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FUNDAMENTOS ÉTICOS DA ESTRATÉGIA 
EMPRESARIAL 
 
 
 
 Ricardo Vélez Rodríguez, 
Coordenador do Centro de Pesquisas 
Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da 
UFJF; 
Doutor em Filosofia pela UGF; 
Pós Doutorado em Ciência Política no Centre 
de Recherches Politiques Raymond Aron – 
Paris. 
rive2001@aol.com 
 
 
Quando um grupo de pessoas se reúne para constituir uma organização, precisa ter 
algo em comum. Nas comunidades de animais, o elemento aglutinador é o instinto, que lhes 
possibilita dar uma resposta às necessidades básicas. Nas comunidades humanas, as 
tendências instintivas são canalizadas pela razão (da qual emana o direito). Sobre a base de 
ordenação jurídica estrutura-se o grupo humano. Sem essa ordenação, a comunidade 
humana se dissolve. É o que os filósofos denominam de situação de anomia ou carência de 
organização legal. Mas o direito, para ser fator de aglutinação humana, precisa de um 
embasamento cultural. Imaginemos que a sociedade brasileira passasse a ser, por um dia, 
governada à luz do Alcorão, que constitui o referencial culturológico dos povos de tradição 
muçulmana. Simplesmente o conjunto de práticas legais apresentadas nesse código, não 
pegaria, como se diz popularmente. Para que uma lei pegue, é necessário que exista uma 
base cultural, que hoje identificamos com uma certa ordem de valores. 
A finalidade deste texto consiste em identificar os elementos ético-culturais 
necessários à ordenação das sociedades humanas, destacando o conjunto de valores morais 
que deve inspirar ao cidadão na construção da sociedade, particularmente na organização 
das empresas. O Fundamento Ético constitui o chão firme para o desenvolvimento da 
estratégia empresarial. Sem ele, cai por terra todo esforço organizacional. Veremos de que 
forma o âmbito da legalidade pressupõe uma ordem de valores que constitui um ethos 
(explicitado na moral). Serão desenvolvidos os seguintes itens: 1) A crise de 
governabilidade ensejada pela Constituição de 1988 e a valorização da discussão ética. 2) 
Conceitos básicos acerca de ética e moral. 3) Conceitos básicos acerca dos valores e da 
pessoa. 4) Modelos de moral social na cultura brasileira. 5) O empresário, os valores morais 
e a cidadania no Brasil contemporâneo. 6) O fenômeno da globalização: pressupostos éticos 
e exigências educacionais. 
 
1) A crise de governabilidade ensejada pela Constituição de 
1988 e a valorização da discussão ética 
A reflexão sobre a moral e a ética ganhou muita popularidade no Brasil, ao longo 
dos últimos dez anos. Tradicionalmente as questões relativas à moral eram tratadas com 
certo menosprezo, como se fosse algo careta. Moral era confundida com moralismo, que 
consiste numa atitude puramente formal, que se apega a usos e costumes adotados por 
tradição e muitas vezes ultrapassados, sem enxergar a conveniência de engajamento 
consciente e responsável, a fim de renovar os critérios de comportamento quando isso se 
torne necessário. A opinião pública brasileira esperava que a democracia se consolidaria 
sem problemas, após a promulgação da "Constituição Cidadã" de 1988. Acontece que a 
nossa Carta Magna trouxe mais perplexidades do que soluções. O primeiro problema 
consistiu em que ela negava, na segunda parte, o que apregoava na primeira. Ou seja: os 
direitos do cidadão, que apareciam claramente defendidos na primeira parte, tornar-se-iam 
inviáveis na segunda, que consagrou velhas estruturas corporativistas e que passou, de 
forma idealista, a fixar no texto constitucional coisas inviáveis, como juros tabelados. As 
incoerências da Carta Magna produziram o fenômeno da ingovernabilidade. Para poder 
administrar o país nesta última década, poder executivo, legisladores e magistrados tiveram 
de deixar muita coisa sem regulamentar. A principal conseqüência que disso tiraram os 
brasileiros é a de que a construção da democracia não acontece por arte de magia, mas que 
se trata de um trabalho diuturno e penoso, que pressupõe a explicitação dos fundamentos 
morais da lei, e que se consolida num longo processo de ensaios de acerto e erro, que 
implica em muita discussão, disciplina parlamentar, bom senso, paciência infinita e 
consciência cívica. 
Duas citações servirão para ilustrar o descompasso entre a Carta de 1988 e a 
realidade do país. Em relação a esse fato, escreveu Paulo Mercadante: "A emoção e o 
açodamento, unidos numa interseção de nacionalismo e populismo, produziram uma 
Constituição que prima pela idealidade. Um diploma ilusório por razões fortuitas, nascido 
sem o selo do necessário. O descompasso entre os dois requisitos para um saldo positivo (o 
acaso e a necessidade) gerou, paradoxalmente, o fenômeno do pretensioso parto dos 
montes, segundo o verso de Horácio (...). Tomados pela euforia, decidiram os constituintes 
redigir um texto minucioso e bombástico, sujeito, por inadequação à morte prematura. 
Esqueciam-se os progressistas que uma Carta não pode contrapor-se ao projeto histórico de 
uma nação" [Mercadante, 1988: 505]. 
Miguel Reale, por sua vez, escreveu o seguinte: "Uma nova Constituição pode não 
redundar, de per si, em possibilidades de cultura e riqueza, que só o trabalho perseverante e 
metódico proporciona, mas pode embaçar e até mesmo travar o progresso de uma nação. 
Infelizmente, a Carta que vai reger o nosso destino pertence a esta segunda categoria, por 
termos sido, mais uma vez, vítimas das oscilações pendulares que têm marcado nossa vida 
política ao longo do tempo (...). Como sinal de nossa imaturidade, carecemos do devido 
senso histórico (...). Assim é que, em 1946, reagimos à ditadura do Estado Novo reduzindo 
em demasia as atribuições do Poder Executivo; forçando uma política de barganha ou de 
confronto com o Legislativo, foi este que foi duramente atingido com o advento dos Atos 
Institucionais e as Cartas de 1967 e 1969. Agora, legislando novamente sob o signo do 
revide, voltamos a fortalecer o Congresso Nacional além do necessário. Eram requeridas, 
sem dúvida, medidas de contenção contra os excessos de nosso presidencialismo 
caudilhesco, mas não até o ponto de subordiná-lo às deliberações precárias de um Poder 
Legislativo apoiado em clientelas personalistas e não em partidos distintos, não digo por 
seus programas, que seria exigir muito em nossas circunstâncias, mas pelo menos por seus 
planos de governo" [Reale, 1988: 498]. 
 
 
Esperávamos, deitados como frisa Meira Penna "em berço esplêndido" [cf. Penna, 
1974], que chegássemos ao primeiro mundo de trem bala, com tudo resolvido no terreno 
econômico pelo Plano Real e, no terreno político, pela ação dos nossos constituintes, que 
elaborariam uma Carta democrática que garantiria o nosso convívio civilizado. Não 
contávamos com a desagradável constatação de que a Nova República já nasceu com o 
pecado original de velhas práticas estatizantes e cartoriais, por nós assimiladas ao longo de 
séculos de cultura patrimonialista. Justamente no momento em que a sociedade brasileira 
percebeu o beco sem saída das contradições da democracia, começou a ter validade a 
discussão das questões relacionadas à ética e à moral. Tinha entrado em crise o velho 
arquétipo pombalino-getuliano, segundo o qual o Estado Empresário garante a riqueza da 
Nação e equaciona os problemas da ordem social e política e da moral dos cidadãos [cf. 
Paim, 1982]. Ficamos entregues a nós mesmos, com a incômoda incumbência de 
pensarmos de novo tudo de baixo para cima, sem esperarmos fórmulas pré-fabricadas em 
Brasília, a partir unicamente das nossas convicções. Tinha acabado definitivamente a 
expectativa positivista de a moralidade ser gerada a partir da lei positiva. Era necessário 
elaborar critérios para avaliar os pressupostos morais da legislação. 
 
2) Conceitos básicos acerca de ética e moral 
Antes de iniciarmos uma reflexão acerca da ética nas organizações, devemos deixar 
claras algumas noções fundamentais. Esclareceremos primeiro os seguintes conceitos 
básicos relacionados ao tema em apreço: moral,ética, moral individual, moral social, moral 
social vertical, moral social horizontal ou consensual, moral de convicção (ou ética dos 
intelectuais), moral de responsabilidade (ou ética dos políticos). Deixaremos para o 
próximo item questões correlatas como os valores enquanto fundamento ontológico da 
ética, as relações entre valor e pessoa, a hierarquia dos valores e os valores morais como 
centro do universo axiológico. 
Miguel Reale (nascido em 1912), o mais 
importante jurista brasileiro contemporâneo, na 
cerimônia de posse na Academia Brasileira de 
Letras. 
 
 
A moral pode ser definida assim: conjunto de normas de conduta adotado como 
universalmente válido por uma comunidade humana, num lugar e num tempo determinados 
[temo-nos baseado, para estas noções, em: Paim, 1992]. Três aspectos ressaltam nesta 
definição: em primeiro lugar, o conjunto de normas de conduta adotado como 
universalmente válido; ou seja, a moral sempre se apresenta como algo de imperativo, em 
relação à ação humana e em face das noções de bem e de mal. Difere de outras pautas 
comportamentais como os regulamentos ou a moda, pela feição de norma absoluta de 
conduta que não admite, portanto, negociação, porquanto intimamente vinculada às noções 
de bem e de mal. Destaca-se, em segundo lugar, o aspecto da comunidade humana que 
adota o código moral. Efetivamente, esta sempre esteve relacionada a um específico 
contexto humano, a uma certa comunidade, como já fica claro da forma em que Aristóteles 
entendia a moral grega na Ética a Nicômacos [cf. Aristóteles, 1992], ou como aparece na 
história da consolidação da moral no povo judeu, segundo a tradição bíblica. Em terceiro 
lugar, salta à vista o aspecto da espaço-temporalidade da lei moral, essencialmente 
vinculada à história humana e passível, sob este ângulo, de ajustes no seu evoluir. 
A ética consiste no estudo racional e sistemático da moral. Enquanto esta constitui a 
variável concreta, a ética representa o aspecto abstrato e teórico da mesma. Em relação a 
um determinado código moral, como o fixado na Grécia, por exemplo, pela pedagogia dos 
sofistas ou paidéia, podemos encontrar várias abordagens teóricas: as representadas pela 
ética socrática (presente nos Diálogos que Platão dedicou a cultuar a memória de seu 
mestre), pela ética da pólis (que Platão concebeu como ideal da cidade grega, na sua obra A 
República) ou pela ética da bem-aventurança ou da felicidade (sistematizada por 
Aristóteles nas suas obras Ética a Nicômacos, Ética a Eudemo e Grande Ética, levando 
em consideração a abertura da Grécia ao mundo, no império de Alexandre). 
De forma semelhante, em relação ao código moral emergente da tradição judaico-
cristã, encontramos várias éticas que tentam explicitar teoricamente os seus aspectos 
fundamentais, como a ética do dever tematizada por Kant no século XVIII, a ética de 
menosprezo do mundo típica da espiritualidade dos monges na Idade Média, a ética do 
trabalho presente na obra de Calvino (no século XVI), a ética de convicção e de 
responsabilidade (tematizadas por Max Weber no século XX, para ilustrar, 
respectivamente, a ética dos intelectuais e a dos políticos), etc. As éticas profissionais 
constituem uma variante teórica do código moral judaico-cristão e se alimentam da rica 
tradição filosófica do Ocidente, que foi adaptando a reflexão ética aos problemas 
emergentes na modernidade, em decorrência da necessidade de ajustar a preservação dos 
direitos humanos básicos (expressão hodierna da moral ocidental) às exigências da prática 
profissional, nas suas várias especializações. 
O código moral pode ser abordado de dois ângulos: individual e social. O código 
moral individual consiste naquilo que o filósofo alemão Immanuel Kant denominava, no 
Antônio Paim, o mais importante estudioso 
contemporâneo, no Brasil, das questões relativas 
à ética e à moral. 
final do século XVIII, de imperativo categórico da consciência, que nos exige agir de 
acordo com ela custe o que custar, sem enxergar as conseqüências. Max Weber aprofundou 
teoricamente sobre esse tipo de moral, à luz do conceito de ética de convicção, que 
constitui o modelo presente na moral evangélica e que deveria inspirar a tarefa dos 
intelectuais, preocupados unicamente com a busca diuturna da verdade, sem calcular 
vantagens ou desvantagens. O código moral individual configurou-se tradicionalmente no 
Ocidente a partir da religião cristã. Mas Immanuel Kant elaborou uma fundamentação 
eminentemente racional para a moral individual, na sua Fundamentação da metafísica dos 
costumes, como ficará explicado no próximo item. 
 
 
Já o código moral social consiste no mínimo comportamental a ser exigido dos 
membros de uma comunidade para que ela não se desintegre. A filosofia inglesa, ao longo 
dos séculos XVII e XVIII desenvolveu ampla reflexão sobre a moral social, em decorrência 
do fato de ter se consolidado na Inglaterra a tolerância em matéria religiosa. 
O código de moral social pode ser formulado de duas formas: vertical ou 
horizontal. Ocorre a moral social vertical quando o mínimo comportamental exigido dos 
membros de uma sociedade é imposto por um grupo, uma pessoa ou um estamento que 
detém o poder. É isso o que ocorreu, por exemplo, nos países comunistas ao longo do 
século XX, onde o Estado foi o exclusivo formulador das normas de comportamento moral 
da sociedade. Outro exemplo de moral social vertical foi o acontecido na Colômbia, no 
período compreendido entre 1886 e 1991, em que a religião católica foi considerada como a 
religião oficial do Estado, passando este à Igreja Católica a incumbência de formular a 
moral social. Outro exemplo seria o do Irã, no período que se estende de 1979 até os nossos 
dias, em que os Aiatolás chamaram para si a função de formular e implantar a moral social 
xiita. 
Ocorre a moral social horizontal (ou consensual), quando o mínimo 
comportamental exigido dos membros de uma sociedade é fixado consensualmente por 
eles. Esse modelo deu-se historicamente na Inglaterra a partir do final do século XVIII, 
com a adoção da tolerância religiosa. Se todas as crenças eram válidas, não existiria 
nenhuma Igreja que fosse privilegiada para pautar a moral social. Decorreu daí que a moral 
social somente poderia ser fixada por consenso. Essa moral social consensual seria a única 
base possível para o exercício da autoridade racional, na forma em que Weber tematizou 
esse tipo ideal de dominação no seu ensaio intitulado A política como vocação [cf. Weber, 
1993]. A prática verdadeira da democracia implica a consolidação, na sociedade, de uma 
moral social consensual. 
A moral de responsabilidade consiste em agir calculando o resultado que advirá, 
para a comunidade, da ação executada. É o ideal que deve pautar, no sentir de Max Weber, 
Immanuel Kant (1724-1804), o filósofo 
alemão que deitou as bases da moral 
moderna. 
a ação dos políticos, que devem sempre calcular, nas suas ações, as conseqüências que das 
mesmas decorrerão para as comunidades onde eles exercem o poder. Dos políticos nós 
queremos cobrar duas coisas, no que tange ao seu comportamento: que preservem a 
dignidade do cargo e que cumpram o que prometeram aos seus eleitores. Imediatamente 
não será cobrado deles o que atinja o seu foro íntimo, salvo se isso tiver conseqüências na 
prática governamental ou representativa. Um exemplo dessa expectativa, presente na 
sociedade, é a valoração altamente positiva que os historiadores franceses têm em relação a 
Napoleão Bonaparte, que conseguiu tirar a França do redemoinho revolucionário, em que 
pese a sua ambição e as suas ambigüidades morais no terreno particular. Um contra-
exemplo dessa expectativa seria o do juiz carioca que, em meados dos anos oitenta, 
aprovou, em plena inflação galopante, liminar que castigava os usuários com aumento 
intolerável no preço das passagens, tendo dado ensejo a graves distúrbios populares, no 
centro do Rio, nos quais foram incendiados mais de 20 veículos. O juiz, ao que consta,era 
um bom sujeito, pai exemplar, mas péssimo homem público, pois quando entrevistado pela 
TV afirmou mais ou menos o seguinte: "nunca imaginei que uma liminar fosse causar tanto 
tumulto", tendo se revelado absoluto desconhecedor das conseqüências sociais adversas que 
se seguiriam à sua infeliz decisão. 
 
 
3) Conceitos básicos acerca dos valores e da pessoa 
Quando agimos seguindo a voz da nossa consciência, não nos pautamos por normas 
exteriores a nós (que constituem o Direito), mas por uma regra de conduta interna, à qual 
nos sentimos obrigados. Se a desobedecermos, poderemos ocultar isso dos demais, mas não 
de nós mesmos. Sentimos um desconforto íntimo que chamamos de "remorso". Vamos 
centrar a atenção na forma em que se dá essa voz da nossa consciência. 
Immanuel Kant, como já foi dito, dedicou a sua obra intitulada Fundamentação da 
Metafísica dos Costumes [cf. Kant, 1973], ao estudo da forma em que opera em nós a voz 
da consciência moral. Tradicionalmente a consciência moral alicerçava-se na religião. Mas, 
no século XVIII, Kant considerava que era necessário fundamenta-la racionalmente, em 
decorrência do fato de começarem a aparecer incrédulos. Ora, perguntava o filósofo 
alemão, se a moral continuasse a se fundamentar na religião, não existindo esta para 
algumas pessoas, tudo seria permitido para elas. 
Kant considerava, de outro lado, que a razão não é suficientemente capaz de guiar 
com segurança a vontade no que concerne ao seu objeto (a ação). Supunha que um instinto 
natural a guiaria de forma mais segura. Se a razão não é uma faculdade que possa exercer 
influência sobre a vontade, a sua verdadeira função consiste, no que tange à ação, em 
encontrar uma vontade boa em si mesma (ou seja, sem o propósito de usá-la como meio 
para atingir qualquer outro fim). Para Kant, uma ação cumprida por dever tira seu valor 
Max Weber (1846-1920), autor de Economia e 
Sociedade, marco fundamental para o estudo da 
Empresa Capitalista e das sociedades industriais. 
moral não do fim que por ela possa ser alcançado mas da máxima que a determina. 
Distingue máxima de lei, entendendo pela primeira o princípio subjetivo (a representação 
da lei), enquanto a segunda serviria também de princípio prático se a razão tivesse plenos 
poderes sobre a ação. O valor moral da ação, segundo Kant, não reside no efeito que dela se 
espera, mas da obediência a um princípio geral que se formula deste modo: "que eu possa 
também querer que minha máxima se torne lei universal". 
Kant considera que é possível encontrar o princípio supremo da moralidade sem 
apelo à experiência. Sendo o homem um ser racional, ele é o único que se acha em 
condições de agir segundo a representação da lei ou segundo princípios. A representação de 
um princípio objetivo é denominada por Kant de mandamento e a sua fórmula chama-se 
imperativo. O imperativo moral é único e recebe o nome de imperativo categórico, sendo a 
sua fórmula a seguinte: "Procede unicamente segundo aquela máxima, em virtude da qual 
possas querer que ela se torne uma lei universal". Dessa fórmula, Kant deduz o seguinte 
imperativo prático: "Procede de maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como 
na de todos os outros, sempre e ao mesmo tempo como fim, e nunca como puro meio". 
Pode-se sintetizar esse imperativo prático da seguinte forma: "o ser humano é um fim em si 
mesmo e não pode ser usado como meio" [cit. por Paim, Prota, Vélez, 1997: 146-147]. 
Se bem é certo que Kant firmou, de forma clara, os fundamentos racionais da moral, 
os filósofos posteriores passaram a completar a sua concepção, destacando o enraizamento 
do imperativo moral no contexto da história, bem como da dinâmica espiritual da pessoa. 
Os passos iniciais para essa complementação foram dados, no início do século XIX, por 
Hegel [1981], que destacou o caráter histórico da consciência e, por conseguinte, da 
formulação do código moral (sendo seguido por Victor Cousin e François Guizot na 
França, no período compreendido entre 1830 e 1850). 
A moral ocidental, considerada do ângulo da sua estruturação histórica, ancora em 
duas tradições (que constituem, também, os pilares da civilização européia, na qual nos 
inserimos). Essas duas tradições são a judaico-cristã, da qual surgiu o conceito de pessoa, 
tematizado filosoficamente no século XIII especialmente por S. Tomás de Aquino e que 
constitui o fundamento hodierno para os direitos humanos. A segunda tradição é a 
helenística, consolidada em Alexandria no período compreendido entre os séculos III a. C. 
e III d. C., à luz da qual se consolidou o conceito de lógos ou de razão que liberta o homem 
das cadeias da ignorância. Immanuel Kant fez, de maneira genial, a simbiose entre essas 
duas tradições, ao ter traduzido o mandamento fundamental do cristianismo em imperativo 
categórico passível de formulação racional [cf. Paim, Prota, Vélez, 1997: 13-26]. 
O ecletismo espiritualista na França, com Maine de Biran, na primeira parcela do 
século XIX e o espiritualismo do final do século, com Émile Boutroux e Henri Bergson, 
passaram a aprofundar no entrelaçamento entre a moral racional e a estrutura espiritual da 
pessoa. No século XX, correspondeu a Edmund Husserl [1986] e a Max Scheler [cf. 
Hessen, 1980] completar essa reflexão, respectivamente com a fenomenologia e a 
axiologia. A primeira corrente, sistematizada por Husserl, tentou estabelecer um nexo entre 
a razão e o mundo da vida, ao passo que a segunda desenvolveu a reflexão em torno aos 
valores. 
De todos esses avanços, surgiu a ética material dos valores de Max Scheler, em que 
a dinâmica moral da pessoa passou a ser interpretada no contexto dos valores. A 
formulação do imperativo categórico passou a ser interpretada no seio do ato de valorar, 
que constituiria, assim o ato primordial da pessoa. A voz da nossa consciência se estrutura 
ao redor de valores, que incorporamos ao longo da vida. Em que consistem os valores? São 
eles entidades ideais, de tipo relacional e hierárquico, que se tornam presentes no seio de 
uma vivência emocional que é o ato de valorar. A pessoa valora diante de algo que suscita o 
seu interesse. Os seres humanos crescem, na medida em que vão criando, ao seu redor, uma 
teia de ideais que lhes interessam. Esse conjunto de ideais que interessam às pessoas 
constitui o universo dos valores. Poderíamos parafrasear Descartes (que falou: penso, logo 
existo), e afirmarmos: valoro, logo existo. Sempre estamos valorando, desde quando 
acordamos até quando dormimos. Quando o filósofo espanhol Ortega y Gasset dizia "eu 
sou eu e as minhas circunstâncias", referia-se justamente a esse conjunto de ideais da 
pessoa, que constitui o seu universo axiológico. 
Miguel Reale ilustrou claramente, na sua obra intitulada Pluralismo e Liberdade 
[Reale, 1963: 60], o estreito entrelaçamento entre valores e desenvolvimento da pessoa, 
num processo dinâmico em que não está ausente a contradição. A propósito, frisa o filósofo 
brasileiro: "Nada mais contraditório do que o homem, dada a ambivalência essencial de seu 
ser pessoal, ora voltado para si mesmo, ora voltado para a sociedade; ora desejoso de 
estabilidade, ora seduzido pelo movimento; ora preso às amarras do passado, ora projetado 
liricamente para o futuro; ora impulsionado pelas forças dionisíacas da afetividade, ora 
sublimado pelas forças apolíneas da razão; sempre vacilante entre a certeza empírica de 
nexos causais imanentes e os planos encobertos da transcendência. Polaridade do existir, 
polaridade do valor, num perene equilíbrio instável através do qual se renovam os ângulos e 
as perspectivas da história, que constitui, sob esse prisma, a experiência filosófica 
concreta". 
Mas no emaranhado de valores que constitui existência do homem, encontramos 
uma ordem. Há valores positivos e valores negativos ou anti-valores. Há justiça e injustiça, 
beleza e feiúra, por exemplo. Encontramos, de outro lado, valores superiores e valores 
inferiores. Temos uma regra de ouro para auferira posição de um determinado valor na 
hierarquia dos valores: aquele valor que, compartilhado por muitos não se esgota, é 
superior. Inversamente, aquele valor que, compartilhado por muitos se esgota, é inferior. 
Os valores morais constituem o centro do universo axiológico, porque são aqueles 
que conferem autenticidade à pessoa. O que define uma pessoa como boa é a sua 
autenticidade. E esta consiste em agir de acordo com a própria consciência, custe o que 
custar. Todos os outros valores ficam bem estruturados e justificados, quando se alicerçam 
sobre os valores morais. Quando estes faltam, o universo da pessoa perde sentido. 
O processo de assimilação de valores corresponde à educação. Os valores não são 
assimilados pelas pessoas de forma teórica, mas vivencial. Os valores que fundamentam a 
nacionalidade, por exemplo, somente poderão ser incutidos nas crianças que conhecerem e 
experimentarem a emoção diante dos próprios heróis. Se num determinado país 
desaparecerem os exemplos de patriotismo apresentados vivos na figura dos seus grandes 
homens e mulheres, achincalha-se o sentimento cívico e podemos falar numa crise de 
valores nessa determinada sociedade. Miguel Reale chama a atenção para a importância da 
assimilação, no processo educacional, dos valores que constituem a tradição, a fim de 
habilitar as novas gerações para a criatividade, a partir do legado dos antepassados. a 
respeito, afirma o filósofo brasileiro: "Preparar para a aventura da vida, não pode, porém, 
significar (que) se deva esquecer o valor do que se converteu em constantes axiológicas, ou 
invariantes de estimativas que representam as colunas da tradição, compreendida como 
memória da história e, tanto como esta, aberta a novas conquistas de bens a serem 
memorizados e conservados. Se se pensasse que a cultura é, concomitantemente, amor de 
aquisição de novos bens, ligado ao amor dos bens já conquistados, a Pedagogia atual 
volveria a dar mais atenção aos valores da memória, cada vez mais eclipsados pelos 
propósitos de só educar para a transformação do mundo e a aventura existencial" [Reale, 
1977: 105]. 
Decorre desta reflexão a importância que no mundo de hoje tem a educação para a 
cidadania, que consiste na assimilação, por parte das novas gerações, dos valores que 
fundam a nacionalidade e do sentimento de patriotismo. Torna-se imprescindível, a esta 
altura, analisar qual é o conjunto de valores que, no seio de uma determinada sociedade, 
estão sendo assimilados pelas novas gerações. Isso corresponde a discutir os modelos de 
moral social que imperam numa determinada comunidade. Poderíamos nos perguntar, a 
esta altura, quais são os modelos de moral social que foram se sedimentando na história da 
cultura brasileira. 
 
 
4) Modelos de moral social na cultura brasileira 
Toda sociedade que aspire ao amadurecimento democrático precisa discutir a 
questão da moral social. Esta discussão, no seio da cultura brasileira, tradicionalmente foi 
atribuída a instâncias verticais, encampadoras do poder de decisão sobre os cidadãos. Tais 
instâncias, na nossa história cultural, polarizaram-se ao redor de quatro grandes núcleos: 
família patriarcal, Estado, mídia e Igreja. Em torno a essas forças centrípetas consolidaram-
se os modelos de moral social. Vamos identificar neste item tais modelos e discutir a sua 
validade, em face dos requerimentos hodiernos do ideal democrático que é, sem dúvida, o 
grande desideratum da sociedade brasileira. 
Nove modelos de moral social podem ser identificados na nossa história cultural: de 
saber de salvação, pombalino, castilhista-getuliano, messiânico-populista, salvador militar, 
Antiga residência de Max Weber na cidade 
alemã de Heidelberg. Hoje funciona ali o 
Centro de Cultura Internacional da 
Universidade local. 
patrimonialista, estetizante, totalitário e consensual. Analisaremos cada um deles, 
destacando a relação que possuem com os núcleos de poder social ao redor dos quais se 
consolidaram (família patriarcal, Estado, mídia, Igreja). É importante salientar, entretanto, 
que tais modelos não constituem categorias estanques nem reificações concretas, se 
tratando, melhor, de tipos ideais encontradiços, muitas vezes, entrelaçados na complexa 
realidade social. Assim, por exemplo, os modelos messiânico-populista, salvador militar e 
patrimonialista acham-se tradicionalmente geminados nos vários tipos de caudilhismo em 
que a nossa história é particularmente rica. 
Especial atenção dedicaremos à análise do modelo consensual, pelo fato de ser ele, 
hodiernamente, o único que garante a completa institucionalização da democracia no 
Brasil, superando os vícios do patrimonialismo e do democratismo. 
O modelo do “saber de salvação”.- No período colonial estruturou-se a concepção 
de moral social chamada por Luis Washington Vita [1968: 17-18] de “saber de salvação”. 
Consistia ela na convicção de que o homem está na terra como “passando uma noite ruim 
numa pousada ruim”, segundo as palavras da mística espanhola Santa Teresa de Avila. Se o 
que interessa é a salvação da alma, se não somos mais do que “um vil bicho da terra e um 
pouco de lodo”, segundo a expressão de Nuno Marques Pereira [cf. Moog Rodrigues, 1979] 
pouco interessava, logicamente, este mundo e a organização racional do convívio político. 
A "res publica” ficava nas mãos de Deus, destino que nos séculos XVII e XVIII 
concretizou-se no absolutismo alicerçado em razões religiosas. Sem dúvida que o ideal 
monástico da fuga do mundo, apregoado no Brasil por Nuno Marques Pereira no seu 
Compêndio narrativo do peregrino da América [in: Moog Rodrigues, 1979] levava a 
reforçar o poder absoluto do monarca. 
Em que pese o fato dessa proposta ter sido formulada no período colonial, não 
podemos deixar de reconhecer a sua presença nas propostas teocrático-moralizantes de 
tradicionalistas inspirados no passado medieval, como Plínio Correia de Oliveira. A 
inspiração ética do tradicionalismo insere-se, quando aplicada à política, no contexto do 
pensamento anti-utópico descrito por Mannheim [1966]: a proposta dos tradicionalistas é a 
negação das utopias perseguidas pelos progressistas [cf. Cordi, 1984; Macedo, 1977]. 
Como uma das idéias-chave destes sempre foi a valorização da razão e da liberdade 
individual, os tradicionalistas defendem a tutela da tradição sobre o indivíduo [cf. Vélez-
Rodríguez, 1978: 85-112]. No caso de Plínio Correia de Oliveira, fundador e primeiro 
ideólogo do movimento Tradição, Família e Propriedade, essa tutela estabelecer-se-ia 
mediante uma volta ao passado medieval, quando a Igreja controlava a consciência das 
pessoas. A moralidade da "res publica" estaria garantida quando voltássemos a adotar uma 
estrutura de "cristandade", com a Igreja exercendo o controle sobre os costumes, com a 
ajuda de "ordens militares" como os Templários. 
O modelo pombalino.- A essência das reformas efetivadas em Portugal por 
Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal, consistia na "aritmética política", 
que segundo Antônio Paim [1978: cap. I; cf. 1982] baseava-se em dois princípios: o Estado, 
convertido em empresário e possuidor da ciência aplicada, garante a riqueza da nação; em 
segundo lugar, compete ao Estado, presidido pelo déspota ilustrado, regular a moral dos 
cidadãos e a ordem social e política. 
A questão da moralidade (tanto a privada quanto a pública) era, portanto, função do 
Estado que, numa concepção hegeliana avant la lettre ganhava a caraterística de ente 
moral. A problemática moral escapa, conseqüentemente, do foro individual ou da iniciativa 
de grupos sociais, para se situar no terreno do Leviatã que, segundo se supõe, conseguirá 
garantir a moralidade pública e a ordem social. As reformas efetivadas pelo Marquês 
tiraram da Igreja as funções educativas e de controle direto sobre os costumes, para colocá-
las sob o império do Estado, num contexto de galicanismo eclesial, ou de cooptação do 
poder espiritual pelo temporal. 
Convém lembrar que a geração que feza Independência formou-se na Universidade 
pombalina [cf. Barretto, 1973] e, graças a isso, a idéia estatizante que inspirava a 
moralidade pública, entrou a formar parte essencial do patrimônio cultual brasileiro. Não 
foi somente a tendência ao empreguismo orçamentívoro que o Brasil herdou do ciclo 
pombalino, mas também a idéia, fortemente enraizada na cultura política, de que a questão 
moral não é incumbência do indivíduo, mas que é função exclusiva do Estado. 
Essa passagem da questão moral do âmbito individual e social para o estatal, 
produziu no Brasil um fortalecimento muito grande do autoritarismo. Quando a tendência 
centrípeta e estatizante do cientificismo pombalino encontrou-se com a filosofia comteana, 
na segunda metade do século XIX, deu ensejo à forma autoritária e moralizadora do 
positivismo que empolgou os próceres da República, com Benjamim Constant Botelho de 
Magalhães à testa. Plantada no terreno fértil das Faculdades de Direito, essa tendência 
formou várias gerações de advogados republicanos, inspirados (como Júlio de Castilhos, 
por exemplo), no mais ardente jacobinismo moralizador [cf. Vélez-Rodríguez, 1980; 
1994a; 1994b; 1994c]. 
À sombra do estatismo pombalino encontrou refúgio um sub-modelo de moral 
social, que tinha se desenvolvido na cultura ibérica ao longo dos séculos XV e XVI e que 
foi identificado por Américo Castro [1950; cf. Jaramillo Uribe, 1974] e por Oliveira Viana 
[1958]. Trata-se do sub-modelo que identifico como "ética do atalho" ou do "não trabalho" 
e que consiste no preconceito face ao trabalho produtivo, considerado como castigo pelo 
pecado original, e que conduz ao ideal da apropriação "heróica" da riqueza na guerra santa 
contra o infiel e à identificação do trabalho como atividade de párias e não de senhores. 
Tanto a cultura espanhola quanto a portuguesa, no período dos descobrimentos e da 
colônia, estiveram profundamente enraizadas nesse complexo cultural, que encontrou 
formulação prática na idéia do Estado-empresário, guindado por Pombal à dignidade de 
demiurgo produtor de riquezas. A mediação estatal libertava o homem ibérico do castigo do 
trabalho produtivo e garantia a posse das riquezas produzidas pelo Pai-Estado. Em 
trabalhos anteriores [cf. Vélez-Rodríguez, 1985; 1994d] tenho identificado esse sub-modelo 
de "ética do atalho" como fonte culturológica do fenômeno da corrupção, estreitamente 
vinculado ao "complexo de clã" ou "espírito de patota". 
 
 
O modelo castilhista-getuliano.- Como continuadora do modelo estatizante 
pombalino, a ditadura castilhista (iniciada no Rio Grande do Sul por Júlio de Castilhos, 
consolidada ali por Borges de Medeiros e continuada, a nível nacional, por Getúlio Vargas), 
constituiu eficaz reificação do espírito hobbessiano no Brasil. O modelo da ditadura 
castilhista alicerçava-se em dois princípios: de um lado, na busca da regeneração moral da 
sociedade a partir de uma intervenção autoritária do Estado; de outro, na legitimação dessa 
presença estatal mediante o apelo à ciência, no contexto do princípio comteano de que "o 
poder vem do saber" [cf. Vélez-Rodríguez, 1980 e 1994c] 
Castilhos revelou-se mais autoritário que o próprio Comte. Se bem é certo que a 
"física social" do filósofo de Montpellier ensejava uma visão determinista do homem como 
destaca com propriedade Stuart Mill [1972], o regenerador francês não caia, no entanto, no 
estatismo. Chegar-se-ia à ordem social e política, no seu entender, mediante um processo 
pedagógico e moralizador, efetivado pacificamente por uma elite de cientistas e apóstolos 
da humanidade, que tentaria mudar as mentes e os corações a partir de uma pregação 
desinteressada. Já o gaúcho Júlio de Castilhos acreditava diretamente no poder do Estado 
que, consolidado bismarkianamente com mão de ferro, imporia a ordem social e política de 
forma compulsória. 
A questão da moralidade pública, tão apregoada pelos castilhistas e tão vivida por 
eles no seu ideal de "reino da virtude" (deve-se reconhecer, com justiça, o seu fervor quase 
religioso na administração dos dinheiros públicos) seria incumbência do Estado. O ditador, 
supremo legislador, era o grande centro de moralização da sociedade. Os castilhistas 
tornaram realidade a idéia do Estado artífice da revolução moralizadora que, numa visão 
antecipada do leninismo, os socialistas portugueses (Oliveira Martins e Antero de Quental) 
tinham concebido, em fins do século passado. 
O modelo getuliano alargou a nível nacional, modernizou e viabilizou 
tecnocraticamente o modelo castilhista. Dois princípios guiaram a estruturação do Estado 
autoritário e modernizador de Vargas: de um lado, o do equacionamento técnico dos 
problemas; de outro, o da alergia antidemocrática, concretizada no slogan de inspiração 
Projeto para o prédio da 
Fundação Getúlio 
Vargas, em São Paulo, 
de autoria de Botti Rubin 
Arquitetos.
castilhista: "o regime parlamentar é um regime para lamentar". A questão da moralidade 
pública foi reduzida por Getúlio a simples problema técnico, que deveria ser equacionado 
pelo Estado autoritário, com o auxílio dos conselhos técnicos integrados à administração 
[cf. Vélez-Rodríguez, 1982]. 
O modelo messiânico-populista.- Este modelo da moral social brasileira está 
profundamente enraizado na cultura, pois foi herdado da tradição sebastianista portuguesa. 
O sebastianismo, na sua essência, corresponde ao que Talmon [1969: 21-140] identifica 
como um modelo de "Messianismo Político". Originada na gesta de Alcácer-Quibir, 
quando em batalha contra os sarracenos o rei português dom Sebastião foi morto, a tradição 
sebastianista desenvolveu-se junto com a crença de que o rei não teria morto, teria se 
ocultado e voltaria para libertar o seu povo. Essa tradição passou a inspirar boa parte da 
literatura popular brasileira, especialmente nos remotos e miseráveis sertões do nordeste. 
Prova dessa rica influência foi elaborada por Euclydes da Cunha [1979], quando relatou as 
lutas de Antônio Conselheiro conta o governo republicano, no final do século passado. O 
escritor peruano Mário Vargas Llosa [1981] deu vida ao relato do sociólogo brasileiro, no 
seu romance A guerra do fim do mundo. 
A corrupção, a exploração, o desespero das massas oprimidas, todos os males que o 
povo humilde sofre, encontrarão remédio definitivo na gesta histórica de um novo salvador 
que a Providência enviará. Tal é a essência da crença sebastianista que hoje, como ontem, 
sobrevive na alma popular brasileira. Prova de que essa crença é, hoje, oxigênio que dá vida 
à esperança popular, foi a entrevista que José Henrique Nazareth [cf. Fernandez, 1990], um 
humilde contínuo do palácio presidencial brasileiro, concedeu à revista Istoé em 1990. À 
pergunta: "O que você espera do presidente Collor?" Nazareth respondeu: "O presidente 
Collor é como uma missa, que tem o ofertório, a consagração e a comunhão. O ofertório era 
a campanha, até aí era apenas um pão e vinho comum, sem nada de especial. Mas agora 
não. Agora a gente fica contrito, de cabeça baixa, e começa a louvar o Deus vivo, já não é 
mais aquele pão simples, aquele vinhosinho que inicialmente foi oferecido...". Pergunta: - 
"Agora Collor o que é?" - Nazareth: "Ele é o corpo e o sangue de Cristo, é esse o sangue 
que vai transformar, que vem a nós como um novo Belém, a terra prometida. Ele é o 
Messias que vai levar o povo à terra onde vamos comer mel". 
Não é necessário destacar o enorme cabedal de paternalismo autoritário que se 
encerra nessa mentalidade. A duríssima e longa ditadura getuliana, durante as décadas de 
30 e 40, bem como o posterior ciclo salvador militar, deram provas suficientes dos 
extremos de paternalismo e de manipulação popular de que é capaz o messianismo 
republicano brasileiro. 
O modelo salvador militar.- Juarez Távora, um dos oficiais do Exército que 
protagonizaram as famosas revoluções tenentistas, ao longo dos anos vinte, revelou, em 
certa oportunidade, a índole salvadora que assumiram as intervenções militares aolongo do 
período republicano. Estreito colaborador de Vargas no governo provisório (1930-1934), 
que se organizou depois da revolução de 1930, procurou um dos assessores jurídicos do 
governo, o sociólogo Oliveira Vianna, e lhe pediu que elaborasse um modelo de 
Constituição. Como no modelo apresentado pelo assessor não aparecesse definido o papel 
dos militares, assim o explicou: "A nossa atitude em política é a de quem observa um 
banquete. Quando o banquete se converte em rega-bofe, então entraremos com a espada 
moralizadora" [apud Almeyda, 1956: 184]. 
As Forças Armadas entenderam dessa forma salvadora o seu papel na política 
brasileira, ao longo do período republicano: assim foi durante a República Velha (1891-
1930), com as chamadas "salvações"; assim foi durante o longo governo getuliano (1930-
1945), que se apoiou na jovem oficialidade do Clube 3 de Outubro; assim foi quando 
Getúlio deixou o poder em mãos do marechal Eurico Gaspar Dutra, depois da Segunda 
Guerra Mundial em 1945; assim foi em 54, com a intervenção dos chefes militares que 
levou o presidente constitucional Getúlio Vargas ao suicídio; assim foi em 64, com a 
chamada "revolução salvadora". 
Não há dúvida, como sugere Alfred Stepan [1975] de que essa concepção salvadora 
encaixou na praxe do "poder moderador", à qual se acostumaram os brasileiros ao longo de 
mais de quarenta anos de Império. Desaparecida a figura do Imperador a partir da 
instauração da República em 1889, continuou presente, contudo, a idéia de que um poder 
superior ao Parlamento e ao jogo político-partidário, deveria exercer uma espécie de tutela 
sobre a sociedade, a fim de evitar que os interesses privados dos políticos terminassem 
prevalecendo sobre o interesse público. As Forças Armadas, no sentir de Stepan, passaram 
a exercer essa função moderadora. 
Paulo Mercadante [1978] destaca o fato de que, no cumprimento de sua missão 
salvífica e moderadora, os militares brasileiros inspiraram-se no modelo weberiano da ética 
de convicção (baseada na preservação do valor absoluto da honra), e rejeitaram (porque o 
consideravam oportunista) o modelo de ética de responsabilidade, identificado por Weber 
[1993] como próprio do homem público, que calcula, nas suas ações, o resultado que delas 
provirá. Essa visão salvadora, baseada no código de honra, encontrou primorosa 
manifestação no final do Império, quando, por causa da chamada "questão militar", o 
marechal Deodoro da Fonseca desembainhou no Parlamento a espada e exclamou: "a honra 
do Exército está acima da lei!". 
Antônio Paim [1978] lembra que esse sentido da moral de convicção que não 
admite negociações, fez com que a intervenção militar de 1964 se revestisse de feição 
autoritária. Esse espírito revelar-se-ia, entre outras coisas, na forma tuteladora como foram 
entendidos os "objetivos nacionais permanentes" os quais, formulados pela elite militar, 
passaram a ser interpretados como paradigmas inquestionáveis pelos líderes da ESG. 
 
O modelo patrimonialista.- Nas suas oras fundamentais Oliveira Vianna [1982] 
destacou um fato fundamental da formação social brasileira: a tendência a confundir 
público com privado. Não existe, na mentalidade do povo, nem na das elites, claramente 
Getúlio Vargas, à frente da Revolução de 
1930 
definida, a linha de demarcação entre interesses familiares e aqueles pertencentes à esfera 
pública. Parece como se ambas ordens de interesses coexistissem, de modo indiferenciado, 
no mesmo universo. Esse fato levou a sabedoria popular a cunhar slogans como "aos 
amigos marmelada, aos inimigos bordoada"; "aos amigos os cargos, aos inimigos, a lei"; 
"governar é nomear, demitir e prender"; "é dando que se recebe", etc. 
A idéia subjacente a todas essas expressões é a de que a coisa pública é patrimônio 
familiar para ser distribuído entre consangüíneos, amigos e paniaguados. Nada mais 
ilustrativo dessa mentalidade do que os "trens da alegria", com que ocupantes de cargos 
públicos recompensam generosamente familiares e amigos. Outro exemplo eloqüente desse 
espírito privatizante e orçamentívoro, são as gordas remunerações que, na nossa história 
republicana, membros dos corpos legislativos aprovam em benefício próprio, fato que 
levou Simon Schwartzman [1982] a escrever que enquanto a política é, para outros povos, 
um meio de beneficiar os negócios, para os brasileiros é o grande negócio. 
A origem desse espírito privatizante é situada por Oliveira Viana no "complexo de 
clã", proveniente do latifúndio. A primeira experiência que tivemos como povo, logo 
depois do descobrimento, foi a da casa grande, presidida pela figura todo-poderosa do 
"senhor de engenho", autoridade patriarcal amada e temida ao mesmo tempo, que com a 
"guarda de corp" ao seu serviço, garantia a sobrevivência de clientes, familiares, amigos e 
paniaguados, perseguindo os seus inimigos até a morte. Em que pese o fato de o Brasil ter-
se convertido, a partir dos anos 70, num país predominantemente urbano, a tendência 
privatizante herdada do "complexo de clã' é ainda o pano de fundo que inspira muitas vezes 
a participação política. Seria uma fantasia ignorar hodiernamente essa tendência herdada do 
"complexo de clã".É verdade que a participação em partidos estruturados 
programaticamente, que caracteriza a vida política brasileira na última década, promete 
mudanças significativas. Mas ainda há muito clientelismo e espírito familístico nas nossas 
estruturas políticas. 
A discussão da moralidade pública passa, necessariamente, pelo caminho da crítica 
ao "complexo de clã", que afeta a cultura política. Não se pode falar em gestão ética da 
coisa pública, enquanto a noção de República coincidir mais com a de coisa nossa ou "res 
privata". José Murilo de Carvalho [1989: 13] escreveu a respeito: "(...) a República 
fracassou até agora. A proposta republicana, seja no modelo liberal, seja no autoritário, 
significa sempre participação, reforma social, desenvolvimento da cidadania, da vida 
pública. De um sistema político que incorpore a população, um sistema que não procure 
excluir, mas que, ao contrário, procure construír uma nação. A nossa República não tem, 
nesse ponto, um saldo muito positivo para apresentar". (É longa a bibliografia que analisa e 
critica o fenômeno do patrimonialismo brasileiro. Cf. entre outros, Faoro [1958], 
Schwartzman [1982], Paim [1978], Vélez-Rodríguez [1984], Meira Penna [1988]). 
 
O modelo estetizante.- Segundo Mário Vieira de Mello [1980] o brasileiro adotou, 
no terreno moral, um comportamento estetizante. A bondade ou malícia dos atos humanos 
não se deduz do seu ajustamento, ou não, a um imperativo categórico proveniente da 
consciência moral, mas da exteriorização, como num palco, dos próprios sentimentos. 
A propósito, afirma Viera de Mello [1980: 187]: "(...) De um modo geral (o 
brasileiro) parece ser, nos nossos dias, um homem que se contempla a si mesmo e que 
contempla os outros como se o mundo fosse um grande palco e como se a vida devesse 
estar destituída de sentido, no caso de que não pudesse se constituir como um espetáculo ao 
qual assistiriam um certo número de pessoas assíduas e atentas. Esse traço que se encontra 
certamente em outros países que, como o nosso, tenham sido submetidos à influência do 
estetismo, apresenta-se naturalmente na nossa psicologia em graus muito variados indo 
desde o simples desejo de não deixar passar inadvertido um mérito, uma ação, uma 
qualidade ou uma intenção louvável, até as manifestações excessivas de um exibicionismo 
sem pudor ou de um cabotinismo indiferente às exigências mais rudimentares da modéstia. 
O brasileiro de nossos dias é pouco sensível às qualidades da alma que são menos óbvias, 
as qualidades que são, por assim dizer, invisíveis. Escapa-lhe completamente o sentido 
valioso de um gesto de renúncia, de uma palavra não proferida, o valor moral associado à 
repressão silenciosa de um movimento de egoísmo, de vaidade ou de orgulho. A 
exteriorização dos sentimentos parece constituirpara ele a única garantia de que tais 
sentimentos existem. Essa psicologia de extrovertidos poderia naturalmente, através de 
explicações de tipo supostamente científico, ser justificada à luz das condições raciais e 
somáticas do povo ou climáticas do país. Mas, em verdade, é a compreensão do mundo 
como um palco a que conduz o brasileiro a uma exteriorização excessiva dos seus 
sentimentos que, muitas vezes, não é possível levar a cabo sem uma certa falta de 
sinceridade (...)". 
Manifestação concreta desse modelo ético deu-se, a meu ver, no fenômeno do 
chamado "bacharelismo", ou comportamento estetizante do advogado brasileiro de início 
de século. Rui Barbosa, máxima expressão da advocacia, assumiu, na sua vida pública, a 
condição de ator, profundamente admirado ou odiado. "Durante muito tempo a imagem de 
Rui Barbosa -- escreve Nelson Saldanha [1979: 164] -- representou um símbolo de enorme 
relevância, tanto para as elites intelectuais quanto para o público comum. Um símbolo que 
ocasionalmente funcionou ao contrário, com oscilações entre a idolatria e o repúdio. 
Símbolo do bacharel e do advogado, bem como do orador liberal, do jornalista palavroso, 
da cultura que chegou a ser chamada de 'ornamental', Rui Barbosa não foi apenas uma 
vocação: a sua figura foi promovida pela circunstância, cujos valores e tendências em 
matéria cultural ele exemplarmente encarnou. O 'ruismo', como adesão de várias gerações 
ao seu estilo verbal e aos conteúdos que defendeu, foi fenômeno explicável nos quadros da 
Francisco José de Oliveira 
Vianna (1883-1951), o mais 
importante estudioso do 
“Complexo de Clã” na 
sociedade brasileira.
classe média brasileira, fascinada pelo saber e pelas hipérboles. O Rui Barbosa polifacético 
e versátil correspondeu à dispersão que foi regra entre os intelectuais da época: jornalismo, 
advocacia, teoria política e, ao mesmo tempo, a vida entre os livros e no gabinete (...)". 
O modelo totalitário.- Este modelo consolidou-se ao ensejo da experiência de 
poder total dos grandes sistemas totalitários comunista, fascista e nacional-socialista. 
Convém lembrar, inicialmente, que "O totalitarismo é um fenômeno ocorrido no século XX 
e, por mais que possa apresentar essa ou aquela semelhança com o absolutismo 
monárquicon ou com os governos tirânicos do passado, tem na verdade características 
próprias que o singularizam. Assim, até onde podemos conhecer as estruturas estatais 
antigas e modernas, nenhuma delas conseguiu o poder total e absoluto alcançado pelos 
Estados totalitários contemporâneos. Estes lograram a proeza de quebrar todos os laços de 
solidariedade entre seus súditos, transformando-os em massa amorfa. A oposição torna-se 
episódica, sem despertar qualquer interesse popular" [Paim, Prota, Vélez, 1997: 207]. Em 
que pese o fato de parecerem indestrutíveis, os sistemas totalitários do século XX vieram 
por terra, ou como resultado de ações armadas contra eles (queda da Alemanha nazista e 
dos países do Eixo na Segunda Guerra Mundial), ou simplesmente como conseqüência da 
própria corrupção e ineficiência (o acontecido com a União Soviética, quando da derrubada 
do Muro em 1989). 
Qual é o cerne da ética totalitária? O seguinte: a convicção de que os fins justificam 
os meios. "Posto que pretendo erigir uma sociedade nova, onde haja desaparecido a 
exploração do homem pelo homem, posso valer-me de não importa que meio para alcançar 
tais objetivos" [Paim, Prota, Vélez, 1997: 208]. O melhor exemplo da presença desse tipo 
de modelo na cultura brasileira contemporânea, são as ações do MST. Como alegam 
pretender a realização plena da justiça social, os militantes desse movimento sentem-se 
justificados para fazer qualquer coisa: invadir terras produtivas, ocupar prédios públicos, 
seqüestrar funcionários do governo, assassinar opositores se for o caso, etc. Atitude 
semelhante é a que inspira o chamado "clientelismo armado" das Forças Armadas 
Revolucionárias da Colômbia, que em nome de um vago socialismo matam populações 
inteiras, seqüestram, desconhecem os acordos feitos com as autoridades, etc., tudo 
acobertado pela atitude políticamente correta dos que temem as suas ações ou dos que, 
acobertados por ONGs de duvidosa moralidade, pretendem "pescar em águas turvas". 
É difícil enfrentar diretamente quem está inspirado pela ética totalitária. "O que se 
pode fazer é reiterar que a moralidade encontra-se nos meios a que recorremos para vê-la 
realizada e não nos fins que nos movem" [Paim, Prota, Vélez, 1997: 209]. A questão dos 
meios a serem utilizados para realizar os ideais é essencial, pois sem levar em consideração 
essa variável, podemos instaurar um critério de ação que termine ferindo a dignidade das 
pessoas. Não podem ser aceitos meios imorais, que passem por cima da dignidade dos seres 
humanos. Aceitar isso é deitar por terra toda a moralidade. 
 
 
O modelo de moral social de tipo consensual.- Antônio Paim foi quem primeiro 
propôs este modelo na sua obra intitulada Modelos éticos escrita em 1983 e publicada 
posteriormente [1992]. Ali, o autor analisa a forma em que foi tematizada, pela primeira 
vez, a moral social na Inglaterra no século XVII, e segue os passos que ela percorreu ao 
longo dos séculos XVIII, XIX e XX. Assim como Kant firmou as bases da moral do dever 
(chamada por Weber de "ética de convicção"), os moralistas ingleses formularam a moral 
social de tipo consensual. Na sua essência, ela consistiria no seguinte: nas sociedades 
modernas, multitudinárias e pluralistas, vários padrões de moral individual (fixados pela 
família, a igreja,, a escola e o convívio social) muitas vezes se contrapõem. Sem que isso 
signifique relativização da moral individual, cuja essência consiste no imperativo 
categórico ou consciência do dever moral, tornou-se necessária a formulação negociada de 
uma moral social, que indique o mínimo que passará a ser exigido de qualquer cidadão. 
Não é desejável que esse mínimo seja fixado por uma determinada confissão religiosa; 
poder-se-ia dizer que ela seria privilegiada face às outras. Também não é desejável que esse 
mínimo seja fixado de forma imperativa pelo Estado: além de não ser ele ente moral (pois é 
fruto, como frisa Thomas Paine, de nossas fraquezas e não das nossa virtudes), ficaria 
seriamente comprometida a evolução democrática da sociedade. 
A questão da moral social de tipo consensual remete-nos a outra, igualmente 
essencial: a necessidade de promover a educação básica, a fim de que a sociedade possa 
deliberar acerca de seus problemas morais. É claro que numa sociedade de pobres e 
analfabetos, impor-se-á autoritariamente a minoria ilustrada e poderosa. Isso não significa 
que a questão da moral social deva ser relegada às calendas gregas, mas que deve haver 
uma equilibrada evolução da sociedade nos planos econômico, político e cultural. 
Falar em moral social de tipo consensual no Brasil de hoje -- como em qualquer país 
latino-americano ou do terceiro mundo --, implica em encarar os problemas do estatismo, 
dos graves desequilíbrios na distribuição da riqueza, do analfabetismo, etc. O primeiro 
passo, certamente, consiste em chegar à convicção de que não haverá democracia enquanto 
os nossos povos não tenham a capacidade de fixar, por si próprios, de maneira consensual, 
a moral social que deve presidir ao convívio político. Sem essa base moral, os decretos e as 
leis são letra morta. Somente a consciência moral é base para a democracia e para a 
mudança. Como frisa Michel Crozier [1979], "não se muda a sociedade por decreto". 
Na sociedade brasileira, tradicionalmente (ao longo da nossa história quadri-secular) 
a moral social foi formulada de maneira vertical, quer pela Igreja -- quando ainda 
Obra organizada por Antônio Paim, em 1979, 
com motivo do patrulhamento ideológico de 
tipo totalitário, existente na PUC/RJ, que 
levou ao fechamento do Curso de Mestrado 
em Pensamento Brasileiro.
prevalecia a cultura agrária --, quer pelo senhor de engenho --nos remotos temposda casa 
grande --, quer pelo Estado autoritário -- até o final do ciclo militar --, quer pela mídia -- 
nos tempos recentes da abertura e da atual experiência democrática --. Um fato novo, no 
entanto, começou a se generalizar no país, notadamente após a Constituição de 1988 a qual, 
embora carregada ainda de vícios corporativistas e casuistas [cf. Mercadante, 1990], pôde 
ser chamada de "Constituição cidadã", justamente pelo fato de ter sido concebida a partir da 
perspectiva do cidadão, não do Estado (como era praxe na nossa tradição constitucional). 
Esse fato novo é o seguinte: a sociedade brasileira tem tomado, paulatinamente, consciência 
de que ela própria deve se engajar na discussão e na fixação dos princípios de moral social. 
Essa consciência tem-se desenvolvido, com maior intensidade, após o affaire Collor de 
Mello, que conduziu ao impeachment de um mandatário eleito a partir da pregação do 
binômio moralidade-modernidade. Desiludida em face da incapacidade moralizadora do 
Estado, a sociedade tem acordado para múltiplas e variadas iniciativas que possuem, como 
base comum, a preocupação com a discussão dos princípios da moral social, bem como 
com o pressuposto de que ela deve ser formulada consensualmente. 
5) O empresário, os valores morais e a cidadania no Brasil 
contemporâneo 
A figura do empresário como produtor de riqueza tem sido muito desvalorizada no 
contexto da cultura brasileira, afinada com a mentalidade contra-reformista de ódio ao lucro 
e aos empreendimentos materiais. Mas não foi apenas a Contra-Reforma que atrapalhou o 
surgimento, no Brasil, de autêntica mentalidade capitalista. O Estado patrimonial, 
orçamentívoro e centralizador tem, na nossa história, boa parcela de responsabilidade. Ser 
empresário era, para a mentalidade ibérica dos séculos XV e XVI, estar com a cabeça a 
prêmio. O Rei, "mercador de mercadores" em Portugal, segundo a acertada expressão de 
Lúcio de Azevedo [1978], não admitia concorrentes. Max Weber [1944] tem demonstrado 
que da dinâmica do patrimonialismo decorre essa caraterística. Um poder patriarcal 
omnímodo não tolera poderes paralelos. Estes foram, certamente, muito fortes na parte da 
Europa que conheceu o Feudalismo, tendo decorrido dessa luta entre interesses diferentes, a 
diversificação da sociedade em classes, o confronto entre estas e o surgimento do Estado a 
partir de um contrato entre as mesmas. Mas, no contexto patrimonialista que vingou na 
Península Ibérica e, por extensão, na América Latina, as coisas ocorreram de forma 
diferente. Entre nós, constituiu-se um Estado mais forte do que a sociedade, administrado 
ciosamente por estamentos que não toleravam poderes sociais concorrentes. 
Consequentemente, a sociedade não se diversificou e todo mundo ficou pendurado do 
Estado empresário. E o Brasil não achou o rumo para o seu desenvolvimento. 
São inúmeros os testemunhos acerca da ausência, no Brasil, de uma autêntica 
mentalidade capitalista, que favoreça o desenvolvimento econômico. Ao passo que ser rico, 
num país desenvolvido como os Estados Unidos, é símbolo de vitória e de preeminência 
social, o rico, no Brasil, se esconde ou por medo a ser perseguido pelo Estado 
orçamentívoro, ou porque acha que será assinalado como causa da pobreza. A propósito, 
recente pesquisa desenvolvida pela Revista Exame mostrava que ninguém assume entre nós 
que é rico, preferindo se mimetizar na classe média [cf. Ferreira, 2000: 38-39]. Isso, aliás, 
constitui hábito cultural decantado na sociedade brasileira, em longos séculos de 
perseguição contra quem ostentasse, perante o Estado patrimonial, sucesso econômico. 
Primeiro, as vítimas foram os judeus e os cristãos novos. Logo, os empresários, aqueles que 
conseguem produzir riqueza. O interessante de tudo isso é que a figura do político, como 
aquele que utiliza o poder para enriquecimento próprio, não foi exorcizada da nossa cultura. 
Como frisa Simon Schwartzman, ao passo que a política é, para outros povos, um meio de 
melhorar os negócios, para o brasileiro ainda é o grande negócio [cf. Schwartzman, 1982]. 
A causa do nosso secular atraso consiste, sem dúvida, nessa hipertrofia do Estado 
sobre a sociedade e na falta de estímulos de tipo cultural, (e a ética do trabalho é um 
destes), para a livre iniciativa e a definitiva consolidação da economia de mercado. Os 
inimigos do nosso desenvolvimento não são exógenos, como pretende a chocha retórica 
nacionalista. Valham aqui as palavras de Roberto Campos: "Nunca aderi ao discurso de 
denúncia em relação aos agentes externos -- imperialismo e capitalismo -- pois sempre 
achei que os nossos demônios eram internos. Descobri o inimigo: somos nós mesmos, como 
se diz na fábula de Pogo. E cedo me desiludi do paternalismo governamental. Em nosso 
assistencialismo demagógico os assistentes se dão melhor que os assistidos. O gasto social 
no Brasil é uma sucessão de ralos burocráticos. Assim o atestam o péssimo estado da 
educação pública, o desastre no sistema de saúde e as humilhações impostas à clientela da 
previdência social. Cada vez mais me convenço da terrível verdade do que dizia o liberal 
mexicano Octavio Paz: O Estado é um pai terrível; na melhor das hipóteses, um ogro 
filantrópico" [Campos, 1994: 1282]. 
 
A Revolução Industrial ensejou uma sociedade dinâmica em que, pela primeira vez 
na história do homem, disseminou-se o bem-estar material. Surgiram grandes cidades e a 
situação dos trabalhadores, nelas, tornou-se algo muito difícil, haja vista os testemunhos de 
romancistas de início do século XIX na Inglaterra, como Dickens, ou de estudiosos das 
questões sociais, como Marx. Graças aos avanços da medicina e à acumulação de riquezas 
por parte dos industriais, as cidades melhoraram muito na sua estrutura urbanística, sendo 
abertos parques e jardins e tendo sido empreendidas obras de esgotamento sanitário. A 
história de cidades como Londres ou Paris é muito clara a esse respeito, com diversos 
planos de urbanização e de melhora das condições de vida, ao longo do século passado. 
Paralelamente, a indústria e a vida urbana aceleraram o surgimento de empresas de 
prestação de serviços e a propriedade disseminou-se. Os trabalhadores melhoraram 
sensivelmente o seu padrão de vida, tendo conquistado prerrogativas importantes. Ao 
mesmo tempo, desapareceram as grandes diferenças até então existentes entre campo e 
cidade. A agricultura tecnificou-se e as condições de vida no campo melhoraram 
sensivelmente. No chamado mundo desenvolvido, desapareceram os grandes desníveis na 
distribuição da renda [cf. Paim, Prota, Vélez, 1999, vol. I: 7-9]. 
Como o emprego tornou-se, na moderna sociedade industrial, o meio através do 
qual se garantia o padrão de vida do cidadão, o empresário que criava fontes de trabalho 
Roberto Campos, um dos mais lúcidos críticos 
das contradições da burocracia brasileira, na 
segunda metade do século XX. 
passou a ser muito valorizado. Destarte, em países como os Estados Unidos, todos os anos 
inúmeras publicações e eventos oficiais e particulares engrandecem a figura do empresário, 
como aquele que garante o bem-estar das suas comunidades. Contrariamente ao que se 
supunha no século XIX, a sociedade industrial não se consolidou em todo o mundo. Muitos 
países permaneceram pobres, como é o caso de Portugal, sendo que agora, com a inserção 
na Comunidade Européia viu-se obrigado a se modernizar, superando anacrônicos critérios 
em matéria econômica e social. Pensava-se que o atraso da África decorria da sua condição 
colonial; mas quando países outrora submetidos ao regime colonial, como os Estados 
Unidos, Austrália e o Canadá, tornaram-se amplamente desenvolvidos, viu-se que a razão 
para o atraso africano não era exatamente essa. Tendo-se tornado independentes dos antigos 
regimes coloniais, os países do continente africano permaneceram, via de regra, no atraso. 
A Revolução Industrial tampouco aconteceu em todos os países da Ásia, circunscrevendo-
se ao Japão e aos chamados Tigres Asiáticos.Os sucessivos e enormes aumentos nos 
preços do petróleo não significaram, de outro lado, melhores condições de vida para as 
populações dos países do Extremo Oriente ou da América Latina (como é o caso da 
Venezuela). 
De outro lado, podemos indagar por que razão um país como o Brasil, que no século 
XVII despontava como uma potência mundial, graças à hegemonia que lhe deu a produção 
de açúcar, ficou atrelado ao atraso nos séculos subseqüentes, sendo de longe ultrapassado 
por países (como os Estados Unidos), que estavam notoriamente atrás dele naquele tempo. 
Muita discussão tem ensejado essa pergunta. Algumas respostas reforçam a nossa situação 
de complexo subdesenvolvido: somos pobres porque os Estados Unidos são ricos. É uma 
forma de não responder à questão. Entre outras coisas, porque tal colocação situa-se, 
anacronicamente, no contexto mercantilista. Nele, os processos de enriquecimento 
implicam em empobrecimento de alguém, toda vez que se parte do pressuposto de que a 
riqueza já está feita. Qualquer alteração na posse dela pressupõe, portanto, um processo de 
soma zero. Se alguém fica rico, é porque tomou de outra pessoa. Ora, a questão tem de ser 
colocada no contexto macroeconômico, que foi formulado inicialmente por Adam Smith e 
em cujo seio situa-se a moderna concepção da economia, inclusive a do próprio Marx. Para 
esse contexto, a riqueza não está feita e pode ser produzida pelo trabalho e o engenho 
humanos. De forma tal que os ricos não o são porque roubaram dos pobres, mas porque 
produziram a riqueza. 
A questão de fundo é de índole moral e consiste no fato de que entre nós não se 
solidificou uma ética do trabalho nem uma apreciação positiva dos valores que ensejaram o 
surgimento do capitalismo: eficiência, produtividade, espírito de empreendimento. Muito 
pelo contrário, a nossa cultura incorporou os anti-valores da concepção contra- reformista: 
ódio ao lucro, desinteresse pelas coisas deste mundo, avaliação negativa do trabalho como 
castigo pelo pecado original. A propósito deste aspecto, é destacado o seguinte no curso 
intitulado O empresário e a cidadania: "Pretendemos que se proceda a uma discussão mais 
sofisticada e, com essa intenção, submetemos à meditação dos participantes a questão da 
persistência, entre nós, dos valores que nos foram transmitidos pela Contra Reforma. Tudo 
leva a crer que justamente essa persistência explique alguns fenômenos que nem sempre 
são considerados em conjunto mas que constituem um todo homogêneo. Temos em vista o 
desapreço pelo empresário e a simultânea adoração do Estado, de um lado e, de outro, as 
dificuldades com que nos defrontamos, há cerca de duzentos anos, para implantar as 
instituições do sistema representativo" [Paim, Prota, Vélez, 1999, vol. I: 9]. 
A mudança somente ocorrerá pela troca de paradigma cultural. Trata-se de substituir 
o modelo contra-reformista por uma concepção moderna, aberta ao capitalismo e ao 
desenvolvimento. Isso só ocorrerá através de um amplo processo educacional que deverá 
levar em consideração dois aspectos: 1) mostrar aos empresários o papel mais ativo que 
podem assumir para mudar as instituições no Brasil, não promovendo apenas clubes de 
estudo, mas se organizando políticamente para promover mudanças na legislação, que 
favoreçam a consolidação da modernidade econômica entre nós; 2) incutir nas novas 
gerações um conjunto de valores condizentes com a modernidade, o que implicaria a 
discussão de um novo paradigma de educação para a cidadania. É necessário discutir 
propostas nesse sentido. Parece que, até agora, as mais agressivas alternativas tem sido 
assinaladas pelos que pretendem continuar com o nosso subdesenvolvimento tradicional, 
reforçando um modelo de Estado patrimonial vinculado a propostas estatizantes e 
socialistas. Uma proposta do ângulo liberal é apresentada na obra Cidadania: o que todo 
cidadão precisa saber [cf. Paim, Prota, Vélez, 1999a]. 
Em outras palavras, trata-se de substituir uma ordem de valores tradicionalistas, 
vinculados à Contra-Reforma e ao desprezo deste mundo, por uma outra ordem axiológica 
aberta à modernidade, à produção de riqueza e à promoção do bem-estar material de todos 
os cidadãos. Sem essa mudança de fundo, de pouco adiantarão reformas na legislação. As 
novas leis simplesmente não pegarão. A nova ordem de valores deverá expressar a 
realidade da economia capitalista, que segundo Max Weber caracteriza-se pelos seguintes 
itens: "1) apropriação de todos os bens materiais de produção como propriedade de livre 
disposição por parte das empresas lucrativas autônomas; 2) a liberdade mercantil, isto é, a 
liberdade de mercado em relação a toda irracional limitação; 3) técnica racional, isto é, 
contabilizável ao máximo e, por conseguinte, mecanizada, tanto na produção como na 
troca, não só quanto à confecção senão também com respeito aos custos de transporte; 4) 
direito racional, isto é, direito calculável. Para que a exploração capitalista proceda 
racionalmente, precisa confiar em que a justiça e a administração seguirão determinadas 
pautas; 5) trabalho livre, isto é, que existam pessoas, não somente do ponto de vista jurídico 
mas econômico, (que vendam) livremente a sua atividade num mercado; 6) comercialização 
da economia, sob cuja denominação compreendemos o uso geral de títulos de valor para os 
direitos de participação nas empresas e igualmente para os direitos patrimoniais" [Max 
Weber, História econômica geral, 1923, cit. por Paim, Prota, Vélez, 1999, vol. I: 11]. 
É evidente que uma ordem de valores morais que responda à realidade econômica 
que acabamos de descrever, deverá ser muito diferente dos primeiros oito modelos de moral 
social que foram descritos no item 4 desta exposição. A nova ordem de valores deverá ser 
um modelo de moral social consensual (formulado, portanto, horizontalmente no seio da 
sociedade brasileira), aberto à modernidade e à empresa capitalista. Mencionemos os 
valores que esse novo modelo deveria comportar: apreço pelo trabalho produtivo, 
eficiência, racionalidade, apreço pela liberdade e valorização da livre iniciativa. O valor da 
solidariedade deverá estar presente, mas não da forma em que se faz costumeiramente na 
nossa cultura, banindo como imoral a produtividade e o lucro. A questão do bem comum é 
fundamental, mas como expressão da conciliação dos interesses materiais dos indivíduos. 
Deve ficar claro que não existe interesse público nem bem comum que desconheçam a 
defesa dos interesses dos indivíduos. 
Benjamin Constant de Rebecque, em texto lúcido e clássico do pensamento liberal, 
deixou clara a relação estreita que existe entre bem público e defesa incondicional dos 
interesses individuais. Terminaremos esta exposição com a transcrição desse texto, tirado 
dos Princípios de Política (obra escrita em 1815): "O que é o interesse geral senão a 
transação que se faz entre os interesses particulares? O que é a representação geral senão a 
representação de todos os interesses parciais que devem transigir naquilo que lhes é 
comum? O interesse geral é diferente, sem dúvida, dos interesses particulares, mas não é 
contrário a eles. Fala-se sempre como se uma pessoa ganhasse o que os outros perdem; o 
geral não é senão o resultado desses interesses combinados; deles difere como um corpo 
difere das suas partes. Os interesses individuais são os que mais concernem aos indivíduos; 
os interesses dos distritos são os que mais concernem a estes. Ora, são os indivíduos e os 
distritos os que compõem o corpo político; são, conseqüentemente, os interesses desses 
indivíduos e desses distritos os que devem ser protegidos. Ao protegê-los a todos, suprimir-
se-á de cada um deles o que prejudica aos demais, disso resultando o verdadeiro interesse 
público, que coincide com os interesses individuais, uma vez que lhes foi tirado o poder de 
se prejudicarem mutuamente. Cem deputados nomeados por cem distritos de um Estado 
levam ao seio da assembléia os interesses particulares, as preocupaçõeslocais dos seus 
representados. Essa base é útil a eles: forçados a deliberarem juntos, logo percebem os 
sacrifícios respectivos que são indispensáveis. Esforçam-se para diminuir a extensão deles, 
e nisso reside uma das maiores vantagens da forma de sua designação. A necessidade acaba 
sempre por uni-los numa transação comum, e quanto mais fragmentadas tiverem sido as 
eleições, a representação consegue um caráter mais geral. Se for invertida a gradação 
natural, se for colocado o corpo eleitoral na cúpula do edifício, os nomeados por ele 
deverão se pronunciar em relação a um interesse público cujos elementos desconhecem, 
(pois) lhes é incumbida a tarefa de conciliar interesses cujas necessidades ignoram ou 
desprezam. Convém que o representante de um distrito atue como órgão do mesmo, que 
não abra mão de nenhum dos seus direitos, reais ou imaginários, senão depois de tê-los 
defendido; que seja parcial na defesa dos interesses de que é mandatário, porque se cada um 
for parcial nessa defesa, a parcialidade de cada um, unida e conciliada, terá as vantagens da 
imparcialidade de todos" [Constant de Rebecque, 1970: 46-47]. 
 
6) O fenômeno da globalização: pressupostos éticos e 
exigências educacionais 
A comunicação a nível mundial é, neste início de milênio, o fato cultural mais 
relevante a que a Humanidade já assistiu, desde a invenção do Lógos filosófico pelos 
Gregos. Destacarei neste artigo a base ético/filosófica desse fato. Para cumprir com este 
objetivo desenvolverei quatro itens: em primeiro lugar, os paradoxos do início de milênio e 
o papel desempenhado, em face deles, pela comunicação globalizada; em segundo lugar, a 
estrutura e a dinâmica da integração mundial via redes; em terceiro lugar, as exigências 
educacionais dos novos sistemas comunicativos e, por último as bases humanísticas, 
notadamente éticas, da globalização no novo milênio. 
 
Os paradoxos do início do milênio e o papel desempenhado, em face deles, pela 
comunicação.- Toda mudança de século aguça a imaginação de líderes religiosos, 
historiadores, cientistas e do próprio homem comum. Quando se trata da passagem de um 
milênio para outro, as expectativas se exacerbam. O advento do Cristianismo marcou o 
início do primeiro milênio. As esperanças messiânicas da unidade religiosa européia 
marcaram o trânsito do ano 999 para o 1000, com a conversão da Rússia ao Cristianismo 
em 989. As tendências à globalização da política, da economia e da cultura, marcam a 
passagem ao terceiro milênio. 
 
Em face da virada milenar, descortinam-se dois caminhos: o da ratio e o da fides. 
Podemos encarar o novo milênio rationaliter -- como dizia Nicolau de Cusa, no início da 
Renascença -- checando à luz da razão, uma a uma, todas as variáveis que se apresentam. 
Ou podemos, diversamente, encarar os novos tempos intellectualiter -- na terminologia do 
mencionado pensador --, ou seja, à luz da fé no mistério. Não se trata aqui de fazer uma 
escolha excludente. Ambos os pontos de vista, no terreno que lhes compete, são válidos, 
conquanto um não pretenda impedir a existência do outro. Provenientes de fontes diversas, 
fides e ratio podem conviver no homem, respeitando cada uma a sua peculiaridade. Essa 
síntese dialética era a que constituía a douta ignorância proposta por Nicolau de Cusa. 
Síntese paradoxal dos contrários, sem a qual o conhecimento humano ficaria incompleto e 
que o pensamento renascentista soube manter em toda a sua complexidade dinâmica. 
Lembremos, por exemplo, a singular valorização da magia ao lado da ciência que 
encontramos no pensamento de Galileu Galilei, ou a dupla vertente representativa proposta 
por Leonardo da Vinci: a plástica (imago) e a racional (conceito), ambas indissoluvelmente 
ligadas. 
 
No terreno das expectativas racionais, como se apresenta o novo milênio? Segundo 
Paul Kennedy [1993], seis tendências gerais podemos identificar no limiar do ano 2000: a 
explosão demográfica; a revolução nas comunicações, bem como no terreno financeiro e no 
da ascensão da empresa multinacional; a questão da agricultura mundial e a revolução da 
biotecnologia; a robótica, a automação e a nova revolução industrial; os perigos para o 
nosso meio ambiente natural e a problemática do Estado nacional. Poderíamos falar, ao nos 
referirmos a essas seis grandes tendências, de gravíssimos paradoxos que enfrenta a 
Humanidade neste início de milênio. Façamos um rápido balanço, mesmo que superficial, 
acerca das momentosas questões que cada uma dessas tendências levanta, destacando o 
estreito nexo que há entre o equacionamento dos problemas propostos por elas e o 
fenômeno da comunicação. 
 
Quanto à explosão demográfica [cf. Kennedy 1993: 28 seg.], é necessário destacar a 
dimensão gigantesca do problema. A população mundial passará dos atuais 5,3 bilhões de 
habitantes para 8,5 bilhões em 2025 e 14,8 bilhões em 2075. A aceleração do crescimento 
demográfico tem aumentado consideravelmente nos últimos cinqüenta anos e a previsão é 
de que continue a aumentar. No período compreendido entre 1950 e 1955, a população do 
planeta cresceu anualmente numa proporção equivalente ao número de habitantes da 
Inglaterra (47 milhões). No período 1985-1990 a população mundial cresceu, por ano, 
numa proporção equivalente aos habitantes do México (88 milhões). No período 1995-
2000, estima-se que a população mundial terá aumentado anualmente na proporção do 
número de habitantes da Nigéria (112 milhões). Se os países quiserem equacionar 
racionalmente a questão do crescimento populacional, deverão fazer um grande esforço de 
esclarecimento dos seus habitantes, no que tange às políticas e técnicas de controle da 
natalidade. É evidente que, nessa empreitada, os meios de comunicação de massa 
representam o mais importante instrumento de que dispõem os governos, especialmente os 
dos países em desenvolvimento, às voltas com sérios problemas no ensino básico. 
 
No relativo às comunicações, à revolução financeira e à ascensão da empresa 
multinacional, Paul Kennedy [1993: 45] frisa que o atual fenômeno da economia mundial 
corresponde à globalização. As empresas multinacionais, estimuladas pela redução do 
protecionismo e pela decisão dos Estados Unidos, tomada em 1970, de abandonar o padrão 
ouro e de liberalizar os controles cambiais, firmam-se como os principais atores 
econômicos neste início de milênio. Em função de um mercado global, as empresas estão 
sendo levadas a produzir nas regiões do mundo que melhores condições ofereçam. Além de 
se beneficiarem com as economias de escala, elas passam a se resguardar das incertezas do 
mercado e das flutuações das moedas. A recessão na América Latina ou na Europa, 
certamente preocupará menos a uma empresa que tenha penetrado no mercado asiático. Os 
novos sistemas de teleinformática permitem ao mercado financeiro trabalhar 
ininterruptamente durante as 24 horas do dia e transferir, em segundos, de um ponto a outro 
do planeta, enormes somas de dinheiro, de acordo com as necessidades do mercado [cf. 
Kennedy, 1993: 51 seg.]. Do processo de globalização sairão beneficiadas as nações que 
melhor se tiverem preparado tecnológica, cultural e politicamente para lidar com as 
empresas multinacionais e com a atual realidade do mercado mundial. É evidente que, 
nesse contexto, o acesso à teleinformática será definitivo para os países do Terceiro Mundo 
se integrarem à economia internacional. Para que isso se concretize, eles deverão dar 
preferência ao alargamento e aperfeiçoamento do ensino básico, bem como à política de 
abertura tecnológica dos seus sistemas de comunicação. 
 
No relativo à agricultura e à revolução da biotecnologia, é necessário destacar que o 
modelo atual de produção está esgotado. De acordo com o World Watch Institute, é 
necessário um aumento na produção de alimentos de 28 milhões de toneladas a cada ano, 
somente para acompanhar o crescimento populacional. Ora, o ritmo atual de aumento da 
produção agrícola é de apenas 15 milhões de toneladas por ano.

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