizando o capítulo, falaremos sobre o importante Movimento de Reconceituação e Renovação do Serviço Social para construção de uma nova imagem da profissão e, abordando a análise de Netto (2015) sobre literatura do Serviço Social de Iamamoto e Raul de Carvalho (2014), literatura que utilizou método dialético de Marx traçando a historicidade do Serviço Social, e discutindo a consonância do Serviço Social com a pluralidade da vida social e a construção do Projeto Ético-Político do Serviço Social. 14 O Serviço Social brasileiro surge no contexto histórico da transição do capital concorrencial para a fase monopolista, quando o Estado passa a intervir mais fortemente no processo econômico e permite a ampliação da acumulação de capital, ampliando também as contradições trazidas por elas, implantando políticas que acabam reproduzindo a desigualdade social. Ainda na década de 1920 surgem as instituições assitenciais onde as atividades de caridade desenvolvidas pelas mulheres brasileiras das famílias burguesas em prol dos “pobres” é desenvolvida de de forma organizada e com uma importante contribuição do Estado, possibilitam uma ampliação das obras sociais realizadas. Iamamoto destaca duas instituições criadas neste contexto: a Associação das Senhoras Brasileiras, criada em 1923 no Rio de janeiro, e a Liga das Senhoras Católicas, em 1923 em São Paulo. Ambas surgem para atender as demandas do crescimento capitalista, e segundo a autora, são de extrema importância na ação que pode ser chamada como o “embrião” do Serviço Social brasileiro. A importância dessas instituições e obras, e de sua centralização, a partir da cúpula da hierarquia, não pode ser subestimada na análise da gênese do Serviço Social do Brasil. Se sua ação concreta é limitada, se seu conteúdo é assistencial e paternalista, será a partir do seu lento desenvolvimento que se criarão as bases materiais e organizacionais, e principalmente humanas, que a partir da década seguinte permitirão a expansão da Ação Social e o surgimento das primeiras escolas de Serviço Social. (IAMAMOTO, 2014, p.177) A partir dessas ações surge o Centro de Estudos e Ação Social - CEAS, considerado o começo da profissionalização do Serviço Social no Brasil. [...] o trabalho de organização e preparação dos leigos se apóia numa base social feminina de origem burguesa, respaldada por Assistentes Sociais belgas que oferecem a sua experiência para possibilitar a fundação da primeira escola católica do serviço Social. (CASTRO, 2011, P.102). Percebe-se então como a origem do Serviço Social brasileiro está imbricado à igreja católica e seu posicionamento moralizador. A profissão surge no momento “maduro” do capital exigindo do Estado uma ação, exigência essa também solicitada pela classe trabalhadora, e torna-se institucional entre as décadas de 1930-1940. 15 Em 1936 a primeira Escola de Serviço Social do Brasil é criada por iniciativa da Maria Kiehl e Albertina Ramos, que se formaram na Escola de Serviço Social de Bruxelas. O curso era técnico e com influência neotomista2 que imputa à sociedade uma opinião formulada de “bem comum” e fundamentou as primeiras escolas da época com essa herança conservadora. A partir dos anos de 1940, com a aproximação do Serviço Social norte americano, o Serviço Social brasileiro começa a apresentar mudanças principalmente no que tange ao conservadorismo católico do seu início, trazendo uma reorganização da profissão. Esta reorganização vem atender o desenvolvimento capitalista qualificando-se para os diversos campos de atuação, visando atender às solicitações de um Estado que inicia um novo tipo de intervenção na questão social. A partir daí o profissional do Serviço Social é legitimado não só pela sua remuneração salarial, mas também pela ramificação sociotécnica do trabalho inserido o então emergente Serviço Social brasileiro à matriz positivista, ampliando suas referências técnicas para a profissão. Tal processo é denominado por Iamamoto (1982), como “arranjo teórico doutrinário”, que se caracteriza pelo discurso humanista cristão com o suporte técnico científico da teoria social positivista. Na década de 1940, os assistentes sociais já são incluídos pelo Estado no funcionalismo público, porém as ações sociais ainda eram implementadas pelo setor privado sob o “patrocínio” da igreja e o surgimento das grandes instituições sociais. O Estado surge como mediador, mas ao mesmo tempo se “isentando” da responsabilidade no que tange ao agravamento da „questão social‟. Com o aumento das demandas por esse “agravamento”, uma ação conjunta entre o Estado, a igreja e a classe dominante é articulada. O Estado então passa a criar políticas sociais para responder à essas questões. Neste momento começa a se evidenciar as organizações da classe operária, quando os trabalhadores sentem-se ameaçados nas fábricas. O Estado passa a intervir 2 O neotomismo é uma corrente filosófica surgida no século XIX com o objetivo de reviver a filosofia de Santo Tomás de Aquino, do século XIII, o tomismo, a fim de atender aos problemas contemporâneos. A condição de exploração e miséria em que vivem os operários na Europa do final do século XIX, decorrentes da industrialização e do desenvolvimento do capitalismo, leva a Igreja a se posicionar, pois este momento era visto por esta como de crise e decadência da moral e dos costumes cristãos. A Igreja vê, então, no ressurgimento das ideias de Tomás de Aquino o caminho para o enfrentamento desta realidade.(https://pt.wikipedia.org/wiki/Neoescol, visualizado em 06/07/2019) 16 através da igreja, criando ações de assistência, e, a primeira delas é a Legião Brasileira de Assistência (LBA), no governo Vargas em 1942. Em 1946 foi criada a Associação Brasileira das Escolas do Serviço Social (ABESS), como veremos mais adiante. No ano anterior, é realizado no Chile, o 1º Congresso Pan- Americano de Serviço Social, com representatividade de 14 delegações estrangeiras, entre elas a do Brasil. É neste Congresso que o Serviço Social começa a mostrar um posicionamento político e ideológico em supremacia, mas ainda com um viés de “neutralidade” diante da relação capital-trabalho. É importante enfatizar, que o Brasil já se apresentava em posição mais “adiantada” na defesa de um Serviço Social que atendesse as classes operárias. [...] segundo a expressão de um dos participantes da delegação oficial brasileira – que se posicionava a favor de um Serviço Social ao lado dos operários, afirmando, inclusive, que as organizações operárias são as únicas legítimas fontes mantenedoras dos Assistentes Sociais. Prevalece amplamente a posição que afirma o caráter de neutralidade, conciliação entre o capital e o trabalho, ação educativa e valorização integral do homem como fundamento do Serviço Social, e que este deve contar com a colaboração dos setores patronal eoperária [...] (IAMAMOTO, 2014, p.347). No mesmo Congresso foi discutido também, como tema central e mais importante, a formação para o Serviço Social, buscando definições de normas para o funcionamento das escolas especializadas, partindo-se de um “padrão mínimo de exigência”, condições essas que eram: currículo básico, plano de trabalho prático entre outros, que fosse representativo para todos. Com isso, a luta pela regulamentação do ensino e o reconhecimento da profissão foram de profunda importância para a criação da Associação Brasileira de Escolas do Serviço Social (ABESS) e da Associação Brasileira de Assistentes Sociais (ABAS), que juntas tiveram um importante papel no desenvolvimento do Serviço Social no Brasil, e na instauração do primeiro Código de Ética Profissional dos Assistentes Sociais brasileiros. Em 1947 o CEAS organiza o primeiro Congresso Brasileiro de Serviço Social, reunindo representantes de entidades particulares e governamentais ligados ao Serviço Social e à Assistência, sendo assim uma preliminar ao 2º Congresso Pan-Americano que aconteceria no Brasil em 1949. Segundo Iamamoto, “A leitura dos Anais do Primeiro Congresso Brasileiro de Serviço Social mostra a ausência de uma temática central”, foi 17 apresentado um grande número de temas a serem discutidos, sem que se chegasse a um consenso central. Desta forma, os debates foram direcionados de forma a atender os “seis grandes campos” (Serviço Social e Família, Serviço Social de Menores, Serviço Social de Educação Popular e Lazeres, Serviço Social Médico, Serviço Social da Indústria, Agricultura e Comércio, e os Agentes do Serviço Social). “Essa diversidade de temas e de experiências – permitida pela organização bastante aberta do Congresso – é bem reflexo da situação do Serviço Social do Brasil”, conclui a autora. No mesmo ano, em Assembléia Geral da Associação Brasileira de Assistentes Sociais (ABAS), é aprovado o 1º Código de Ética profissional do Assistente Social, que é considerado um marco do Serviço Social em função de atribuir legitimidade à profissão, caracterizando- se como código pautado e orientado por princípios éticos religiosos, com respeito às Leis de Deus. Prima pela manutenção do sigilo absoluto, quase confessional, trata dos usuários como “pessoa humanas desajustadas” ou de forma individualista que deveria ser adaptadas à sociedade e a aceitar sua condição social. Todas essas características no Primeiro Código de Ética mantém a profissão ainda com teor cristão assistencialista e direciona seus profissionais a ter conduta espelhada nas pioneiras do Serviço Social e apresenta apenas os deveres do Assistente Social no seu relacionamento com os colegas e na organização de trabalho. Dois anos depois, em 1949, o 2º Congresso Pan-Americano de Serviço Social é realizado no Rio de Janeiro, e tem como tema central a Família - “O Serviço Social e a Família”(IAMAMOTO, 2014, p.351) onde pouco é apresentado de novo, porém já com um discurso menos apostolar, mas com relevante discurso psicologizante da técnica e com definição dos atributos para um Assistente Social: “deve ser equilibrado psico- afetivamente para eliminar os conflitos e não ser causa dos mesmos”(IAMAMOTO, 2014, p.351), e passa a ser denominado como um profissional “utilizador das técnicas de base científica, nos problemas de ajustamento do homem à coletividade e de integração do mesmo em si próprio”. Neste momento também já passa a enfatizar a importância da instrumentalidade do trabalho, elencando a entrevista como o principal instrumento. Inicia-se aí um afastamento do Serviço Social americano, ajustando-se à situação brasileira, buscando uma reformulação curricular, inserindo matérias como a economia, 18 sociologia urbana e rural, planejamento e psicologia social, estudo sobre pesquisa social, planejamento etc. Já nos anos de 1950, o chamado Serviço Social Tradicional traça sua ação através de um viés de formação social, moralizadora e intelectual das famílias, culpabilizando o sujeito pela sua condição. Baseava-se em atendimentos individualizados e de longa duração, buscando “adequar” o indivíduo ao comportamento moral esperado. Era o que pautava o Serviço Social de Casos, onde o “cliente”3 era submetido a um tratamento, já que seus problemas de adaptação com o chamado “normal” para a sociedade eram rotulados como “doença” e o sujeito tinha que entender a sua anomalia. O problema nunca era observado pela sua causa, isto é, de forma ampla, mas sim pelo “desajuste” do sujeito à sociedade. No período de consolidação da profissão, o trabalho com as famílias foi impulsionado através do desenvolvimento de técnicas que teve como direcionamento o conceitual do Serviço social americano - Método do serviço Social de Casos, que objetivava o “ajustamento” dos indivíduos ao seu meio social. Neste período os “clientes” eram submetidos a um método de ações imediatistas e individualizados que culpabiliza o “cliente”, sem levar em consideração as interferências do meio onde estavam inseridos. Partindo desta perspectiva para acessar auxílios e serviços oferecidos pelas instituições, os indivíduos e as famílias, após várias avaliações, eram orientados a realizar mudanças no seu modo de vida para se ajustarem ao modo de vida social estabelecido, consolidando assim uma perspectiva moralizadora onde os estudos sociais eram utilizados como instrumentos de julgamento moral e a real condição da família não eram considerados, o auxílio público só era disponibilizado temporariamente e apenas depois de comprovado e ter sido esgotado todas as possibilidades de utilização dos “recursos próprios do ambiente material e imaterial” (MIOTO, 210). Desta forma e sob essa orientação, os instrumentos e técnicas utilizados pelos assistentes sociais eram direcionados ao controle das famílias junto a um processo burocratizado que abrange tanto os procedimentos quanto à regulamentação para seus atendimentos. 3 Terminologia utilizada pelos assistentes sociais na época, aos usuários atendidos. 19 Apesar da vertente tradicional impressa no atendimento, o Serviço Social consegue avançar no que se refere à legitimação da profissão, com a Lei nº 1.889, de 13 de junho de 1953 que dispõe sobre a estrutura do curso Superior de Serviço Social e o direito a diplomação dos agentes sociais em Assistentes Sociais. No ano seguinte o curso de Serviço Social passa a ter um currículo mínimo, resultante da luta das Associações ABESS e ABAS, o que foi de extrema importância para a formação dos profissionais que se formariam a partir daí. Nos anos de 1960-70, a autocracia burguesa ditava as regras quanto à formação e atuação dos Assistentes Sociais através das Universidades Católicas com seu conservadorismo e fortalecido pela política social e econômica implantada pela ditadura. É nesse cenário que o Serviço Social Latino Americano começa a esquadrinhar uma ruptura com a herança conservadora. As lutas sociais que se ampliaram por toda América Latina refletiram também nas universidades e estendem-se por várias vertentes sociais, trazendo um novo questionamento à profissão. Tais questões perpassam pelos fundamentos da profissão, assim como seu comprometimento ético, político e técnico-operativo, como também os fundamentos da formação profissional. Contudo, cada país tinha e tem sua particularidade, porém, a unidade de pensamento no esforço de estruturar um Serviço Social latino americano sem a interferência de métodos e teorias estranhos a sua realidade, buscando o comprometimento com as lutas sociais dos “oprimidos” e pela renovação social e dos métodos científicos para as atividades sociais. E assim surgia um movimento que teve início no 1º Seminário Regional Latino-Americano de Serviço Social, como veremos a seguir. 1.1 Serviço Sociale o Movimento de Reconceituação no cenário brasileiro Com a retomada do desenvolvimentismo após o golpe militar de 1964, o avanço do crescimento industrial foi aprofundando desigualdade de classes. A partir daí, o Serviço Social vê a necessidade de reformulação de sua formação e ação para atender às novas necessidades da classe trabalhadora. Iniciam-se aí as primeiras manifestações de uma corrente de pensamento de um grupo ainda em minoria, que começam a 20 vislumbrar a necessidade de uma mudança na “prática da instituição Serviço Social”. Pelo cenário político que se apresentava naquele momento, essas manifestações não se espraiam pela categoria e ainda são muito restritas. Além disso, o discurso conservador ainda é hegemônico entre os Assistentes Sociais. A ruptura com a herança conservadora se expressa como uma procura, por uma luta por alcançar novas bases de legitimidade da ação profissional do Assistente Social, que, reconhecendo as contradições sociais presentes nas condições do exercício profissional, busca colocar- se, objetivamente, a serviço dos interesses dos usuários, isto é, dos setores dominados da sociedade. Não se reproduz a um movimento “interno” da profissão. Faz parte de um movimento social mais geral, determinado pelo confronto e a correlação de forças entre as classes fundamentais da sociedade, o que não exclui a responsabilidade da categoria pelo rumo dado às suas atividades e pela forma de conduzi-las. (IAMAMOTO, 2013, p.42). Foi a partir do I Seminário Regional Latino-Americano de Serviço Social, realizado em Porto Alegre em 1965, que desencadeou o Movimento de Reconceituação na América Latina e no Brasil. A Reconceituação questionava o papel dos assistentes sociais no processo de superação da condição de subdesenvolvimento dos países latino-americanos em um cenário no qual os projetos desenvolvimentistas nacionais de corte democrático-liberal davam claros sinais de ineficiência e incompatibilidade com os reais interesses e necessidades da população […] Questionavam, portanto a condição e a posição dos países latino-americanos no contexto de dominação burguesa está fundamentada no grande monopólio internacional. Ou seja, pode-se afirmar que a Reconceituação foi, indubitavelmente, um fenômeno organicamente vinculado à conjuntura da sua época marcada mundialmente por uma crise em precedentes da ordem capitalista em sua fase monopólica. (ORTIZ, 2010, p.162) Esse movimento trouxe uma visão crítica sobre a profissão levando a reflexões sobre o impacto causado pela consolidação do capitalismo monopolista sob a classe trabalhadora dos países em condições de subalternidade. Com toda efervescência política do país, na América Latina e no mundo, com a mudança moral e cultural que começava a avançar, o Serviço Social começa a vislumbrar mudanças nos seus valores éticos e na atuação dos seus profissionais, despertando assim uma consciência crítica na profissão, e neste mesmo ano, foi definido pelo Conselho Federal dos Assistentes Sociais, o Segundo Código de Ética (1965). Um código que já aceita o pluralismo de seus profissionais e da sociedade, 21 identificando um novo perfil profissional que até então era totalmente voltado às pioneiras formadas pela igreja católica. Passa a certificar os Assistentes Sociais como profissionais liberais e entende que o sigilo profissional é primordial, porém, abrem precedentes quando o mesmo pode evitar um dano grave ao “cliente”, ao assistente social e ou a terceiros. Objetiva o cumprimento dos deveres cívicos sempre enfatizando a pátria e a humanidade, ainda envoltas no tradicionalismo e conservadorismo. Neste código de ética a necessidade do aperfeiçoamento profissional visando o progresso e a atualização do Serviço Social torna-se imprescindível. No que tange aos atendimentos e, dentro da lógica do conservadorismo, trata as categorias Clientes, Grupos e Comunidades, de forma a se manter um “julgamento” justo para solução dos “problemas sociais”. Em relação aos deveres dos profissionais, direcionam para um trabalho pela busca do “bem comum”, do estabelecimento da “ordem social”, contribuição para o “atenuamento das diferenças sociais” e defesa dos programas nacionais e internacionais. Com isso, o dever dos assistentes sociais ainda colocava-os em uma posição de subordinação a instituição e o caráter prioritário era a produtividade, isto é, completamente a serviço do capital; uma das marcas da contradição da profissão. No Brasil, o projeto de desenvolvimento adotado pela ditadura, sobretudo associado aos grandes monopólios de origem norte americana, buscando atrair investimento externo objetivando um maior desenvolvimento industrial e inserir a economia brasileira na nova divisão internacional do trabalho, foi adotado uma política de arrocho salarial aumentando assim a exploração da força de trabalho que levou à “queda do padrão de vida dos trabalhadores”, aumentando as expressões da “questão social”. Para o enfrentamento da “questão social”, a ditadura utilizou-se do Estado e o empresariado como instrumentos para as práticas de repressão e de assistencialismo. Contraditoriamente, o Estado e as empresas privadas são os grandes empregadores do Serviço Social, o que reforçava o conservadorismo na atuação profissional imposto por estas instituições. O processo de Reconceituação do Serviço Social brasileiro vem acompanhando o movimento latino americano - com a intensa efervescência política do continente que sofre com o subjugo dos países periférico dependente imposto pelos países centrais, mas sempre de acordo com as particularidades brasileiras no âmbito do avanço do 22 capitalismo, que gera uma forma própria de responder às demandas. Mesmo com esse movimento, ainda há um veio muito forte de elementos tradicionais que contraditoriamente ainda foram mantidos por trazer em sua origem de formação os princípios conservadores e justificadores da ordem social burguesa. Toda essa movimentação começa a emergir nos meados nos anos de 1960 com a efervescência do momento político em que o país estava inserido. Com o golpe de 1964 e o estabelecimento da ditadura, a categoria já mostra um engajamento político próprio, embora sempre em disputa com o eixo da vertente tradicionalista. A ditadura chancelou o chamado Serviço Social tradicional, buscando conter qualquer posicionamento/ação mais combativos, garantindo a atuação de profissionais funcionais ao sistema. Contraditoriamente, este processo trouxe uma ampliação na área de atuação profissional (mesmo que para reprodução de controle social já imposta pelo Estado), mas elevando a profissão do Serviço Social a uma formação acadêmica de nível superior. Com o chamado “milagre econômico” ocorrido da época, as empresas privadas passam a ser o grande empregador dos assistentes sociais com o intuito de controlar e vigiar a força de trabalho. O mesmo se deu com as organizações filantrópicas que se viram com dificuldades de atender às crescentes demandas das expressões da “questão social”, que, naquele momento, se agravou no contexto da ditadura. Não podemos negar que o mercado de trabalho para a categoria se ampliou sensivelmente diante desse contexto. Com essa ampliação de mercado surge a necessidade de um “novo” perfil profissional, mais “propositivo” para atender as demandas, porém corroborando com a manutenção funcional para o capitalismo. A partir daí o curso superior de Serviço social é inserido, com a reforma de 1968. A partir do Movimento de Reconceituação uma nova imagem começa a ser “desenhada”, pensando em um profissional com uma atuação voltada aos interesses da classe trabalhadora, com uma “vinculação orgânica” às demandas dos trabalhadores e com a luta para garantia de direitos. Para Netto (2015), nos anos de 1960 e especialmente pós-64, a “Renovação do Serviço Social” foi o marcomais importante para a profissão. A partir da aproximação do Serviço Social com as bases da teoria social de Marx, inicia-se um avanço no debate teórico-metodológico da profissão, o que levou a uma 23 “nova forma de pensar e trabalhar a família”. O novo paradigma traz a necessidade de considerar as necessidades apresentadas pelos “sujeitos singulares”, onde não se identifica mais o problema individual/família, como Mioto descreve. [...] tais demandas são interpretadas como expressão de necessidades humanas não satisfeitas, decorrentes da desigualdade social própria da organização capitalista. Assim, torna-se possível desvincular-se da ideia que as necessidades expressas nas famílias e pelas famílias são “casos de família” e, por conseguinte, as questões que afligem as famílias não se circunscrevem no campo da competência ou incompetência desses sujeitos. (MIOTO, 2010, p. 165) A outra forma é utilizando-se de uma ação profissional pensada, uma ação comprometida com a transformação social. [...] redimensionamento exigido em relação à ação profissional, tanto no que diz respeito ao seu alcance como a sua direcionalidade. Com a possibilidade de postular que as soluções dos problemas expressos na família e pela família, só se efetivem, de fato, com a transformação das bases de produção e reprodução das relações sociais - superação do modo de produção capitalista - exige-se que a ação profissional seja pensada na sua teologia. (MIOTO, 2010, p.165) Partindo desse novo direcionamento há o reconhecimento do movimento sócio- histórico que deve ser considerado pelo Serviço Social, que passa a mediar às demandas com encaminhamentos pautados na categoria de Direitos e Cidadania. Os direitos, entendidos como caminhos para concretização da cidadania por meio de políticas sociais orientadas para o atendimento das necessidades humanas, e o Estado reconhecido como instância responsável por essa garantia e atenção (MIOTO, apud VIEIRA, 2004; LIMA, 2006). A teoria social crítica adotada trouxe um desenvolvimento e o reconhecimento do Serviço Social brasileiro como área de conhecimento. Porém a família não alcançou status de objeto de estudo de forma privilegiada no âmbito da profissão, o que causou efeitos insatisfatórios, uma vez que a intervenção com família não seria problematizado dentro da nova matriz teórica crítica que estava sendo adotada pela profissão. De acordo com essa determinação houve um “choque” no trabalho de campo dos (as) assistentes sociais já que tanto nas instituições públicas quanto nas privadas, as famílias continuaram na condição de sujeito privilegiados de intervenção, tornando esse episódio mais uma das contradições da profissão. Tal debate foi de grande efervescência para a 24 teoria social crítica (Mioto, 2010), cita Costa (apud GOULART, 1996) a família é vista “como um desvio de energia e de conhecimento que poderiam ser canalizados para setores dotados de maior capacidade de respostas em termos de transformação das relações sociais e em seu conjunto”. Estas e outras inquietações da categoria acompanharam os movimentos que viriam a seguir com a busca de não só uma nova imagem da profissão, mas, sobretudo pela incorporação da dimensão histórica na garantia e defesa de direitos. 1.2 A importância do Movimento de Reconceituação4 do Serviço Social Latino Americana na Renovação5 do Serviço Social brasileiro: processo de construção de uma nova imagem A Reconceituação significou, segundo Netto (1991), “um expressivo avanço, pois permitiu a identificação do estatuto teórico como reconhecimento do assistente social como intelectual”. Com a Renovação o investimento teórico foi priorizado dando maior importância à “troca” entre o Serviço Social e os demais campos do conhecimento, já como interlocutor no processo. O Serviço Social passa também a ser ponto fundamental no desenvolvimento de pesquisas fortalecendo assim as vanguardas voltadas à investigação. Com isso, vários congressos vão surgindo como novos espaços, trazendo novos olhares à profissão. [...]esses eventos [...] deixam de ser espaços de consagração consensuais e se revelam território de polêmica. O papel das instâncias organizativas, pois, também se modifica: entidades que tradicionalmente tinham referendadas as suas propostas, neste processo vêem-se em xeque e são obrigadas a estabelecer uma nova sintonia com parcelas importantes da categoria profissional - tanto no que diz respeito a questõescorporativas como, e este é o ponto importante, a temática de outra natureza [teórica, ideológica e política] (NETTO, 1991, p.134) 4 O Movimento de Reconceituação é denominado pela contestação ao tradicionalismo profissional, implicou um questionamento global da profissão; de seus fundamentos ídeos-teóricos, de suas raízes sociopolíticas, da direção social da prática profissional e de seu modus operandi.Iamamoto (2010, p. 205) 5 Renovação é o conjunto de características novas, que no marco das construções da autocracia burguesa, o Serviço Social articulou, à base do rearranjo de suas tradições[...], procurando investir-se como instituição de natureza profissional dotada de legitimação prática, através de respostas e demandas sociais e da sua sistematização, e de valorização teórica, mediante a remissão às teorias e disciplinas sociais. Netto(2005, p.131) 25 É sob esse movimento de mobilização que acontecem quatro seminários importantíssimos para o Movimento de Reconceituação que começa aos poucos a passar da fase embrionária. Estes seminários foram promovidos pelo Centro Brasileiro de Cooperação e Intercâmbio de Serviços Sociais (CBCISS), que ficou responsável não só pela organização, mas também pela produção e publicação dos documentos produzidos. O 1º Seminário de Teorização do Serviço Social, realizado em Araxá-MG em 1967, sob uma perspectiva modernizadora, foi à primeira expressão do Movimento de Reconceituação com início de uma transição entre o tradicional e o moderno, com a diferenciação entre os níveis de intervenção classificados entre macros sociais e micros sociais, onde o macro social define o perfil do “novo” profissional, mais voltado para necessidades de formulações de políticas sociais, para que os Assistentes Sociais passem a formular e planejar políticas para o desenvolvimento humano e não fiquem apenas por executá-las. Já nos micros sociais, o profissional se mantém numa posição apenas executora com uma relação direta com os usuários dos serviços. Outra abordagem do seminário é quanto à “perspectiva da globalidade” em relação ao indivíduo entendendo que ele, o indivíduo, “é o ator que internaliza normas e valores do seu meio social, desenvolvendo assim um comportamento adaptativo”(NETTO, 2015, p. 227). Desta forma não se pode analisar apenas o indivíduo sem contextualizar o cenário social onde ele está inserido. O documento enfatiza que fatores como a infraestrutura social é de importância vital, pois trata de saúde, educação, habitação e serviços sociais e devem ser tratados com a mesma prioridade e igualdade dos fatores de infraestrutura econômica e física. E essas são alguns dos vetores teórico-metodológicos que compõem o Documento de Araxá. O 2º Seminário do Serviço Social foi realizado em Teresópoli-RJ, no ano de 1970. O Seminário de Teresópolis foi precedido de sete encontros regionais realizados em 1968 para analisar o Documento de Araxá, e foi pautado pela Metodologia do Serviço Social, traçando a qualificação do assistente social. Em Teresópolis não foi produzido um documento final, mas a partir das discussões e reflexões realizadas pelos dois grupos de estudos formados pelos 35 participantes do seminário que tiveram seu enfoque na metodologia da prática, apesar das diferenças na linha de pensamentos, 26 houve um grande avanço a partir dodenominador comum que norteou a discussão, a “concepção científica da prática”, a “aplicação da metodologia”. Há um nítido avanço em face dos resultados que o Documento de Araxá consagrou: se, neste, a ênfase na “teorização” conseguira atrelar as concepções profissionais ao projeto da “modernização conservadora”, a reflexão desenvolvida em Teresópolis configura, no privilégio à questão da “metodologia”, a exclusão de viés tendentes a problematizar a inserção do Serviço Social nas fronteiras dos complexos institucional- organizacionais que promoviam o processo da “modernização conservadora”...]em Teresópolis: o que está no centro das formulações, aqui, não são teorias, valores, fins e legitimidade (antes, esses componentes são dados como tácitos), mas sim a determinação de formas instrumentais capazes de garantir uma eficácia da ação profissional apta a ser reconhecida como tal pelos complexos institucional-organizacionais. Em Araxá, corao-se uma indicação do sentido sociotécnico do Serviço Social; em Teresópolis, cristaliza-se a operacionalidade deste sentido: obtém-se a evicção de qualquer tematização conducente a colocá-lo em questão, consolida-se o seu trato como conjunto sistematizado de procedimentos prático-imediatos suscetíveis de administração tecnoburocrática. (NETTO, 2015,p.244-245 - grifos do autor) Como não houve a elaboração de um documento final, o Centro Brasileiro de Cooperação e Intercâmbio de Serviços Sociais, publicou os relatórios de cada grupo separadamente, com visões diferentes, porém com o mesmo enfoque; a requalificação profissional e a redefinição do papel sociotécnico do assistente social. A Reconceituação do Serviço Social trouxe a construção de uma nova imagem da profissão. Um processo que começa com a Renovação do Serviço Social com mudanças na base da formação profissional do assistente social transformando a profissão e dando um novo posicionamento na divisão do trabalho, sua visão sobre as novas demandas passando a considerar a realidade. Dependem, fundamentalmente, do grau de maturação e das formas assumidas pelos embates das classes sociais subalternas como o bloco do poder no enfrentamento da “questão social” no capitalismo monopolista dependem, ainda, do caráter das políticas do Estado, que articuladas ao contexto internacional, vão atribuir especificidades à configuração do Serviço Social na divisão social do trabalho. (IAMAMOTO, 2013, P.101). Neste período, anos de 1970, a família, instituição reprodutora de forças produtivas e de novas forças de trabalho, evidencia o seu importante papel também de produção doméstica que, para além de gerar e manter um contingente de força de 27 trabalho que posteriormente será absorvido pelo modo de produção capitalista. Porém, para que essa absorção seja concretizada é necessário que esta mão de obra, além de condições “físicas”, também tenha condições intelectuais mínimas para a linha de produção. Com essa inserção da família como produtora e reprodutora de vida e da produção social e privativa, é recriada pela família a divisão social do trabalho que confere aos homens a produção social, realizada através da força de trabalho vendida e, para a mulher, a produção privada com a criação dos filhos, os trabalhos domésticos, etc. Com a deflagração da crise econômica mundial, a partir dos fins dos anos de 1970, pela sua importância na preservação do modo de produção a família começa a ser revista como agente privativo de proteção social, fazendo com que os órgãos governamentais comecem a desenvolver medidas de apoio familiar. Este apoio começa a ser implantado com foco especial às crianças, utilizando-se de medidas como aconselhamento e auxílios como nova forma de “ajuda” material aos pais, ampliação das visitas domiciliares realizadas por agentes oficiais, programas de redução da pobreza infantil, políticas de valorização da vida doméstica, etc., todas essas medidas foram visando à desagregação familiar. Vários instrumentos de conscientização utilizados para o combate à violência doméstica, à vadiagem, gravidez na adolescência, drogas e aos abusos sexuais. Alguns países programaram políticas que disponibilizavam suporte financeiro às famílias e outros optaram pela defesa da manutenção da mulher como trabalhadora no tradicional “papel de dona de casa”. Mesmo nesse contexto, com tantas políticas voltadas às famílias em alguns países, e a redescoberta da instituição família como uma importante rede de proteção, nem todos os países “capitalistas centrais” adotam essas políticas, isso reflete nos países periféricos como o Brasil. O 3º Seminário realizado em Sumaré, foi realizado em 1978 no Centro de Estudos do Sumaré, discutisse neste momento uma visão metodológica científica da construção e aplicação do Serviço Social buscando uma compreensão do todo através de uma interpretação fenomenológica do estudo científico do Serviço Social, já com uma abordagem dialética. A produção dos documentos durante o seminário ficou limitada aos participantes que ministravam cursos de Mestrado no Brasil; São Paulo, Rio de janeiro e Porto Alegre. O seminário foi construído a partir de uma pesquisa realizada em 1976 para saber que 28 temática deveria ser abordada para dar continuidade ao documento iniciado em Araxá. Com essa pesquisa, foi proposto que os documentos bases seriam produzidos a partir dos temas Serviço Sociais e Cientificidade, Fenomenologia e Dialética, desta forma conceituaram-se neste documento a cientificidade para o conhecimento da realidade, a fenomenologia como metodologia de análise dos fatos reais e das ações proposta (teoria-ação-teoria), e ainda a fenomenologia como “Ciência do vivido”, de Husserl6. Neste documento ficou destacado que o Movimento de Reconceituação evidenciou as contradições do Serviço Social através de uma nova visão que se opunha ao tradicionalismo, e por esse motivo se faz necessário a revisão teórica metodológica, e para isso apresentou-se as dialéticas metodológica fenomenológica. Em contrapartida, ratifica-se o Serviço Social como uma ferramenta do Estado para manutenção e reprodução do sistema de produção capitalista, e ficou aprovado o método dialético como referencial das ações e interpretações do profissional. A necessidade de pesquisar uma nova perspectiva teórica e metodológica que norteasse o assistente social para o desenvolvimento do seu trabalho e com esse novo pensamento, perceber o Serviço Social como uma profissão de transformação com posicionamento crítico da categoria. Sumaré não foi um seminário “conclusivo”, mas sim de uma abertura para novos debates e discussões para ampliação da compreensão dos assistentes sociais em relação à profissão e ao cenário brasileiro da época. O 4º Seminário, do Alto da Boa Vista é realizado em 1984, juntamente com o seminário anterior, Sumaré, apesar dos seus avanços, trazem como características principais o que José Paulo Netto chama de reatualização do conservadorismo. Uma vertente renovadora que é apresentada na tese de livre-docência de Anna Augusta de Almeida (1978), onde é apresentada uma “nova proposta” ainda remetendo-se aos documentos produzidos no seminário anterior. De acordo com o autor, a forma „simplista‟ utilizada pelos conferencistas nas suas intervenções, ficou sendo o “ponto central” do encontro, e é nítido percebê-lo no material publicado a partir do encontro. Há também o que o autor denomina de “reatualização do conservadorismo”, que permeia a perspectiva modernizadora. 6 Husserl foi um matemático e filósofoalemão ] que estabeleceu a escola da fenomenologia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Edmund_Husserl (visitado em 16/06/2019) 29 O lastro conservador não foi erradicado do Serviço Social pela perspectiva modernizadora [...] ela explorou particularmente o seu vetor reformista e subordinouas suas expressões às condições das novas exigências que a “modernização conservadora” colocou no exercício da profissão. (NETTO, 2015, p.259) Porém, como Netto bem destaca o “conjunto de processos sócio-histórico e teórico-ideológicos”, que começam a ser discutidos a partir de 1960, mais o acúmulo adquirido pelo Serviço Social e o momento político e cultural do país (1960-1970), arrefeceu, porém não acaba com o conservadorismo que é apresentado com uma “nova roupagem”. Desta forma, no Seminário de Sumaré e Alto da Boa Vista encerram o ciclo de seminários que foram de suma importância para o Movimento de Reconceituação iniciado nos anos de 1960, com os dois primeiros seminários Araxá e Teresópolis, apontando uma perspectiva modernizadora ao Serviço Social, e os dois últimos, Sumaré e Alto da Boa Vista, com uma proposta de reatualização do conservadorismo. A nova proposta tem segundo o que Netto chamou de mais saliente, a solicitação de um suporte metodológico que não era utilizado no Serviço social brasileiro, que é o recurso à fenomenologia7 como recurso para “reelaboração teórica e prática da profissão. O autor ainda pontua que, “antes de seu surgimento, o pensamento fenomenológico era verdadeiramente desconhecido na elaboração profissional brasileira”. [...] a “nova proposta” recupera o que há de mais consagrado no tradicionalismo profissional: a herança psicossocial, a tendência à centralização nas dinâmicas individuais e o viés psicologizante Recupera, especialmente, a intervenção em nível de micro atuação, concedendo-lhe uma legitimação que encontra na retórica da pessoa e da existência um fundamento que, embora radicado no velho humanismo abstrato, adquire agora uma justificativa mais “profunda”. Esta revalorização da dinâmica interventiva em escala microscópica, dignificada com a saliência do “existencial-pessoal”, não somente reforça o tradicionalismo pela corroboração da validade do seu âmbito privilegiado de intervenção: tende a minimizar e a problematizar a validez do alargamento deste âmbito, que necessariamente incorpora as temáticas socioeconômicas. 7 O termo fenomenologia foi criado no século XVIII, por J. H. Lambert, para designar o estudo puramente descritivo dos fenômenos, da forma como eles se apresentam à consciência (CHAUÍ, 1994 apud SURDI, 2008). Já como corrente filosófica, a fenomenologia foi fundada por Edmund Husserl, na Alemanha, entre o fim do século XIX e começo do XX. https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/psicologia/fenomenologia-o-que-e/52094 (visitada em 16/06/2019) 30 Entretanto, tem outra função, de extrema importância contemporânea: contribui para subsidiar uma nova “celebração profissional”, tão necessária a profissionais que vêem seu estatuto posto em questão (quer por pressões sociais institucionais, em nosso caso decorrente da “modernização conservadora”, quer por modificações socioculturais ou perdas no interior da própria categoria profissional). Se a “nova proposta” não é operacionalizada por eles, ao menos funciona como chancela para prática microscópica e subalterna e para a interdição das tendências renovadoras que a criticam. (NETTO, 2015, p.312-313 - grifos do autor). Além disso, Netto pontua também o distanciamento dos autores que reivindicam a aproximação do pensamento fenomenológico com as fontes originais e utiliza-se de fontes secundárias, o que lhe trás um aspecto “raso” nas problematizações, o contrário do que se mostra na sua fonte, como um processo “complexo, multívoco, às vezes ambíguo, evanescente, obscuro, matizado, aparece nos textos do Serviço Social com uma clareza suspeita”, e tendia a reforçar práticas tradicionais e conservadoras das quais a profissão procurava romper. 1.2.1 Perspectiva Renovadora - Intenção de Ruptura A perspectiva renovadora, denominada por Netto (1991) de “intenção de ruptura”, surge na academia em meados dos anos de 1970 e vai até os anos de 1980. Com o declínio da ditadura e o “florescimento da democracia” (ORTIZ 2010), espalha-se pela categoria profissional e teve como iniciativa e percepção da experiência vivenciada em Minas Gerais, através do Método BH que, segundo a autora, foi o único que se colocava “diametralmente oposto aos princípios e fundamentos do chamado Serviço Social tradicional”. Para Netto (2015), a “elaboração do grupo de Belo Horizonte permanecerá como um marco” de emersão do Serviço Social renovado. O grupo elaborou uma proposta profissional que se opunha ao tradicionalismo e foi pensado através de critérios teóricos, metodológicos e interventivo, que dava ao Serviço Social uma “fundamentação orgânica e sistemática”, traçando a historicidade das “classes exploradas e subalternas”. A formulação renovadora diagramada pela equipe de Belo Horizonte trás uma “alternativa global do tradicionalismo”, o “método” elaborado pelo grupo ultrapassou a crítica ideológica própria do tradicionalismo, desenhando um projeto profissional inteiro com uma abrangência, chamada por Netto de “caráter globalizada”, que alcançava até 31 mesmo os suportes acadêmicos para formação dos quadros técnicos e para intervenção do Serviço Social. A elaboração de uma “súmula crítica ao tradicionalismo” com uma visão panorâmica da evolução da própria escola de Belo Horizonte. Nesta súmula, a equipe formula ao que denomina de “Serviço Social Tradicional” (e que considera “inadequado à realidade latino-americana”, visualizada como resultante de “características gerais -- consequência do processo de desenvolvimento do sistema capitalista” --, mas que assumem feições particulares a nível de cada país”. (NETTO, 2015, p.353) Nesta súmula três elementos são pontuados, a saber; a ideopolítica, que critica a neutralidade e ações voltadas para defesa de “determinados interesses”; a teórico- metodológico, criticando a forma fragmentada e microscópica como a realidade era tratada; e o operativo-funcionais, que pela perspectiva tradicional tratava o “objeto” de forma unilateral e sem traçar um limitação prioritária. A partir desta análise a equipe de BH projeta uma nova proposta para “transformação da sociedade e do homem”. Essa amplitude na objetivação do Método BH suscitou alguns questionamentos quanto à clareza teórica a as “causas político-ideológicas de fundo” (NETTO, 2015), isso porque trás além de outros questionamentos, a questão da “concepção sobre o próprio estatuto do Serviço Social. O autor pontua algumas “falhas” quanto à elaboração do documento, como o simplismo da noção de “classe oprimida”, que por não ter havido uma análise crítica mais profunda, não deu conta de explicar a “complexidade da sociedade brasileira”. Na noção de “classe oprimida” compreendem-se dois simplismos -- um teórico, outro crítico-analítico. Ela, noção basicamente política (que, no entanto, parece recobrir determinações econômicas: os explorados estão subsumidos nos oprimidos), sugere a remissão a uma estrutura social paradigmaticamente dicotômica, o que compromete à partida não apenas o seu potencial de orientação para intervenção, mas, sobretudo a sua capacidade de decifrar o real. [...] mas como ela não foi operada com profundidade crítica, a inépcia da noção para dar mínima conta da complexidade social brasileira não foi explicitada. Tão somente depois da intervenção prático-profissional que conduziram no processo do experimento é que os formuladores de Belo Horizonte constataram que havia algo de problemático neste seu instrumento de conhecimento, algo perfeitamente evitável com uma clarificação teórica prévia que fosse mais apurada. (NETTO, 2015, p.355- 356) 32 A análise crítica de Netto também se estende ao “objetivo-meta”, que é colocado de forma global, “a transformação da sociedade e do homem”, sem considerar um recorte importante para uma análise crítica, como a “o sentidoda transformação”. A problematicidade estende-se ao “objetivo-meta”. Aqui, há mais que o equívoco megalômano de atribuir, in totum e sem mais, “a transformação da sociedade e do homem” a uma profissão, situando como objetivo profissional o que só legitimamente pode ser posto como perspectiva histórica a enquadrar um projeto profissional. (NETTO, 2015, p.356 - grifos do autor). Todos estes “equívocos” podem ser entendidos pelo distanciamento do grupo das leituras do marxismo de fontes que segundo Netto, já se tratava de “típica do marxismo vulgar”, o “marxismo sem Marx”. O “marxismo sem Marx” que informa a reflexão belo-horizontina, precisamente à falta de uma sustentação ontológico-dialética e na escala em que devia conectar teoria e intervenção prático-profissional, vai à direção da conjunção do fatalismo mecanicista com o voluntarismo idealista -- numa “síntese” que, como Lukács o demonstrou há muito, é típica do marxismo vulgar, necessariamente eclético (Lukács, 1974). “Assim é que o Método Belo Horizonte”, combinando o formalismo e o empirismo na sua redução epistemológica da práxis, estabelece vínculos iluministas entre concepção teórica e intervenção profissional, deforma as efetivas relações entre teoria, método e prática profissional e simplifica indevidamente as mediações entre profissão e sociedade. (NETTO, 2015, p. 365 - grifos do autor) Todas essas reflexões acerca do Método BH não desmerecem a contribuição importantíssima da escola de Belo Horizonte no processo de intenção de ruptura e para uma alternativa que oferecia ao tradicionalismo, e de clarificar “a projeção de um quadro profissional” que deve considerar as dimensões política, teórica e interventiva para poder analisar a sociedade e seus campos de força contrária, análise essa que deve ser realizada a partir do “acúmulo existente e da habilitação investigativo-sistematizadora”, de modo a utilizar este acúmulo para um “enfrentamento eficiente na prática profissional. O grupo de Belo Horizonte em sua “proposição global de alternativa ao tradicionalismo”, estava em sintonia com a vertente renovadora mais crítica da América latina com a perspectiva da intenção de ruptura, defrontando com questões “candentes da configuração teórica, ideológica e operativa que constituem uma profissionalidade como a do Serviço Social” e trazendo um referenciado marxiano, e foi um passo 33 importante para o “marco” para a inflexão viria à tona dez anos mais tarde com Iamamoto, “pedra angular para erradicar da intenção de ruptura as contradições empiristas, formalistas e (neo) positivistas (Netto, 2015). Iamamoto faz suas reflexões sobre a profissão “Serviço Social como profissão referenciada ao contexto de aprofundamento do capitalismo”, e como o Serviço Social produz e reproduz as relações sociais. Seus ensaios apresentam duas negações como críticas à profissão, a vertente mecanicista, que defende ser o Serviço Social um instrumento a serviço do poder político; e a vertente voluntarista, “ao considerar o assistente social como „o agente de transformação‟” não identificando, nem explicando o genuíno caráter da prática profissional. Para Iamamoto essas duas colocações são unilaterais, e desenvolve uma “interpretação” alternativa a elas. As relações humanas e suas reproduções, uma reflexão já sob o método dialético de Marx e desenvolvida já a partir das leituras marxianos fundamentais, em especial O capital, como Netto nos explica. “ela recupera, a partir da rica categoria de produção social, a especificidade histórica da ordem burguesa, com a processualidade das relações sociais sendo resgatada pelo desvelamento dos mecanismos da reificação. Para tanto Iamamoto procede a um tratamento inicialmente sistemático da produção social capitalista: tomando-a como “relação social entre pessoas, entre classes sociais que personificam determinadas categorias econômicas” (IAMAMOTO, 1982, p.12 - apud NETTO, 2015, p. 370). Paralelo a isso, Netto destaca a “relevância” da reflexão de Iamamoto realizada posteriormente ao Método BH, que sinaliza o amadurecimento intelectual da perspectiva da intenção de ruptura. [...]seu trabalho sinaliza a maioridade intelectual da perspectiva da intenção de ruptura -- ponto de inflexão no coroamento da consolidação acadêmica do projeto de ruptura e mediação para o seu desdobramento para além das fronteiras universitárias. Trata-se de uma elaboração que, exercendo ponderável influência no meio profissional, configura a primeira incorporação bem-sucedida, no combate brasileiro, da fonte “clássica” da tradição marxiana para compreensão profissional do Serviço Social. É absolutamente impossível abstrair a reflexão de Iamamoto da consolidação teórico-crítica do projeto da ruptura no Brasil. (NETTO, 2015, p.350-351 - grifos do autor) A importância dos estudos elaborados pela autora, captando o significado social do Serviço Social, em um esforço em compreender a profissão historicamente, 34 contemplando a profissão como “realidade vivida e representada na e pelas consciências de seus agentes” (ORTIZ, 2010, p.170) Tudo isso, e muitos outros pontos abordados pelos autores, tornam-se um balizador e orientador para o aprofundamento da prática metodológica e direcionamento de estudos e pesquisa atuais do Serviço social. [...] a Reconceituação põe na ordem do dia uma nova concepção de profissão na medida em que nega a prática meramente executiva, burocrática, subalterna e paliativa tão funcional à ordem burguesa, e desvela a dimensão política da intervenção profissional, a qual, a meu ver, contribuiu mais tarde decisivamente para a renovação da auto- imagem profissional, assentada na defesa de direitos. (ORTIZ, 2010, P.170). Esta nova relação com a profissão começa a ser construída ainda com a Intenção de ruptura que trouxe novas e importantes inflexões para o redirecionamento da auto- imagem. A inclusão do Serviço Social na academia trouxe conseqüências não previstas para o sistema, com a aproximação de profissionais das áreas de formação das ciências Humanas (Sociologia, Psicologia e Antropologia), bem como dos assistentes sociais formados há mais tempo e os novos recém formados, o que trouxe uma oxigenação muito grande e que dinamizou o debate profissional trazendo algumas características de herança conservadora, porém já se afastando do confessionalismo e ainda em pequenos números, as que começam a trazer as ideias de intenção de ruptura com o bloco conservadorista. Todo esse movimento passa a reconhecer o assistente social como um intelectual. A Renovação traz sobretudo a priorização da formação acadêmica do assistente social e dos embasamentos teóricos, levando a um diálogo importante com os demais campos do saber, agora já como interlocutor, dando legitimidade à ação profissional do assistente social. Traz também um importante e imprescindível posicionamento político na prática profissional pela luta de classes levando-os a se mobilizar para criação e implementação de políticas sociais para atender a classe trabalhadora. Tal mobilização leva a ruptura com ações até então incorporadas à profissão como o voluntarismo, a prática rotineira e burocratizada, as tendências empiristas, o alheamento central do modo de vida do povo e o desenvolvimento do saber popular etc., 35 (IAMAMOTO, 42). Passa a ser assumido então um posicionamento crítico dos assistentes sociais ainda que em sua minoria. Este posicionamento crítico é essencial para a análise do momento político econômico que afetam de forma desfavorável os setores populares, isto é; a classe trabalhadora. Iamamoto enfatiza a importância da historicidade da sociedade burguesa na produção social capitalista e na importância da análise do processo social em sua totalidade. Antes de avançar, para acompanhar a reflexão da autora, é importante realçar um elemento axial, quea singularidade dentre as elaborações construídas no marco do Serviço Social: a justa compreensão que Iamamoto tem da postura teórico-metodológica marxiana. Provavelmente auxiliada pelo fato de enfrentar as fontes “clássicas”, só adjetivamente recorrendo a intérpretes, ela consegue superar os vieses mais generalizados na tradição marxista e comprometer-se com a perspectiva ontológica original de Marx. É esta correta postura teórico-metodológica que garante a Iamamoto uma angulação do processo social que está sempre inscrita no ponto de vista da totalidade (que, desde 1923, Lukács insistia ser o próprio e o pertinente do método Marx) e lhe assegura a base para procedimentos sempre felizes na caça às mediações. (NETTO, 2015, p.371 - grifos do autor) No tema da divisão social do trabalho, referindo-se ao segundo capítulo do ensaio de Iamamoto, Netto compreende que apesar dos estudos traçando uma linha histórica para localizar o “espaço profissional do Serviço Social”, sempre alicerçada basicamente na bibliografia “clássica”, contextualizando a origem da divisão social do trabalho através da sua disposição na ordem burguesa, “reconstituindo as formas com que a divisão social do trabalho vem se revestindo da manufatura à grande indústria, Iamamoto agarra -- sempre seguindo os passos marxianos”, Iamamoto não atinge uma análise satisfatória sobre o tema. Numa palavra, Iamamoto não conseguiu aprofundar as fecundas indicações marxianas de que se socorre com procedência. Apontando embora para o espaço social a ser ocupado por desempenhos profissionais do gênero do Serviço Social, sua análise -- no plano estrito da divisão social do trabalho -- carece de um desenvolvimento teórico que dê conta das múltiplas (e novas) segmentações do trabalho coletivo na dinâmica capitalista contemporânea. (NETTO, 2015, p. 373 - grifos do autor) Para Netto (2015), faltou à Iamamoto uma “análise mais moderna”, considerando as transformações recentes da ordem burguesa. Adiante a autora em seus ensaios 36 passa a analisar o “Serviço Social no processo de produção das relações sociais”, e “captar o significado social dessa profissão na sociedade capitalista”, Iamamoto se empenha a situar historicamente a profissão dentro da divisão social do trabalho e como utiliza seus subsídios para produção e reprodução das relações de classes sociais. A inserção do Serviço Social, como operação teórico-crítica, na reprodução das relações sociais, contemplada a profissão como “atividade socialmente determinada pelas circunstâncias sociais objetivas que conferem uma direção social à prática profissional [...], esta inserção é que interessa a Iamamoto. E ela concretiza inscrevendo a prática profissional no terreno das intermediações entre as classes sociais fundamentais: entende Iamamoto que só neste campo mediador o Serviço Social existe como profissão e tem determinadas as suas alternativas de ação. (NETTO, 2015, p.374) O autor pontua a clareza e a assertividade de Iamamoto ao falar sobre a importância do Serviço Social na transição do capitalismo concorrencial ao monopolista e que a intervenção do Estado sobre as demandas da “questão social”, pelas quais a classe trabalhadora enfrenta, necessitam de políticas públicas e não mais de ações caritativas, e sim de uma intervenção do Estado. A abrangência dos temas focados por Iamamoto são todos em consonância com as transformações do Serviço Social para uma ruptura com o conservadorismo. Segundo Netto, “Vale dizer: para Iamamoto, um novo dimensionamento político da profissão supõe o atendimento de requisições teóricas e intelectuais novas.” A intenção de ruptura consolidou-se com os estudos marxianos dos ensaios de Iamamoto e avolumou-se com a contribuição de assistentes sociais que produziram um “acervo de representações” que provocaram um debate sobre a profissão no Brasil, e que abordaram a dinâmica “contraditória e macroscópica da sociedade abarcando a conjunção de temas econômicos com a crítica à economia política e a estrutura social, com análise das classes sociais, o seu poder político e as correlações de forças. Este é um processo importante para a renovação profissional, colocando o Serviço Social em consonância com a pluralidade da vida social e a “pluridimensionalidade dos projetos” que transpassam a sociedade brasileira. Como podemos ver, o processo de construção de uma nova imagem do Serviço Social vem sendo desenvolvido desde a década de sessenta, com várias movimentos e eventos realizados desde os meados dos anos 1960 e seu mais importante neste 37 processo se deu na Renovação do Serviço Social “sobre o seu veio mais crítico nominado por Netto como Intenção de Ruptura” (Ortiz, 2010). A partir da inserção da profissão na divisão social e técnica do trabalho, pode-se perceber que os profissionais começaram a responder às demandas colocadas pela própria divisão do trabalho através de do seu posicionamento no “modo de ser, pensar e de responder” as estas demandas. No início, estas respostas ainda eram construídas sob “princípios e conservadores e justificadores da ordem social burguesa” para o enfrentamento das expressões da „questão social‟. Nas décadas que se seguiram há um movimento de questionamento sobre as “marcas de origem” da profissão, o que trás novos desenhos da profissão dando maior importância aos interesses da população brasileira. Dessa forma, parte-se do pressuposto que a construção da auto-imagem profissional renovada, cuja principal característica é a vinculação orgânica aos interesses e demandas dos trabalhadores, origina-se a partir de dois processos auto implicados, [...] um, que podemos caracterizar para fins de exposição, diz respeito diretamente à própria profissão e é resultado do acúmulo político e teórico advindo da interlocução de segmentos minoritários à época da chamada Reconceituação; o outro, mais afeito à conjuntura de transição democrática brasileira dos anos 80, cujo principal desfecho foi a promulgação da Constituição federal de 1988. A partir da interlocução destes dois processos [na medida em que o Serviço Social brasileiro recebe os influxos desse processo mais amplo], emerge e se fortalece na categoria profissional, e principalmente entre suas entidades, uma determinada imagem para a profissão, está atrelada e formalmente comprometida com os interesses majoritários da população brasileira e mais especificamente com a luta pela garantia de direitos. (ORTIZ, 2010, p. 154 - grifos da autora) Ortiz (2010), ressalta que, a auto-imagem aparente no projeto profissional que norteia a profissão, não é hegemônica e não extinguiu “os traços daquela imagem socialmente consolidada”. Desta forma, há um tensionamento entre a característica tradicional consolidada historicamente, e os “novos emergentes do salto qualitativo experimentado pelo Serviço Social nas últimas décadas”, e ambos convivem dialeticamente. Esta tensão, marcada por continuidades e rupturas, atravessa a imagem da profissão configurando-a, enquanto uma totalidade constituída dialeticamente por uma dupla face: a imagem social e a auto-imagem profissional, diversos lados da mesma unidade: a imagem da profissão. (ORTIZ, 2010, p. 155) 38 Na década de 1980 a profissão apresenta-se profundamente modificada, se comparada a “sua trajetória sócio-histórica desde as protoformas. A renovação política a partir da crise da ditadura corrobora com o Serviço Social já compromissado com os interesses da classe trabalhadora, e procura adquirir uma base de legitimidade. O Serviço Social anseia legitimar-se ante a classe trabalhadora. [...] a própria luta pela conquista e aprofundamento da democratização da vida social - do Estado e da sociedade no país, horizonte da socialização da política e da economia, que gesta o alicerce sociopolítico o qual vem permitindo tanto o deslocamento das interpretações
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