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O SÉCULO DO CINEMA GLAUBER ROCHA O SÉCULO DO CINEMA GLAUBER ROCHA Prefácio de Ismail Xavier 9 PREFÁCIO 35 HOLLYWOOD 37 Griffith; 40 Chaplin; 43 Erich von Stroheim; 44 Fritz Lang; 49 Orson Welles; 53 William Wyler; 58 Sombras que vivem; 59 Stanley Kramer; 61 Chá e simpatia; 63 O mito do racismo; 65 O galante vagabundo; 67 Pregação da violência; 70 Rebelião no presídio; 71 James Dean — O anjo e o mito; 73 David Lean; 75 O gênero policial; 77 Graham Greene; 80 Delinqüência juvenil; 89 Elia Kazan; 92 Encontro com o Diabo; 95 O filho nativo; 96 Suspense: Hitchcock e Clouzot; 99 Os temas de denúncia; 101 A casa dos homens marcados; 102 Tarde demais para esquecer; 102 Um filme contra a liberdade; 103 As virgens de Salém; 106 John Huston — Técnica física e técnica estética; 107 Stanley Kubrick; 114 “Western: introdução ao gênero e ao herói”; 115 Rastros de ódio; 118 O cacique da Irlanda; 123 Matar ou morrer; 125 Do novo Western; 129 O preço da idéia; 133 Um filme genial; 138 From New York to Paulo Francis; 145 Bad movie ou saudades do Maciel; 148 Easy Rider; 151 Rei do fumo; 153 Apocoppolakalypse — Um discurso alienado e alienante sobre a guerra no Vietnã 159 NEO-REALISMO 161 Eyzenstein e a Revolução Soviétyka; 170 Os 12 mandamentos de Nosso Senhor Buñuel; 185 A moral de um novo Cristo; 190 Él; 197 Jean Renoir 203 O tradicional e o inventivo em René Clair; 206 O neo-realismo de Rossellini; 216 Dramaturgia fílmica: Visconti; 221 Forma e sentido do cinema; 223 Visconti e os nervos de Rocco; 229 O barroco viscontiano; 236 Esplendor de um deus; 241 Amigo Visconti; 241 Maestro Visconti; 246 Zabriskie point; 248 Antonioni; 249 Espaço funeral; 253 Glauber Fellini; 274 É preciso voltar a Eisenstein; 276 Pasolini; 282 Um intelectual europeu; 283 O Cristo-Édipo; 286 Gritos e sussurros; 287 Bellocchio e a reconciliação dos casais psicanalizados; 290 Novecento 301 NOUVELLE-VAGUE 303 Cine Cristo às avessas; 304 Vadim (BB) Vadim; 305 A pele doce do amor; 306 Alphaville; 308 Você gosta de Jean-Luc Godard? (Se não, está por fora); 313 O último escândalo de Godard; 319 Tudo bem; 320 Paso sado mazo zalo; 325 A passagem das mitologias 337 APÊNDICE 343 O novo cinema no mundo; 352 Neo-realismo: inspiração falida; 356 Concluindo sobre neo-realismo; 359 Alphaville; 363 Você gosta de Jean- Luc Godard? (Se não, está por fora) 375 FORTUNA CRÍTICA 379 Nota de apresentação da edição de 1983 [Orlando Senna]; 379 Nem de deus nem do diabo [José Carlos Avellar]; 383 Glauber vê o cinema [Pedro Karp Vasquez]; 384 O século do cinema em discussão [Rogério Sganzerla]; 386 Câmera e idéias [Paulo Leminski] 389 FONTES 393 ÍNDICE REMISSIVO 8 IMAGENS DAS PÁGINAS DE ABERTURA [p. 2] Glauber e Rossellini em Cannes,1969; [p. 3] Renoir e Glauber em Montreal,1967; [p. 4] Buñuel e Glauber em Veneza,1967; [p. 5] Fritz Lang e Glauber em Montreal,1968. 9 PREFÁCIO A CARNE E O ESPÍRITO: ESTAR INTEIRO NA SITUAÇÃO Ao examinar artigos que Glauber Rocha escolheu para compor este livro, nossa primeira tentação é cotejar o estilo de sua crítica com os traços gerais daquela postura hegemônica durante os anos de sua formação como ciné- filo, escritor e cineasta: a da “política dos autores” liderada pelo Cahiers du Cinéma. De fato, não se pode descartar a presença dessa cultura das revistas francesas no jovem Glauber, mas é preciso observar que tal relação é me- diada pelo seu diálogo com críticos brasileiros nem sempre alinhados a tal política ou às avaliações que ela trazia. Tal diferença se pode ver no conjunto de interlocutores formado, pelo menos, por Walter da Silveira, Paulo Emílio Sales Gomes, Alex Viany, José Lino Grunewald e Cyro Siqueira. Havia no Brasil inflexões ideológicas distintas, e invenções da crítica que Glauber capturou de forma precoce para construir o seu ponto de vista, de- finir uma personalidade forte de escritor que experimenta e revê posições sem diluir o seu trajeto. Desde cedo, teve consciência aguda do lugar de onde falava e das respostas que devia dar ao seu contexto sem ser provincia- no no modo de intervir nos debates mais amplos da cultura cinematográfica. Suas intuições estéticas e suas convicções políticas ganharam expressão no detalhe de sua fraseologia, evidenciando um crítico e cineasta atormentado pelo imperativo de intervenção, empenhado em articular a invenção formal como gesto político e a militância ideológica como fato de estilo. 10 Para Glauber, o social é um campo de batalha em que tudo se conecta — a estética, a moral e a política — de modo a revelar confrontos e alianças, sacrifícios e traições, deuses e diabos. No balanço das forças, o valor de cada cineasta se decide pelo modo como suas ações e opiniões vêm a compor um perfil e um caráter, uma articulação de traços pessoais que às vezes ganham sínteses originais: Erich von Stroheim é a inspiração embebida de violência e saudade; John Ford, o cacique da Irlanda; Stanley Kubrick, o que reúne a expressão fílmica pura e a voz indignada. Federico Fellini, o maior fenômeno da Imaginação Viva. Sergei Eisenstein é o menino que não encontrou seu alter ego, e ninguém depois dele foi tão cinematográfico quanto Orson Welles. No grande teatro da história, o jogo é de contrapontos. O estilo monumen- tal de David W. Griffith se opõe à comédia humana do iluminado Chaplin; Elia Kazan é o cineasta que pagou o preço da traição; Laszlo Benedek é “o que rompeu com o teatro de Kazan”. A coragem do diretor-produtor Stanley Kra- mer contrasta com o oportunismo de diretores como Robert Rossen e Edward Dmytryk, os que fazem “filmes falsos para temas agudos”. À postura “imperia- lista e arrogante” de Francis Ford Coppola, Glauber contrapõe a simplicidade do cinema clássico liberal de John Ford e Howard Hawks; ao trágico James Dean, o reacionário Marlon Brando; à grandeza da comédia de Frank Capra, o subhumor de Jerry Lewis e Bob Hope. Haverá o primeiro Ingmar Bergman contra o segundo, de Persona; e haverá um Pier Paolo Pasolini, de O Evange- lho segundo São Mateus, contra o outro, de As mil e uma noites. Acima desses pares de opostos, reina a liberdade de Luis Buñuel, a grandeza de Luchino Visconti e o espanto de Roberto Rossellini, o papa do cinema moderno que encontrou em Jean-Luc Godard o filho angustiado que trouxe as interrogações do pai para o terreno da própria fatura do cinema. Godard é o irmão pouco à vontade consigo mesmo que Glauber admira e descreve com simpatia como a consciência lúcida de um continente cansado, carente de energia, fé religiosa, povo e periferia. Política dos autores? sim, mas em estilo próprio, sem assumir o postulado de unidade como um absoluto. Longe de estável ou sempre idêntica, a figura do autor permanece como idéia reguladora que sofre crises e mutações, su- jeita à diversidade dos juízos. Estes dependem, mais do que de conjunturas, do eixo escolhido para os confrontos onde ganham enorme peso os traços nacionais, os alinhamentos políticos, a pertinência do cineasta a um dos pó- los da triangulação entre Europa, Estados Unidos e Terceiro Mundo, ou a sua inserção em um dos amálgamas culturais que, no vocabulário de Glauber, se 11 definem como paganismo, “latinidade”, “inconsciente oriental da Itália”, “san- gue básico americano” ou outras totalizações que ele assume num tom subs- tancialista hoje estranho, que vale como documento de formação e como traço do seu estilo vulcânico, sincopado, sem vocação para o copy desk e impregna- do de oralidade, que solicita a leitura apoiada na força do ritmo, mais do que na precisão sintática. Há o Glauber cinéfilo, esteta exigente vivamente expresso em sua intimida- de com a forma do cinema e na sua paixão pelo detalhe, seja diante do cinema clássicoamericano, seja diante dos filmes europeus de sua preferência. No entanto, o modo como expressa seu juízo sobre autores e obras está em rela- ção direta com outros aspectos da experiência. A avaliação de cada cineasta não esconde o plano da vida, o papel de cada um dentro do jogo maior de poderes que regula as relações sociais. Em particular, vale o teste do encon- tro pessoal, presente neste livro de reportagens/entrevistas com os cineastas, lugar de entusiasmo e empatia, como nos casos de Buñuel, John Ford, Fritz Lang e Bernardo Bertolucci, ou de desconcerto e embaraço, como acontece na conversa com Elia Kazan, notável no que revela de tensões entre impulsos contrários gerados pelo contato direto com aquele que foi o alvo maior dos seus ataques. A política é um ponto decisivo, algo que impregna o ar que se respira e que se estende do grande evento social ao pormenor de cada dia, da carreira do homem de Estado à vida do artista, do artigo de lei à dramaturgia da lente zoom num filme de Luchino Visconti. Há política na busca do imponderável feita por Orson Welles, o que soube encenar os poderes, e há política na in- clinação eisensteiniana para os gráficos e para a “geometria dos processos temporais”; como há também política na poesia nervosa de Godard quando este faz o máximo de coisas no mínimo de tempo, saturando imagem, texto e som, capturando o espectador em seu dispositivo fascinante que flutua sem- pre “entre-dois”, como o dirá de forma mais direta Gilles Deleuze nos anos 80. Para Glauber, tal “entre-dois” é uma “forma poética do desespero” bem própria a este “suíço mineral e romântico” ao mesmo tempo. Porque pertinente em todos os casos, a política complica em vez de sim- plificar, se o crítico não quiser ser dogmático e sem interesse. Há muito o que dizer sobre isto, como se poderá ver adiante no que Glauber observa sobre o western e o filme de gangster, mas uma primeira linha de observação deriva de sua defesa de Welles, Eisenstein, Godard e Michelangelo Antonioni, cineas- tas que atestam a sua identificação com os acusados de formalismo por uma 12 esquerda que cobrava dos italianos a continuidade do neo-realismo, e dos de- mais uma pedagogia dos mecanismos sociais empobrecedora da leitura do cinema de Welles, o grande encenador da tragédia do Capital, e da leitura da obra de Rossellini, o que criou o “novo método de captar o real no seu fluir”. Se o cineasta italiano minimiza o close-up, isto é política, porque ele busca experiências que condensam um momento histórico, conectando sentimentos e crise social, investigação e reflexão. O estilo, neste caso, não resulta da pura contemplação; ele vem da carne. É um envolvimento total com o mundo que, de imediato, se manifesta na relação do cineasta com quem está à sua volta e ao seu alcance, postura que deve contaminar o próprio crítico cuja tarefa tam- bém envolve razão, corpo e afeto. Há que se identificar semelhanças e oposi- ções, fazer concatenações lógicas, mas é o conjunto que define o juízo, como se pode ver nas comparações que o crítico faz entre filmes ou cineastas, sem- pre apoiado na atenção aos desempenhos (que não se reduzem à figura do diretor) e às qualidades formais, com freqüente destaque às passagens mais marcantes. Tais “seqüências de grande cinema” são decisivas, a par do tema e do sentido geral de uma obra ou de um gênero. Mas a defesa do primado da forma e do estilo não se faz, na crítica de Glauber, em nome da arte e suas regras intrínsecas, pois tudo resulta do corpo a corpo com a vida e a história. Sempre encarnada, a arte não permite separar percepção e desejo, talento e paixão. Em especial, o cinema que é uma arte impura, para lembrar e deslo- car a fórmula de André Bazin. Digo deslocar porque a impureza aqui não é ape- nas uma contaminação recíproca das formas de expressão (o cinema trazendo dentro de si o que lhe é exterior entre as formas da cultura); ela deriva da presença direta da carne na sua constituição, pois fazer filmes envolve a inte- ração direta entre corpos e olhares — aqui, a busca da forma e da beleza se dá através de jogos de poder e de sedução que envolvem os que dirigem e os que atuam, os que fotografam e os que oferecem o corpo à objetiva da câmera. Como crítico Glauber envolve este movimento político de tornar explícita a dimensão corporal, intersubjetiva, presente em nossa relação com o filme e, ponto mais delicado, essencial no processo de trabalho do cineasta, algo que, em texto recente, Alain Bergala acentuou: “O cinema colocou de forma total- mente nova e inédita, na história das artes, a relação entre a criatura imaginária (aquela que o criador, para resumir, tem na cabeça), a criatura real (esta que os pintores e fotógrafos chamam de modelo) e a criatura inscrita na obra (a figura, a personagem encarnada no filme). A teoria não abordou jamais frontalmente esta questão óbvia, pois lhe parecia impura; no entanto, ela é constitutiva do 13 cinema, pois o que vemos na tela jamais resulta apenas da enunciação abstra- ta, mas sempre também, e fisicamente, de uma relação criador-criatura sem escapatória e sem equivalente em outra arte. Relação intersubjetiva onde entra em jogo toda a gama dos afetos, emoções e pulsões humanas”.1 Tal dimensão afetiva, carnal, está lá presente em passagens do crítico Glauber e ganha formulação telegráfica em frases como “Ninetto est acteur amant de Pasolini”, “La passion de Godard pour Jean-Paul Belmondo trans- forme la femme en père destructeur (À bout de souffle & Pierrot le Fou). La passion de Bertolucci pour Marlon Brando est un crime puni par Maria Sch- neider, travesti krystedipe violée par le mythe”.2 “Fellini é um rejeitado, Eu Fellini não sou Anita Ekberg. Desta frustração nasce Guido, mais bonito que Anita Ekberg. Fellini justifica Marcuse no caso de ser melhor artista porque é pulsionado pelo sexo felino.”3 As pulsões e os afetos são onipresentes e marcam o estilo de Glauber, de começo a fim, para além das diferenças que são claras entre o jovem dos anos 50 e o cineasta experiente dos anos 70. Em nenhum momento ele esconde as suas afinidades eletivas ou seus desafetos, como vemos na diferença de tom com que se refere a duas superproduções. Apocalipse Now é discurso aliena- do, fruto do imperialismo maniqueísta, pois desloca as verdadeiras questões e faz tudo convergir para a encarnação do Mal absoluto em Kurtz, personagem da “literatura colonialista” (Glauber é aqui, sem dúvida, redutor no ataque a Jo- seph Conrad).4 Novecento é a ópera esplendorosa e a coreografia das bandei- ras vermelhas que, apesar do toque convencional, recolhe os ecos da amizade, antes sem dúvida mais tranqüila, de Glauber pelo jovem autor talentoso de An- tes da Revolução, quando Bernardo era o “Jean-Luc da Itália”. Ou seja, em 1976, embora um “star do sistema imperialista”, Bertolucci ainda recebe a adesão do 1 Ver Alain Bergala, “De l’impureté ontologique des créatures du cinéma”, em Trafic, n. 50, verão 2004, p. 23. Trata-se de número especial com respostas de críticos e cineastas à indagação: “O que é o cinema?”. 2 Ver p. 265 infra. 3 Sobre Fellini, ver “Glauber Fellini”, pp. 253-74 infra. 4 Claro que vale aqui, no texto de Glauber, o tom da polêmica em estilo telegráfico. Neste sentido, digo “redutor”, não para negar a presença de uma dimensão imperialista na novela de Conrad, mas para lembrar que a questão é mais complexa e tem outras dimensões que a envergadura do escritor soube muito bem levar em conta, como observa Edward Said em Cultura e Imperialismo, trad. de Denise Bottman (São Paulo: Companhia das Letras, 1995). 14 crítico. O afeto vale também na alteração do ponto de vista diante da obra de Fellini, cineasta a quem Glauber termina, em 1977, por consagrar. Em notável texto, faz uma ode à imaginação e ao mágico do circo, temperando seu elogio com a homenagemao Padre Arpa, o coordenador do Instituto Colombianum, de papel decisivo na “conquista” da Europa pelo cinema novo nos anos herói- cos em que havia a resistência ao autor de Oito e meio no círculo dos jovens brasileiros, com exceção de Paulo César Saraceni que sempre o defendeu. Observar aqui o primado do afeto e, às vezes, de uma psicanálise selvagem nos textos de Glauber não significa compor um balanço indulgente preocupa- do em dar razão às impressões de um escritor descuidado dos conceitos. Ao contrário, significa ressaltar as tensões de um crítico que, desde o início, com- bateu o mero juízo impressionista e optou pela auto-exigência, foi reflexivo, questionou o seu próprio papel, não economizando declarações de princípio ou observações de passagem como esta em texto escrito em 1957: “Necessi- taríamos algumas considerações sobre ‘características formais’ e ‘linguagem cinematográfica’. Isto se faz indispensável por não entendermos crítica como mistério e sim esclarecimento; somos partidários da crítica didática”.5 Tal postura didática envolve, no jovem crítico, a apresentação de biofilmo- grafias, a explicação de conceitos e a escolha de um ângulo de abordagem que pudesse tomar o filme como exemplo de uma questão mais geral, esté- tica ou histórica, ou como um dado expressivo da conjuntura. Houve sempre, em Glauber, o impulso intelectual a determinar um esforço de atualização, ser contemporâneo, fazer sínteses. Atento, ele trouxe para a sua reflexão sobre a arte as referências que estavam em pauta no debate literário e na produção universitária, reagindo de forma pessoal a modas passageiras no mundo dos conceitos e pinçando o que poderia servir de apoio a argumentos em defesa do artista contra o sistema vigente ou contra o dogmatismo de ideólogos. Não surpreende que, mais de uma vez, cite Roland Barthes ou discuta a relação entre cinema e literatura, o cotejo entre palavra e imagem, as virtudes do es- tilo indireto livre. O combate em defesa do “formalismo” trazia a exigência de novos argumentos extraídos de um espectro amplo de saberes. São freqüen- tes as suas considerações sobre a diferença entre cinema e pintura, sobre o “sentido plástico” específico de um filme em conexão com a orquestração dos 5 Ver “Delinqüência juvenil”, p. 80 infra. Esta postura de reflexão sobre a crítica esteve sempre lá, como atesta um artigo de 1957, “Da crítica”, Vitória (ES), Vida Capixaba, Suplemento Literário Sete Dias. 15 ritmos pela montagem. Exemplo notável é a sua pontuação da diferença entre os ritmos do western e do filme de gangster na expressão da cultura ameri- cana. Ele vê aí a criação de formas que engrandece um gênero ficcional, pois o bom cinema se faz das estilizações que permitem a cunhagem de termos como o “realismo coreográfico”, feita pelo crítico mineiro Cyro Siqueira para se referir à dimensão estética da violência urbana tal como encenada nos filmes, idéia e expressão que Glauber endossa.6 Acima de tudo, ele foi conseqüente na admiração por Eisenstein, a figura maior de referência no seu afã de uma síntese entre sensibilidade e intelecto, emoção e razão. Não por acaso, o cineasta russo permanece o seu maior inspi- rador nas incursões teóricas. No longo artigo “Um filme genial”, referido a Uma vida em pecado, produção “B” dirigida por Irving Lerner, fascinado, Glauber afirma que o “filme está para o cinema como Joyce para a literatura”, e depois tece considerações sobre o monólogo interior, neste filme em questão e nas obras de Eisenstein e de Alain Resnais, comparando seus procedimentos com as narrações simultâneas de William Faulkner (autor que o inspirou e que cita com freqüência ao defender o cinema moderno). Depois, quando é fundamen- tal pensar e elogiar os traços de estilo próprios a Visconti e a Rossellini, ele ressalta o valor do plano longo e da mise-en-scène usando um vocabulário eisensteiniano: “montagem interna” e “montagem externa”. Ao contrário do que foi a tônica dos leitores franceses de Bazin, não era preciso, no Brasil, es- quecer Eisenstein para engatar no sopro de invenção e nas virtudes do plano longo evidenciadas pelo neo-realismo e por Welles, depois da ação pioneira de Jean Renoir. O novo cinema latino-americano se fez dessas convergências, e o crítico Glauber as vivenciou de começo a fim, como bem mostra seu empenho, nos anos 70, em trabalhar a noção de “montagem nuclear”, a partir de seu filme Di Cavalcanti (1976) e de observações críticas reunidas aqui em O século do cinema. Mais de uma vez ele se refere à taxonomia de Eisenstein (os tipos de montagem), fazendo dela uma clara matriz de seu pensamento, num diálogo que se desdobra na contribuição original que vem dar à teoria quando pensa no novo modo de abertura em leque das associações temáticas da montagem como uma explosão em cadeia — liberação de uma intensidade por irradiação de valores plásticos — como bem mostra a seqüência das escolas de samba em A idade da Terra, quando experimenta a “montagem nuclear”. 6 Ver p. 82 infra. 16 O SÉCULO DO CINEMA E AS FORMAS DA CULTURA: O IMPERATIVO DE GRANDEZA Artista de requinte, Visconti é o Proust do cinema no sentido formal do gesto que se completa até a unha coçar a poeira. [Glauber Rocha] Há, no percurso de Glauber, uma constante revisão da poética do cinema que envolve, em certa medida, o estatuto de seus próprios filmes num quadro his- tórico maior. Nesta linha, ele encontra outros elos com a experiência de Ei- senstein na representação do êxtase religioso (A linha geral) a partir da idéia de pathos. Por outro lado, o modo como define os temas e o estilo de Visconti, Rossellini, Godard, Buñuel, Kubrick, Ford, Welles e Pasolini evidencia novos jogos de espelho que rebatem sobre sua própria obra. Esta não é comentada neste livro, a menos do que ele diz na entrevista dada a João Lopes, em abril de 1981, incluída no final do volume. No entanto, ela se deixa entrever de for- ma nítida, na defesa do princípio da invenção formal como condição para uma arte conseqüente. Se há a defesa do rigor na armação do estilo, este se integra numa busca de expressão que mobiliza o cineasta por inteiro, pois é clara a sintonia de Glauber com a divisa dos jovens cineastas dos anos 60 que afir- maram sua conexão com o espírito das vanguardas na recusa em separar vida e obra. Esta foi uma palavra de ordem que, no Brasil, ganhou uma particular inflexão política, de engajamento nos termos de Jean-Paul Sartre: liberdade, escolha, responsabilidade. Se, como Godard e muitos outros, Glauber viveu tal condição de artista como desafio, drama, dilaceramento, toda a sua admiração se dirige a Buñuel, que ele vê situado além do plano da angústia, pois tudo nele já é decorrência de um salto único, primordial, de homem livre. O realizador de Viridiana com- põe um patamar absoluto de avaliação que não se prende aos imperativos formais, pois é o próprio crítico quem observa como este cineasta não está preocupado com a invenção formal, sendo mais importante, em sua obra, a extraordinária força das imagens qtue advém do modo peculiar com que des- nuda, com ironia, a imaginação religiosa e as piruetas da sublimação, lendo a contrapelo a energia “criadora” das operações de recalque e das pressões mo- rais de um cristianismo em crise. Buñuel feriu sempre as bases institucionais do capitalismo e soube mudar de estilo para se adaptar aos assuntos, como bem mostra Diário de uma camareira, filme que recebe o elogio de Glauber 17 pela visão abrangente “dos motivos que levaram a França burguesa a fraquejar em duas guerras”. O século do cinema nos lembra Revisão crítica do cinema brasileiro e Revo- lução do cinema novo em sua forma de distribuir elogios e ataques, refazer a tradição. Dentro desta semelhança, o dado original neste livro é campo maior envolvido nas indagações. Como já observei, Revisãoé a palavra do jovem que define o seu lugar no cinema brasileiro, antes mesmo de realizar as obras- primas que viriam consolidar a sua posição de liderança e dar maior ressonân- cia às suas idéias; Revolução é a batalha do cineasta consagrado em defesa do que considera a memória legítima do cinema novo e de sua experiência pessoal como cineasta tricontinental, atestando as suas movimentações pelo mundo e suas alianças dentro da cultura que afirmava a revolução e a descolo- nização como direções dominantes do processo histórico naquele momento.7 O século é a retrospectiva de um confronto com seus pares que teve início precoce, no crítico Glauber Rocha, com seus textos de notável interesse que já compunham um elenco de afinidades que depois se tornam alianças efetivas no caso dos cineastas europeus incluídos nesse percurso do crítico. É digno de registro o fato de não estarem tematizadas neste livro outras afinidades, quando pensamos a questão de estilo e a problemática cultural mais ampla. Cito aqui a densa e celebrada experiência de um cinema nacional que poderia ser tomado por ele como forte referência no debate — o cinema japonês — e também a emergência, já em torno de 1969-1970, de uma nova geração de cineastas alemães que dialogaram com o cinema novo de diferentes formas (basta citar Alexander Kluge, Wladimir Herzog e Rainer Werner Fassbinder, este último com homenagem explícita a Glauber). A referência franco-alemã, ao lon- go dos anos 70, continuou sendo Jean-Marie Straub. O trajeto do livro deixa claros o cenário do drama e as personagens que interessavam a Glauber destacar, dentro de sua peculiar articulação entre a defesa de um novo estilo e a atenção a tradições nacionais com as quais ele sentiu necessário um ajuste de contas, tradições que tiveram parte maior em sua formação. Há, portanto, que se considerar o modo como Glauber amplia e, ao mesmo tempo, demarca o horizonte de sua geopolítica; e também o modo como o terreno escolhido para os embates se organiza, nos textos críticos, em consonância com o percurso de seu próprio cinema. A sua apreciação do 7 Ver os prefácios desses dois livros de Glauber publicados pela Cosac Naify, em 2003 e 2004 res- pectivamente. 18 cinema europeu ou norte-americano remete, em grande parte, ao que, inter- nalizado e pressuposto, está fora do livro, ou seja, o contexto brasileiro. Esta é uma interação que merece ser explorada quando se observa a sua defesa do cinema moderno, o seu interesse maior pelo cinema italiano (campo maior das afinidades), a presença discreta do cinema francês, ressalvado o constante elo- gio a Godard, e a sua avaliação de Hollywood: se há o seu ataque mais direto quando “a forma vira fórmula”, há também afirmações de identidade, como no caso do humanismo de Charles Chaplin, cineasta que “ilumina o século XX porque nele o Povo se faz Imagem”. A figura de Carlitos o interessa porque é resposta irônica dos vencidos às iniqüidades do século, exemplo de uma arte de resistência que se opõe ao “protestantismo racista de Griffith” e aos lances truculentos do Capital, ante- cipando um movimento do cinema como arte política e popular que teve o seu grande impulso na Itália de 1945-1960. Dado que a questão nacional é um tema fundamental na reflexão de Glauber, o cinema moderno italiano é o alvo do seu maior empenho como crítico, ao lado de suas observações sobre o significado histórico-nacional dos gêneros típicos de Hollywood. Ressalvadas as nítidas afinidades com o autor de Tempos modernos, Glauber não chega a projetar no mundo de Carlitos a questão do nacional-popular nos moldes em que, de Antonio Gramsci aos partidos de esquerda da América Latina, ela mar- cou o debate em torno de uma arte política. As discussões mais conceituais aparecem nos textos em que está em foco uma questão na qual o próprio Glauber está implicado, há algo que desafia o seu próprio caminho de criação. A questão do diálogo dos cineastas com os gêneros e mediações vindos da cultura popular é um exemplo disto, pois envolveu uma relação tensa com a tradição dos Partidos Comunistas que assentaram demandas de realismo, em- bora estas não tenham sido um imperativo nas formulações de Gramsci sobre a literatura na vida nacional e sobre o papel político de certos gêneros como o romance de folhetim. Afastado do realismo, Glauber tomou o nacional-popular em sua feição de arte pública mobilizadora de grandes “formas da cultura” como o mito, a narrativa bíblica, a epopéia e a tragédia, gêneros que julga já assentados no imaginário popular e instalados nas elaborações inconscientes, portanto mais enraizados nas formações nacionais, tal como é o caso da ópera na Itália, solo em que estaria apoiado o impacto do cinema de Visconti. A ques- tão não seria, então, o realismo psicológico e as particularidades do cotidiano, mas certos paradigmas do comportamento moral que permitem ligar a ação individual ao grande teatro da história, tal como o fez o autor de Ossessione e 19 Senso, o mestre mais lúcido na apropriação do melodrama e na compreensão de um espírito nacional cristalizado em códigos da arte. Em verdade, o voca- bulário de Glauber é mais substancialista, pois fala em “espírito melodramático da sua raça (Itália): Cineasta Nacional, toda a Cultura posta num Filme”.8 Diante de Visconti, Glauber é superlativo: ápice da dramaturgia fílmica (montagem interna + montagem externa) e da dinâmica visual sutil, é o cineas- ta que sabe sustentar o tempo da câmera até a saturação. Aqui, a sensibilidade do crítico explora muito bem uma seqüência de Senso, quando há um célebre movimento de câmera na direção contrária à da ação dos soldados numa bata- lha, de modo a deter a imagem fora da ação e centralizar a composição numa árvore. A partir deste exemplo, ele pensa a questão do tempo no cinema mo- derno (o texto é de 1959) e destaca a interrupção do fluxo das ações, usando o mesmo parâmetro mobilizado pela crítica francesa que consolidou o discurso sobre a nova estética. Feita a observação sobre o modo viscontiano de usar o dispositivo do cinema, Glauber se concentra na composição do drama: o que lhe interessa ressaltar é a forma como, ao condensar sentimentos humanos culturalizados em formas expressivas, Visconti incorpora o drama barroco da Itália, em sintonia com o “teatro latino verista”. A cada texto, e são vários em torno de Visconti, Glauber muda a categoria na qual se apóia. Ora ela é de tipo estético, como o senso do trágico (este que prevalece quando se assume o que se deve fazer mesmo sendo terrível — amar Rocco e vê-lo derrotado em seu cristianismo). Ora é de tipo ideológi- co, como o peculiar marxismo do aristocrata; ora de tipo biográfico, como o homossexualismo que orquestraria a circulação de Eros em todos os segmen- tos sociais. A análise de Rocco e seus irmãos — voltada para o sentido histó- rico de cada personagem e para a dimensão trágica da experiência da família — é uma pièce de resistence estratégica no posicionamento de Glauber diante do problema estético do cinema no início dos anos 60 (o texto é de 1962). Vale, neste esforço, o privilégio que ele conferiu ao filme que, para muitos, dava continuidade a uma tradição mimético-realista em descompasso com um cinema de ponta representado por Hiroshima, meu amor, de Resnais, onde era notável a nova forma de relação entre texto e imagem, espaço e tempo. Glauber reconheceu a revolução de Resnais, com a qual tinha todos os moti- vos para se identificar, dada a natureza do seu próprio projeto no plano formal (mais tarde, houve Terra em transe e sua complexa relação imagem-som). No 8 Ver p. 222 infra. 20 entanto, deixou clara a opção por Visconti, dada sua afinidade maior com um cineasta que realizava o encontro entre o cinema e as “grandes formas expres- sivas da cultura” (nacional e/ou popular). Além disto, pesa aquia identidade no plano estilístico, pois haverá, em Deus e o diabo, o mesmo uso reiterado da zoom como forma dramática, em consonância com o elogio à zoom viscon- tiana que será até mais explícito em texto posterior (1971), em que ele vai se valer também da noção de “terceiro sentido”, ou sentido obtuso, de Roland Barthes, para compor uma notável observação sobre o efeito deste dispositivo cinematográfico sobre as formas tradicionais de mise-en-scène e de exposição dos sentimentos.9 No cotejo com Hiroshima, e ao exaltar o barroco de Visconti, Glauber obser- va que este “passa da ópera, não ao romance moderno da ‘experiência formal’ mas ao romance moderno da ‘grandeza’: se antes, em Senso, estava presente a marca do espírito Stendhal, agora, em Rocco não só a violência dramática fraternal dos Karamazov envolve toda a obra: a tradição mítica desta mesma dramaturgia que encontramos na bíblica saga de Abel & Caim, José & seus irmãos, está colocada no jogo”.10 Essa textura barroca de transfiguração da tragédia é o que vemos se ex- pressar no próprio cinema de Glauber diante do grande teatro da história de que ele buscou, a seu modo, a expressão figurada. Como poucos, ele mobi- lizou a matriz bíblica e os paradigmas da imaginação popular para projetar a representação da pobreza em outra escala, definindo um senso de “grandeza” assentado na forma de se conectar as conjunturas históricas a um plano uni- versal de experiência. Não surpreende que, a par das observações sobre Res- nais, Glauber tenha entendido o laicismo de Godard, “como uma extraordinária inspiração poética que parece vinda de um Rimbaud na estação do inferno” (a referência aqui é Pierrot le Fou). E, ao mesmo tempo, tenha ressaltado que o feixe de dúvidas aí presente faz o grito de Pierrot algo “neurótico”, feição mo- derna do trágico, quando ele corre com o rosto pintado de azul e dinamite nas mãos, sentimento distinto do grito mediterrâneo na tragégia clássica. Tal como Godard, Antonioni é outra baliza do cinema moderno. O eclipse é o grande espaço funeral, documento do mundo burguês morto; uma obra que ilumina o homem, um monumento de lucidez. Antonioni é o maior mestre da “dialética da alienação” feita mise-en-scène e imagem, pois o cinema é mesmo 9 Ver p. 238 infra. 10 Ver p. 230 infra. 21 a sua língua (no século XIX, ele teria sido filósofo, como Hegel). No entanto, o namoro do crítico é com o encantamento próprio ao drama barroco (entenda- se Visconti), forma específica da cultura com que teve maior empatia e que, nos anos 60, moldou o seu próprio estilo, feito da tenacidade diante da escas- sez de recursos e de um peculiar impulso de esperança que conviveu, mais e mais, com o dilaceramento. Personalíssimo nas alianças, Glauber desde cedo, ao lado da identificação com os realizadores europeus, buscou lições no cinema de Hollywood, condu- zindo um diálogo intenso com os diretores resistentes às pressões do sistema, não obstante a peculiar afinidade com John Ford, cineasta canônico do esta- blishment e nada barroco em seu estilo. Neste caso, foi decisiva a mediação do western como gênero, lugar do cultivo de um modo direto de expressão dos conflitos e também dos rituais de cimentação da comunidade. Há, nesse gênero, uma forma de assumir a dimensão moral das condutas que agrada o crítico que sempre pontuou seus textos com palavras como coragem e covar- dia, sacrifício e traição, ou expressões como “um sofisticado pobre de espíri- to”, a propósito de Marlon Brando. Este ator, além de seu próprio estilo cada vez menos amado pelo crítico (basta ver o que fala de Brando em Apocalypse Now), recolheu os ecos da diatribe de Glauber contra Elia Kazan, pois também ele teria passado de um início promissor a uma traição. O problema não estaria, portanto, na sua formação no Actor’s Studio de Lee Strasberg. As observações azedas sobre o mito não significam uma intolerância radical do crítico com os princípios do “método” que identificava a célebre escola; revelam apenas uma desconfiança que vem do afastamento do “método” face ao que definia a ex- periência neo-realista (a força do tipo e da fisionomia, ou o simples “ser” diante da câmera) e da forma como Strasberg incorporou Stanislavski, aclimatando-o à cultura americana; algo envolvido demais em excitação e tiques nervosos, de um “psicologismo” nada a gosto de Glauber. De qualquer forma, há um exemplo de adesão que se expressa na homenagem à autenticidade e às es- colhas radicais de James Dean, o bendito fruto do Actor’s Studio em oposição às ervas daninhas. O ator e sua morte precoce inspiraram um dos mais belos textos do jovem crítico, lugar de uma identificação que muitos podem receber com surpresa, mas que se deve ao toque de grandeza presente na tragédia encarnada em James Dean, com sua conjunção de desespero na afluência ma- terial e egocentrismo não complacente. Dean foi o mito que cristalizou a união de juventude niilista e violência no seio mesmo do poder material do Império; uma nova faceta do “mal-estar na cultura” que os anos 50 desdobraram numa 22 iconografia de grande impacto: máquinas velozes, blusões negros e crispa- ções faciais potencializadas pelo “método” que se ajustou, com maior ou me- nor êxito, à expressão de um caldo de cultura em que a neurose individual se fez ícone do que Glauber via como uma crise de modelo civilizatório. Embora expressão de um sufoco que não derivava da pobreza material, o destino do jovem americano trazia seu paralelo com outras experiências trágicas que, em- bora distintas, lhe eram contemporâneas. Estaria aí o mérito do melhor cinema americano: construir um mundo de formas pelo qual os talentos mais lúcidos de Hollywood transfiguraram a “tragédia americana” (para evocar o livro de Theodore Dreiser que Eisenstein roteirizou mas não filmou). Na descrição do jovem rebelde, Glauber vai ao detalhe — como também o faz com o herói do western — em passagens que mostram bem o diálogo entre seus textos e o que se evidencia como cuidado de composição das figu- ras nos seus filmes, onde a violência do oprimido, em outra conjuntura social, encontra a sua própria iconografia: ele projeta os paramentos da tragédia na figura de beatos e cangaceiros, o gibão de couro na caatinga a trazer o contra- ponto rústico e nacional ao que a urbanidade das motocicletas condensou nos blusões de nylon, berrantes em suas cores (símbolos vitais da tragédia). Na mediação entre esses dois terrenos, há o mundo do western, este produto das baladas folclóricas voltadas para o herói nômade em fase pré-moderna que, no século XX, recolheu as potências maiores de uma iconografia de celulóide que se tornou saga de formação nacional — o cinema americano por excelência, como diria Bazin. A experiência do mito do west é o contato com a violência no período da formação que antecede a tragédia, ocasião de empatia com o herói que, ressalvada a iniqüidade da colonização, ganha um papel civilizatório na luta entre criadores de gado e camponeses, tornando-se símbolo de uma aspiração de justiça vivida como ética espontânea de homens rústicos, estes que compõem os valores em plena instabilidade, moldando um caráter, uma formação étnica e religiosa. Em defesa do herói do western, Glauber se irrita quando um crítico chama o protagonista de Matar ou morrer de “burguês”, e propõe outras formas de pensar uma tipologia do gênero, ressalvando a per- sistência do caráter mítico dos temas e das figuras. De outra feita, observa: “Desta temática, rica em múltiplos aspectos, o cinema americano extraiu até à saturação atual o que de humano sobrou do massacre dos índios e da escra- vidão negra”.11 11 Ver p. 116 infra. 23 A fórmula aí é curiosa, e nos lembra a pergunta de Godard — “imperialismo ou mise-en-scène?” — diante da cena decisiva de Rastros de ódio em que se dá a inversão na postura do Tio Ethan (JohnWayne). Perto do final do filme, ele ergue de modo paternal a jovem sobrinha, repetindo o gesto de reencontro feito quando ela era criança; o lance é dramático porque ele parece estar na iminência de matá-la por não aceitar de volta a moça que procurou durante anos para encontrá-la transformada em “índia”. Neste e em outros momentos, Rastros de ódio faz, da tensão e da violência, um caminho para a poesia, como no reencontro e na separação final. Não é difícil ver na composição do per- sonagem de Ethan uma consciência trágica muito cara a Glauber, pois estão lá nos seus próprios filmes estas figuras da não-reconciliação que entendem estar elas mesmas contaminadas por aquilo que combatem, vivendo como sombras amarguradas sem futuro, condenadas a não ter lugar no mundo me- lhor que julgam preparar (como no caso de Antônio das Mortes). A sublimação do massacre em mise-en-scène transfigura a história em mito e recolhe o fascínio do jovem crítico quando a lenda se mostra mais com- plexa nas mãos de um John Ford já calejado. É preciso maestria para salpicar os sinais da tragédia em plena condução do épico da nacionalidade, quando ainda prevalece o encanto diante do que identificamos com os “tempos de ori- gem”, o mundo de ontem anterior à civilidade urbana. Este é o terreno em que o imaginário rima com grandeza (o que é essencial para Glauber), e o heroísmo é vida impregnada de pathos antes da racionalização burocrática da vida, antes da suposta rotina burguesa e do conforto da civilização. (Vale notar o eco sin- tomático, nessas passagens de Glauber, da reflexão de Hegel sobre a “época dos heróis”, o pathos individual e o drama pensados no âmbito das relações entre a arte e organização social.)12 O século é do cinema porque traz esse embate fundamental entre as for- mas tradicionais da arte e o novo dispositivo. Este, por sua vez, vem se inse- rir no drama histórico como um “personagem” a viver as ambivalências do seu tempo, o novo que é contraditório porque promete redenção e produz efeitos contrários, como acontece com o Rocco de Visconti e, a seu modo, com figuras como Ethan, Antônio das Mortes e a galeria de tipos que inclui os trágicos delinqüentes e os marginais da noite urbana. No filme de gangster, a cidade, pelo jogo de sombras, também se alça ao mito, embora num registro 12 Ver G.W.F. Hegel, Cursos de estética, vol. I, trad. de Marco Aurélio Werle (São Paulo: Edusp, 2001). Para “época dos heróis” e pathos, ver terceiro capítulo, parte II: “A ação”, pp.188-248. 24 do contemporâneo, e abriga figuras titânicas que se destroem pela desmedi- da, pois levam ao paroxismo o que o próprio sistema lhes vende como fórmula monetária do “ser alguém” na vida. Neste particular, a leitura de Glauber con- verge com a de Robert Warshow, crítico americano dos anos 40, então des- conhecido no Brasil, escritor que trouxe uma das melhores reflexões sobre o filme de gangster como um ritual de sacrifício: o herói é o bode expiatório que, ao levar ao extremo a lógica social dominante, transgride e deve ser punido.13 Nos diversos gêneros da indústria, ou no cinema de autor, o ponto essen- cial é que o novo olhar do cinema se comprometa com um mundo onde ainda haja lugar para a grandeza na resposta dos homens às circunstâncias, para o bem e para o mal, um mundo em que ações de envergadura façam história, criem lendas, alimentem o imaginário humano que se formaliza nos grandes paradigmas da ficção ou nos grandes filmes. É nítida ao longo deste livro a re- corrência da categoria do trágico, que não se limita a Visconti e a Godard, mas envolve Antonioni e muitos exemplos do cinema americano, para além dos filmes em que está em pauta a violência. Não raro, o termo serve como baliza da qualidade, como nos casos de Anthony Mann e William Wyler. Dentro desta tônica, um momento especial no século do cinema trouxe grandeza no seio da experiência épica: o momento da Revolução (Eisenstein). Mas logo o seu conteúdo e seus ecos passaram a ser problemáticos, o que repercutiu tanto na representação da experiência européia posterior quanto na figuração da revolta do camponês oprimido do Terceiro Mundo. Tal revolta, cujo desfecho se fez mais trágico do que épico, o próprio Glauber tratou de interpre- tá-la numa chave de esperança (Deus e o diabo), mas esta se viu, mais de uma vez, adiada pela trama da história, esta mesma que o poeta veio a tematizar no seu grande drama barroco (Terra em transe). Quando Paulo Martins constata a falta de grandeza de Vieira e se enfurece diante da recusa do líder populista em assumir a resistência armada ao golpe de Estado, o que lhe resta é a frase solene e reveladora: “se resistirmos será o começo de nossa história”. Ao contrário de John Ford, o poeta da nação formada, imperial (o século do cinema, afinal, é o século americano), Glauber viveu o drama da nação adiada. E, de seu tempo e lugar, era impensável este risco de dissolução precoce tão presente no novo século, o da crise das nações e da nova era do capitalismo globalizado. À medida em que se adensou o percurso de Glauber como crítico, 13 Ver Robert Warshow, “The Gangster as Tragic Hero” (1948), em The Immediate Experience: mo- vies, comics, theatre and other aspects of popular culture (Nova York: Atheneum, 1974). 25 entre 1957 e 1980, o que estava delineado como grandeza, no século XX, foi sendo impregnado de ironia e de tragédia, de modo que, no decorrer do tem- po, a arte que lhe era mais relevante foi se armando de anticorpos face a uma herança utópica que, no entanto, ele julgou vital reafirmar até o fim. Não sur- preende que o tenha feito dentro do princípio já enunciado — o essencial é incorporar a energia do mito popular — e do modo mais afeito à sua formação: trazendo a figura de Cristo para o campo da revolução. “O ÚNICO ETERNO SUBVERSIVO DO MUNDO É O ARTISTA” O século do cinema é o século da violência. Nele se vive entre a tragédia ameri- cana e a revolução traída, entre o sonho do cinema e a realidade da economia. A sociedade impõe ao artista a condição de exílio a partir da qual ele não tem outro caminho senão a subversão. Esta é sua forma de participar do grande drama de seu tempo no qual “arte e política se encontraram definitivamente, não mais para trocar amabilidades ou combinar massacres, mas para interpre- tar a História e atingir o objetivo da Revolução”.14 Ninguém encenou a tragédia do Capital melhor do que Welles-Kane, no filme que Eisenstein gostaria de ter feito nos Estados Unidos; e ninguém re- presentou melhor a revolução traída do que ele, o gênio russo que fez de Ivan, o Terrível II a crítica poética da filosofia científica que gerou Stalin. Faltou a esta filosofia incorporar o inconsciente, como o fizeram Buñuel, o mais feliz porque o mais livre na transgressão, e Pasolini, o mais cindido porque de corpo pre- sente na tragédia, deixando que o matassem segundo os seus próprios ritos. Essa convicção da insuficiência do marxismo como compreensão da rea- lidade e como guia da ação se expressa também nas observações de Glau- ber sobre o “irracionalismo” de Rossellini. Para o crítico, o cineasta italiano entendeu que a realidade não se reduz à lógica, traz surpresas; intuiu que as tragédias ultrapassam a dimensão materialista da história. Desta expansão da sensibilidade, extraiu sua grandeza e resumiu o seu tempo. Por sua vez, o surrealismo de Buñuel é uma espécie de pré-consciência do homem latino emancipado pela imaginação. Revolvendo os mitos constitutivos da religião católica e reinventando um Cristo anárquico, ele prepara o Cristo de Pasolini. Ao denunciar o mundo dilacerado, barroco, da crise européia, os dois per- mitem que se chegue aos termos mais fundos da promessa de revolução 14 Ver p. 226 infra. 26 no Terceiro Mundo, pois a energia subversiva do oprimido supõe a liberação inconsciente, um surrealismo deslocadopara o plano coletivo e alimentando a arte como “desrazão”.15 Em artigo de homenagem a Eisenstein, Glauber pergunta: qual a cultura da revolução? A incultura subversiva popular ou a cultura subversiva dos in- telectuais? Estão aí condensadas as suas inquietações sobre o seu próprio cinema e sobre as relações entre cultura e política na periferia do capitalismo. Pelo que lemos nos seus artigos sobre Buñuel, sobre o cinema italiano ou sobre Godard, podemos supor que a resposta envolve esta opção mítico-popular em que todas as pulsões — pagãs, orientais, árabes, africanas, camponesas — compõem o amálgama da subversão que ele cristaliza numa constelação cultural simbolizada na figura do Cristo rebelde. Mesmo o romance familiar é um campo de tensões a ser apropriado em obras revolucionárias que cri- tiquem a ordem da Igreja ao repor a seiva popular, pulsional, de expressão daquela revolta que foi contida pela institucionalização do cristianismo como instrumento de poder ao longo da história. Portanto, é revolvendo os traços ancestrais que se prepara o imaginário da revolução, em particular, esta revo- lução que deve emergir em consonância com o Cristo multiplicado, multiétni- co da periferia e dos bolsões marginais da ordem mundial, num movimento que condensa a força dos mitos populares na luta contra a razão burguesa, a tecnocracia e a lei do Pai. Se arte e revolução se alimentam da força coletiva inconsciente que o ar- tista capta e transfigura nos símbolos de transformação, o cinema tem posi- ção estratégica pois, como primeira materialização do inconsciente, constitui o interconsciente, este conteúdo subterrâneo que circula a partir do dispositivo imagético cujo potencial subversivo se manifesta numa gama variada de expe- riências, incluída a que se expressa em Easy Rider, filme cujo interconsciente “frutificou magicamente todos os inconscientes voltados para a grande libera- da Aventura”.16 O filme de Dennis Hopper atualiza a força de uma iconografia associada à aventura no estilo on the road dos anos 50, agora articulada ao 15 O paralelo com as idéias expostas por Glauber em “A estética do sonho” é bem claro. Nesse mani- festo, ele associou arte e “desrazão”, definindo o inconsciente como a força coletiva que cabe ao artista captar e devolver à comunidade em sua criação de uma arte revolucionária. Ver “Eztétyca do sonho”, em Revolução do cinema novo, op. cit., pp. 248-251. 16 Ver p. 151 infra. 27 que emerge no confronto entre a comunidade hippie e o fascismo caipira; sua montagem “se fez numa alternativa diferente e mais rica do que a dogmatizada por Godard, porque enquanto Godard visava a existência das estruturas, Den- nis Hopper tocou o ponto historicamente mais avançado da percepção que é a essência da arte e ‘sentimento’ do cinema”.17 O entusiasmo de Glauber com Easy Rider, no início da década de 70, re- flete a sua convicção do descompasso existente entre as propostas descons- trutivas — de tipo racional — vigentes na conjuntura pós-68, e as demandas da subversão pelo cinema. Estas, segundo o seu esquema, são atendidas por Buñuel, chegam ao Evangelho de Pasolini, mas há sinais variados de que po- dem ir adiante, inclusive no cinema americano: “o olho navalhado de Buñuel projeta o inconsciente — mas Easy Rider é mais liberado”. Os protagonistas do filme são “mártires del nuevo hombre, como Che, Janis Joplin e Jimmy Hendrix, Deuses dos anos 60”.18 Ao longo dos textos desse período, o painel traçado pelo crítico inclui a de- fesa da dimensão libertária de Godard, mas parece haver um jogo de compen- sações marcado pela idéia de que Paris está longe do olho do furacão, cidade liberada onde não se vive a experiência radical do sacrifício, onde Maiakóvski não precisaria se suicidar e onde falta a interação direta com a energia contida nos grandes movimentos de massa da periferia. Da tradição neo-realista, resta a sua “última ópera”, Pasolini, a expressão viva e contraditória da crise euro- péia. De início, figura da lucidez (o Pasolini-reflexão, em O Evangelho); mais tarde, figura capturada nas malhas desta mesma crise (o Pasolini-sintoma dos anos 70). Dada a convergência dos terrenos, o cineasta italiano termina por ser o pólo maior de debate nos textos de Glauber, numa relação de amor e ódio diri- gida a quem se move no mesmo campo imaginário: o mito cristão; os pobres de um vasto terreno de experiência rural que recolhe as tradições; o imagi- nário popular mediterrâneo, incluídos os seus desdobramentos no nordeste brasileiro. E faz a mesma junção de política, corpo e sexualidade. No final, o homossexualismo de Pasolini — e suas práticas consideradas por Glauber “exploratórias” face ao pobre — tensionou a relação, como bem expressa o destempero do brasileiro gravado anos depois na redação do Cahiers du Ciné- ma, em 1981. Sozinho numa sala da revista, ele exorciza o espectro da morte, 17 Ver p. 151 infra. 18 Ver p. 152 infra. 28 expressa o desejo de sua diferença diante do funesto desfecho do autor de Teorema. Este havia discutido a invenção da própria morte como parte e co- roamento da vida do artista, numa formulação textual de relação complicada com o que se configurou depois nas circunstâncias do assassinato, com tudo o que o cercou. Glauber responde a tal constelação contraditória com uma fala emocional improvisada que se desdobra numa diatribe moralista. Acaba reduzindo a experiência de Pasolini aos termos de um decadentismo que an- tes apontara na elite conservadora e no imaginário colonialista, tal como se vê, por exemplo, na versão canhestra e imperial da decadência figurada em Brahms e em sua cortesã, personagens de A idade da Terra. Neste filme, fora distinta a referência a Pasolini, tomado como o inspirador, quando o sermão do planalto de Glauber reiterou a afirmação de uma energia vital que captura o mito de Cristo e o desdobra, dissemina, procurando o ponto de vista do oprimido, o pobre, o “Terceiro Mundo” que ele julgava um horizonte essencial das intuições de Pasolini em seus filmes dos anos 60, amados por ele como se vê neste livro, justamente pela inserção do sagrado e do Cristo no campo da revolução. De sua empatia no momento de O Evangelho (porque afirmativo e profético no aceno ao subproletariado do Terceiro Mundo), e do respeito a Salò (porque representação crítica do fascismo, do irrepresentável, porque forma lúcida e rara da apropriação de Sade), Glauber termina por estranhar a figura do cine- asta com a qual era mais forte a sua identificação, não tanto no plano pessoal (onde os encantos ficavam mais com o Maestro Visconti, ou com Bertolucci, o filho “assassino mítico de Pier Paolo”), mas na fundação de uma perspecti- va da revolução não clássica, herética em termos de luta de classes, porque não proletária e não instalada no capitalismo avançado, porque não puramente marxista nem camponesa no estilo maoísta, mas inspirada no mito popular e na hipótese de um oprimido portador de um inconsciente coletivo libertário, este que o cinema de Buñuel anunciava e que Pasolini tornou concreto. Nesta forma de equacionar a Revolução, podemos aplicar a Glauber o que encontramos no título de um artigo do próprio Pasolini: “En tant que marxis- te, je vois le monde sous an angle sacré”.19 Cito esta fórmula para inverter a direção do comentário feito até aqui, pois o Glauber que expressou com tanta veemência a necessidade de ir além do marxismo na incorporação do que este teria deixado de lado é o mesmo Glauber que, ao longo dos anos, também 19 Ver Pier Paolo Pasolini, Les Lettres Françaises, 23 set. 1965. 29 afirmou a necessidade do marxismo como tábua de salvação do artista face à angústia e ao mal-estar, ou face à “tragédia do artista no capitalismo”. “Exilado da sociedade moderna, sem buscar nas manifestações da Epo- péia e da Tragédia os pilares da mise-en-scènee sem pensar o texto dramático em termos marxistas, é difícil a sobrevivência do artista no século XX.”20 Dito isto, Glauber esclarece que só três artistas pensaram e permaneceram neste diapasão. Dois deles, Eisenstein e Brecht, estão mortos quando ele escreve. Só o terceiro, Visconti, está vivo e é o lúcido intérprete da História, pois reco- lhe a tradição revolucionária dos grandes romancistas (Stendhal, Dostoiévski, Thomas Mann) e a força da ópera como o espetáculo nacional italiano para produzir o grande cinema da crise de civilização européia. Ao longo do livro, há versões variadas, mas prevalece o roteiro em que se distribuem os papéis no teatro da história do cinema de modo a compor um diagnóstico do século que encontra no drama barroco a sua forma de repre- sentação por excelência. Em particular, nas figuras de Welles, de Eisenstein (Ivan II) e de Visconti — três grandes homens de teatro e cinema, com o senti- do da vertigem da representação e da gravidade da situação com que estavam lidando no painel histórico de resolução funesta nesse século da violência. O teatro dos cineastas compõe um jogo de espelhos face aos decisivos personagens da história, dos quais ora são metáforas, ora reencarnações. A analogia entre os conflitos do presente e os do passado enseja uma série de identificações que faz de cada cineasta um avatar (plano mítico), uma per- sonificação alegórica (plano figurativo) ou uma projeção (plano psicanalítico) de figuras-símbolo da memória humana, de modo a permitir a composição de uma Gestalt, uma percepção total da História e da Revolução que estará sempre rebatida no cinema. Griffith é Moisés: bíblico e nacional, fez-se uma encar- nação de Lincoln no cinema, o pai fundador que foi assassinado num teatro. Chaplin é Ciro contra a Hollywood-Babilônia. Rossellini é o Sócrates do cinema, o cineasta mais influente de todos; misto de paganismo italiano e de culpa, encontrou o seu superego no cristianismo e no marxismo, mas terminou a carreira vivendo a aventura fantástica de que qualquer cineasta teria inveja: o projeto da História Universal na televisão. Fellini traz o paganismo no nome: é o gato da Pérsia. Eisenstein circula num terreno que vai de Aristóteles e Ale- xandre Magno a Alexandre Nevsky e Ivan, de Lênin a Stalin, figuras todas que convergem no seu cinema como que a confirmar a convocação de Abel Gance, 20 Ver p. 224 infra. 30 o realizador de Napoleão, no célebre texto do mesmo ano em que saudou o cinema como ponto de acumulação de todos os mitos e todas as histórias: “O tempo da imagem chegou”.21 Pasolini é Édipo, Cristo, Sade, Marx (trans- gressores que devem ser punidos); é o Anjo Exterminador, “o fim da cultura”, e seu último filme Salò é a ejaculação que libera o inconsciente oriental da Itália. Como síntese do grande teatro trágico do poder, vale a cadeia: “É Quinlan, é Arkadin, é Macbeth, é Othello, é Falstaff, é Don Quixote, é o Diabo, é Kane, é Roosevelt, é Truman, é Rockfeller, é Júlio César, é Hitler, é Stalin, é Welles!”.22 Esta enumeração dos personagens é exemplo extremo do jogo figurativo através do qual Glauber — principalmente nos textos dos anos 70 — condensa a sua visão dos grandes cineastas e seus dramas históricos. Como enumera- ção que sugere uma ciranda, e diz respeito ao shakespeariano Welles, podería- mos aproximá-la da fórmula do “grande mecanismo” — as ascensões e quedas no movimento cíclico do poder — proposta por Jan Kott.23 No crítico polonês, a idéia do “Shakespeare nosso contemporâneo” passa por esta analogia entre o jogo fechado do poder monárquico (tema do drama barroco) e os destinos da Revolução traída neste século, para usar a expressão que Glauber incorpora quando fala de Eisenstein. No entanto, embora ele tenha sido leitor de Kott nos anos 60, sua afinidade maior, em termos da alegoria e do drama barroco, foi com Walter Benjamin, embora só mais tarde ele tenha conhecido os textos deste autor. De Terra em transe a A idade da Terra, o seu cinema mostra bem o quanto ele trabalhou a dialética de desencanto e esperança de uma forma que pode ser referida ao filósofo alemão. Ressalvado que, no cineasta, a cunhagem messiânica não conviveu com a melancolia, transmutou-se em exasperação. Os imperativos de grandeza e de abrangência, centrais na estética de Glau- ber, favoreceram a montagem desse grande teatro e seus cotejos milenares. Não surpreende que, em seus filmes e em seus textos, as análises de conjun- tura tenham marcado encontro com a memória da humanidade que destaca o eixo Europa-África-América, mas a partir do que ele definiu como o incons- ciente popular, coletivo, em consonância com seu empenho em revolver as camadas da experiência encobertas pela história-memória oficial. O século do cinema, ao recolher as “formas expressivas da cultura”, ao articular mito e his- tória, viveu a subversão nas acepções mais variadas, mas não alcançou uma 21 Ver Abel Gance, “Le temps de l’image est venu”, L’Art cinématographique, n. 2, 1927. 22 Ver p. 53 infra. 23 Ver Jan Kott, Shakespeare nosso contemporâneo (São Paulo: Cosac Naify, 2003). 31 elaboração do sério-dramático que o livrasse do paradigma da transgressão como sacrifício (Édipo e Cristo). Luis Buñuel, o mais livre dos cineastas, criou o cinema que “revelou a face trágica de todas as classes”. Plenamente artista, é o eterno subversivo que “será sempre condenado”. No tom hiperbólico característico, o jovem Glauber o elogiava, em 1962, como o “último maldito”, o que “não terá seguidores”.24 A formulação é paradoxal, se tomada à letra. No entanto, observada a posição que ele atribui a Buñuel como a expressão maior da liberdade na adversida- de, esta profecia cristaliza um sentimento peculiar: ir além seria já tocar no limiar da utopia. Enfim, dar o salto que acabou se mostrando cada vez mais fora do alcance no que restou do “breve século XX”, como o denominou Eric Hobsbawm, pensando em 1914 e em 1991 como datas-limite.25 Breve, extremado, o século do cinema revelou-se um tempo de promessas adiadas. Ou, para voltar aos termos do drama glauberiano, de esperança, vio- lência e desencanto. [Ismail Xavier, fevereiro de 2006] 24 Ver “Os doze mandamentos de Nosso Senhor Buñuel”, pp. 170-85 infra. 25 Ver Eric Hobsbawm, Era dos extremos: o breve século XX; 1914-1991 (São Paulo: Companhia das Letras, 1995). O SÉCULO DO CINEMA 34 35 HOLLYWOOD Gary Cooper em Matar ou morrer de Fred Zinnemann (1952) 37 GRIFFITH [À memória de meu pai Adamastor Bráulio Rocha] O expressionismo alemão da Guerra de 1914 é o idealismo romântico revis- to pelo freudianismo: o sonho descrito pela Literatura pode ser expresso no Teatro mas sobretudo no Kynema que, inventado por Edson & Lumière, é em Movimento. Méliès, que desenvolveu a técnica de filmar a Fantazya, indicou aos expres- sionistas as possibilidades oníricas do cinema. Estas vanguardas são atravessadas pela Revolução Soviétyka de 1917, que delas se alimenta. A Eztétyka soviétyka dos anos 20 é recuperada pelo surrealismo francês dos anos 20-30 que lhe devota a teoria revolucionária pela forma, separando, pelo decadentismo burguês, a pele poética da musculatura social do esqueleto histórico e da consciência existencial. Em 1915, David Wark Griffith, filho de um coronel sulista arruinado pela Guerra Civil oitocentesca, filma nos Estados Unidos The Birth of a Nation [O nas- cimento de uma nação]. Griffith, produto típico do neocapitalismo nortamericano (o modo de pro- dução neocapitalista nortamericano produz a superestruturimperialista) é, neste novo espaço terrestre, revolucionário na medida em que diferenças climáticas (o sol americano contra a luz européia), religiosas (o Protestantismo quer fundar 38 a Terra Prometida) alteram as práticas da cultura européia confinada no idealis- mo católicoreformado pelo materialismo pragmático da revolução industrial. A sociedade capitalista protestante se reconstrói segundo as novas leis da colonização democrátyka: o Estado Katólyko não impõe Deus ao homem mas o deixa livre para encontrá-lo. A Guerra Civil divide Griffith: o Norte, para fazer revolução industrial, aboliu a escravidão e massacrou os latifundiários sulistas, que reagiram de armas na mão. Os escravos livres foram proletarizados ou marginalizados e a indústria do Norte modernizou todo o país: O nascimento de uma nação é a visão de um Sulista fracassado que faz a crítica idealista da brutalidade industrializante do Norte vencedor. O nascimento de uma nação é o Velho Testamento que exclui os negros do processo histórico, como raça primitiva, elegendo em construtores da Nação as classes brancas protestantes. Os escravos pagaram o preço da economia nortamericana sobretudo no Sul, onde conseguiram, como no Brazyl, defender sua culturafricana diante das violências devoradas e vomitadas no paganismo dos spirituals, blues, jazz, que, nos anos 20, se transformam na principal linguagem crítica às estruturas neuróticas do imperialismo em depressão. Henry B. Walthall e Lillian Gish em O nascimento de uma nação (1915) 39 Excluindo os negros (e os índios), Moisés/Griffith canta o nascimento da Nação branca, protestante, capitalista, democrática, liberal. O Protestantismo é o reformismo capitalista, pai da Socialdemocracia, um passo à frente do fascismo católico mas limitado pela hipocrisia que justifica a violência em nome dos ideais de riqueza e felicidade no Parayzo. Griffith prega a democratização do capital segundo os méritos de cada um mas justifica a violência como expressão máxima da virtude: a voracidade fáli- ca das pistolas nos Estados Unidos da América do Norte supera o humanismo bíblico de Cecil B. De Mille. Quem triunfa é o caubói e o gangster, e o máximo que o cinema norta- mericano consegue depois de Griffith (exceção ao europeu Charles Chaplin) é combater a violência em nome de um Estado representativo de caubóis e gangsters: o inimigo do homem que mata para roubar (Jesse James) e o xerife (Wyatt Earp) que mata o bandido violador das leis de um Estado que vive do roubo e do assassinato do proletariado. Os heróis de Griffith são aventureiros legais: os inimigos da civilização pro- testante são índios, negros e bandidos. Intolerance [Intolerância, 1916] é o Novo Testamento que adverte o Apo- calipse: o Estado massacra a Revolução Cristã, o Estado massacra Negros, e se o Estado insiste na Intolerância Genocida corre o perigo de um dia ser subvertido pelo Povo. O democrata liberal progressista de Griffith exige uma nova Guerra Civil do Bem contra o Mal: Vejam a corrupção de Nabucodonosor, Vejam a corrupção deste país empobrecido pela concorrência com o imperialismo europeu que desorganizou o mercado com a primeira guerra mundial, Vejam este país sem perspectiva colonial, Vejam este país que viaja inconscientemente para a crise econômica, social e política de 1929. A radicalização ideológica de Griffith é limitada pelo reformismo liberal típi- co do idealismo protestante capitalista nortamericano. O ideólogo Griffith morre com Intolerância. Além de O nascimento de uma nação e Intolerância, Griffith realizou muitos filmes e morreu tentando reformar o sistema. Pastor protestante, profeta sem massas, gênio incompreendido, capitalista falido, moralista marginal vitoriano (o filho cinematográfico do romancista Char- les Dickens), Griffith é a reencarnação extétyka de Abraham Lincoln, o Presi- dente que venceu a Guerra Civil e foi assassinado num teatro. 40 CHAPLIN [1] O primeiro Charles Chaplin, que começa a filmar em Hollywood em 1914 e termina com The Immigrant [O imigrante] e The Adventurer [O aventureiro], em 1917, é a antítese revolucionária a Griffith. Chaplin é imigrante aventureiro, marginal, operário e usa máscaras popula- res reprimidas para desmascarar o carnaval capitalista. O segundo Chaplin se revela a partir de 1925 com The Gold Rush [Em bus- ca do ouro, 1928], City Lights [Luzes da cidade, 1931], Modern Times [Tempos modernos, 1936] e se conclui em The Great Dictator [O grande ditador, 1940] quando, reprimido nos Estados Unidos, inicia o processo de regressão idea- lista, a morte de Charlot (Carlitos) e o nascimento do burguês anarquista em Monsieur Verdoux [1947], Limelight [Luzes da ribalta, 1952], A King in New York [Um rei em Nova York, 1957] e A Countess from Hong Kong [A condessa de Hong Kong, 1966]. Chaplin conta a dialética histórica de um proletariemigranteuropeu que pra- tica, através do cinema, a revolução humanista do povo. O Estado capitalista é a Babilônia para Ciro/Chaplin: Presidentes, Ministros, Senadores, Juízes, Deputados, Padres, Pastores, Exército, Polícia, Burocratas, Comerciantes, Empresários, Industriais, Proletários e Marginais alienados são atacados por Charlot, que enfrenta as armas da violência física com a violência do humorismo psicopolítico. Como Ciro, Chaplin desvia o rio de seu curso e através de seu meio de pro- dução introduz a mensagem enquanto o Estado se diverte em guerras e festas. O cinema de Chaplin, mais rico de expressividade que as velhas artes e que o cinema teatral/romanesco de Griffith, é feito do ponto de vista do perso- nagem oprimido até Um rei em Nova York. O único filme de Chaplin do ponto de vista do personagem opressor é A condessa de Hong Kong. Carlitos assassinado em O grande ditador reage enfraquecido em Monsieur Verdoux, no palhaço Calvero, o Rei sem coroa, onde desintegra. Carlitos materialista se transforma em Chaplin idealista que se projeta em Sophia Loren e Marlon Brando, o casal imperialista. O poder cinematográfico de Chaplin desenvolveu grande agitação psicopo- lítica entre 1925 e 1940. 41 A linguagem humorística de Chaplin contribuiu para despertar a consciên- cia revolucionária? A questão não se esgota na palavra científica que tenta aprisionar a metá- fora poética num laboratório de probabilidades: Chaplin ilumina o século XX porque nele o Povo se faz Imagem. [2] “Ó CARLITO, MEU E NOSSO AMIGO, TEUS SAPATOS E TEU BIGODE CAMINHAM NUMA ESTRADA DE PÓ E ESPERANÇA” (Carlos Drummond de Andrade).1 [3] Aos sessenta e oito anos Charles Chaplin, após outros cinco de silêncio que sucederam Luzes da ribalta, volta a pedir Paz com a recente sátira sociopolítica Um rei em Nova York. Por ter conhecido em mais de meio século de vida duas grandes guerras e por querer evitar uma terceira, o vagabundo Carlitos continua a sofrer persegui- ções da imprensa reacionária e a ser detestado pelos paranóicos detentores da energia atômica. Os nortamericanos, e particularmente a cinemascópica Hollywood, tremem e vociferam contra o gênio, enquanto os covardes e os “intelectuais” procuram negá-lo com raquíticos argumentos. O Homem e o artista Chaplin permanecem impassíveis, amando, sobretu- do, os valores da Humanidade. É o mesmo convicto inimigo da técnica que procura na poesia o alívio para as dores recebidas da máquina. Sua atitude de cineasta — negando até quando pode o cinema de som, cor e telas gigantes — ou sua atitude política — mostrando em Tempos modernos a máquina destruindo o homem — são provas de fidelidade à imagem pura, à força expressional do cinema adulterada e também do horror ao capitalismo sem alma. Em Chaplin estão condicionados valores eternos; por isso nega o origina- lismo, a masturbação artística e pseudo-inovadores de uma Arte que só nele 1 “Canto ao homem do povo Charlie Chaplin”, em A rosa do povo (Rio de Janeiro: José Olympio, 1945). [N.E.] 42 se realizou como expressão de vida e que só em raros gênios encontrou con- tinuação. Querer situá-lo como Cineasta não o justifica; Chaplin é um complexo artís- tico que transcendeao cinema. [4] Tempos modernos, 1936, mudo. Transcrevo os trechos do historiador e crítico Georges Sadoul: “Carlitos ti- nha escolhido para Tempos modernos uma profissão bastante nova: era operá- rio numa fábrica. O filme apresentava-se, no seu intróito, como sendo a história da indústria, da empresa individual, da humanidade em busca da felicidade. Aí os operários vão para o trabalho como carneiros para o matadouro. Mais tarde, desempregado, Carlitos sai do hospício e vaga pelas ruas. Apanha ma- quinalmente uma bandeira vermelha caída de um caminhão. Atrás dele o povo se inflama, desencadeia uma manifestação. A polícia acusa-o de agitador e o prende. Sofre na prisão o que lhe recorda a fábrica mas ali se sente tratado mais humanamente”.2 A cena da bandeira “vermelha” (descoberta em um filme em preto e bran- co) bastou para que o capitalismo nortamericano aliado aos códigos religiosos de censura e preservação da moral pública o acusassem de comunista. Agiram principalmente contra o artista que enfrentava o trucidamento mecânico do ho- mem, a imprensa HEARST, WALL STREET e o nazismo de DR. GOEBBELS. Na Alemanha hitlerista Tempos modernos foi interditado e Chaplin processado por plágio a René Clair, pelo seu filme À nous la Liberté [A nós a Liberdade, 1931] produzido nos estúdios parisienses Tobis, filiais dos trustes alemães. Assim, De- mocracia Americana e Nazismo Germânico se uniram para combater Chaplin... A infâmia foi derrotada por declarações de René Clair dizendo que “se sen- tiria honrado em ter contribuído para a obra daquele que considerava um gênio e seu principal mestre”. A atualidade de Tempos modernos permanece inalterável. Não morrem os protestos eternos à humilhação que organismos econômicos impõem ao homem. 2 A vida de Carlitos: Charles Spencer Chaplin, seus filmes e sua época, trad. de Mário Mendes de Moura (Rio de Janeiro: Livraria Editora Casa do Estudante do Brasil, 1953), pp. 169-70. [N.E.] 43 Chaplin, o Vagabundo Carlitos ou Palhaço Calvero ou o Rei que vai a Nova Iorque pedir Paz permanece, como diz Carlos Drummond de Andrade, nos “que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo / que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida / (...) e te descobriram e salvaram-se”. ERICH VON STROHEIM “... E o cinema criou Deus.” [Paulo Emílio Sales Gomes] O Festival de Veneza/1958 se caracterizou pela valorização dada ao cinema como fato cultural, em detrimento do estrelismo e do mundanismo que mar- cam os festivais cinematográficos. Naquele ano o Festival foi chamado pela crônica mundana internacional de “Veneza Cara Fechada”. Os freqüentadores que ali buscam o prazer de fabulosas farras acharam que Veneza/58 fracassou. Não é verdade: no conjunto de suas diversas manifestações, o Festival foi um belíssimo acontecimento artístico. Tempos modernos (1936) 44 Destacou-se a Mostra Retrospectiva do falecido cineasta e ator Erich von Stroheim (1885-1957), personalidade do cinema à altura das maiores no que se refere à inquietude criadora, à busca de novas formas de expressão. Stroheim foi o que se chama “autor completo de cinema”, uma vez que, além de argu- mentista, roteirista, produtor e diretor, interpretava seus próprios filmes. O tom áspero, a seriedade às vezes amedrontadora, a substância humana, a recordação amarga de sua mocidade em Viena, episódios daquela época da Primeira Guerra, alimentaram sua inspiração embebida de violência e saudade. Vocação e tradição do nome paterno o destinavam à vida militar. Por mo- tivos que sempre permaneceram ignorados e obscuros (talvez uma falta dis- ciplinar ou uma dívida de jogo), o Olimpo, corporação militar à qual o jovem Stroheim pertencia, o expulsou de suas fileiras. Emigrou para Roliude onde subiu de varredor de estúdios ao mais extrava- gante mito do cinema internacional. Sua filmografia funde o discurso espetacular de Griffith ao aristocratismo da burguesia européia. FRITZ LANG Em 1968, outro Leão estava em Montreal, presidente de honra do Festival: Fritz Lang. Um pouco mais jovem que Jean Renoir, Lang usa um tapa-olho, é solteiro, adora mocinhas, é mulherengo inconfundível e um temperamental. O caráter de Fritz Lang, criador do Dr. Mabuse der Spieler [Dr. Mabuse, o joga- dor, 1922] e mestre do cinema alemão e do cinema americano, se define nesta história que ele conta: — Um dia o Dr. Goebbels mandou me chamar para oferecer a direção do cinema nazista. Disse que ia pensar. Durante a noite arrumei minhas coisas e fugi para Paris. Fritz Lang não conta que, para recusar a direção do Instituto de Cinema Nazista,3 teve que brigar com a esposa que lá ficou, em companhia de outros cineastas alemães. 3 Não se trata do Instituto. Segundo Fritz Lang “... enquanto Ministro da Propaganda do Tercei- ro Reich, Goebbels recebera de Hitler a missão de oferecer-me a direção do cinema alemão: ‘O Führer viu seu filme Metropolis e disse: eis o homem que irá criar o cinema nacional-socialista’... Y 45 Lang é aventureiro. Depois de brilhar na Alemanha com filmes como Me- tropolis [1926] e Die Nibelungen [Os Nibelungos,1923-24] (exibido geralmente em duas partes: I — Siegfrieds Tod/A morte de Siegfried e II — Kriemhilds Rache/A vingança de Kriemhild), passou maus momentos na França e aceitou encomendas de Hollywood. Grande cineasta, influenciador de meio mundo, Lang guarda a amargura de quem não fez o grande filme de sua vida. Até 1962, depois de filmes comerciais (e apesar disto excelentes) como os que fez na Índia Das Indische Grabmal [O túmulo indiano, 1959], Lang es- tava no ostracismo. Jean-Luc Godard o levantou, fazendo-lhe grandes home- nagens, das quais a maior foi colocá-lo como um dos atores centrais de Le Mépris [O desprezo, 1963], inédito no Brasil, ao lado de Brigitte Bardot e Jack Palance. Neste filme Lang faz o papel dele mesmo, o grande mestre alemão que se vê obrigado a aceitar as boçalidades do produtor para sobreviver. Ou, como disse Brecht, “a fim de ganhar a vida, lá vou eu todas as manhãs para o mercado de mentiras” (Hollywood). A primeira vez que vi Lang foi em Cannes, em 1964, quando eu e Nel- son Pereira dos Santos apresentamos Deus e o diabo na terra do sol (1963- 64) e Vidas secas (1963). Foi a entrada do cinema brasileiro, como fenômeno cultural, no mundo cinematográfico. Lang era presidente do júri. Agora, em Montreal, ele me revela que lutou pelos dois filmes, mas contingências in- dustriais e políticas não permitiram destaques a filmes brasileiros, de autores desconhecidos. Lang detesta a indústria do cinema. Godard, em sua entrevista-bomba em Veneza, no ano passado, disse que era absurdo um homem do talento de Fritz Lang, um dos criadores do cinema, ser obrigado a fazer conferências para sobreviver. Lang quer fazer um filme sobre a juventude e, como Renoir, não encontra produtores. Sua fama, seus títulos, prêmios e honrarias — nada disso adianta. A máquina industrial o julga velho demais. Assim, desde 1964, passando pelo Festival do Rio, o inventor dos vampiros e espiões, que mais tarde dominariam as telas através de imitadores, anda de país em país. Amargo, Lang é homem de senso de humor e grandeza humana. Y Na mesma noite, deixei a Alemanha”. Ver “ Fritz Lang: autobiografia”, em Lúcia Nagib (ed.), Fritz Lang: 100 anos (São Paulo: Cinemateca Brasileira/Instituto Goethe, 1990), p 7. [N.E.] 46 — Não me falem em expressionismo alemão. Isto nunca existiu em cine- ma. Siegfried Kracauer, que escreveu um livro chamado De Caligari a Hitler,4 é um mistificador, um oportunista. Escreveu o livro mais impreciso e mentiroso que já li. Max Reinhardt, diretor teatral, nunca teve influência sobre o cinema. Minha amiga Lotte Eisner também comete erros ao escrever sobre o velho cinema alemão referindo-se ao “expressionismo alemão”.5 Eu sempre fui livre, nunca fiz parte
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