Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
CINEMA CLÁSSICO HOLLYWOODIANO normas e princípios narrativos A estória. O que estamos narrando? Qual a ordem, no tempo cronológico, daquilo que está sendo narrado? O que veio antes e o que veio depois? Como se narra a fábula? Como os eventos da fábula são organizados para serem oferecidos ao espectador? Na trama, não é necessário obedecer a uma continuidade cronológica. O futuro pode surgir antes do passado, o passado antes do presente etc. Como a narrativa se apresenta e se desenvolve? O que organiza a trama? O que faz a articulação das imagens e dos sons para o espectador ser informado da fábula por meio da trama? FÁBULA TRAMA (Syuzhet) NARRAÇÃO Tempo do filme Tempo da estória Resultado da organização dos eventos da fábula na trama Tempo dos eventos da fábula organizados na consciência do espectador a partir do acompanhamento da trama O espectador se concentra em construir a fábula e não em indagar por que a narração a está representando dessa maneira particular – uma questão muito mais característica da narração no cinema de arte. BORDWELL, David. Cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos, p. 289. A trama deve organizar a fábula de maneira que as relações de causa e efeito fiquem evidentes. Isso significa que a ordem dos eventos deve informar, de maneira atrativa e calculada, os motivos que justificam a situação mostrada em cada momento. A causalidade é bastante perceptível na convenção do deadline. The Fatal Hour, D. W. Griffith (1908) The Lonely Villa, D. W. Griffith (1909) O filme clássico tem personagens individuais que se relacionam em busca de solução para um problema evidente. O problema não é resolvido sem dificuldades e conflitos. Os conflitos surgem e se desenrolam, em sua maior parte, a partir das ações dos indivíduos. A estrutura da narrativa clássica implica em: Para tanto, elimina-se o elemento perturbador. Apresentar um estado de coisas Perturbar esse estado de coisas Recuperar a normalidade O filme clássico possui duas linhas causais, ou seja, dois âmbitos nos quais ocorrem relações problemáticas de causa e efeito.Em geral, no cinema clássico, essas linhas são: As duas linhas podem correr separadas. No entanto, é mais comum que elas se interpenetrem (encontrando-se no clímax), e que a resolução dos problemas de uma provoque a resolução dos problemas da outra. Romance heterossexual (no período estudado por Bordwell) Uma segunda esfera que pode envolver conflitos de trabalho, guerras, missões, buscas etc. O filme clássico nem sempre resolve todos os problemas que enuncia. Os problemas que envolvem personagens secundários podem ser esquecidos ou descartados arbitrariamente no desfecho. Por vezes, o final soa como uma “lógica infantil” para encerrar os conflitos, optando por clichês como o do happy end (“final feliz”) com um beijo pacificador do par romântico. David Bordwell chega a propor que, em vez de fechamento, falemos em um efeito de fechamento ou pseudo- fechamento do filme. O final não é tão decisivo para o filme clássico quanto o desenvolvimento da trama O filme clássico pode ser dividido em segmentos ao mesmo tempo fechados e abertos. Eles são fechados no sentido de que preenchem um espaço-tempo específico, constituindo-se como unidades isoladas das demais. E são abertos no sentido de que, embora isolados, estes segmentos se conectam, movimentando a causalidade. David Bordwell classifica dois tipos básicos de segmentos: as cenas e os resumos. Cenas Resumos Segmentos que prosseguem ou dão continuidade à causalidade. As cenas “dialogam” entre si, expondo a ação (cada cena é uma fase da causalidade) Segmentos de “passagem”, interpostos entre as cenas, com o objetivo de condensar informações, situando o espectador e auxiliando o avanço da trama Rocky Balboa, de John G. Avildsen (1976) UP, dos estúdios Disney (Pete Docter, 2009) Até que ponto a narração mostra conhecimento da fábula? Até que ponto a narração reconhece que está se dirigindo a alguém (receptor do filme)? De que modo a narração disponibiliza ou esconde as informações da fábula? COGNOSCIBILIDADE AUTOCONSCIÊNCIA COMUNICABILIDADE Tende a ser onisciente A narração sabe mais que qualquer um dos personagens ou todos eles. Tende a ser altamente comunicativa A narração esconde muito pouco. Em geral, esconde apenas “o que vai acontecer a seguir”. Tende a ser moderadamente autoconsciente Ao contrário do que se dá no cinema moderno, o filme clássico raramente reconhece que está se dirigindo ao público. NARRAÇÃO CLÁSSICA Os gêneros do cinema hollywoodiano alteram relativamente essas características da narração. Um filme policial (de investigação) vai ocultar mais informações da fábula, um musical vai demonstrar mais autoconsciência, uma vez que os dançarinos atuam voltados para a câmera etc. A narração pode ser percebida quando há uma intervenção no naturalismo dramático com que os atores promovem a ação. Pode haver indícios fortes de autoconsciência, por exemplo, numa montagem em sequência (a montagem sintetiza uma ação, em vez de encená-la), ou em um flashback. Sendo essencialmente discreta, a narração clássica opera como uma inteligência editorial. Quanto mais o fi lme obedece ao tempo cronológico, mais ele tem comunicabilidade e menos ele tem autoconsciência. Quando surge uma lacuna causal (a falta de uma informação que não pode ser encenada), a narração intervém com segmentos de maior autoconsciência. TEMPO A onipresença no espaço acentua a onisciência do filme. A câmera é um olhar que a tudo vê, sem ser vista. Logo, somos “observadores invisíveis”. Praticamente não há desperdício no filme clássico. Os cenários são real istas e devem ser convincentes. Os objetos são utensílios para os atores, ou simplesmente reforçam o realismo. ESPAÇO A margem de criação que os realizadores do cinema clássico possuem é determinada por três parâmetros gerais: O ESTILO CLÁSSICO A técnica do cinema serve para transmitir informações da fábula por meio da trama O estilo deve estimular o espectador a construir mentalmente o espaço e o tempo da fábula, mantendo a consistência e a coerência O estilo é um número limitado de dispositivos intuitivamente reconhecidos pela imensa maioria dos espectadores, uma vez que eles foram convencionados e estão popularizados De que modo e até que ponto as normas e princípios narrativos do cinema clássico são confirmadas, modificadas ou descartadas pelos filmes de narrativa complexa? Amnésia, de Christopher Nolan (2000) ESTUDO DE CASO Tempo da estória (cronológico)no mesmo sentido do tempo do filme CENAS EM PRETO E BRANCO ESTRUTURA NARRATIVA DE AMNÉSIA Tempo da estória (cronológico) no sentido oposto ao tempo do filme CENAS COLORIDAS TEMPO DO FILME Plano inicial do filme e plano final da estória (reverso) ESTRUTURA NARRATIVA DE AMNÉSIA Lenny está em um hotel e recebe ligações de Teddy, um policial corrupto que o conheceu quando trabalhou no caso do estupro de sua esposa.Teddy vem se aproveitando há mais de um ano da condição de Lenny, e agora tenta convencê-lo a assassinar Jimmy, um traficante a quem prometeu vender anfetamina. Lenny é convencido por Teddy que Jimmy é John G., um dos agressores de sua esposa. Assim, Lenny vai ao encontro de Jimmy no lugar de Teddy, e o mata. Teddy também vai ao local do crime para pegar o carro de Jimmy, dentro do qual está uma caixa com os 200 mil dólares da negociação que vitimou o traficante. Ao chegar ao local, porém, Teddy é abordado por Lenny, que o pressiona até que ele conte a verdade sobre o que está acontecendo. ESTRUTURA NARRATIVA DE AMNÉSIA Por intermédio de Teddy, Lenny toma conhecimento de dados importantes da sua vida: (1) a sua esposa não morreu quando foi atacada; (2) ela não suportou conviver com a sua doença; (3) ele tinha passado a viver fantasiandoa sua própria história e misturando-a com a história de Sammy, um farsante que simulou um problema de memória para tentar enganar a empresa de seguros em que Lenny trabalhava; (4) Teddy já o tinha ajudado a matar o verdadeiro John G., e desde então passou a se aproveitar da obsessão de Lenny para que ele cometesse novos assassinatos. Diante dessas revelações, Lenny toma decisões importantes: (1) ele anota na fotografia de Teddy que não deve confiar em suas mentiras; (2) ele queima as fotos que registram os assassinatos do verdadeiro John G. e Lenny; (3) ele anota a placa do carro de Teddy como se fosse a placa do carro de John G.; (4) ele pega o carro de Jimmy e vai embora do local do crime, deixando Teddy sem as chaves do seu próprio carro, arremessadas em um arbusto. ESTRUTURA NARRATIVA DE AMNÉSIA As decisões de Lenny criam condições para que Teddy venha a ser considerado John G., o suposto assassino de sua esposa. Bastaria que Lenny continuasse a sua investigação e confiasse em suas anotações, como de hábito. No desenvolvimento dessa ação climática, Lenny é ajudado por Natalie, namorada de Jimmy. Natalie é procurada por Lenny depois de encontrar uma mensagem sua em um porta-copos no bolso do terno de Jimmy. Lenny estava vestindo o terno desde que assassinou o traficante (mas por causa do problema de memória, Lenny já não sabia que o terno não era dele, e pensou que a mensagem de Natalie era um dos seus “mementos”). ESTRUTURA NARRATIVA DE AMNÉSIA Sem saber que Lenny é o assassino de Jimmy, Natalie se aproveita dele do mesmo modo que Teddy já vinha se aproveitando, e o induz a assassinar Dodd, outro traficante com quem o seu namorado fazia negócios. Natalie também ajuda Lenny em sua investigação, e pede a um amigo que descubra a identidade do dono do carro que ele fotografou, levando-o a Teddy (cujo nome completo é John Edward Gammell, o que o habilita perfeitamente a ser um “John G.”). Convencido por suas anotações, Lenny rejeita todas as aproximações de Teddy que tentam convencê-lo a ir embora da cidade, e acaba voltando com ele ao local onde os traficantes se encontram para fazer negócios. Lenny mata Teddy, concretizando o seu planejamento, e tira uma fotografia do seu corpo. Essa é a fotografia que vemos no primeiro plano do filme, que é também o último evento da estória. ESTRUTURA NARRATIVA DE AMNÉSIA Incidente Incitante A oportunidade de matar John G. é oferecida a Lenny pelo policial que lhe telefona Crise Lenny precisa decidir o que vai fazer depois que Teddy revela dados importantes da sua vida Dilema Decisão Clímax da estória CRISE Relembrando McKee: Relembrando McKee: ESTRUTURA NARRATIVA DE AMNÉSIA Clímax Quando Lenny decide transformar Teddy em um “John G.”, todo o restante da estória de Amnésia se converte em uma ação climática. A cena obrigatória fica evidente: Lenny vai se confrontar com Teddy. Para chegar lá, Lenny mergulha em conflitos nos três níveis: interno (sua memória), pessoal (os sentimentos perturbadores pela esposa que ele julga morta) e extrapessoal (a sobrevivência difícil, as pessoas que querem enganá-lo, o confronto com traficantes etc.) O desejo consciente de Lenny é matar "John G.” (Teddy). O seu desejo inconsciente é continuar a acreditar que existe um “mundo lá fora”, ou seja, manter as ilusões em que ele acredita para viver. ESTRUTURA NARRATIVA DE AMNÉSIA Características da narrativa complexa em Amnésia: - Trata-se de um dos raros filmes em que a decisão crítica vem logo depois do incidente incitante, fazendo com que a ação climática seja tudo o que segue a este momento. - No entanto, o incidente incitante e a decisão crítica são colocados nos momentos finais da trama (tempo do filme), de modo que assistimos a toda a ação climática sem reconhecê-la como tal (pelo menos na primeira vez). Essa é uma ruptura com a estrutura narrativa clássica. - Ao mesmo tempo, a cena obrigatória é posicionada no início da trama, o que também é uma ruptura. - Isso nos leva a duas conclusões sobre narrativas complexas: a experiência com o filme se realiza mais no ato de revê-lo do que no ato de vê-lo pela primeira vez; essa experiência está mais ligada ao modo como a trama organiza a fábula do que ao acompanhamento do que "vai acontecer". Tempo da estória (cronológico)no mesmo sentido do tempo do filme CENAS EM PRETO E BRANCO ESTRUTURA NARRATIVA DE AMNÉSIA Tempo da estória (cronológico) no sentido oposto ao tempo do filme CENAS COLORIDAS TEMPO DO FILME Plano inicial do filme e plano final da estória (reverso) Incidente Incitante Crise Cena obrigatória NARRATIVAS COMPLEXAS NARRATIVAS CLÁSSICAS Janela Indiscreta é uma metáfora da espectatorialidade clássica. Jeff representa o espectador que persegue os conflitos da trama em uma sequência de causas e efeitos. Assim, ele levanta hipóteses, anseia por respostas e se satisfaz com um clímax que revela "o que vai acontecer”. Amnésia é uma metáfora da espectatorialidade complexa. Leonard representa o espectador que coleciona “pistas" para montar o quebra-cabeças da estória. Assim, ele não tem memória para organizar as relações causais no ato da experiência. Em vez de alimentar expectativa pelo clímax, nosso interesse é pela compreensão do caminho sinuoso que o produziu (tanto que a cena obrigatória do clímax é mostrada no primeiro plano do filme). Incidente Incitante de Amnésia Crise do protagonista em Amnésia Início da ação climática em Amnésia (desejos profundos do protagonista)
Compartilhar