Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
87 DIAGNÓSTICO SOCIOTERRITORIAL Unidade II 5 DIAGNÓSTICO SOCIOTERRITORIAL O debate sobre o diagnóstico socioterritorial se inicia a partir da constituição do Suas, o qual prevê um modelo de gestão descentralizado, que concede ao município autonomia para organização de sua rede socioassistencial de acordo com as suas necessidades e especificidades, com foco na família e no território. Essa rede galga a adoção dos padrões de qualidade definidos na PNAS e da estruturação de mecanismos de monitoramento e avaliação dos serviços e programas em andamento. Prevista pela Loas, essa rede deve se dedicar às ações de vigilância socioassistencial, que no artigo 6º, objetiva identificar e prevenir situações de vulnerabilidade e risco, caracterizando-se como uma importante ferramenta de gestão estratégica, estimulando a prática do registro, planejamento, monitoramento e avaliação da política. O diagnóstico socioterritorial consiste numa metodologia de conhecimento, descrição, análise e compreensão do território e dos elementos que o compõem. Tal método, por ser utilizado nas políticas públicas para a análise dos equipamentos, aponta potencialidades e fragilidades de sua implementação e execução, produzindo, assim, um conhecimento estratégico voltado à ação, à intervenção de um determinado território. Segundo a NOB Suas (2012a, p. 25): Art. 20. A realização de diagnóstico socioterritorial, a cada quadriênio, compõe a elaboração dos Planos de Assistência Social em cada esfera de governo. Parágrafo único. O diagnóstico tem por base o conhecimento da realidade a partir da leitura dos territórios, microterritórios ou outros recortes socioterritoriais que possibilitem identificar as dinâmicas sociais, econômicas, políticas e culturais que os caracterizam, reconhecendo as suas demandas e potencialidades. Enquanto parte do processo de aprimoramento do Suas se depreende no reconhecimento da diversidade da realidade brasileira na perspectiva da garantia do acesso às provisões de qualidade, de acordo com as demandas “dos diferentes públicos e territórios”. 88 Unidade II Art. 21. A realização de diagnóstico socioterritorial requer: I – Um processo contínuo de investigação das situações de risco e vulnerabilidade social presentes nos territórios, acompanhado da interpretação e análise da realidade socioterritorial e das demandas sociais que estão em constante mutação, estabelecendo relações e avaliações de resultados e de impacto das ações planejadas; II – Identificação da rede socioassistencial disponível no território, bem como de outras políticas públicas, com a finalidade de planejar a articulação das ações em resposta às demandas identificadas e a implantação de serviços e equipamentos necessários; III – Reconhecimento da oferta e da demanda por serviços socioassistenciais e definição de territórios prioritários para a atuação da política de assistência social. IV – Utilização de dados territorializados disponíveis nos sistemas oficiais de informações. Parágrafo único. Consideram-se sistemas oficiais de informações aqueles utilizados no âmbito do Suas, ainda que oriundos de outros órgãos da administração pública (BRASIL, 2012a, p. 25). Na política de assistência social, a produção do diagnóstico está associada ao plano de assistência social, o que lhe confere uma aproximação com a função da vigilância socioassistencial, que compõe, juntamente com a proteção social e a defesa de direitos, o tripé do Suas. Sendo o diagnóstico socioterritorial constituído no escopo da vigilância socioassistencial, passa a ocupar outras centralidades para servir ao importante processo de construção das bases e diretrizes para o estabelecimento das metas do plano. Art. 91. Constituem responsabilidades comuns à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios acerca da área de Vigilância Socioassistencial: I – elaborar e atualizar periodicamente diagnósticos socioterritoriais que devem ser compatíveis com os limites territoriais dos respectivos entes federados e devem conter as informações espaciais referentes: a) às vulnerabilidades e aos riscos dos territórios e da consequente demanda por serviços socioassistenciais de Proteção Social Básica e Proteção Social Especial e de benefícios; b) ao tipo, ao volume e à qualidade das ofertas disponíveis e efetivas à população (BRASIL, 2012a, p. 41). 89 DIAGNÓSTICO SOCIOTERRITORIAL O diagnóstico socioterritorial ainda pode contribuir junto à gestão na produção de conhecimento sobre as particularidades dos territórios de referência/abrangência dos equipamentos de proteção social, operacionalizando e desvendando as particularidades de populações e territórios. Permite ainda, o aproveitamento e potencialização dos recursos públicos e comunitários disponíveis, buscando a melhoria permanente dos espaços de partilhamento e equipamentos sociais, tendo, assim, o funcionamento em rede, com adoção de estratégias que fomentam os projetos, programas e serviços já existentes, agregando a eles as novas ações e ofertas e, com isso, garantindo um conjunto de intervenções articuladas dentro do desenho das políticas públicas. Observação O significado da palavra diagnóstico, segundo o dicionário Aurélio, é “conhecer, reconhecer, analisar e investigar” (DIAGNÓSTICO, 2020). A periodicidade da realização do diagnóstico socioterritorial deve ser, no mínimo, quadrienal por fazer parte do Plano de Assistência Social. Porém, é recomendável que esse diagnóstico seja mantido atualizado durante todo o período para que as ações possam ser pautadas e avaliadas através dele. A elaboração do diagnóstico se dá pela coleta, no entanto, demanda mais responsabilidade do gestor local por ser encarregado pela política de assistência social no âmbito municipal. Nessa elaboração, deve ser levado em conta além dos dados sobre a situação social, econômica, cultural, ambiental dos cidadãos e do município, os produtos de georreferenciamento das unidades de assistência social, identificando os sujeitos e suas demandas – os indivíduos e as famílias dentro do território e os serviços de proteção social básica e de proteção social especial ofertados pela rede socioassistencial. O diagnóstico socioassistencial pode ser produto e processo. Como produto, vem a sistematizar e organizar as informações do município, legitima as decisões da gestão e dos planos, retratando a realidade e permitindo monitoramento. Enquanto processo, ele engloba diversos atores, mobiliza gestão, serviços, programas, projetos, atores externos, comunidade local, universidades, especialistas, usuários, conselheiros, realizando uma reflexão geral sobre a realidade, no intuito de ressignificar a prática profissional nos territórios e permitir a aproximação da gestão e os serviços. Um ponto importante se refere à diferenciação entre um diagnóstico socioeconômico e o diagnóstico socioterritorial. No diagnóstico socioterritorial, contém informações socioeconômicas, no entanto, estas não representam a totalidade da análise. O diagnóstico socioeconômico deve contemplar informações em relação às características do público-alvo que será atendido, as potencialidades e fragilidades da base econômica local e regional, os condicionantes ambientais, a capacidade e experiência de gestão local e regional, que indicam a maior ou menor complexidade de realização da intervenção pública e o nível de participação da sociedade, que pode garantir maior controle social dos recursos e dos resultados dos programas. 90 Unidade II Em síntese, o diagnóstico socioeconômico deve conter: O diagnóstico socioeconômico visa organizar esses dados coletados e produzir informações e análises, sendo uma primeira etapa na elaboração de um diagnóstico socioterritorial que contemple todas as nuances do território e sua gestão. É através da análise de dados socioeconômicos levantados, que é possível desenhar um mapa de vulnerabilidade e riscos sociais em âmbito municipal. Segundo oCaderno de Estudos do Curso de Indicadores para Diagnóstico do SUAS e do Plano Brasil Sem Miséria, o diagnóstico socioterritorial possibilita [...] aos responsáveis e operadores da política de assistência social compreender as particularidades do território no qual estão inseridos e detectar as características e dimensões das situações de precarização que trazem riscos e danos aos cidadãos, à sua autonomia, socialização e convívio familiar. Essas informações são fundamentais para conhecer a distribuição das necessidades e demandas dentro do município, com a finalidade de: • direcionar a realização da estratégia de Busca Ativa; e • identificar as regiões com concentração do público-alvo dos programas do Plano Brasil Sem Miséria (Brasil Carinhoso, Mais Educação, Programa de Aquisição de Alimentos, Pronatec etc.) e de Assistência Social (implantação de Centros de Referência de Assistência Social (Cras), Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centros POP), bem como definição dos serviços a serem prestados nesses equipamentos) (BRASIL, 2013a, p. 73). A figura a seguir ilustra esta relação do diagnóstico socioterritorial. Demandas para serviços e benefícios socioassistenciais Ofertas da política de assistência social Serviços Proteção básica Proteção especialBenefícios Programas e projetos Necessidade de proteção socia Riscos e vulnerabilidade Figura 7 – Diagnóstico socioterritorial no âmbito da política de assistência social 91 DIAGNÓSTICO SOCIOTERRITORIAL O diagnóstico socioterritorial possui um papel estratégico para dimensionar, identificar e compreender territorialmente as condições e configurações das demandas por atenções socioassistenciais e analisar o grau de adequação da rede instalada, em função das demandas identificadas. Os municípios possuem estruturas, realidades, dimensões territoriais e populacionais distintas. Por isso, seus diagnósticos devem ser territorializados, levando em consideração as particularidades locais das diferentes regiões (bairros) a fim de que se conheça a real demanda por proteção social dos cidadãos, segundo as características da comunidade local. Lembrete Um bom diagnóstico pressupõe o cruzamento de informações sobre demandas socioassistenciais (saúde, educação, mercado de trabalho, habitação, infraestrutura urbana, renda, desigualdade) e capacidade efetiva de cobertura da oferta. O diagnóstico socioterritorial busca identificar as situações de vida diferenciadas e desiguais que se encontram em uma única cidade, e que muitas vezes não aparecem quando se conhece essa cidade somente pelos seus números. Assim, o diagnóstico socioterritorial pode ser construído por informações na forma de números e estatísticas, como também por informações que se traduzem em histórias de vida dos lugares, de suas famílias e instituições, os mais diversos atores sociais. Para isso, se faz necessário definir ainda quem participa desse processo de construção do conhecimento, em que são igualmente valorizados os dados estatísticos, bem como os dados considerados mais qualitativos. Trata-se de duas formas de ler a realidade que são complementares. Em geral, o diagnóstico abrange as seguintes questões: a) Informações sobre a realidade local, compostas de: i) uma análise histórico-conjuntural da realidade, tendo como base informações sociais, demográficas, educacionais e econômicas (identificação da vocação econômica e das potencialidades); e ii) uma descrição da rede socioassistencial e de sua cobertura. b) Demandas da população destinatária, identificadas a partir da análise das informações anteriores. Consiste: i) na identificação de demandas expressas, emergentes e potenciais; e ii) na identificação de territórios com concentração da população em situação de vulnerabilidade social (BRASIL, 2013c, p. 70-71). 92 Unidade II Diante destas informações, o diagnóstico objetiva, portanto, mapear os riscos e vulnerabilidades da população; como também as ofertas das políticas de assistência e, por fim, analisar a cobertura e a relação demandas x ofertas no território. A responsabilidade de efetivação do diagnóstico socioterritorial é da vigilância socioassistencial, por meio da coleta e análise de dados e de informações produzidas por fontes governamentais, e em especial pelo CadÚnico, que tem se mostrado como uma importante fonte de dados. As informações produzidas pela vigilância socioassistencial devem ser repassadas, de forma detalhada, às equipes dos serviços, sobretudo, aos Cras, para que sejam realizadas as ações de Busca Ativa. Para a realização do diagnóstico, devem-se utilizar indicadores que sejam capazes de explicar a relação dos indivíduos e das populações com o lugar e os serviços públicos ofertados (tipo, volume e padrão de qualidade), se deve, também, considerar o território como um recorte espacial. Sua estrutura deve apresentar: • Contexto (demografia, determinantes econômicos). • Ofertas das demais políticas públicas (educação, saúde, sistema de garantia de direitos). • Demanda (vulnerabilidades e riscos na população e seus diferentes perfis, que podem gerar demandas para a assistência social). • Ofertas da política de assistência social (tipo, volume e padrão das ofertas: quanto, onde e como são feitas as ofertas). • Análises de cobertura demanda versus oferta (análise de cobertura territorializada das ofertas, comparadas à demanda potencial). De forma geral, deve-se abordar: 1) Variáveis e indicadores de contexto. Visam apresentar as condições gerais de desenvolvimento econômico e social dos municípios de forma muito sintética às informações essenciais das seguintes áreas: demografia, educação, saúde, trabalho, infraestrutura urbana, economia e meio ambiente. Devem ocupar não mais que 25% do documento produzido. 2) Variáveis e indicadores de caracterização da demanda potencial para os Serviços e Benefícios da Assistência Social. Objetivam apresentar uma referência numérica que possa ser utilizada como proxy da demanda potencial, ou como dimensionamento do público-alvo, para cada um dos serviços e benefícios do Suas em um dado território. Devem considerar, todos os Serviços Socioassistenciais Tipificados, os Benefícios Eventuais, o 93 DIAGNÓSTICO SOCIOTERRITORIAL Benefício de Prestação Continuada – BPC e o benefício pago por meio do Programa Bolsa Família. 3) Variáveis e indicadores relativos à estrutura de oferta dos Serviços e Benefícios da Assistência Social. Objetivam apresentar, por meio de dados quantitativos, informações sobre a existência, ou não, de oferta de cada um dos serviços tipificados e benefícios do Suas em um dado território, bem como a caracterização do volume de oferta e/ou da capacidade instalada, devendo ainda, quando possível, incluir indicadores relativos à qualidade da oferta instalada e à existência e volume de financiamento federal para os referidos serviços e benefícios. 4) Variáveis e indicadores relativos à estrutura de oferta das demais políticas públicas, exclusivamente no que se refere aos pontos de contato e de complementariedade entre estas e a Assistência Social. Objetivam apresentar, por meio de dados numéricos e de dados categóricos, informações sobre a existência, ou não, de outras ofertas que, embora não integrem as ações de assistência social, constituem “retaguardas” ou pontos de apoio indispensáveis à dimensão intersetorial da atenção aos usuários da política de assistência. Nesse sentido, se destacam estruturas de ofertas, relacionadas à Justiça, aos serviços de saúde mental, Equipes/Unidades de Saúde da Família, Programas de Educação em horário integral etc. 5) Indicadores que correlacionem demanda e oferta, segundo os Serviços Socioassistenciais tipificados e, eventualmente, públicos específicos. Objetivam apresentar indicadores que permitam analisar, direta ou indiretamente, a coberturados serviços e benefícios em um determinado território. A análise da cobertura ocorrerá de forma direta quando for possível estimar com razoável precisão o volume da demanda efetiva e da oferta existente, podendo então a relação ser expressa em um percentual de cobertura. A análise da cobertura ocorrerá de forma indireta nas situações em que se tem apenas o dimensionamento genérico do público-alvo de um serviço, mas não é possível obter dados mais precisos sobre o volume efetivo da demanda e, por consequência, do nível ótimo da oferta (BRASIL, [s.d.]d, 28-29). Em síntese, o diagnóstico socioterritorial deve apresentar as etapas contidas no quadro a seguir: 94 Unidade II Quadro 1 – Diagnóstico socioterritorial: etapas, fontes e produtos Etapas do diagnóstico Tipo de abordagem Fontes de dados Produto esperado Contexto geral Descrição IBGE, Datasus, TEM, Sidra, dados municipais etc. Breve descrição da realidade do município Público-alvo potencial Identificação IBGE, CadÚnico, Bolsa Família, BPC, dados municipais etc. Identificação do público-alvo das ações da assistência social nos seus variados segmentos. Foco quantitativo Oferta de benefícios e serviços Análise Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social Análise quantitativa da oferta dos serviços e benefícios da assistência social além de qualidade do serviço Políticas públicas complementares Análise Secretarias Municipais, Conselhos Municipais etc. Análise das políticas públicas complementares à assistência social. Foco quantitativo Análise da cobertura Análise Dados e análises do diagnóstico Análise direta e indireta da cobertura da assistência social através da relação da oferta e demanda Fonte: Lima; Mendes (2015, p. 122). Para que o diagnóstico fique completo e seja representativo e analítico, é preciso que haja representação gráfica dos dados e principalmente dos territórios. A espacialização e territorialização dos dados são produtos que enriquecem as análises, além de cumprirem normativas do próprio MDS. Informações georreferenciadas são fundamentais para conhecer a distribuição das necessidades e demandas dentro do município, com a finalidade de: • direcionar a realização da estratégia de Busca Ativa; • identificar as regiões com concentração do público que demanda por programas, serviços e benefícios da assistência assim como de seus equipamentos (Cras, Creas, Centro POP); • planejar investimentos e mobilizar novos recursos. Por suas especificidades, o diagnóstico socioterritorial deve abarcar as nuances do território como território de vivência, o que trataremos a seguir. 5.1 Diagnóstico socioterritorial: intervenção no território e seu diálogo com as políticas municipais, estaduais e federais No processo de construção do diagnóstico, tendo como base norteadora indicadores como o território ou o conjunto de territórios que compõem a cidade, onde, a partir dele, se possa verificar as complexidades da vida cotidiana, seus processos de proteção e desproteção social. Nesse contexto, a combinação de outras informações e dados estatísticos, pode evidenciar uma visão mais próxima desse cotidiano. 95 DIAGNÓSTICO SOCIOTERRITORIAL Diagnósticos socioterritoriais podem (e devem) conter indicadores e estatísticas sobre os territórios, porém, há que se ter clareza de suas insuficiências e incompletudes para capturar ou representar as dinâmicas relacionais, as tramas que se dão na escala do cotidiano, nos lugares (BRASIL, 2013b, p. 72). Incluir a perspectiva territorial no diagnóstico tem representado na política de assistência social um desafio, pois trata-se da inversão da lógica de se olhar para o lugar de intervenção da política pública, tornando o território prioridade, como ponto de partida e secundariamente como ponto de chegada. O uso dessa metodologia socioterritorial nas políticas de assistência social, segundo a autora Dirce Koga (2016a), ocupa um lugar central no planejamento dos serviços, programas e benefícios. Esta sugere que este tipo de diagnóstico deve promover reflexões importantes sobre o distanciamento entre a gestão da política pública e a realidade vivenciada pelas cidades e seus cidadãos, sendo fundamental na aproximação das ferramentas de gestão e na realidade na qual se intervém. Necessariamente, um Diagnóstico Socioterritorial demandará diferentes informações e informantes presentes nos territórios a serem (re)conhecidos. Os graus de envolvimento e participação indicarão a dimensão e a consistência das informações produzidas, conhecidas e analisadas. Pois, a participação dos atores no diagnóstico não se resume à posição de “informante” ou “fonte de dados”, mas também de coautoria do diagnóstico, no sentido de que à medida do seu envolvimento no processo de construção do conhecimento socioterritorial proposto se torna também um dos autores (BRASIL, 2013b, p. 72). Desse modo, incorporar a perspectiva socioterritorial na formulação, implementação, monitoramento, avaliação e revisão das políticas públicas, de acordo com Koga e Nakano (2005, p. 68), implica manejar “potencialidades ativas dos territórios na constituição de processos e relações de poder”. E esses processos não se referem apenas às diferenças entre cidades, mas também remetem a distinções regionais no Brasil, que trazem consigo variações nos contextos culturais e ambientais e nos arranjos de relações entre agentes que precisam ser compreendidas para adequada leitura e reconhecimento em um país historicamente marcado pela desigualdade e assimetrias sociais. Assim pensado como produto social e ao mesmo tempo produtor, o espaço precisa então ser considerado nos diagnósticos socioterritoriais de forma bem mais ampla. Essa visão ampliada objetiva compreender as novas referências sobre a população e os territórios de intervenção da política pública, ultrapassando a abordagem meramente técnica, agregando uma dimensão mais participativa. A territorialização do diagnóstico se justifica no (re)conhecimento da realidade local e/ou regional na qual se busca intervir, nas suas especificidades, complexidade, assim como em suas potencialidades. 96 Unidade II O diagnóstico socioterritorial, portanto, enfatiza o território, nas suas particularidades e complexidades, como território usado. É assim que ele tem de ser entendido. O território, em si mesmo, não se constitui uma categoria de análise ao considerarmos o espaço geográfico como tema das ciências sociais, isto é, como questão histórica. A categoria de análise é o território utilizado (SANTOS; SILVEIRA, 2001, p. 247). Diante da questão do diagnóstico objetivar essa “leitura do território”, Milton Santos (2002) renovou essa perspectiva com uma nova definição de território. Com ele, entendemos que: O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade (SANTOS, 2002, p. 322). Diante das discussões já explicitadas, entendemos o território como território de vivência sob a perspectiva de territórios vivos, devendo ser interpretados nas relações sócio-históricas, articulações político-institucionais. O diagnóstico socioterritorial se coloca como um produto da gestão e também como processo à medida que agrega conhecimentos produzidos por diferentes atores da gestão, incluindo os próprios usuários da política pública e mesmo trabalhadores de outras políticas que atuam nos mesmos territórios. Dessa forma, o território de vivência ultrapassa os limites da interpretação do território como espaço administrativo e político-administrativo. Art. 20. Parágrafo único. O diagnóstico tem por base o conhecimento da realidade a partir da leitura dos territórios, microterritórios ou outros recortes socioterritoriais que possibilitem identificar asdinâmicas sociais, econômicas, políticas e culturais que os caracterizam, reconhecendo as suas demandas e potencialidades (BRASIL, 2012a, p. 25). Para tanto, o diagnóstico socioterritorial consiste em uma análise situacional do município, compreendendo uma descrição interpretativa, na compreensão e a explicação de uma determinada situação, detalhada, segundo diferentes recortes socioterritoriais (microterritórios). Um ponto a ponderar é quanto às práticas comuns na gestão pública do uso de divisões ou parcelamentos diversos do solo, que não dialogam com as diferentes secretarias ou setores, seja em âmbito local ou regional, sendo importante um diálogo afinado na operacionalização de diagnóstico socioterritorial em parceria. 97 DIAGNÓSTICO SOCIOTERRITORIAL A autora Dirce Koga, sob esta interpretação, confirma que ao tratar os dados estatísticos de modo desagregado do ponto de vista territorial ainda se mostra como uma realidade distante de muitas gestões municipais, pois recaem na lógica de que cada setor constrói sobre o território comum de atuação, sem diálogo com os demais setores (KOGA, 2016a, p. 11). Assim, o diagnóstico socioterritorial pode ser construído, [...] por informações na forma de números e estatísticas, como também por informações que se traduzem em histórias de vida dos lugares, de suas famílias e instituições, atores sociais os mais diversos. Para isso, se faz necessário definir também quem participa desse processo de construção do conhecimento, em que são igualmente valorizados os dados estatísticos, bem como os dados considerados mais qualitativos. Trata-se de duas formas de ler a realidade que são complementares (BRASIL, 2013b, p. 71). A articulação entre a dimensão administrativa do território e sua face vivida é que se coloca como um importante desafio metodológico ao se pretender construir um diagnóstico socioterritorial. Pensando na articulação entre território e processos de gestão pública, podemos verificar que é no âmbito municipal das políticas públicas que se busca estabelecer um diálogo e interlocução com o cotidiano vivenciado pelo cidadão (KOGA, 2016a). É sob esta perspectiva que pode conhecer a realidade local e regional em relação ao tipo de ocupação de cada território, o porte dos municípios, perfil da população que o ocupa, além de condições econômicas e outras informações, e dos aspectos de construção subjetiva dos territórios (KOGA; RAMOS; NAKANO, 2008, p. 74). Um ponto importante na questão da construção do diagnóstico socioterritorial se refere ao envolvimento dos agentes públicos no processo de construção, planejamento de projetos, ações em geral ou mesmo no diagnóstico socioterritorial; como também seu não envolvimento ou participação nesse processo gera descompassos no momento da implantação ou implementação de projetos, ações ou o uso do diagnóstico socioterritorial como um ferramenta de trabalho que pode qualificar a ação do agente público, apontando demandas, necessidades e potencialidades dos territórios de atuação. Diagnósticos socioterritoriais devem conter indicadores e estatísticas sobre os territórios, porém há que se ter clareza de suas insuficiências e incompletudes para capturar ou representar as dinâmicas relacionais, as tramas que se dão na escala do cotidiano, nos lugares (BRASIL, 2013b). Para tal, dados do IBGE e de outros institutos de pesquisa de âmbito local ou regional; dados de pesquisas já realizadas pelo MDS ou por universidades, dados da própria prefeitura ou do governo estadual e de outros ministérios ou outras secretarias municipais/estaduais, ou ainda dados criados a partir do setor onde se atua são utilizados na sua feitura. Utilizamos do mapeamento para ter uma indicação a fim de compreender a representação da territorialização das redes socioassistenciais da cidade. Este trabalho é um ponto prioritário na organização da rede, bem como da articulação entre os equipamentos e outras políticas intersetoriais. 98 Unidade II O uso do mapeamento pode auxiliar: • Identificação dos públicos-alvo. • Organização da rede socioassistencial. • Georreferenciamento de equipamentos sociais. • Territorialização dos equipamentos sociais. • Organização da Busca Ativa. • Planejamento de ações intersetoriais. • Demandas sociais dos territórios. • Demandas estruturais dos territórios. • Planejamento de investimentos. • Calibragem de oferta e demanda por serviços. Ainda sob essa perspectiva de vivência, a construção do diagnóstico socioterritorial, portanto, demanda a participação das “diferentes informações e informantes presentes nos territórios a serem (re)conhecidos”, em que essa participação os coloca com “coautoria do diagnóstico, no sentido de que à medida do seu envolvimento no processo de construção do conhecimento socioterritorial proposto se torna também um dos autores” (BRASIL, 2013b, p. 72). Sob essa ótica, o diagnóstico também se apresenta como uma oportunidade de troca de conhecimentos, que envolve tanto as informações mais técnicas de indicadores e estatísticas oficiais, como dados das experiências e vivências cotidianas do “homem comum”, além das diferentes produções e sistematizações de cada serviço, programa ou benefício executado no cotidiano da gestão. 5.2 Técnicas de apresentação e devolutiva dos resultados finais do diagnóstico Por ser um produto, um documento para gestão que subsidiará a construção da maioria dos documentos oficiais da assistência social no âmbito municipal, Plano Municipal de Assistência Social, Censo Suas, entre outros, este deve ser apresentado no formato oficial. Para tanto, o diagnóstico socioterritorial deve conter o objetivo, abordando aspectos sociais e históricos do município e das regiões que o compõe, bem como apresentar um diagnóstico com os principais indicadores do município e, a partir deste, realizar uma análise dos parâmetros de vulnerabilidade e risco. 99 DIAGNÓSTICO SOCIOTERRITORIAL Nesse prisma, deve apresentar em sua versão final: • Contextualização sócio-histórica do município: abordar brevemente um histórico do município e da região, suas características e particularidades, considerando aspectos da diversidade cultural, social, política e econômica. • Diagnóstico socioterritorial de vulnerabilidades e riscos sociais: apresentação do diagnóstico detalhando toda a estrutura do município, rede de serviço socioassistencial, dados estatísticos, evidenciando os territórios de maior vulnerabilidade social, ou seja, as áreas de vulnerabilidade e risco social. • Análise do diagnóstico socioterritorial de vulnerabilidades e riscos sociais a partir da política de assistência social: deve-se analisar as situações de vulnerabilidade e risco social identificadas no diagnóstico socioterritorial. As informações coletadas agregarão mais sentido quando comparadas a índices de referência em relação a outros municípios da região, estado ou país, ou do próprio município em anos anteriores. Por se tratar de um documento, deve seguir o rigor acadêmico e metodológico, identificado o lugar diagnosticado, ou seja, o município e suas particularidades. Deve ser redigido como um documento oficial, com os timbres e brasões evidenciados, como também apresentando todos os componentes da gestão local na data de sua elaboração/construção. O diagnóstico socioterritorial é um documento público, ou seja, pode ser acessado por qualquer municipe, sendo necessário apresentar uma linguagem técnica, porém que prime pela compreensão. Sendo assim, se faz obrigatório sempre no uso de terminologia técnica a apresentação do conceito base como nota de rodape ou através de um glossário, devendo ainda conter uma lista de figuras, siglas, abreviações, mapas, entre outros. Após, se inicia de fato a criação do “corpo” do diagnóstico socioterritorial. O primeiro ponto é uma apresentação. Nela, devem conter elementos como as finalidades da vigilância socioassistencial e sinalizar o diagnóstico socioterritorial comouma das etapas da vigilância, além de apresentar uma prévia dos capítulos que compõem esse documento. Nessa etapa, é importante já sinalizar as particularidades do município, ou fazer uma breve apresentação com um panorama situacional da realidade do município no período da elaboração do diagnóstico. Deve-se expor o mapeamento dos dados estatísticos e oficiais já levantados anteriormente, pois entende-se que nessa etapa já foram cumpridas as fases de elaboração como reuniões, mapeamento de registros dos equipamentos e serviços socioassistenciais, além consulta das ferramentas oficiais de coletas de dados. Uma segunda etapa se refere à composição, os capítulos trabalhados através dos dados coletados. Para tal, há duas linhas a seguir: na primeira, pode-se construir um panorama histórico da política de assistência social e sinalizar o município dentro desse dado histórico; uma segunda opção, e mais utilizada, é já evidenciar e apresentar os dados coletados. 100 Unidade II Essa apresentação pode conter a seguinte composição: • Apresentação geral. • Apresentação do município diagnosticado: destacando suas particularidades e especificidades. Nesse item, pode-se evidenciar os territórios desse município; os aspectos demográficos; os aspectos econômicos; a assistência social e seu perfil em que deve conter a rede de serviço socioassistencial; saúde; rendimentos; educação, entre outros; como também podem ser apresentados os dados coletados como mapas, gráficos, a divisão territorial e de abrangências dos equipamentos, entre outros. Nessa etapa, pode-se apresentar os dados de maior relevância como Índice de Desenvolvimento Humano do Município (IDHM), Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), taxa de idosos, crianças e adolescentes, índices de vulnerabilidade social. • Trabalhadores da Rede Suas pública e privada. • Panorama das demandas no contexto da política de assistência social: aqui podem ser evidenciados os números relativos ao CadÚnico, número de atendimentos nos Cras e Creas, aspectos relativos a vulnerabilidade social, entre outros. • Indicadores de atendimento da política de assistência social. • Panorama das ofertas de serviços socioassistenciais e os territórios de proteção social: deve-se identificar toda a rede socioassistencial municipal; os territórios de abrangência de cada equipamento; a oferta de serviços socioassistenciais na proteção social básica e especial; alcances das funções da política municipal de assistência social e em seus níveis de proteção; alcances da vigilância socioassistencial; alcances da defesa de direitos. Ao apresentá-los, deve-se trazer o conceito do que é o serviço, sua abrangência, público, demandas específicas e/ou especificidades, tipificação do serviço, seu alcance, as seguranças afiançadas, entre outros. • Relação da proteção social/desproteção social no cotidiano dos territórios de vivência: aqui, pode-se apresentar a metodologia do mapa falado na identificação dos territórios de vivência e suas demandas. Para cada serviço apresentado, deve conter a cartografia específica, ou seja, seus mapas de vivência, os mapas falados identificando a proteção e desproteção. • Financiamento da assistência social. • Controle social. • Monitoramento e avaliação. • Considerações finais. • Referências bibliográficas. • Anexos do diagnóstico socioterritorial. 101 DIAGNÓSTICO SOCIOTERRITORIAL 5.3 A pobreza no Brasil A abordagem da pobreza no Brasil se apresenta como uma síndrome da insuficiência de renda, consolidada como a mais empregada, o que relaciona a pobreza à renda e a outras dimensões socioeconômicas, como a insegurança alimentar, a dificuldade de acesso à infraestrutura urbana e aos serviços e programas sociais. Segundo Jannuzzi et al. (2014, p. 753), existem muitos estudos voltados para o dimensionamento da pobreza, como [...] expressão da insuficiência de renda disponível (pobreza monetária); aqueles que expressam pobreza como insuficiência de acesso e consumo de alimentos (desnutrição, subalimentação ou insegurança alimentar); pesquisas ancoradas na percepção da pobreza como a não satisfação de necessidades básicas monetárias e não monetárias dos indivíduos (pobreza multidimensional); estudos que tomam a pobreza como fenômeno de privação relativa e não absoluta de renda ou de outras dimensões socioeconômicas (pobreza relativa); e estudos que investigam a pobreza a partir do posicionamento autodeclarado dos indivíduos (pobreza subjetiva). A pobreza se refere a situações de carência em que os indivíduos não conseguem manter um padrão mínimo de vida condizente com as referências socialmente estabelecidas em cada contexto histórico. A noção de linha de pobreza equivale à essa medida, em que, em última instância, uma linha de pobreza pretende ser o parâmetro que permite a uma sociedade específica considerar como pobres todos aqueles indivíduos que se encontrem abaixo do seu valor. Segundo o Compêndio sobre melhores práticas em medição de pobreza, ocorrido em 2006, o Grupo do Rio, a fim de apresentar soluções para os Objetivos do Milênio, traz a questão das linhas de pobreza versadas através de Linhas monetárias podem ser relativamente menos importantes em países com baixa renda per capita, onde a população é predominantemente rural e a economia de mercado é menos desenvolvida. Nesses casos, o uso da abordagem das privações é mais adequado para apontar a magnitude da pobreza. Em países com uma grande proporção de população urbana e uma grande economia de mercado, linhas de pobreza absoluta podem ser mais apropriadas para estudar a incidência e a evolução da pobreza. A combinação das duas abordagens é desejável, apesar de que pode impor alto fardo financeiro e enfrentar restrições institucionais e técnicas (...) (apud FALCÃO; COSTA, 2014, p. 72). Portanto, há três grandes enfoques para medir a pobreza: linhas de pobreza; necessidades básicas não satisfeitas, ou indicadores de carência; e combinações desses dois enfoques. 102 Unidade II As linhas de pobreza podem ser absolutas, relativas ou subjetivas, se baseiam principalmente na renda ou no consumo dos domicílios. Já os indicadores de carência tentam medir se o domicílio satisfaz suas necessidades básicas, por exemplo, de água, área e conforto mínimo. Se a linha eleita for absoluta, o ideal é recorrer à abordagem tradicional das necessidades calóricas mínimas, ou seja, representa o custo da compra de uma cesta de itens essenciais que permitem a uma pessoa alcançar o patamar absoluto mínimo de satisfação de certas necessidades básicas. Sob o enfoque da linha de pobreza ser multidimensional, esse método que identifica domicílios pobres como aqueles que enfrentam privação severa de necessidades humanas básicas, baseado no uso de indicadores de privações. Metodologicamente falando, muitos estudos estabelecem a criação de uma linha de pobreza a fim de subsidiar inclusões e exclusões. A função dessa linha de pobreza é estabelecer um critério binário que divida os indivíduos em pobres e não pobres, para calculá-la, é necessário saber o que é um pobre, sendo a variável central a renda per capita de uma família comparada com o custo de satisfação das necessidades básicas. A referência é o preço de uma cesta básica de alimentos. Assim, são consideradas em situação de indigência as famílias e pessoas cuja renda per capita é inferior ao custo da tal cesta básica de alimentos. Uma especificidade é a questão do Programa Bolsa Família e a matriz institucional das políticas sociais no Brasil, em que, através do uso dos microdados do CadÚnico, se pode identificar a questão da pobreza. O CadÚnico contém informações socioeconômicas das famílias com renda mensal de até ½ salário mínimo por pessoa, estabelecendo um perfil das privações que as famílias de baixa renda sofrem simultaneamente. Entre as informações do cadastro, encontram-se características do domicílio, despesas mensais da família, identificação de cada pessoa,escolaridade, trabalho e remuneração. A Loas, ao estabelecer um quarto do salário mínimo per capita ao mês, que serve de parâmetro para a concessão do BPC, se utiliza de uma linha de pobreza absoluta. A pobreza absoluta está relacionada ao não atendimento das necessidades mínimas para reprodução biológica. Outro conceito, juntamente ao de pobreza absoluta, é o de pobreza relativa. A pobreza relativa diz respeito à estrutura e à evolução do rendimento médio de um determinado país, fundamentada na ideia de desigualdade de renda e de privação relativa em relação ao modo de vida dominante em determinado contexto. Na pobreza relativa, se adota uma perspectiva que se refere às condições objetivas (e não subjetivas) de privação que afetam pessoas quando comparadas com outros membros da sociedade. 103 DIAGNÓSTICO SOCIOTERRITORIAL Observação As metodologias utilizadas para mensurar pobreza no Brasil são elaboradas levando-se em conta expectativas nutricionais com base na insuficiência calórica. Diante desse prisma, uma família extremamente pobre é aquela cuja renda total é insuficiente para comprar a cesta que garante o número mínimo de calorias. Já a linha relacionada à pobreza incorpora outros quesitos mais abrangentes, pois inclui gastos não alimentares como moradia, transporte, vestuário e lazer, que tendem a se elevar em função da urbanização. Para operacionalizar as questões da pobreza como método de inclusão ou exclusão em programas socioassistenciais ou de benefícios, se utiliza do parâmetro de extrema pobreza tracejando uma linha administrativa, com característica de linha absoluta com valor referenciado em uma cesta de alimentos ao suprir os mínimos sociais para sobrevivência, sendo reajustados quando necessário. Este se trata, portanto, das necessidades nutricionais mínimas ou insatisfeitas, um consumo calórico mínimo para ter uma vida produtiva. No entanto, o número de calorias mínimas depende da idade, do sexo, da massa corporal, do grau de atividade física do indivíduo, de se tratar de uma mulher grávida ou lactante e até da temperatura ambiente. Diante dessas especificidades, se utiliza um método de cálculo indireto. Os programas de transferência de renda trazem enquanto parâmetro de extrema pobreza uma renda per capita menor que 100,00 reais mensais. O IBGE apresenta em suas pesquisas um perfil dos extremamente pobres a partir do total de domicílios sem rendimento, os que tinham maior probabilidade de realmente estar na extrema pobreza, usando os seguintes critérios: • não ter banheiro de uso exclusivo; ou • não ter ligação com rede geral de esgoto ou pluvial e não ter fossa séptica; ou • estar em área urbana sem ligação à rede geral de distribuição de água; ou • estar em área rural sem ligação à rede geral de distribuição de água e sem poço ou nascente na propriedade; ou • não ter energia elétrica; ou • ter pelo menos um morador de 15 anos ou mais de idade analfabeto; ou 104 Unidade II • ter pelo menos três moradores de até 14 anos de idade; ou • ter pelo menos um morador de 65 anos ou mais de idade (apud FALCÃO; COSTA, 2014, p. 80). A economista Sonia Rocha (1997), pesquisadora do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS), trabalha o conceito de pobreza a partir da sua medição da pobrez, considerando as necessidades mínimas alimentares e não alimentares dos indivíduos e do seu atendimento pela via do mercado, com valores corrigidos anualmente de acordo com a inflação dos preços dos alimentos e itens básicos de consumo. Metodologias que levam em conta a inflação e as diferenças regionais de custo de vida são mais eficazes na medição da pobreza, pois identificam indivíduos que seriam invisíveis, caso fosse utilizada uma linha única e sem atualização. A pesquisadora interpreta que os pobres são os indivíduos cuja renda familiar per capita é inferior ao valor necessário para atender a todas as necessidades básicas (alimentação, habitação, transporte, saúde, lazer, educação etc.). Já os indigentes são os indivíduos cuja renda familiar per capita é inferior à quantia essencial para atender às necessidades básicas de alimentação. Para a autora, é a partir da delimitação da linha de indigência que são definidas as linhas de pobreza, que podem englobar outros aspectos, como o acesso à renda, a serviços públicos e a abrigo. A linha de pobreza é a soma da linha de indigência com os demais custos mínimos para um indivíduo sobreviver numa dada sociedade. Observação A renda se apresenta como a maior variável e a mais popular para conceituar e delimitar a pobreza. Considera-se pobreza a insuficiência de renda, medida apenas conforme existam famílias vivendo com renda familiar per capita inferior ao nível mínimo necessário para que possam satisfazer suas necessidades mais básicas. A pobreza, pensando em seu conceito, pode ainda incluir a ausência de elementos de ordem cultural e social em face dos recursos disponíveis de uma pessoa ou família, apresentando um caráter multidimensional, ou seja, inclui um conjunto de problemas mais abrangentes. Nesse caso, para considerar a pobreza com base nas concepções atuais, deve-se analisar também a capacidade de acesso dos indivíduos a serviços que lhe permitam uma melhor qualidade de vida como educação, saúde, vestuário, moradia, enfim, diversos fatores capazes de viabilizar uma condição de vida digna. Sob esse prisma, em relação ao conceito multidimensional, Silva (2010, p. 157) destaca: 105 DIAGNÓSTICO SOCIOTERRITORIAL O entendimento é de que o sistema de produção capitalista, centrado na expropriação e exploração para garantir a mais-valia, e a repartição injusta e desigual da renda nacional entre as classes sociais é responsável pela instituição de um processo excludente, gerador e reprodutor da pobreza, entendida enquanto fenômeno estrutural, complexo, de natureza multidimensional, relativo, não podendo ser considerado como mera insuficiência de renda [...]. Nesse enfoque, os pobres podem ser classificados nos seguintes grupos: • Pobres crônicos: são o núcleo da pobreza, uma vez que não possuem renda mínima para o consumo e não satisfazem suas necessidades básicas. • Pobres recentes: satisfazem suas necessidades básicas, mas têm uma renda abaixo da linha da pobreza, de modo que a redução de renda não expressa uma deterioração imediata no atendimento de suas necessidades básicas. • Pobres inerciais: têm renda suficiente para adquirir bens e serviços básicos, mas não conseguiram melhorar certas condições do seu padrão de vida. Essas famílias ou pessoas têm certas necessidades trazidas do seu passado, enraizadas no seu estilo de vida. Há, portanto, várias definições sobre a pobreza, reduzida ou não à insuficiência de renda, referente à condição de pobreza absoluta ou variável segundo a evolução de renda da sociedade, se a pobreza deve ter uma relação estreita com necessidades nutricionais ou se as necessidades básicas dependem de parâmetros culturais e sociais. Observação Desigualdade diz respeito à distância econômica, social e política entre os membros de uma sociedade. Amartya Sen (2000) em seus estudos sobre a pobreza, defende que a pobreza deve ser definida em termos de capacidades, porém expressa em termos de comodidades. Uma capacidade é a possibilidade de fazer algo, independentemente se um dado indivíduo elege ou não o fazer. Uma comodidade é um bem ou conjunto de bens, como calorias ou até dinheiro. O conceito de ‘funcionamentos’, que tem raízes distintamente aristotélicas, reflete várias coisas que uma pessoa pode considerar valioso fazer ou ter. Os funcionamentos valorizados podem variar dos elementares, como ser adequadamente nutrido e livre de doenças evitáveis, a atividades ou estados pessoais muito complexos, como poder participar da vida da comunidade e ter respeito próprio. 106 Unidade II A “capacitação” de uma pessoa consiste nas combinações alternativas de funcionamentos cuja realizaçãoé factível para ela. Portanto, a capacidade é um tipo de liberdade: a liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de funcionamentos (ou, menos formalmente expresso, a liberdade para ter estilos de vida diversos). Por exemplo, uma pessoa abastada que faz jejum pode ter a mesma realização de funcionamento quanto a comer ou nutrir-se que uma pessoa destituída, forçada a passar fome extrema, mas a primeira pessoa possui um “conjunto capacitário” diferente do da segunda (a primeira pode escolher comer bem e ser bem nutrida de um modo impossível para a segunda) (SEN, 2000, p. 95). Sen defende que outras capacidades podem também definir a condição de pobre. Por exemplo, um não pobre pode ser aquele cuja renda lhe permite sair na rua sem sentir-se envergonhado do que veste. Outra capacidade seria poder participar da vida política da comunidade, o que, em muitos casos, além de um mínimo de renda para vestir-se adequadamente, requer um endereço fixo. Desse modo, Amartya Sen defende uma linha (possivelmente) relativa de pobreza no espaço das comodidades, mas que seja fixa no espaço das capacidades. Em síntese, podemos compreender melhor a pobreza levando em conta as necessidades objetivas e percepções, compreendendo as chances de vida das pessoas, suas capacidades ou recursos e habilidades, principalmente daquelas que vivem em contextos de vulnerabilidades e desigualdades sociais. O Ipea ao buscar um conceito da pobreza, desenha o seguinte diagrama a seguir. O que é a pobreza? Índices multidimensionais Necessidades não satisfeitas Bens representativos Linhas absolutas Linhas relativas Linhas objetivas Linhas oficiais Linhas subjetivas Insuficiência de renda Figura 8 – Diagrama sobre a pobreza Segundo Soares (2009, p. 9), ao interpretar o diagrama sobre a questão da pobreza são desenhadas seis caixas que são fins de linha e que formarão as cinco seções descritas a seguir. 107 DIAGNÓSTICO SOCIOTERRITORIAL a) A pobreza se resume à insuficiência de renda medida usando uma pesquisa domiciliar? Não – Índices de pobreza. A primeira decisão é se a pobreza pode ser reduzida à insuficiência de renda ou constitui fenômeno demasiadamente complexo para restringir-se à renda declarada em uma pesquisa domiciliar. Se a resposta inferir que a pobreza é um conceito demasiadamente complexo para ser entendido como insuficiência de renda, então o caminho a ser trilhado é um índice de pobreza que inclua dimensões não monetárias. Há ainda correntes de pensamento que não apresentam restrições ao conceito de renda perse, mas acreditam que as pesquisas domiciliares não medem renda, entendida como comando sobre recursos, de modo adequado. Para estes, o caminho é um índice de pobreza construído com bens representativos. b) A pobreza, como conceito absoluto, pode ser ancorada em alguma necessidade objetiva? Sim – Linhas objetivas de pobreza. A única necessidade absoluta e objetiva, que vale tanto na Bélgica como em Bangladesh, é a alimentação. Todos precisam comer para viver. Este fato é utilizado desde as primeiras medições de pobreza feitas por Benjamin Rowntree (1901) no Reino Unido e também tem embasado a quase totalidade de linhas de pobreza de renda calculadas na América Latina. c) A pobreza é um conceito absoluto? Não – Linhas relativas de pobreza. Se na pergunta anterior a resposta compreende a renda domiciliar per capita como um bom indicador da condição de pobreza, a próxima pergunta questiona se a pobreza é uma condição que depende de critérios absolutos e fixos ou se deve ser definida com base na renda da qual uma sociedade de referência usufrui. Se a resposta afirma que depende de uma renda média de referência, então o caminho a ser trilhado são linhas de pobreza relativas. d) A pobreza deve ser definida por uma linha qualquer estabelecida para fins de políticas públicas? Sim – Linhas oficiais de pobreza. As políticas públicas com frequência definem implícita ou explicitamente linhas de pobreza, usadas como critérios para inclusão ou exclusão de programas sociais. Exemplos são o salário mínimo no Brasil, o limite para inclusão no sistema de welfare nos Estados Unidos, e a medida de um dólar PPC por dia usada pelas agências multilaterais para medir o progresso com relação às Metas do Milênio. e) A pobreza, como conceito absoluto, pode ser ancorada em alguma necessidade objetiva? Não – Linhas subjetivas de pobreza. Finalmente, há a posição de que ninguém pode saber onde começa a pobreza melhor que quem a vivencia. Esta é a abordagem das linhas subjetivas de pobreza. 108 Unidade II Ao interpretar a pobreza como fenômeno multidimensional, se faz necessário o uso de um indicador unidimensional que represente os índices unidimensionais de pobreza. Os índices de pobreza incluem a pobreza monetária, mas acrescentam também variáveis referentes ao acesso a serviços urbanos, como água e esgoto, e de saúde e educação. Segundo Jannuzzi et al. (2014, p. 766): Na perspectiva conceitual e metodológica da pobreza monetária, um indivíduo é considerado pobre se sua renda disponível, ou seu dispêndio total, for menor que um dado valor monetário normativamente estabelecido – a linha de pobreza – cujo valor representa o custo de todos os produtos e serviços considerados básicos para satisfazer suas necessidades de sobrevivência e consumo. Se os recursos disponíveis não são suficientes para a aquisição da cesta de alimentos necessários ao consumo calórico diário mínimo, o indivíduo é considerado em extrema pobreza. Quanto à questão de indicadores para mensurar a pobreza, no ano de 1997, a ONU criou um indicador chamado de Índice de Pobreza Humana (IPH) para mensurar a pobreza humana que utiliza no seu cálculo três dimensões base: • Longevidade: representada pela percentagem de pessoas que morrem antes dos 40 anos. • Conhecimento: representado pela percentagem de adultos analfabetos. • Nível de vida: representado pela percentagem de pessoas com acesso a serviços de saúde, percentagem de pessoas com acesso à água potável e percentagem de crianças subnutridas. Esse indicador surge da necessidade de medir e avaliar as diversas dimensões da pobreza e privação enquanto fatores de entrave ao desenvolvimento e bem-estar, em especial em países de África, Ásia e América Latina. Devido a algumas limitações desse indicador, em 2010, foi criado o Índice de Pobreza Multidimensional (IPM), que incluía dimensões no seu cálculo que não eram consideradas no IPH. Retomando a questão da pobreza multidimensional a partir de informações de pesquisas como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), possui as seguintes dimensões, componentes e indicadores: • Vulnerabilidade: apresenta como componentes a fecundidade, atenção e cuidados com crianças, adolescentes e jovens, atenção e cuidados especiais com idosos, dependência demográfica e a presença da mãe. Seus indicadores perfazem a presença de criança ou idosos na família e a existência de criança no domicílio cuja mãe já tenha morrido ou que não viva com a mãe, entre outros. Para os pesquisadores, investigar a presença da mãe é particularmente importante, já que, caso as crianças sejam criadas por terceiros, existe uma probabilidade de desproteção maior, 109 DIAGNÓSTICO SOCIOTERRITORIAL de exposição a trabalho em atividades extenuantes, de estarem fora da escola ou doentes sem atendimento médico adequado. • Falta de acesso ao conhecimento: cujos componentes são o analfabetismo, nível de escolaridade formal e qualificação profissional. Seus indicadores mostram a presença de adulto analfabeto na família, ausência de adulto com secundário completo e ausência de trabalhador com qualificação média ou alta, entre outros. • Acesso ao trabalho: compõem a disponibilidade de trabalho, qualidade e produtividade dos postos de trabalho disponíveis, entre outros. Os indicadores perfazem a verificação da ausência de uma pessoa ocupada no setor formal, ausência detrabalhador que esteja há mais de seis meses no trabalho atual e ausência de ocupado com rendimento superior a um salário mínimo. De acordo com estudos realizados pelo IBGE e outros órgãos de pesquisa, dotar as famílias de meios sem garantir que elas possam efetivamente utilizá-los para a satisfação de suas necessidades não é uma política eficaz, pois tão importante quanto assegurar que elas tenham acesso aos meios de que necessitam é dar-lhes a chance de usá-los. • Escassez de recursos: há uma série de indicadores que apontam a insuficiência de renda de uma família, utilizados, por exemplo, pela PNAD, como: verificação se a renda per capita é inferior à linha de extrema pobreza, se a renda familiar per capita é inferior à linha de pobreza ou ainda se a maior parte da renda familiar vem de programas de transferências. • Desenvolvimento infantil: composto de trabalho precoce, evasão escolar, atraso escolar e mortalidade infantil. Seus indicadores contemplam a presença de ao menos uma criança com menos de 14 anos trabalhando, presença de ao menos uma criança entre zero e 6 anos fora da escola e presença de pelo menos uma mãe que já teve um filho nascido morto, entre outros. • Habitação: composto de propriedade do imóvel, de déficit habitacional, de capacidade de abrigar do imóvel, de acesso inadequado para eliminar a água, de acesso inadequado a esgoto sanitário, de falta de acesso à coleta de lixo, de falta de acesso à eletricidade e de falta de acesso a bens duráveis. É mensurada pelos seguintes indicadores de densidade do domicílio, se o material de construção for permanente e se a família possuir fogão, geladeira, televisão, rádio ou telefone, entre outros itens. Interpretar a pobreza de maneira multifacetada representa romper com índices que têm a insuficiência de renda como único critério para estabelecer a linha de pobreza. Quando a tratamos dessa forma multifacetada e imbricado à noção de desigualdade social, incorporamos a questão do bem-estar como aspecto relevante. Pobreza e desigualdade são fenômenos complementares da análise da distribuição de renda. A mensuração da pobreza pelo critério multidimensional é mais que um baixo padrão de renda, expressa privação de capacidades, pelas dificuldades de acesso aos direitos básicos e pela negação da cidadania, pois alude à pobreza multidimensional como uma pobreza aguda, que reflete a privação em ativos humanos (educação, saúde e nível de vida). 110 Unidade II Observação O índice usado pelo Banco Mundial para quem está abaixo da linha da pobreza são aqueles que têm de sobreviver com um dólar Paridade do Poder de Compra (PPP) por dia. 6 NOÇÕES DE TÉCNICAS E METODOLOGIAS DE PESQUISA QUALITATIVAS E QUANTITATIVAS UTILIZADAS EM DIAGNÓSTICOS SOCIOTERRITORIAIS 6.1 Metodologia da pesquisa qualitativa O estudo efetivado pelo diagnóstico socioterritorial é fundamental para pensar as políticas públicas, pois considera aspectos culturais, condições de sobrevivência, sujeitos que dela fazem parte e construção histórica da formação da nossa sociedade de acordo com Koga (2011). Este é a expressão do cotidiano dos territórios onde as demandas se representam, permitindo aprofundar o conhecimento sobre as cidades, seus indicadores espaciais, econômicos e sociais desvelando situações desconhecidas para a proposição de oferta de serviços e benefícios compatíveis, respondendo a necessidades coletivas e garantidoras de direitos. Com foco na aproximação das demandas, o diagnóstico suscita o diálogo entre os dados coletados por sistemas de informações, o próprio diagnóstico, o monitoramento e a avaliação, realizando leitura sistemática da rede de serviços, das demandas e coberturas, avaliando a qualidade da rede de serviços, conhecendo as desproteções que devem ser afiançadas pelo Estado na proteção social. O diagnóstico socioterritorial apresenta, portanto, a necessidade de realizar incursões de agente e vai a campo para observar o território real, com o objetivo de captar a realidade vivida em cada território. Para sua elaboração, portanto, se faz necessário, além de conhecer a rede socioassistencial instalada no território, a cobertura dos serviços, a efetiva demanda atendida e a totalidade das pessoas demandatárias dos serviços, mas não atendidas, se utilizar de uma metodologia de pesquisa afinada que contemple a totalidade das demandas. Diante desse prisma, se faz necessário compreender as demandas metodológicas e de pesquisa qualitativa que demandam para a elaboração do diagnóstico socioterritorial. A pesquisa é um procedimento formal, com método de pensamento reflexivo, que requer um tratamento científico e se constitui no caminho para conhecer a realidade. Tem por finalidade desenvolver, esclarecer e ampliar o escopo das ideias, os procedimentos de amostragem e as técnicas de coleta de dados. 111 DIAGNÓSTICO SOCIOTERRITORIAL O olhar qualitativo busca significados desses processos sociais, os quais não podem ser conferidos apenas por dados estatísticos e numéricos. Retoma-se, aqui, categorias fundamentais como a historicidade dos fatos que constroem contextos sociais e fundam territórios. Assim, a pesquisa qualitativa pressupõe essa relação direta com o sujeito e o pesquisador, de modo intencional, que implica interações e trocas, valorizando a própria dinâmica expressa em seu cotidiano social. Trata-se, portanto, de uma nova ambiência, uma imersão na vida social do sujeito, ouvindo suas expressões, relatos, ou mesmo seus silêncios. A pesquisa qualitativa, portanto, se interessa em conhecer os modos de vida dos sujeitos, seus valores, seus sentimentos, suas crenças e suas opiniões e também suas atitudes e representações, suas experiências, sua compreensão e interpretação de determinados fatos e como estes repercutiram ou não em suas vidas. Significa que “o viver histórico cotidiano do sujeito, a sua experiência social expressa a sua cultura”, seu modo de enxergar e interpretar o mundo, traduzindo também, seus interesses e lutas (MARTINELLI, 1999, p. 23). Para o autor (1999, p. 23): É em direção a essa experiência social que as pesquisas qualitativas, que se valem da fonte oral, se encaminham, é na busca dos significados de vivências para os sujeitos que se concentram os esforços do pesquisador. Assim, podemos afirmar que, nessa metodologia de pesquisa, a realidade do sujeito é conhecida a partir dos significados que por ele lhe são atribuídos. A perspectiva qualitativa não busca a generalização dos resultados, mas sim que responda questões particulares, preocupando-se com um nível de realidade que não pode ser quantificado, ou seja, esse tipo de pesquisa trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis (MINAYO, 1992). O exercício de pesquisa qualitativa, segundo Martinelli (1999), subentende alguns pressupostos como o reconhecimento da singularidade do sujeito que se expressa, o conhecimento de sua experiência social e os significados atribuídos à sua trajetória de vida. Observação A pesquisa qualitativa surge contrapondo-se à forma positivista de conhecer e produzir conhecimentos para o âmbito das ciências humano-sociais. 112 Unidade II Segundo Chizzotti (2001, p. 79), A abordagem qualitativa parte do fundamento de que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, uma interdependência viva entre o sujeito e o objeto, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito. O conhecimento não se reduz a um rol de dados isolados, conectados por uma teoria explicativa; o sujeito-observador é parte integrante do processo de conhecimento e interpreta os fenômenos, atribuindo-lhes um significado. O objeto não é um dado inerte e neutro, está possuído de significados e relações que sujeitos concretos criam em suas ações. Apesquisa qualitativa preocupa-se, portanto, com aspectos da realidade que não podem ser quantificados, centrando-se na compreensão e explicação da dinâmica das relações sociais. Para Minayo (2001), a pesquisa qualitativa trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. Aplicada inicialmente em estudos de antropologia e sociologia, como contraponto à pesquisa quantitativa dominante, tem alargado seu campo de atuação a áreas como a psicologia e a educação. A pesquisa qualitativa é criticada por seu empirismo, pela subjetividade e pelo envolvimento emocional do pesquisador (MINAYO, 2001, p. 14). As características da pesquisa qualitativa são: objetivação do fenômeno; hierarquização das ações de descrever, compreender, explicar, precisão das relações entre o global e o local em determinado fenômeno; observância das diferenças entre o mundo social e o mundo natural; respeito ao caráter interativo entre os objetivos buscados pelos investigadores, suas orientações teóricas e seus dados empíricos; busca de resultados dos mais fidedignos possíveis; oposição ao pressuposto que defende um modelo único de pesquisa para todas as ciências. Sobre a natureza da pesquisa qualitativa, Moreira (2002) aborda as características básicas dessa metodologia, apresentando-as em seis itens. Para ele, a pesquisa qualitativa inclui: • A interpretação como foco. Nesse sentido, há um interesse em interpretar a situação em estudo sob o olhar dos próprios participantes. • A subjetividade é enfatizada. Assim, o foco de interesse é a perspectiva dos informantes. • A flexibilidade na conduta do estudo. Não há uma definição a priori das situações. • O interesse é no processo e não no resultado. Segue-se uma orientação que objetiva entender a situação em análise. • O contexto como intimamente ligado ao comportamento das pessoas na formação da experiência. 113 DIAGNÓSTICO SOCIOTERRITORIAL • O reconhecimento de que há uma influência da pesquisa sobre a situação, admitindo-se que o pesquisador também sofre influência da situação de pesquisa. Ainda quanto aos tipos de pesquisa, trataremos das pesquisas documental e bibliográfica. A pesquisa documental se apresenta como um procedimento que se utiliza de métodos e técnicas para a apreensão, compreensão e análise de documentos dos mais variados tipos, a partir de fontes primárias, dados originais e que têm relação direta com os fatos a serem analisados. Os documentos de fonte primária incluem fontes compiladas, arquivadas sistematicamente ou não por órgãos particulares ou oficiais. Nessa pesquisa, os documentos são reunidos e avaliados sujeitos a uma apreciação crítica para verificar sua relevância em função dos limites impostos pelos documentos legais. Nessa fase, há cinco dimensões para essa análise, sendo estas o contexto social do documento; seu autor; sua autenticidade e confiabilidade; sua natureza; e seus conceitos-chave e lógica interna. A pesquisa bibliográfica é feita a partir do levantamento de referências teóricas já analisadas e publicadas por meios escritos e eletrônicos, como livros, artigos científicos, páginas de web sites. Qualquer trabalho científico inicia-se com uma pesquisa bibliográfica, que permite ao pesquisador conhecer o que já se estudou sobre o assunto. Existem, porém, pesquisas científicas que se baseiam unicamente na pesquisa bibliográfica, procurando referências teóricas publicadas com o objetivo de recolher informações ou conhecimentos prévios sobre o problema a respeito do qual se procura a resposta (FONSECA, 2002, p. 32). Para Gil (2007, p. 44), os exemplos mais característicos desse tipo de pesquisa são investigações sobre ideologias ou aquelas que se propõem à análise das diversas posições acerca de um problema. A pesquisa bibliográfica centra-se nas fontes secundárias, em informações que foram trabalhadas por outros estudiosos e, por isso, já são de domínio científico. As fontes secundárias, portanto, já passaram por tratamento científico e são reconhecidas por sua relevância científica. Estas são coletadas através de documentação bibliográfica já elaborada e publicada (LAKATOS; MARCONI, 2007), como é o caso de livros, artigos, dissertações e teses, palestras. Uma característica importante da pesquisa bibliográfica é a flexibilidade de realizar retornos frequentes às fontes de dados, permitindo definir ou reformular o objeto de estudo. A pesquisa documental pode ser confundida com a pesquisa bibliográfica. A pesquisa bibliográfica utiliza fontes constituídas por material já elaborado. A documental tem fontes mais diversificadas sem tratamento analítico, como jornais, revistas, documentos oficiais, cartas, filmes, fotografias, televisão. Trataremos agora quanto aos instrumentos de coleta de dados para a elaboração dos diagnósticos socioterritoriais. 114 Unidade II 6.1.1 Técnica de coletas de dados: entrevista e grupo focal A entrevista é a técnica mais utilizada no processo de trabalho de campo, em gerar e manter conversações com pessoas consideradas chaves no processo de investigação. É recurso comumente utilizado por pesquisadores sociais e, importante frisar, em geral, está associada ao uso de outras técnicas de pesquisa. Para isso, segue-se um conjunto de tópicos e interpretações que vão criar os dados da investigação. Ela se estabelece a partir de uma conversa que pode ser mais ou menos sistemática, cujo objetivo é obter, recuperar e registrar as experiências de vida guardadas na memória das pessoas. O entrevistador tem um papel ativo na busca de lembranças e reflexões, mas isso deve ser feito sem que haja uma indução em busca da resposta que se quer ouvir. Através da entrevista, é possível construir histórias de vida, captar experiências, valores, opiniões, aspirações e motivações dos entrevistados, escolhidos segundo os critérios e interesses do tema investigado. É importante lembrar que a fala do entrevistado representa uma autodescrição e uma apresentação de si mesmo. Em muitos casos, os entrevistados podem tentar criar empatia ou dar respostas consideradas por eles adequadas ao que o entrevistador supostamente espera. Superar esse obstáculo, que pode gerar respostas evasivas ou inadequadas, é o principal desafio do uso da entrevista em pesquisas das ciências sociais. As entrevistas podem assumir diversas formas, como a entrevista espontânea ou totalmente desestruturada, a entrevista focal e a entrevista de grupo de enfoque e até mesmo entrevistas estruturadas. As entrevistas estruturadas são aquelas que apresentam um conjunto de questões, em que o pesquisador administra a cada sujeito na mesma sequência e usando as mesmas palavras. Para o investigador, esse questionário responde suas hipóteses, admitindo que o respondente tem condições necessárias para fornecer os dados que julga relevantes. O pesquisador ainda entende que os entrevistados compreenderão da mesma forma todas as perguntas levantadas. As entrevistas não estruturadas ou completamente abertas são aquelas que apresentam um número de questões, mas não são específicas nem fechadas. Possuem um guia para que o pesquisador e os entrevistados sigam, podendo também haver a possibilidade de adição de novas questões para que se possa compreender melhor determinado tópico. Há a suposição de que os informantes conhecem pouco sobre o assunto em pauta, cabendo ao investigador o papel de ouvir e entender. Já nas entrevistas semiestruturadas, as respostas são relativamente livres, ao mesmo tempo em que se valoriza a presença do investigador, oferece todas as perspectivas possíveis para que o informante disponha de liberdade e espontaneidade necessárias que enriquecerão a investigação. Sugere também que o entendimento do termo entrevista semiestruturada é aquele que parte de certos questionamentos básicos,apoiados em teorias e hipóteses (que interessam à pesquisa) e que, em seguida, oferecem amplo campo de interrogativas, frutos de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se recebem as respostas do informante. 115 DIAGNÓSTICO SOCIOTERRITORIAL Semiestruturadas (Tema) Semiestruturadas (Questionário) Estruturadas (Questionário) O pesquisador segue um roteiro previamente definido, com perguntas predeterminadas; É preciso que as mesmas perguntas sejam feitas da mesma maneira para os entrevistados; O objetivo da padronização é obter respostas que permitam a comparação com as demais entrevistas. O pesquisador segue um conjunto de tópicos que devem ser abordados; Não existem perguntas previamente elaboradas e nem uma ordem prestabelecida dos assuntos a serem tratados; Possibilita que o pesquisador aborde temas de seu interesse, a partir das respostas fornecidas pelos entrevistados. Se aproxima de uma conversa entre o entrevistador e o entrevistado; O entrevistado tem a liberdade de desenvolver assuntos de sua preferência na direção que lhe for conveniente; São adequadas para revelar a hierarquia de temas e argumentos de um entrevistado. Muito utilizadas em etnografias. Figura 9 – Tipos de entrevistas A entrevista pode ser efetivada através do preenchimento de questionários, ser feita com ou sem a presença do pesquisador, podendo conter questões fechadas e abertas. Quando o pesquisador está presente, o questionário pode ser preenchido por ele a partir das respostas verbalizadas pelo entrevistado, ou pelo próprio entrevistado. Quando o pesquisador não está presente, o envio do questionário pode ser feito por internet ou pelo correio. Além disso, ainda existem os questionários aplicados por meio de ligações telefônicas. Quadro 2 – Diferenças entre aplicação direta e indireta de entrevistas Tipo Vantagens Desvantagens Direta a) o índice de resposta é mais alto do que em aplicações diretas; b) normalmente, as pessoas apreciam mais falar do que preencher questionários; c) a entrevista face a face resolve o problema na inabilidade em responder por escrito. Por exemplo, analfabetos podem participar; d) a intimidade propiciada pela relação interativa da entrevista facilita a abordagem de assuntos delicados. a) apesar do crescente uso de videoconferências, a realização de entrevistas a distância ainda é um obstáculo; b) sua realização leva mais tempo do que a aplicação de um questionário. Indireta a) não exige interação face a face. Pode ser distribuído por correio, internet e telefone. Pode ser aplicado simultaneamente a vários entrevistados; b) atinge maior número de pessoas; c) obtém respostas mais rápidas; d) informantes podem se sentir mais seguros por causa do caráter anônimo. a) quando não há interação face a face entre entrevistador e entrevistado, apresenta alta taxa de perguntas sem resposta; b) em casos em que não há a aplicação do questionário através da leitura das questões e alternativas pelo pesquisador, não pode ser aplicado com analfabetos. Fonte: Brasil (2015b, p. 61). 116 Unidade II O grupo focal é uma técnica de pesquisa de caráter qualitativo que procura apreender concepções e percepções das pessoas sobre determinado assunto ou tema. Essas concepções e percepções são obtidas em interação discursiva com um grupo de pessoas desconhecidas, mas com perfil determinado e por um tempo preestabelecido, sob a moderação de um pesquisador. O grupo focal é uma situação de conversação criada artificialmente, um tipo de entrevista em grupo, um laboratório, com a finalidade de captar e compreender concepções e percepções. As pessoas são recrutadas a partir de características comuns, sobretudo as sociodemográficas (renda, escolaridade, sexo e idade, de forma mais geral). A essência do grupo focal consiste justamente em apoiar-se na interação entre seus participantes para colher dados a partir de tópicos fornecidos pelo pesquisador. A coleta de dados proveniente do grupo focal contrasta com aqueles colhidos em entrevistas individuais, pois, nessa modalidade, os indivíduos em geral precisam ouvir as opiniões dos outros antes de formar as suas próprias. O grupo focal deve ser composto de cerca de 7 a 15 indivíduos, que não se conheçam, que compartilhem uma identidade referente ao tema estudado, sendo as discussões conduzidas pelo pesquisador, chamado de moderador. Seu objetivo é explorar as percepções, ideias e opiniões sobre um tema específico. Observação O papel da moderação é dar ritmo à conversação, equilibrando o uso da palavra e direcionando o debate no sentido das questões investigadas. Para tanto, é necessária a elaboração de um bom roteiro de questões a ser seguido pelo moderador para que não se afaste do tema central. O roteiro tem questões mais centrais e outras secundárias, mas todas devem convergir para o problema central da pesquisa. É fundamental a clareza do assunto investigado e das questões a serem pesquisadas. O grupo focal conduz os participantes a emitir suas opiniões por meio de uma interação discursiva. Essa é a principal diferença em relação a uma entrevista em profundidade, na qual uma pessoa responde a perguntas tendo, no máximo, como contraponto o entrevistador. 6.1.2 Mapa falado O mapa falado, de acordo com Faria e Ferreira Neto (2006), é um desenho representativo do espaço ou território que está sendo objeto de reflexão. Nesse sentido, é uma ferramenta que permite discutir diversos aspectos da realidade de forma ampliada. Recorrendo à importância do diagnóstico socioterritorial, o mapa falado oportuniza que as percepções das pessoas sejam consideradas, contribuindo para que a leitura dos territórios considere suas vivências, suas relações com e no território, pontos de proteção e desproteção social. 117 DIAGNÓSTICO SOCIOTERRITORIAL O principal objetivo de utilização dessa ferramenta no processo de vigilância socioassistencial é conhecer o território a partir dos diversos atores da rede socioassistencial e dos usuários sobre o território e sobre as pessoas que nele vivem. A cada novo componente do território representado, exploramos o conhecimento do grupo a respeito. Ao final desse processo, iniciaremos a construção de um diagnóstico socioterritorial considerando as particularidades de cada território do município, suas desproteções e potencialidades. Vale ressaltar que é umas das reponsabilidades da vigilância socioassistencial colaborar na elaboração e atualização do diagnóstico socioterritorial do município com informações especializadas dos riscos e vulnerabilidades e da consequente demanda de serviços de proteção social básica e de proteção social especial, bem como informações igualmente especializadas referentes ao tipo e volume de serviços efetivamente disponíveis e ofertados à população. Com esse processo, almejamos tornar a construção do diagnóstico socioterritorial participativo, dinâmico e mais próximo da realidade dos diversos territórios. Geralmente é desenhado no chão e sua proposição inicial parte da dinâmica descrita a seguir. De acordo com Faria e Ferreira Neto (2006), em sua construção, os integrantes têm liberdade de fala e representação, desenhando da forma como quiserem suas demandas, apenas norteados por perguntas-chaves, tais como: O que existe aqui? O que mais podemos ver? Como? Quando? Onde? Para quê? Por quê? Quanto? Sempre foi assim? A utilização dessas perguntas permite que os componentes do território que forem percebidos pelos integrantes da atividade sejam explorados de forma a permitir a livre manifestação. Os elementos que formarão o mapa são representações dos componentes daquele espaço em análise destacados pelo grupo na discussão. Assim como todas as outras ferramentas que serão aqui apresentadas, o mapa é construído com elementos móveis disponíveis no local e disponibilizados pela moderação: folhas, flores, pedras, sementes, barbante, giz colorido, entre outros, são alguns dos recursos utilizados
Compartilhar