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1 SUMÁRIO 1 O FEDERALISMO BRASILEIRO E AS POLÍTICAS DE SAÚDE ................ 2 2 O HISTÓRICO DO SISTEMA DE SAÚDE BRASILEIRO............................ 4 2.1 Antecedentes do SUS .......................................................................... 4 3 A CONFIGURAÇÃO INSTITUCIONAL DO SUS ........................................ 7 3.1 O processo de implantação do SUS .................................................... 8 4 DADOS GERAIS SOBRE O SUS ............................................................. 10 4.1 Financiamento .................................................................................... 12 5 O PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO DO SUS ........................................... 16 6 AVANÇOS E DIFICULDADES DO PROCESSO RECENTE DE DESCENTRALIZAÇÃO ............................................................................................. 18 7 O PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO, ELABORAÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO DA NOAS-SUS 01/01 ................................................................................................ 24 8 LEITURA COMPLEMENTAR .................................................................... 27 9 LEITURA COMPLEMENTAR .................................................................... 36 10 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................... 49 11 BIBLIOGRAFIA ...................................................................................... 49 2 1 O FEDERALISMO BRASILEIRO E AS POLÍTICAS DE SAÚDE http://vivacesaude.com.br/ O Brasil se organiza em um sistema político federativo constituído por três esferas de governo – União, estados e municípios –, todas consideradas pela Constituição da República de 1988 como entes com autonomia administrativa e sem vinculação hierárquica. São 26 estados e o Distrito Federal e 5.560 municípios. Estados que vão desde Roraima, com apenas 279 mil habitantes, até São Paulo, com mais de 36 milhões de habitantes. Municípios com pouco mais de mil habitantes até o município de São Paulo com mais de 10 milhões de habitantes. O sistema federativo seria, em linhas gerais, adequado para países marcados pela diversidade e heterogeneidade, por favorecer o respeito aos valores democráticos em situações de acentuada diferenciação política, econômica, cultural, religiosa ou social. Por outro lado, esse tipo de sistema torna mais complexo a implementação de políticas sociais de abrangência nacional, particularmente nos casos em que a situação de diversidade diz respeito à existência de marcantes desigualdades e exclusão social, como no Brasil. Nesses casos, acentua-se a importância do papel das políticas sociais de redistribuição, redução das desigualdades e iniquidades no território nacional e inclusão social. Além disso, a implementação de políticas sociais em um sistema federativo requer, por um lado, a explicitação das funções das diferentes esferas de governo para cada área da política e, por outro, a adoção de mecanismos articuladores entre essas esferas, com ênfase em uma lógica de cooperação e complementação. 3 No que diz respeito às políticas de saúde, agregue-se a isso a complexidade inerente a essa área, relacionada aos seguintes fatores: múltiplas determinações sobre o estado de saúde da população e dos indivíduos; diversidade das necessidades de saúde em uma população; diferentes tipos de ações e serviços necessários para dar conta dessas necessidades; capacitação de pessoal e recursos tecnológicos requeridos para atendê-las; interesses e pressões do mercado na área da saúde (no âmbito da comercialização de equipamentos, medicamentos, produção de serviços, entre outros) que frequentemente tencionam a estruturação de um sistema calcado na concepção de saúde como um direito de cidadania. O federalismo brasileiro apresenta algumas especificidades que merecem destaque, por suas implicações para a área da saúde. A primeira diz respeito ao grande peso dos municípios, considerados como entes federativos com muitas responsabilidades na implementação de políticas públicas. A diversidade dos municípios brasileiros – em termos de porte, desenvolvimento político, econômico e social, capacidade de arrecadação tributária e capacidade institucional de Estado –, por sua vez, implica diferentes possibilidades de implementação de políticas públicas de saúde, face à complexidade de enfrentamento dos desafios mencionados. Outro aspecto relevante é que o federalismo brasileiro ainda se encontra de certa forma “em construção”, uma vez que, ao longo de toda a história, foi tensionado por períodos de centralismo autoritário e a redemocratização do país ainda é relativamente recente. Esse processo de construção do federalismo é caracterizado por muitas tensões e conflitos na descentralização das políticas e definição dos papéis das três esferas de governo em cada área de política pública. No que diz respeito à saúde, a agenda política da década de 90 foi fortemente marcada pela temática da descentralização e pelos esforços de definição do papel dos gestores em cada nível de governo. 4 2 O HISTÓRICO DO SISTEMA DE SAÚDE BRASILEIRO http://images.slideplayer.com.br/ 2.1 Antecedentes do SUS Antes da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), o Ministério da Saúde (MS), com o apoio dos estados e municípios, desenvolvia quase que exclusivamente ações de promoção da saúde e prevenção de doenças, com destaque para as campanhas de vacinação e controle de endemias. Todas essas ações eram desenvolvidas com caráter universal, ou seja, sem nenhum tipo de discriminação com relação à população beneficiária. Na área de assistência à saúde, o MS atuava apenas por meio de alguns poucos hospitais especializados, nas áreas de psiquiatria e tuberculose, além da ação da Fundação de Serviços Especiais de Saúde Pública (FSESP) em algumas regiões específicas, com destaque para o interior do Norte e Nordeste. Essa ação, também chamada de assistência médico-hospitalar, era prestada à parcela da população definida como indigente, por alguns municípios e estados e, principalmente, por instituições de caráter filantrópico. Essa população não tinha nenhum direito e a assistência que recebia era na condição de um favor, uma caridade. 5 A grande atuação do poder público nessa área se dava através do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) que depois passou a ser denominado Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), autarquia do Ministério da Previdência e Assistência Social. O INPS foi o resultado da fusão dos institutos de aposentadorias e pensões (os denominados IAPs) de diferentes categorias profissionais organizadas (bancários, comerciários, industriários, dentre outros), que posteriormente foi desdobrado em Instituto de Administração da Previdência Social (IAPAS), Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS). Este último tinha a responsabilidade de prestar assistência à saúde de seus associados, o que justificava a construção de grandes unidades de atendimento ambulatorial e hospitalar, como também da contratação de serviços privados nos grandes centros urbanos, onde estava a maioria dos seus beneficiários. A assistência à saúde desenvolvida pelo INAMPS beneficiava apenas os trabalhadores da economia formal, com “carteira assinada”, e seus dependentes, ou seja, não tinha o caráter universal que passa a ser um dos princípios fundamentais do SUS. Desta forma, o INAMPS aplicava nos estados, através de suas Superintendências Regionais, recursos para a assistência à saúde de modo mais ou menos proporcional ao volume de recursos arrecadados e de beneficiários existente. Portanto, quanto mais desenvolvida a economia do estado, com maior presença das relações formais de trabalho, maioro número de beneficiários e, consequentemente, maior a necessidade de recursos para garantir a assistência a essa população. Dessa forma, o INAMPS aplicava mais recursos nos estados das Regiões Sul e Sudeste, mais ricos, e nessas e em outras regiões, em maior proporção nas cidades de maior porte. Nessa época, os brasileiros, com relação à assistência à saúde, estavam divididos em três categorias, a saber: • Os que podiam pagar pelos serviços • Os que tinham direito a assistência prestada pelo INAMPS, e • Os que não tinham nenhum direito. 6 A tabela a seguir mostra, como resultado dessa conjuntura, a distribuição percentual dos recursos gastos pelo INAMPS no ano de 1986, em comparação com a distribuição percentual da população, segundo região. Pode-se verificar que proporcionalmente a Região Sudeste, mais rica, foi que recebeu mais recursos e que as Regiões Norte e Nordeste, mais pobres, foram a que menos receberam. Esses recursos eram utilizados para o custeio das unidades próprias do INAMPS (Postos de Assistência Médica e Hospitais) e, principalmente, para a compra de serviços da iniciativa privada. Com a crise de financiamento da Previdência, que começa a se manifestar a partir de meados da década de 70, o INAMPS adota várias providências para racionalizar suas despesas e começa, na década de 80, a “comprar” serviços do setor público (redes de unidades das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde), inicialmente por meio de convênios. A assistência à saúde prestada pela rede pública, apesar do financiamento do INAMPS apenas para os seus beneficiários, preservou o seu caráter de universalidade da clientela. Também, nessa época, o INAMPS passa a dar aos trabalhadores rurais, até então precariamente assistidos por hospitais conveniados com o FUNRURAL, um tratamento equivalente àquele prestado aos trabalhadores urbanos. Mesmo com a crise que já se abatia sobre o INAMPS, essa medida significou uma grande melhoria nas condições de acesso dessa população aos serviços de saúde, particularmente na área hospitalar. 7 No final da década de 80, o INAMPS adotou uma série de medidas que o aproximaram ainda mais de uma cobertura universal de clientela, dentre as quais se destaca o fim da exigência da Carteira de Segurado do INAMPS para o atendimento nos hospitais próprios e conveniados da rede pública. Esse processo culminou com a instituição do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), implementado por meio da celebração de convênios entre o INAMPS e os governos estaduais. Assim, podemos verificar que começava a se construir no Brasil um sistema de saúde com tendência à cobertura universal, mesmo antes da aprovação da Lei 8.080 (também conhecida como Lei Orgânica da Saúde), que instituiu o SUS. Isso foi motivado, por um lado, pela crescente crise de financiamento do modelo de assistência médica da Previdência Social e, por outro, à grande mobilização política dos trabalhadores da saúde, de centros universitários e de setores organizados da sociedade, que constituíam o então denominado “Movimento da Reforma Sanitária”, no contexto da democratização do país. 3 A CONFIGURAÇÃO INSTITUCIONAL DO SUS http://www.jornalcomarca.com.br/fotos_materias/08082011180821930_net.jpg Uma primeira e grande conquista do Movimento da Reforma Sanitária foi, em 1988, a definição na Constituição Federal (CF) relativa ao setor saúde. O Art. 196 da 8 CF conceitua que “a saúde é direito de todos e dever do Estado (...)”. Aqui se define de maneira clara a universalidade da cobertura do Sistema Único de Saúde. Já o parágrafo único do Art. 198 determina que: “o sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes”. Esta questão é de extrema importância, pois, em todo debate sobre o financiamento do SUS, a ênfase é na participação da União, como se esta fosse à única responsável. Um dos fatores determinantes deste entendimento foi, provavelmente, o papel do INAMPS no início do SUS, como veremos mais adiante. Um passo significativo na direção do cumprimento da determinação constitucional de construção do Sistema Único de Saúde foi à publicação do decreto n.º 99.060, de 7 de março de 1990, que transferiu o INAMPS do Ministério da Previdência para o Ministério da Saúde. Esse fato, portanto, foi anterior à promulgação da Lei 8.080, que só veio a ocorrer em setembro do mesmo ano. A Lei 8.080 instituiu o Sistema Único de Saúde, com comando único em cada esfera de governo e definiu o Ministério da Saúde como gestor no âmbito da União. A Lei, no seu Capítulo II – Dos Princípios e Diretrizes, Art. 7º, estabelece entre os princípios do SUS a “universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência”. Isso se constituiu numa grande alteração da situação até então vigente. O Brasil passou a contar com um sistema público de saúde único e universal. 3.1 O processo de implantação do SUS Antes de tudo, é importante destacar que, como descrito anteriormente, o Sistema Único de Saúde começou a ser implantado por meio de uma estratégia que buscou dar caráter universal à cobertura das ações de saúde, até então proporcionada pelo INAMPS apenas para os seus beneficiários. No final da década de 80, o setor público de assistência à saúde mantinha uma estreita relação com o INAMPS, que a partir de 1990 passou a integrar a estrutura do Ministério da Saúde e que já vinha, nos anos anteriores, participando de modo significativo do seu financiamento. Considerando-se essa relação e a continuidade da participação do Ministério da Previdência no financiamento do INAMPS, este foi inicialmente preservado e se 9 constituiu no instrumento para assegurar a continuidade, agora em caráter universal, da assistência médico-hospitalar a ser prestada à população. O INAMPS somente foi extinto pela Lei n° 8.689, de 27 de julho de 1993, portanto quase três anos após a promulgação da lei que instituiu o SUS. No parágrafo único do seu artigo primeiro, a lei que extinguiu o INAMPS estabelecia que: “As funções, competências, atividades e atribuições do INAMPS serão absorvidas pelas instâncias federal, estadual e municipal gestoras do Sistema Único de Saúde, de acordo com as respectivas competências, critérios e demais disposições das Leis n° 8.080, de 19 de setembro de 1990, e 8. 142, de 28 de dezembro de 1990”. Ao se preservar o INAMPS, preservou-se também a sua lógica de financiamento e de alocação de recursos financeiros. Dessa forma, o SUS inicia a sua atuação na área da assistência à saúde com caráter universal, utilizando-se de uma instituição que tinha sido criada e organizada para prestar assistência a uma parcela limitada da população. Uma das consequências desta “preservação” foi o estabelecimento de limites físicos e financeiros para as unidades federadas na lógica do INAMPS, que garantiria a manutenção da situação até então vigente. Ou seja, o SUS não adotou uma lógica própria para financiar a assistência à saúde de toda a população o que significaria um grande remanejamento da alocação de recursos entre os estados. Essa medida, sem dúvidas, geraria uma forte reação política dos estados mais desenvolvidos e que contavam com uma maior proporção de recursos. A primeira alocação de recursos feita pelo Ministério da Saúde, na condição de gestor federal do SUS, baseou-se, fundamentalmente, na situação deixada pelo INAMPS, como resultado da capacidade instalada dos serviços de saúde, construída ao longo do tempo para atender à população previdenciária, e carregou consigo uma imensa desigualdade na divisão dos recursos entre os estados pois, agora, a assistência passava a ter um caráter universal. Porém, a manutenção do INAMPS e de sua lógicade financiamento não evitou que, a partir de maio de 1993 e, portanto, pouco antes da sua extinção (em 27 de julho de 1993), o Ministério da Previdência Social deixasse de repassar para o Ministério da Saúde recursos da previdência social criando uma enorme defasagem entre a nova responsabilidade constitucional e a disponibilidade orçamentária. 10 Os anos de 1993 e de 1994 foram de grandes dificuldades para o SUS, pela falta de uma fonte de financiamento que garantisse recursos para honrar os compromissos resultantes das definições da Constituição Federal e da Lei Orgânica da Saúde. 4 DADOS GERAIS SOBRE O SUS http://www.polemicaparaiba.com.br/wp-content/uploads/2015/04/m%C3%A9dico.jpg O SUS é um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, sendo o único a garantir assistência integral e completamente gratuita para a totalidade da população, inclusive aos pacientes portadores do HIV, sintomáticos ou não, aos pacientes renais crônicos e aos pacientes com câncer. A Rede Ambulatorial do SUS é constituída por 56.642 unidades, sendo realizados, em média, 350 milhões de atendimentos ao ano. Esta assistência estende- se da atenção básica até os atendimentos ambulatoriais de alta complexidade. No ano de 2001 foram realizadas aproximadamente 250 milhões de consultas, sendo 165 milhões em atenção básica (consultas de pré-natal, puericultura, etc.) e 85 milhões de consultas especializadas. Nesse mesmo ano foram realizados 200 milhões de exames laboratoriais, 6 milhões de exames ultrassonográficos, 79 milhões de atendimentos de alta complexidade, tais como: tomografias, exames hemodinâmicos, ressonância magnética, sessões de hemodiálise, de quimioterapia e radioterapia. São 6.493 hospitais, públicos, filantrópicos e privados, com um total de 487.058 leitos, onde são realizadas em média pouco mais de 1 milhão de internações por mês, 11 perfazendo um total de 12,5 milhões de internações por ano. As internações realizadas vão da menor complexidade, tais como internações de crianças com diarreia, até as mais complexas, como a realização de transplantes de órgãos, cirurgias cardíacas, entre outras que envolvem alta tecnologia e custo. Esta área, organizada num Sistema implantado em 1990, denominado Sistema de Informações Hospitalares (SIH/SUS), constitui-se na maior casuística hospitalar existente no mundo paga por um mesmo financiador. Para exemplificar, foram realizadas no ano 2000 2,4 milhões de partos, 72 mil cirurgias cardíacas, 420 mil internações psiquiátricas, 90 mil atendimentos de poli traumatizados no sistema de urgência emergência, 7.234 transplantes de órgãos, sendo que 2.549 de rim, 385 de fígado e 104 de coração. São despendidos, pelo MS recursos da ordem de R$ 10,5 bilhões por ano para custeio dos atendimentos ambulatoriais de média e alta complexidade e hospitalares, além de R$ 3 bilhões para a Atenção Básica. Em 1995, o SUS realizou 13,2 milhões de internações hospitalares e, em 2001, 12,2 milhões, uma redução de 7,9%. Os gastos, mesmo com a redução ocorrida no período, passaram de R$ 3,5 bilhões em 1995 para R$ 5,1 bilhões em 2001, um crescimento de 43,1%. https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images? No entanto, vale ressaltar que a redução no número de internações não ocorreu em todas as Regiões. Enquanto no Sudeste ocorreu uma redução de 14,8% (mais de 800 mil internações por ano), no Centro-Oeste ocorreu um crescimento de 8,2% e no Norte um crescimento de 7,4%. Este crescimento decorreu, muito provavelmente, de ampliação do acesso aos serviços hospitalares, como resultado do aumento significativo de recursos federais alocados nos estados dessas regiões nos últimos anos. https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images 12 A redução da frequência de internações hospitalares nas Regiões Nordeste, Sul e Sudeste têm motivos diversos. De um modo geral, a evolução da medicina tem levado a que muitos procedimentos que requeriam a internação do paciente passassem a ser realizados em regime ambulatorial. No Nordeste, especificamente, a redução se deve, provavelmente, aos avanços obtidos com a Atenção Básica, em particular com a presença de um grande número de Agentes Comunitários de Saúde, e dos investimentos realizados em saneamento básico. 4.1 Financiamento O financiamento do SUS é uma responsabilidade comum dos três níveis de governo. Em setembro de 2000, foi aprovada a Emenda Constitucional 29 (EC-29), que determinou a vinculação de receitas dos três níveis para o sistema. Os recursos federais que correspondem, a mais de 70% do total, progressivamente vêm sendo repassados a estados e municípios, por transferências diretas do Fundo Nacional de Saúde aos fundos estaduais e municipais, conforme mecanismo instituído pelo decreto 1.232, de 30 de agosto de 1994. A intensa habilitação de municípios e estados em modalidades avançadas de gestão gerou um expressivo aumento das transferências diretas de recursos do Fundo Nacional de Saúde para os fundos municipais e estaduais, fazendo com que, em dezembro de 2001 (Tabela 2), a maior parte dos recursos da assistência já fosse transferida nessa modalidade, em contraposição à predominância de pagamento federal direto aos prestadores de serviços. 13 Além das transferências do Fundo Nacional de Saúde, os fundos estaduais e municipais recebem aportes de seus próprios orçamentos. Alguns estados promovem repasses de recursos próprios para os fundos municipais de saúde, de acordo com regras definidas no âmbito estadual. O nível federal ainda é o responsável pela maior parcela do financiamento do SUS, embora a participação dos municípios venha crescendo ao longo dos últimos dez anos e haja a perspectiva de que a parcela dos recursos estaduais no financiamento do sistema aumente significativamente em decorrência da aprovação da EC-29. O pagamento aos prestadores de serviços de saúde é feito pelo nível de governo responsável por sua gestão. Independentemente do nível de governo que execute o pagamento, o SUS utiliza um mesmo sistema de informações para os serviços ambulatoriais – o Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA) e outro para os serviços hospitalares – o Sistema de Informações Hospitalares (SIH). No caso específico das internações hospitalares, embora o pagamento pelos serviços prestados esteja descentralizado para o nível de governo responsável por sua gestão, o processamento das informações relativas a todas as internações financiadas pelo sistema público de saúde é realizado de forma centralizada pelo Departamento de Informática do SUS (DATASUS) órgão do Ministério da Saúde. Do mesmo modo, todo o sistema público utiliza uma única tabela de preços, definida pelo MS, para o pagamento aos prestadores de serviços. 14 A tendência é que os municípios assumam cada vez mais a responsabilidade pelo relacionamento com os prestadores de serviço, à medida que se habilitem às condições de gestão descentralizada do sistema. A norma em vigor (NOAS-SUS 01/01) define duas condições de gestão municipal: (a) Gestão Plena da Atenção Básica Ampliada, pela qual o município se habilita a receber um montante definido em base per capita para o financiamento das ações de atenção básica, e (b) Gestão Plena do Sistema Municipal, pela qual o município recebe o total de recursos federais programados para o custeio da assistência em seu território. Cabe esclarecer que o financiamento por base per capita não dispensa o gestor de alimentar o sistema de informações ambulatoriais, cuja produção servirá como insumo para futuras negociações de alocação de recursos financeiros. Apesar do incremento das habilitações de estados e municípios, e do consequente aumento do volume de recursos repassados diretamente aos fundos de saúde subnacionais, um terço dos recursos federais ainda é empregado em pagamentos diretos a prestadoresde serviços de saúde. Tal situação decorre do processo de contratação e pagamento centralizado que vigorou durante o período do INAMPS que antecedeu à implementação do SUS e, em certa medida, ainda não foi plenamente substituído pelo processo de descentralização, dado o caráter não compulsório e progressivo deste último. http://www.hmdoctors.com/wp-content/uploads/2012/11/081112.jpg 15 Até 1997 não havia subdivisão dos recursos transferidos para estados e municípios o que passou a ocorrer a partir de março de 1998 com a edição da Portaria n° 2.121/GM que implantou o Piso da Atenção Básica (PAB) e separou os recursos para o financiamento da Atenção Básica e para o financiamento da Assistência de Média e Alta Complexidade Ambulatorial. O PAB de cada município que é calculado tendo por base um valor per capita é transferido de forma automática do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Municipais de Saúde mudando a forma anterior de financiamento por prestação de serviços e passando para uma lógica de transferência de recursos em função do compromisso do município assumir a responsabilidade sanitária por este nível de atenção. Vale destacar que enquanto os recursos do PAB fixo são transferidos tendo por base o valor per capita, o valor do PAB variável depende da adesão do município a programas prioritários definidos pelo Ministério da Saúde, tais como os Programas de Agentes Comunitários de Saúde, de Saúde da Família e de Combate às Carências Nutricionais e a ações estratégicas tais como a Farmácia Básica e as Ações Básicas de Vigilância Sanitária. O Manual da Atenção Básica, aprovado pela Portaria GM/MS n° 3.925, de 13 de novembro de 1998, define a Atenção Básica como “o conjunto de ações, de caráter individual ou coletivo, situadas no primeiro nível de atenção dos sistemas de saúde, voltadas para a promoção da saúde, a prevenção de agravos, o tratamento e a reabilitação”. E frisa, ainda, que “essas ações não se limitam àqueles procedimentos incluídos no Grupo de Assistência Básica da tabela do SIA/SUS, quando da implantação do Piso da Atenção Básica. A ampliação desse conceito se torna necessária para avançar na direção de um sistema de saúde centrado na qualidade de vida das pessoas e de seu meio ambiente”. Com a Portaria GM/MS n° 2.121, o Ministério da Saúde concretizou um primeiro e significativo passo para a construção de um sistema de saúde que não se reduzia a apenas a um componente de assistência médica e para a redução das desigualdades regionais na distribuição dos recursos. A partir da Portaria GM N° 1.399, de 15 de dezembro de 1999, que regulamentou a NOB SUS 01/96 no que se refere às competências da União, estados, municípios e Distrito Federal, na área de Epidemiologia e Controle de Doenças e 16 definiu a sistemática de financiamento, no ano 2000 o Ministério da Saúde, por meio da Fundação Nacional de Saúde, começou a implementar o processo de descentralização dessa área. Assim, a parir de junho de 2001, o volume de recursos transferidos pelo Ministério da Saúde para os estados e municípios para o desenvolvimento de ações e serviços de saúde passou a ser subdividido em: • Recursos para a Atenção Básica (PAB Fixo e PAB Variável) • Recursos para a Vigilância Epidemiológica e Controle de Doenças • Recursos para a Assistência de Média Complexidade • Recursos para a Assistência de Alta Complexidade. 5 O PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO DO SUS http://cdnmaismedicos.elivepress.com.br/templates/protostar/images/home/home-cat2.jpg O Sistema Único de Saúde vem passando, desde a sua instituição pela Lei Orgânica da Saúde em 1990, por importantes mudanças, entre as quais pode-se destacar o significativo avanço obtido na sua universalização, principalmente em decorrência de um importante processo de descentralização de responsabilidades, atribuições e recursos da esfera federal para estados e municípios, em oposição ao modelo anterior do sistema de saúde, caracterizado por marcante centralização decisória e financeira no nível federal. Esse processo tem sido orientado pelas Normas Operacionais do SUS, instituídas por meio de portarias ministeriais. Estas Normas definem as competências 17 de cada esfera de governo e as condições necessárias para que estados e municípios possam assumir as novas posições no processo de implantação do SUS. As Normas Operacionais definem critérios para que estados e municípios voluntariamente se habilitem a receber repasses de recursos do Fundo Nacional de Saúde para seus respectivos fundos de saúde. A habilitação às condições de gestão definidas nas Normas Operacionais é condicionada ao cumprimento de uma série de requisitos e ao compromisso de assumir um conjunto de responsabilidades referentes à gestão do sistema de saúde. Embora o instrumento formal seja uma portaria do Ministro da Saúde, o seu conteúdo é definido de forma compartilhada entre o Ministério e os representantes do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (CONASS) e do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS). Para tanto foram criadas instancias de negociação, sendo uma a nível nacional, a Comissão Inter gestores Tripartite (CIT – com representação do Ministério da saúde, do CONASS e do CONASEMS) e, em cada estado, uma Comissão Inter gestores Bipartite (CIB), com representação da Secretaria Estadual de Saúde e do Conselho Estadual de Secretários Municipais de Saúde (COSEMS). Desde o início do processo de implantação do SUS, foram públicas três Normas Operacionais Básicas (NOB SUS 1991, 1993 e em 1996.). No ano 2001 foi publicada a Norma Operacional da Assistência à Saúde (NOAS-SUS), atualmente em vigor. Os fundamentos jurídicos e normativos da descentralização do SUS são sistematizados na figura a seguir. 18 Uma das dimensões relevantes desse processo diz respeito à tentativa de definição do papel de cada esfera de governo no SUS, que se dá com intensos debates e conflitos, tendo em vista o caráter ainda recente do processo de democratização no Brasil, a marcante heterogeneidade política, econômica e social no país, as características do federalismo brasileiro e as intensas transformações por que o Estado brasileiro vem passando nas diversas áreas da política, entre outras questões. 6 AVANÇOS E DIFICULDADES DO PROCESSO RECENTE DE DESCENTRALIZAÇÃO http://maispinhais.com.br/wp-content/uploads/2012/02/saude-publica.jpg O período de implementação da NOB SUS 01/96, compreendido entre os anos 1998 a 2000 (as habilitações na referida norma no ano 2001 foram residuais), foi marcado por uma série de importantes avanços do processo de descentralização do Sistema Único de Saúde. Entre esses avanços cabe destacar: 1. No âmbito do financiamento: a) a implementação do Piso da Atenção Básica para o financiamento das ações de atenção básica desenvolvidas pelos municípios, representando a introdução de uma lógica de financiamento per capita pela primeira vez no SUS, o que é um avanço no sentido da superação dos mecanismos de pós-pagamento; b) a adoção de incentivos específicos para áreas estratégicas, e o aumento expressivo de transferências de recursos do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Estaduais e Fundos Municipais de Saúde; 2. No âmbito do modelo assistencial e da organização dos serviços: 19 a) a expansão da estratégia de Equipes de Saúde da Família e de Agentes Comunitários de Saúde; b) a implementação de experiências inovadoras de atenção no âmbito local e avanços, tanto na organização da atenção básica como na organização de redes de referência em vários municípios e estados; 3. No âmbito da gestão: a) milhares de municípios foram habilitados de acordo com as condições de gestão da NOB SUS 01/96, integrando-se de forma voluntária e assumindo responsabilidades no Sistema Público de Saúde;b) houve uma intensa transferência negociada de responsabilidades, atribuições e recursos do nível federal para municípios e estados; Ao final do período de vigência da NOB SUS 01/96, 99% dos municípios brasileiros estavam habilitados a uma das condições de gestão da referida norma, sendo 89% em Gestão Plena da Atenção Básica e 10,1% em Gestão Plena do Sistema Municipal (Quadro II). A maior parte dessas habilitações ocorreu ainda em 1998, no primeiro ano de implantação da NOB/96. Entretanto, o percentual de municípios habilitados em cada uma dessas condições de gestão é bastante variável entre os estados, sugerindo a existência de diferentes ritmos e modelos de descentralização. Cabe lembrar que o processo de habilitação depende da iniciativa dos gestores subnacionais. Conforme já mencionado, os estados e municípios voluntariamente se submetem ao processo de habilitação, assumindo responsabilidades e fazendo jus ao repasse de recursos e responsabilidades a partir do cumprimento dos requisitos definidos nas Normas Operacionais. 20 Já o processo de habilitação dos estados foi mais lento e irregular (Tabela 4). Em dezembro de 2001, cinco estados estavam habilitados na condição de Gestão 21 Avançada do Sistema Estadual e sete estados na condição de Gestão Plena do Sistema Estadual. Entretanto, os próprios avanços da descentralização no período levantam novas questões críticas para a implementação do SUS. No final da década de 90, acentua-se o debate sobre alguns problemas e desafios até então não equacionados: a) Divisão de responsabilidades entre estados e municípios: Parcela significativa dos pactos de gestão sobre os prestadores de serviços de saúde entre estados e municípios foi estabelecida segundo critérios pouco adequados a organização funcional do sistema e ao comando efetivamente público do sistema, tais como partilhas de gestão por natureza jurídica dos prestadores de serviços (públicos vs. privados). Em alguns estados, ainda há unidades básicas de saúde sob gestão estadual e/ou conflitos relacionados à persistência de hospitais estaduais que não estão sob gestão de municípios em Gestão Plena do Sistema Municipal. b) Processo de habilitação: Em muitos casos a habilitação ocorreu de forma cartorial. O processo de habilitação dos estados nem sempre apresentou uma relação direta com a capacidade efetiva da Secretaria de Estado da Saúde de exercer todas as suas funções gestoras. 22 A maciça habilitação dos municípios em Gestão Plena da Atenção Básica representou um avanço do ponto de vista da responsabilização de milhares de gestores municipais e aumento da equidade na alocação de recursos por meio da implantação do PAB, mas não assegurou a qualidade e efetividade da atenção básica em todos esses municípios, nem foi suficiente para garantir o acesso dos cidadãos aos demais níveis de atenção. A habilitação em Gestão Plena do Sistema Municipal, por sua vez, representou um avanço para centenas de municípios que passaram a dispor de maior autonomia de gestão; por outro lado, não foi suficiente para assegurar sua inserção no Sistema Estadual de Saúde e seu papel na garantia do atendimento às populações referidas de outros municípios com menor capacidade assistencial. c) Financiamento do sistema: A alocação dos recursos financeiros permanecia, em parte, vinculada à lógica da oferta, à capacidade instalada existente e às necessidades de receita dos prestadores de serviços de saúde, o que mantinha a concentração de recursos nas áreas mais desenvolvidas e em ações nem sempre compatíveis com as necessidades da população. No âmbito dos estados, os critérios adotados para a distribuição de recursos entre os municípios eram, em geral, pouco explícitos. d) Planejamento e organização funcional do sistema: Embora muitos estados tenham conduzido os processos de Programação Pactuada e Integrada (PPI) com seus municípios, sua implementação foi efetiva em poucos casos, dificultando a integração intermunicipal. As limitações da capacidade de planejamento e coordenação das Secretarias Estaduais de Saúde aumentavam o risco de atomização dos sistemas municipais, da incorporação tecnológica irracional e da adoção de barreiras de acesso entre municípios. A prática de contratação de serviços privados e da construção de unidades públicas, sem a prévia análise da adequação do perfil da oferta existente às necessidades da população, dificultava a estruturação de uma rede regionalizada e Resolutiva de unidades. Por outro lado, a expansão de serviços nas décadas precedentes produziu um conjunto de unidades com oferta desordenada e relações frágeis entre os serviços, 23 dificultando a reorientação do modelo de atenção e a conformação de redes regionalizadas e resolutivas. e) Resolutividade e acesso aos serviços: A configuração do elenco de procedimentos incluídos na atenção básica (Piso de Atenção Básica fixo – PAB fixo) era restrita, apresentando baixa capacidade de resolução dos problemas mais frequentes dos usuários. Simultaneamente, ocorriam dificuldades de acesso à assistência de média e alta complexidade, relacionadas à concentração desses serviços em poucos municípios ou mesmo à inexistência de determinados serviços de alta complexidade em diversos estados. O instrumental utilizado para as referências intermunicipais e interestaduais tem sido insuficiente para garantir o acesso, carecendo de mecanismos efetivos de relação entre gestores e entre serviços. f) Monitoramento e avaliação contínua de desempenho: Em geral não existia avaliação rotineira e sistemática do desempenho dos órgãos gestores e de monitoramento da implementação das atividades previstas nos Planos de Saúde e processos de programação. O controle e a auditoria da prestação de serviços por terceiros e do consequente faturamento apresentavam fragilidades e descontinuidades. Em síntese, tanto o Ministério da Saúde quanto a maior parte dos estados não dispunham de diagnósticos precisos do funcionamento dos sistemas estaduais e municipais para o desenvolvimento adequado de estratégias de cooperação técnica e decisões de investimento. g) Processo de habilitação das Secretarias Municipais de Saúde (SMS) e transferências fundo a fundo: O processo de habilitação dos municípios atingiu seu ápice, sendo residual o número de municípios que ainda não se encontra em uma das condições de gestão previstas na NOB 96. A taxa de crescimento do volume de recursos transferidos fundo a fundo, bastante significativa no primeiro ano de vigência da referida Norma, apresentou uma desaceleração no período de dezembro de 1998 a dezembro de 2000, indicando a necessidade do desenvolvimento de novos mecanismos para ampliar a descentralização dos recursos financeiros e buscar a superação progressiva do financiamento pela compra de serviços para mecanismos de repasse de recursos entre gestores por produção de serviços. 24 Face aos avanços e problemas descritos, ainda durante a fase de implementação da NOB SUS 01/96, os diversos atores envolvidos no processo de consolidação do SUS passaram a discutir as estratégias necessárias para enfrentar os grandes desafios colocados para as políticas de descentralização na saúde. Desse processo resultou a publicação da Norma Operacional da Assistência à Saúde (NOAS SUS 01/01) 7 O PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO, ELABORAÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO DA NOAS-SUS 01/01 http://www.medsisten.com.br/images/atendimento-medico.jpg Ao longo de todo o ano 2000, o Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Assistência à Saúde, em articulação com outras secretarias do Ministério (Secretaria de Políticas de Saúde, Secretaria Executiva), coordenou um intenso processo de debate e negociação com as representações nacionais dos secretários estaduais (CONASS) e municipais (CONASEMS) de saúde noâmbito da Comissão Inter gestores Tripartite (CIT) do Conselho Nacional de Saúde (CNS), acerca do aperfeiçoamento e consolidação do processo de descentralização no Sistema Único de Saúde. 25 A publicação da Norma Operacional de Assistência à Saúde NOAS SUS 01/01 em janeiro de 2001 é fruto desse longo processo de negociação. O objetivo geral da referida norma é: “promover maior equidade na alocação de recursos e no acesso da população às ações e serviços de saúde em todos os níveis de atenção”. Para atingir esse objetivo, a NOAS adotou a regionalização como macro estratégia fundamental para o aprimoramento do processo de descentralização, nesse momento específico da implantação do SUS, e propôs três grupos de estratégias articuladas, como forma de promover a descentralização com equidade no acesso: 1. Elaboração do Plano Diretor de Regionalização e diretrizes para a organização regionalizada da assistência, visando à conformação de sistemas de atenção funcionais e resolutivos nos diversos níveis. 2. Fortalecimento das capacidades gestoras do SUS, que compreende um conjunto de estratégias voltadas para consolidar o caráter público da gestão do sistema, por meio da instrumentalização dos gestores estaduais e municipais para o desenvolvimento de funções como planejamento, programação, regulação, controle e avaliação, incluindo instrumentos de consolidação de compromissos entre gestores. 3. Atualização dos critérios e do processo de habilitação de estados e municípios às condições de gestão do SUS, visando torná-lo coerente com o conjunto de mudanças propostas. Um dos pontos mais importantes da NOAS SUS 01/01 diz respeito ao processo de elaboração do Plano Diretor de Regionalização, coordenado pelo gestor estadual, com a participação do conjunto de municípios. Esse Plano deve conter minimamente: a) a divisão do território estadual em regiões/microrregiões de saúde, definidas segundo critérios sanitários, epidemiológicos, geográficos, sociais, de oferta de serviços e de acessibilidade; b) o diagnóstico dos principais problemas de saúde e das prioridades de intervenção; c) a constituição de módulos assistenciais resolutivos, formados por um ou mais municípios, que garantam o primeiro nível da média complexidade, visando garantir o suporte às ações de Atenção Básica; d) os fluxos de referência para todos os níveis de complexidade e os mecanismos de relacionamento intermunicipal; 26 e) a organização de redes assistenciais específicas; f) o Plano Diretor de Investimentos, que procura suprir as lacunas assistenciais identificadas, de acordo com as prioridades de intervenção. No que diz respeito à organização da assistência, se enfatiza a importância de qualificar e melhorar a resolutividade da atenção básica em todos os municípios brasileiros, a partir da identificação de áreas estratégicas mínimas, relacionadas a problemas de saúde de abrangência nacional (saúde da mulher, saúde da criança, saúde bucal, controle da hipertensão e diabetes, controle da tuberculose e eliminação da hanseníase). Complementarmente, os gestores estaduais e municipais podem definir outras áreas estratégicas, de acordo com as especificidades locais. Além das ações mínimas de atenção básica a serem asseguradas em todos os municípios brasileiros, a NOAS SUS 01/01 propõe a formação de módulos assistenciais resolutivos, formados por um ou mais municípios, que garantam no âmbito microrregional o acesso ágil e oportuno de todos os cidadãos a um conjunto de ações de saúde frequentemente necessárias para atender os problemas mais comuns, que nem sempre podem ser oferecidas em todos os municípios pelo seu pequeno porte populacional. A proposta de qualificação de regiões/microrregiões na assistência à saúde apresentada na referida Norma se fundamenta, portanto, na busca de garantia de acesso a ações resolutivas para além dos limites municipais, considerando critérios de qualidade e economia de escala. Ainda no que tange à assistência à saúde, a NOAS SUS 01/01 estabelece diretrizes gerais para a organização das demais ações de média e alta complexidade, e preconiza que o plano de regionalização compreenda o mapeamento das redes de referência em áreas estratégias específicas (gestação de alto risco, urgência e emergência, hemoterapia, entre outras). Esse tipo de regionalização, incentivado pela NOAS SUS 01/01, requer a articulação dos gestores municipais para a negociação e pactuação de referências intermunicipais, sob coordenação e regulação estadual, que deve se dar através da programação pactuada e integrada (PPI). Além disso, é necessário o fortalecimento da capacidade gestora de estados e municípios para exercer as funções de regulação, controle e avaliação do sistema, em uma nova perspectiva. Do ponto de vista do financiamento, a NOAS SUS 01/01 pressupõe um aumento do componente de financiamento federal calculado em uma base per capita, 27 ao propor uma ampliação do Piso de Atenção Básica - fixo e que o financiamento das ações do primeiro nível da média complexidade ambulatorial a também a se dar com base em um valor per capita nacional. Esse aspecto é importante por assinalar uma tendência de superação da lógica anterior de financiamento, fortemente orientada pela oferta pré-existente de serviços, a partir da expansão dos mecanismos de pré- pagamento, que requerem um papel mais ativo dos gestores no planejamento da oferta, de acordo com as necessidades da população e prioridades identificadas. Uma vez publicada a NOAS em janeiro de 2001, ao longo do ano a Secretaria de Assistência à Saúde acompanhou e apoiou sistematicamente os processos de regionalização nos estados, considerando as especificidades de cada um, bem como buscou desenvolver estratégias e instrumentos de gestão e de organização da assistência de apoio aos estados e municípios no processo de regionalização. Ao longo do ano 2001, observou-se um grande dinamismo nos estados no que diz respeito aos processos de articulação entre gestores estaduais e municipais para a elaboração dos planos diretores de regionalização, de investimentos e da programação pactuada e integrada. Todos os estados já elaboraram esboços desses planos e, e a maior parte está adotando medidas significativas de organização da rede de serviços voltadas à melhoria do acesso. 8 LEITURA COMPLEMENTAR Estudos Avançados vol.27 no.78 São Paulo 2013 25 anos do Sistema Único de Saúde: resultados e desafios Eugênio Vilaça Mendes A pedido de estudos avançados, o médico Samir Salman, fundador do primeiro centro privado especializado em cuidados paliativos e no atendimento a pacientes crônicos de alta dependência (o Hospital Premier), entrevistou Eugênio Vilaça Mendes, conselheiro da Organização Pan-Americana da Saúde na área de Desenvolvimento de Sistemas e Serviços de Saúde e secretário adjunto da Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais no governo Tancredo Neves. Entre os temas abordados, destacam-se o Sistema Único de Saúde e a Estratégia da Saúde da Família. 28 Além de consultor de organismo internacional na área da saúde e gestor público, Eugênio Vilaça Mendes é especialista em planejamento de saúde, mestre em Administração e doutor em Odontologia. Foi professor das Faculdades de Odontologia e Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, da Faculdade de Odontologia da PUC Minas, das Escolas de Saúde Pública de Minas Gerais (ESP-MG) e do Ceará, e da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Montes Claros (MG), da qual recebeu o título de "Professor Honoris Causa". É autor de vários livros e capítulos de livros, e de artigos no Brasil e no exterior. Seu livro mais recente, As redes de atenção à saúde, foi publicado pela ESP-MG. Samir Salman – Passados 25 anos de sua instalação, o Sistema Único de Saúde (SUS) se apresenta a 75% dosbrasileiros como a única forma de acesso e assistência à saúde. Qual a sua avaliação, hoje, dos caminhos do SUS diante dos desafios que sua implantação almejava responder, décadas atrás? Eugênio Vilaça Mendes – O SUS foi instituído pela Constituição Federal de 1988. É, portanto, uma política pública recente, com duas décadas e meia de existência. Não obstante sua curta vida, tem muitos resultados a celebrar e, também, enormes desafios a superar. O nosso sistema público de saúde tem uma dimensão verdadeiramente universal quando cobre indistintamente todos os brasileiros com serviços de vigilância sanitária de alimentos e de medicamentos, de vigilância epidemiológica, de sangue, de transplantes de órgãos e outros. No campo restrito da assistência à saúde ele é responsável exclusivo por 140 milhões de pessoas, já que 48 milhões de brasileiros recorrem ao sistema de saúde suplementar, muitos deles acessando concomitantemente o SUS em circunstâncias em que o sistema privado apresenta limites de cobertura. O SUS constituiu a maior política de inclusão social da história de nosso país. Antes do SUS vigia um Tratado das Tordesilhas da saúde que separava quem portava a carteirinha do Inamps e que tinha acesso a uma assistência curativa razoável das grandes maiorias que eram atendidas por uma medicina simplificada na atenção primária à saúde e como indigentes na atenção hospitalar. O SUS rompeu essa divisão iníqua e fez da saúde um direito de todos e um dever do Estado. A instituição da cidadania sanitária pelo SUS incorporou, imediatamente, mais de cinquenta 29 milhões de brasileiros como portadores de direitos à saúde e fez desaparecer, definitivamente, a figura odiosa do indigente sanitário. O SUS apresenta números impressionantes: quase seis mil hospitais e mais de sessenta mil ambulatórios contratados, mais de dois bilhões de procedimentos ambulatoriais por ano, mais de onze milhões de internações hospitalares por ano, aproximadamente dez milhões de procedimentos de quimioterapia e radioterapia por ano, mais de duzentas mil cirurgias cardíacas por ano e mais de 150 mil vacinas por ano. O SUS pratica programas que são referência internacional, mesmo considerando países desenvolvidos, como o Sistema Nacional de Imunizações, o Programa de Controle de HIV/Aids e o Sistema Nacional de Transplantes de Órgãos que tem a maior produção mundial de transplantes realizados em sistemas públicos de saúde do mundo, 24 mil em 2012. O programa brasileiro de atenção primária à saúde tem sido considerado, por sua extensão e cobertura, um paradigma a ser seguido por outros países. Com esses processos o SUS tem contribuído significativamente para a melhoria dos níveis sanitários dos brasileiros. Entre 2000 e 2010, a taxa de mortalidade infantil caiu 40%, tendo baixado de 26,6 para 16,2 óbitos em menores de um ano por mil nascidos vivos. Não obstante a exuberância dos números, o nosso sistema público de saúde permanece com muitos problemas a solucionar. No meu entendimento há três grandes desafios para o SUS: a organização macroeconômica do sistema de saúde no Brasil, a organização microeconômica expressa no modelo de atenção à saúde que pratica e o financiamento. No plano da organização macroeconômica, o SUS foi concebido como um sistema público de saúde de cobertura universal, de corte beveridgeano que se caracteriza por financiamento público por meio de impostos gerais, universalidade de acesso, gestão pública e prestação de serviços por mix público/privado, com especificação de obrigações e direitos dos cidadãos e dos órgãos prestadores de serviços. O modelo beveridgeano tem como fundamento a saúde como direito humano e como direito constitucional, e tem como objetivo a universalização da atenção à saúde e o aumento da coesão social. Nele, o sistema público provê uma carteira generosa de serviços sanitariamente necessários, havendo a possibilidade de os cidadãos adquirirem, no setor privado, serviços suplementares aos que estão inscritos nessa carteira. Esse modelo originário do Reino Unido implantou-se em 30 diferentes países, como Canadá, Dinamarca, Espanha, Finlândia, Itália, Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Reino Unido e Suécia. A generosa concepção constitucional de um sistema de saúde de cobertura universal, ao longo dos anos, vem caminhando num sentido diverso, expresso na segmentação do sistema de saúde brasileiro. Dessa forma, o sonho da universalização vem se transformando no pesadelo da segmentação. Os sistemas de saúde segmentados combinam diferentes modelos institucionais segundo diferentes clientelas, segregando-as em nichos institucionais singulares. Disso resulta uma integração vertical em cada segmento e uma segregação horizontal entre eles, em que cada segmento, público ou privado, exercita as macrofunções de financiamento, regulação e prestação de serviços para sua clientela particular. Os Estados Unidos são um exemplo emblemático de sistema segmentado com sistemas públicos específicos para pobres (Medicaid), idosos (Medicare) e veteranos de guerra e sistema privados para quem pode pagar por si ou por meio de empresas. Em função da segmentação, o SUS, pensado como um sistema de cobertura universal, vem se consolidando como um subsistema público de saúde que convive, em nosso país, com um subsistema privado de saúde suplementar e um outro subsistema privado de desembolso direto. No plano da organização microeconômica, o desafio é superar a forma fragmentada como o SUS se estrutura. Em realidade, a fragmentação dos sistemas de saúde é uma característica que dá tons de universalidade à crise dos modelos de atenção à saúde em todo o mundo, nos setores públicos e privados. Nesse plano, pode-se afirmar que a crise está em responder a uma situação de saúde do século XXI com um modelo de atenção à saúde engendrado na metade do século passado. Isso não deu certo nos países ricos, isso não está dando certo no Brasil. A razão desse problema está no descompasso temporal que ocorre entre uma evolução muito rápida dos fatores contingenciais do sistema de saúde (transição demográfica, transição nutricional, transição epidemiológica e inovação tecnológica) e a baixa velocidade desse sistema em adaptar-se a essas mudanças por meio de reformas internas (cultura organizacional, arranjos organizativos, modelos assistenciais, modelos de financiamento, sistemas de incentivos e liderança). 31 O Brasil vive uma transição demográfica acelerada. A população de pessoas de mais de 65 anos dobrará nos próximos vinte anos e isso significará, no futuro, mais doenças crônicas, porque 79% de pessoas idosas brasileiras relatam ser portadores dessas condições de saúde. A transição nutricional é, também, muito rápida. Hoje, metade de nossa população total e um terço de nossa população de crianças de cinco a dez anos de idade tem sobrepeso ou obesidade. Por outro lado, o país apresenta uma transição epidemiológica singular. A carga de doença, medida em anos de vida perdidos ajustados por incapacidade, se compõe de 14,8% de doenças infecciosas e desnutrição, 10,2% de causas externas, de 8,8% de causas maternas e perinatais e de 66,2% de doenças crônicas. Isso significa que o Brasil tem uma situação epidemiológica de tripla carga de doenças com a convivência, no mesmo tempo, de uma agenda de doenças infecciosas e causas maternas e perinatais, do crescimento das causas externas e pela dominância relativa das doenças crônicas e de seus fatores de riscos. O problema do SUS, mas presente igualmente nos subsistemas privados brasileiros, está numa situação de saúde que combina transição epidemiológica e nutricional aceleradas e tripla carga de doença, com forte predomínio relativo de condições crônicas, e uma resposta social estruturada num sistema de atenção à saúde que é fragmentado, que opera deforma episódica e reativa e que se volta, principalmente, para a atenção às condições agudas e às agudizações das condições crônicas. O sistema de saúde fragmentado que praticamos não é capaz de responder socialmente, com efetividade, eficiência e qualidade, à situação de saúde vigente. A resposta a esse desafio está em restabelecer a coerência entre a situação de saúde e a forma de organização do sistema de saúde no plano microeconômico, acelerando as mudanças necessárias que levem à conformação de um sistema integrado que opere de forma contínua e proativa e que seja capaz de responder, com eficiência, efetividade, qualidade e de modo equilibrado às condições agudas e crônicas. Ou seja, o SUS deverá ser estruturado em redes de atenção à saúde, coordenadas pela atenção primária à saúde. Esse é um grande desafio que se coloca para os anos futuros, mas que não será fácil de ser superado porque a fragmentação presente tem profundas raízes econômicas, políticas e culturais que a sustenta. Mas alguns passos têm sido dados, nos últimos anos, no caminho da construção de redes de atenção à saúde no SUS. 32 O terceiro desafio, o do subfinanciamento do SUS, que está na base da segmentação do sistema de saúde brasileiro, será considerado na questão seguinte. Samir Salman – A gestão de um sistema social complexo como o SUS exige recursos que possibilitem, de fato, a sua manutenção. Mas também exige um criterioso método de aplicação. Como o senhor avalia esse binômio alocação-método na atual conjuntura do SUS? Iluminando ainda questões importantes nesta reflexão, como o princípio da universalidade, qual o volume de recursos que seriam necessários, ano a ano, para que o SUS seja plenamente implantado no país, ainda nesta década? Eugênio Vilaça Mendes – A generosidade do mandamento jurídico da saúde como direito de todos e dever do Estado não foi sustentada, na Constituição Federal, por uma base material que garantisse um financiamento público compatível com a universalidade. O exame dos dados de 2013 da Organização Mundial da Saúde sobre financiamento dos sistemas de saúde mostra que o Brasil gasta em saúde 9,0 do PIB. Esse valor indica que o Brasil tem um gasto total em saúde muito adequado, bem próximo à média dos gastos em saúde dos países desenvolvidos. Contudo quando se examina o percentual do gasto público em saúde verifica-se que ele é muito baixo e incapaz de garantir que a norma constitucional se materialize na prática social de modo a garantir o princípio da universalidade do SUS. As evidências internacionais mostram que todos os países que estruturaram sistemas universais de saúde, beveridgeanos ou bismarckianos, apresentam uma estrutura de financiamento em que os gastos públicos em saúde são, no mínimo, 70% dos gastos totais em saúde. Por exemplo: Alemanha, 76,8%; Canadá, 71,1%; Itália, 77,6%; Holanda, 84,8%, Noruega, 85,5%; Reino Unido, 83,2%. No Brasil, o gasto público como porcentual do gasto total em saúde é de, apenas, 47%, inferior aos 53% que constituem o porcentual de gastos privados em saúde. Em geral, a segmentação dos sistemas de saúde se dá quando os gastos públicos são inferiores a 50% dos gastos totais em saúde. Nos Estados Unidos, país emblemático do sistema segmentado, esse valor é de 48,2%, bem próximo ao gasto público brasileiro. Com a estrutura vigente de gastos públicos em saúde não se pode pretender consolidar o SUS como direito de todos e dever do Estado. Essa é a razão fundante da segmentação do sistema de saúde brasileiro que poderá fazer de nosso sistema 33 público de saúde, no longo prazo, um sistema de assistência à saúde para as classes mais baixas e um resseguro para procedimentos de alto custo para as classes médias e para os ricos. Os gastos públicos em saúde em nosso país são muito baixos quando comparados com outros países em dólares americanos com paridade de poder de compra. O gasto total em saúde é de US$ 1.009,00, mas o gasto público per capita em saúde é de apenas US$ 474,00. Esse valor é muito inferior aos valores praticados em países desenvolvidos, mas é inferior a países da América Latina como Argentina, US$ 851,00; Chile, US$ 562,00; Costa Rica, US$ 825,00; Panamá, US$ 853,00; e Uruguai, US$ 740,00. A razão para esse baixo gasto público em saúde no Brasil está no fato de que os gastos em saúde correspondem a 10,7% do gasto do orçamento total dos governos, um valor muito abaixo do praticado em âmbito internacional, em países desenvolvidos e em desenvolvimento. Estima-se que o faturamento per capita do sistema de saúde suplementar brasileiro é três vezes superior aos gastos per capita do SUS. Esses dados eloquentes sobre o subfinanciamento do SUS não têm sensibilizado os segmentos políticos, de diferentes matizes ideológicos, para que promovam um aumento do financiamento que permita tornar realidade o princípio da cobertura universal em saúde. Os sistemas segmentados de saúde, não raro, são justificados por um suposto, aparentemente magnânimo: o de que ao se instituírem sistemas específicos para quem pode pagar, sobrariam mais recursos públicos para dar uma melhor atenção aos pobres. As evidências indicam que esse suposto não é verdadeiro; ao contrário, ao se especializar um sistema singular para os pobres, dada a desorganização social desses grupos excluídos e sua baixa vocalização política, esse sistema tende a ser subfinanciado. O financiamento do SUS é feito pela trina federativa de forma solidária. Ocorre que os Estados e municípios vêm aumentando seus gastos em saúde e chegaram ao limite definido pela Emenda Constitucional 29. De outra forma, os gastos federais em saúde vêm numa tendência fortemente decrescente e as tentativas de aumentar os gastos federais em saúde são reiteradamente frustradas. Estima-se que seria necessário quase dobrar o orçamento do Ministério da Saúde para chegar-se a uma relação que torne viável a universalização da saúde. Por isso, não há que ter muita esperança para a solução desse problema nesta década e, como consequência, o 34 gasto público deverá permanecer em valores próximos a 50% dos gastos totais em saúde, o que manterá a segmentação do sistema de saúde. Em função do volume de recursos necessários para fortalecer o sistema público da insensibilidade dos diferentes segmentos políticos para o tema da universalização da saúde, dos movimentos de mobilidade social que ampliaram vertiginosamente as classes médias do país, dos valores professados por esses segmentos sociais emergentes, da dimensão alcançada pelo sistema privado de saúde suplementar e das dificuldades de se fazerem reformas sanitárias no âmbito macroeconômico do sistema de saúde, o cenário mais provável para os próximos dez anos é de mudanças incrementais lentas, pontuais e destituídas de visão estratégica que levarão a uma consolidação da segmentação do sistema de saúde, com as consequências, no longo prazo, de ineficiência e de iniquidade. Em certo sentido, se pode prever que, em termos de sistema de saúde, caminharemos para sermos amanhã, à moda brasileira, o que são, hoje, os Estados Unidos. Samir Salman – A Estratégia de Saúde da Família tem sido considerada pelo senhor como a principal forma de implantação do SUS por todo o país. Qual o mérito dessa estratégia? Eugênio Vilaça Mendes – O sistema público de saúde brasileiro sempre fez uma opção por organizar-se com base na Atenção Primária à Saúde (APS). Historicamente, é possível identificar sete ciclos de desenvolvimento da APS no sistema público de saúde de nosso país, desde o ciclo inicial do Prof. Paula Souza na USP, na segunda década do século XX, até o sétimo ciclo inaugurado em 1993, no governo Itamar Franco, o ciclo da Estratégia da Saúde da Família (ESF), ainda vigente. O Brasil tem hoje uma ESF extensiva que conta com mais de 32 mil equipes espalhadas porquase todos os municípios brasileiros e que cobrem aproximadamente 58% de nossa população. Creio que a expansão da APS e sua tradução na ESF foi a opção estratégica mais consequente feita no sistema de saúde brasileiro ao longo de toda sua história. A razão disso está nas evidências que se produziram, nos âmbitos internacional e nacional, sobre a APS em geral e sobre a ESF em particular. Recentemente fiz uma revisão bibliográfica sobre a APS visitando centenas de publicações de muitos países, desenvolvidos e em desenvolvimento. As evidências são robustas em atestar que os sistemas de saúde com forte orientação para a APS 35 comparados com outros com frágil orientação para a APS apresentam melhores resultados em termos de diminuição da mortalidade, redução dos custos da atenção, maior acesso a serviços preventivos, melhoria da equidade em saúde, redução das internações hospitalares e redução da atenção de urgência. Da mesma forma, um exame da literatura produzida por acadêmicos, no exterior e no Brasil, mostrou que a opção feita pelo SUS para fortalecer a APS produziu os mesmo resultados. Mas, muito importante, vários estudos demonstraram que a operacionalização da APS por meio da ESF tem sido exitosa e superior aos modelos tradicionais de estruturação da APS. As evidências indicam que a ESF influiu positivamente no acesso e na utilização dos serviços e teve impacto na saúde dos brasileiros: reduziu a mortalidade infantil e a mortalidade de menores de cinco anos; teve impacto na morbidade; aumentou a satisfação das pessoas com a atenção recebida; teve uma nítida orientação para os mais pobres; melhorou o desempenho do SUS; influiu positivamente em outras políticas públicas como educação e trabalho; e contribuiu para incrementar o interesse internacional pela APS. Samir Salman – Dos desafios e tendências que se colocam nos caminhos futuros do SUS, quais seriam, na sua opinião, duas propostas de aperfeiçoamento que poderiam reescrever a trajetória do sistema de forma a cumprir a proteção social a que se destina? Eugênio Vilaça Mendes – Creio que se pode subscrever a afirmativa de que o SUS não é um problema sem solução, mas uma solução com problemas. Mas a superação de seus problemas não será fácil, nem rápida, nem barata. As mudanças na organização macroeconômica do sistema de saúde no Brasil são improváveis pelas razões mencionadas na primeira questão. Junte-se a elas a constatação empírica de que mudanças consequentes nesse âmbito, em geral, se dão em janelas históricas que se abrem em momentos de fortes transformações institucionais, o que não parece estar no horizonte brasileiro. Por consequência, as mudanças possíveis devem se limitar ao plano da organização microeconômica do SUS, especialmente por meio de sua organização em redes de atenção à saúde e do fortalecimento da APS por meio da ESF. Nesse âmbito, mesmo contando com menores recursos que o sistema privado de saúde suplementar, o SUS apresenta melhores condições de efetivamente estruturar redes de atenção à saúde, coordenadas pela APS. O sistema de saúde 36 suplementar brasileiro sequer colocou, em sua agenda, os temas das redes de atenção à saúde e da APS. As redes de atenção à saúde são a resposta adequada à situação de saúde vigente em nosso país e implicam organizar, de forma integrada, sob coordenação da APS, os pontos de atenção ambulatoriais e hospitalares secundários e terciários, os sistemas de apoio (sistema de assistência farmacêutica, sistema de apoio diagnóstico e terapêutico e sistema de informação), os sistemas logísticos (sistema de regulação da atenção, registro eletrônico em saúde e sistema de transporte em saúde) e o sistema de governança. A proposta de organização em redes de atenção à saúde já foi incorporada na legislação do SUS pelo Decreto 7.508/2011 que regulamentou a Lei Orgânica da Saúde e tem constituído uma prioridade de diversos governos nos âmbitos nacional, estadual e municipal. As redes de atenção à saúde, para cumprirem com seus objetivos, devem ser coordenadas por uma APS forte. Para isso, será necessário aprofundar o movimento de implantação da ESF, inaugurando um oitavo ciclo no SUS, o ciclo da atenção primária à saúde. Isso implicará uma agenda de radicalização da ESF com alguns pontos fundamentais: aumento da cobertura como um foco especial em grandes e médios municípios, até atingir uma cobertura de 75% da população brasileira; superação dos problemas críticos de sua gestão; expansão do trabalho interdisciplinar; implantação de modelos de atenção à saúde baseados em evidência; e incremento dos recursos financeiros. Esse novo ciclo significará o encontro da ESF brasileira com as novas diretrizes da APS, enunciadas pela Organização Mundial da Saúde no Relatório Mundial de Saúde de 2008. "Agora mais do que nunca" é preciso fortalecer a ESF no SUS. 9 LEITURA COMPLEMENTAR Saúde Pública, Rede Básica e o Sistema de Saúde Brasileiro Emerson E. Merhy1; Marcos S. Queiroz 2 37 RESUMO Este artigo focaliza o desenvolvimento da saúde pública no Brasil com o intuito de analisar os problemas com os quais se depara o processo atual de municipalização dos serviços de saúde. Argumenta-se que a postura neoliberal ou conservadora tornou-se incapaz de articular uma proposta viável para o sistema de saúde. Por outro lado, a proposta reformista concentra sua atenção no sistema de saúde e sua administração, tendo como modelo a postura positivista das ciências naturais e administrativas. Argumenta-se que apenas uma mudança radical no paradigma da medicina, na qual a dimensão coletiva e social predomina sobre a dimensão biológica e individual, permitiria conciliá-la com as necessidades de saúde da população. Palavras-Chave: Saúde Pública; Sistemas de Saúde INTRODUÇÃO Este artigo tem como objetivo principal focalizar o desenvolvimento da saúde pública e do sistema de saúde no Brasil, buscando contribuir para a compreensão dos principais problemas que marcam o momento atual. Será argumentado que o processo de municipalização dos serviços de saúde, em grande medida estimulado por princípios contidos no paradigma (o termo “paradigma” é empregado de acordo com o conceito de Kuhn (1975), ou seja, como um mapa que governa a percepção do cientista no sentido de conformar a ele os fatos e as descobertas) social da medicina, encontra-se, presentemente, num estágio crucial do seu desenvolvimento. Observa-se, neste sentido, que, sob uma nova fachada de racionalidade administrativa, o paradigma mecanicista se impõe sobre o paradigma social da medicina. Este artigo defende o ponto de que é necessário ir além de uma mera reforma administrativa e, no interior de uma concepção social de medicina, encontrar tecnologias (o termo “tecnologia” é empregado no sentido usado por Gonçalves (1986), ou seja, como um instrumental contido principalmente na formação do especialista, e não somente como um aparelho externo a ele) que, ao organizar o sistema de saúde, a tornem prática. Embora os fatos históricos apresentados na primeira parte deste artigo sejam de conhecimento comum e já tenham sido divulgados (Merhy, 1991), sua apresentação justifica-se por fornecer uma visão 38 resumida do processo e permitir focalizar o momento atual a partir de uma dimensão histórica. O DESENVOLVIMENTO DA SAÚDE PÚBLICA A história da Saúde Pública brasileira inicia-se no começo do século com Emílio Ribas, em São Paulo, e Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. No interior da escola pasteuriana, estes cientistas tinham como meta superar a teoria miasmática a partir da introdução da teoria bacteriológica, considerada mais adequada para organizar a intervenção no campo da saúde. Nesta perspectiva, tanto a saúde como a doença passaram a ser vistas como um processo coletivo, resultado da agressãoexterna que o corpo biológico (fisiologicamente harmônico) sofria de um meio social/natural insalubre. A descoberta e o isolamento dos indivíduos doentes contagiantes, o saneamento do meio, a destruição dos vetores biológicos e a proteção dos sadios consistiam nos principais objetivos desta perspectiva. Para instrumentalizar as ações de saúde, adotava-se a bacteriologia e a engenharia sanitária. Secundariamente, utilizava-se a medicina, entendida como muito limitada e pouco eficaz. O modelo assistencial público tinha na campanha e na polícia sanitária seus meios principais de efetivação. Para pôr em prática esta política, foram organizadas leis, códigos e decretos. Além disso, foram também organizados institutos de pesquisa, laboratórios e serviços sanitários como braços auxiliares. Os principais aspectos administrativos e programáticos situavam-se no âmbito estadual, com alguns resíduos no nível municipal. Via de regra, os pensadores da política de saúde eram funcionários públicos e, como tal, compartilhavam das perspectivas que os grupos oligárquicos adotavam para as questões sociais, tendo em vista servir ao processo agroexportador e legitimar o Estado. A partir da teoria bacteriológica, novas ideias foram se organizando e desembocaram, na década de 10, na formação de um movimento em saúde pública que ficou conhecido como “médico-sanitário”. Esta perspectiva foi influenciada pela escola norte-americana de saúde pública, que tinha em Baltimore seu núcleo mais ativo, através da associação entre a Fundação Rockefeller e a John Hopkins University. Nesta época, já se buscava no Brasil uma ação social que saneasse a zona rural, a fim de constituir um povo saudável, racialmente forte, permitindo, ao mesmo 39 tempo, a ocupação do interior do país, considerada vital para a integração nacional. A chamada Liga do Saneamento caracterizou-se, neste sentido, por criticar os excessivos urbanismo e regionalismo da política de saúde então vigente. Este movimento tinha em Belisário Pena e Artur Neiva os seus mais significativos representantes. No decorrer da década de 20, a corrente médico-sanitária tornou-se hegemônica, organizando-se principalmente nos grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife, entre outros. Dois núcleos foram especialmente ativos: o paulista, influenciado por Paula Souza e Borges Vieira (médicos sanitaristas formados pela John Hopkins University, com bolsas da Fundação Rockfeller), e o dos “jovens turcos”, sanitaristas vinculados ao Departamento Nacional de Saúde Pública, no Rio de Janeiro, que defendiam a especialidade na carreira médica na área de saúde pública e o trabalho integral nas instituições estatais. Estes núcleos chegaram a organizar cinco congressos durante a década de 20 (os Congressos Brasileiros de Higiene) e tiveram tal influência no desenvolvimento da política de saúde no Brasil que sua presença se fez marcante até a reforma administrativa da década de 60/70, no interior da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. A base deste modelo pressupunha o processo saúde-doença como um fenômeno coletivo, porém determinado, em última instância, pelo nível individual. O conceito de “consciência sanitária” permitia compreender como o meio insalubre atingia os indivíduos. Medicina e saúde pública eram entendidas como campos distintos; a primeira para curar através da clínica, patologia e terapêutica, e a segunda para prevenir doenças, prolongar e promover a saúde através da higiene e da educação sanitária. O setor privado, entendido sob o ângulo “caritativo”, deveria ser controlado pelo serviço público. Não havia qualquer conflito com a organização liberal, predominante no período. O modelo tecnoassistencial desta proposta centrou-se na construção de serviços regionais permanentes de saúde pública (os centros e postos de saúde) comandados por especialistas — os sanitaristas — em tempo integral. Durante a fase de transição 30/37, a saúde pública praticamente reduziu-se à atuação campanhista pelo conjunto do país. Sob a influência da Liga de Saneamento, foram favorecidas as ações verticais permanentes. Este foi um período que viabilizou 40 a construção dos serviços médicos previdenciários, abrindo um outro setor socialmente significativo no conjunto das ações de saúde. Os “jovens turcos” foram marcando passagem pelas instituições na luta por uma reforma que levasse à criação de um ministério da saúde e de secretarias estaduais de saúde, experiência, aliás, já vivida pelo estado da Bahia em 1925. Assim ocorreu com a Reforma Federal de 1937, que permitiu a criação dos departamentos nacionais de combate a problemas específicos, como a malária, a febre amarela e a saúde das crianças. Quando, na década de 40, tiveram a oportunidade (diante dos problemas colocados pela situação da Segunda Guerra Mundial e as relações do governo brasileiro com o norte americano) de organizar um serviço que permitisse a ocupação de regiões importantes para a produção de borracha e minérios, implementaram a Fundação Serviço de Saúde Pública (Sesp). O ideário original desta corrente foi mantido mesmo com a incorporação de novos recursos médicos, como, por exemplo, o antibiótico, que foi “retraduzido” sob a mesma ótica “tecnológica”. A esta experiência seguiu-se a criação, em 1953, do Ministério da Saúde e, em 1956, do Departamento de Endemias Rurais, que herdou um conjunto de projetos realizados nos departamentos verticalizados específicos, como o da malária, existente desde 1939. No estado de São Paulo, a exemplo do que ocorria em outros estados, a Fundação Sesp tentou influenciar a constituição da Secretaria Estadual de Saúde, em 1948. Neste processo, os vários grupos articulados a esta proposta saíram frustrados, pois consideraram que seus objetivos foram desvirtuados pela presença de interesses políticos menores que se sobrepuseram aos técnicos. No entanto, com a reforma da organização dos serviços de saúde no estado, em 1968, consideraram atingidos seus objetivos. No pós-guerra, sem alterar as estratégias básicas da corrente “médico- sanitária”, novos elementos foram sendo incorporados, como, por exemplo, o uso da medicina clínica pela saúde pública, que encontrava suporte teórico na concepção de Leavell & Clarck (1967), que preconizavam a união do conjunto das ações de saúde num esforço comum de prevenção e cura. Com isso, o modelo passou a introduzir a clínica nos programas de saúde, dentro de uma perspectiva multicausal do processo saúde doença. Esta concepção permitiu que as ações de saúde se tornassem parte de uma atividade globalmente planejada. 41 Desde o final dos anos 40 já era evidente uma inversão dos gastos públicos, favorecendo a assistência médica em relação à saúde pública. Nos anos 60, a dicotomia assistência médica-saúde pública radicaliza-se no interior de um modelo institucional que mostrava ações pontuais e desordenadas, incapazes de conter a miséria e as péssimas condições de saúde da população brasileira. Tomando como ponto de reflexão a falência das perspectivas “campanhistas” e “norte-americanas”, Mario Magalhães introduziu, numa perspectiva desenvolvimentista, a integração e o planejamento das ações de saúde. Como presidente da Sociedade Brasileira de Higiene, em 1962, e como secretário-geral da III Conferência Nacional de Saúde (cujo tema era a municipalização dos serviços de saúde), em 1963, ele capitaneou um esforço no sentido de reinterpretar a organização dos serviços de saúde no interior do conjunto dos problemas brasileiros. A ideia mais intensamente propagada neste período é que a doença e a miséria só seriam controladas com o desenvolvimento econômico. No campo da saúde propriamente dito, propunha-se um padrão tecnológico mais racional, de menor custo, integrado em seus vários campos de atuação
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