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QUEM É O CUIDADOR SOCIAL E QUAL É O SEU PAPEL? Ana Pimentel Barbosa PROJETO FINAL SUBMETIDO AO CORPO DOCENTE DA COORDENAÇÃO DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO DE ENGENHARIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO COMO PARTE DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE ESPECIALISTA EM GESTÃO DO CONHECIMENTO E INTELIGÊNCIA EMPRESARIAL. Aprovado por: ________________________________________________ Prof. Marcos do Couto Bezerra Cavalcanti, D. Sc. ________________________________________________ Prof. Paulo Josef Hirsch, D. Sc. ________________________________________________ Prof. André Pereira, D. Sc. ________________________________________________ Prof. Serafim Fortes Paz, D. Sc. RIO DE JANEIRO, RJ – BRASIL DEZEMBRO DE 2009 ii FICHA CATALOGRÁFICA BARBOSA, ANA PIMENTEL Quem é o Cuidador Social e qual é o seu papel? / Ana Pimentel Barbosa – Rio de Janeiro: UFRJ/COPPE, 2009. XII, 110 p. 29,7 cm Orientador: Paulo Josef Hirsch Especialização (Projeto Final) – UFRJ/ COPPE/ Programa de Engenharia de Produção, 2009. Referências Bibliográficas: p. 108-110. 1. Cuidado social 2. Cuidador social 3. Mapeamento de competências I. Hirsch, Paulo Josef. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, COPPE, Programa de Engenharia de Produção. III. Quem é o Cuidador Social e qual é o seu papel? iii Agradecimentos Aos professores do MBKM, que nos possibilitaram a construção de muitos conhecimentos, ao longo do curso. Ao Prof. Marcos Cavalcanti, que sempre estimulou a busca por conhecimento e crescimento profissional, valorizando as nossas produções e os nossos passos. Ao meu Orientador, Prof. Paulo Josef Hirsch, que conseguiu “dar um norte” ao presente trabalho, sempre guiando o rumo do mesmo na melhor direção. À Mestre Doris Fonseca, pela valiosa contribuição durante o curso e, especialmente, durante o processo de produção deste trabalho. Também pela sua generosidade em doar o seu tempo e compartilhar o seu conhecimento, mesmo nos momentos de quase impossibilidade. Ao Prof. Sergio Lins, pela contribuição durante o curso e numa das fases do processo de produção deste trabalho, que foi fundamental. À Paula Salgado, que sempre coordenou o curso com muita competência e compreensão, ajudando-nos em todos os momentos. Ao Prof. Serafim Fortes Paz, que aceitou ser o parecerista do meu trabalho, mesmo com toda a falta de tempo, e o fez com muita competência e generosidade. Ao meu irmão, Emanuel Pimentel Barbosa, que sempre estimulou os meus estudos e que contribuiu bastante com os seus conhecimentos de estatística, quando da aplicação da pesquisa que consta no apêndice deste trabalho. À amiga Terezinha Monteiro Martinez, que vislumbrou, há muitos anos, o atual universo do cuidado e que muito contribuiu para a realização deste trabalho. Aos colegas de FURNAS Centrais Elétricas, que contribuíram de alguma forma com a pesquisa realizada, em especial, aos estagiários supervisionados pela Terezinha Martinez. iv À Izabel Carolina Tonini Caldas, diretora do Comitê FURNAS da Ação da Cidadania, que autorizou a realização da pesquisa numa das turmas de cuidadores. À minha terapeuta, Therezinha Rezende, que muito contribuiu – e continua contribuindo – para o meu crescimento pessoal e profissional, fazendo-me descobrir forças para enfrentar os desafios e orientando-me no caminho que tenho a percorrer. Às cuidadoras Clarisse e Martha, que cuidam da minha mãe com competência, amor e carinho, sem as quais, eu não teria a tranquilidade necessária para concluir este trabalho. Aos cuidadores – que foram meus alunos ou não – que, de alguma, contribuíram para a realização deste trabalho. A todos aqueles que torceram e continuam torcendo por mim. Muito obrigada! Ana Pimentel Barbosa v Dedicatória Dedico este trabalho a minha mãe, Aziza João, principal motivo da minha escolha do tema deste trabalho. Ela que, antes, cuidou de mim, hoje, é cuidada por mim. A vida é assim: repleta de cuidados. Ana Pimentel Barbosa vi Resumo do Projeto Final apresentado à COPPE/UFRJ como parte dos requisitos necessários para obtenção do grau de Especialista em Gestão do Conhecimento e Inteligência Empresarial. QUEM É O CUIDADOR SOCIAL E QUAL É O SEU PAPEL? Ana Pimentel Barbosa Dezembro/2009 Orientador: Prof. Paulo Josef Hirsch, D. Sc Programa: Engenharia de Produção Este trabalho estuda os fatores que têm contribuído para o aumento da demanda por cuidado, especialmente no contexto brasileiro, e o consequente surgimento do cuidador social como uma alternativa de atendimento à referida demanda. Procura investigar e definir quem é o cuidador social e qual o seu papel neste contexto. Analisa os impasses gerados por causa do surgimento deste novo personagem, investigando as possíveis causas destes impasses. Ao final, é proposto um modelo cujo objetivo é criar uma identidade da ocupação de cuidador social. Palavras Chaves: Competência – Cuidado – Cuidador Social – Envelhecimento. vii Abstract of Final Project presented to COPPE/UFRJ as a partial fulfillment of the requirements for the degree of specialist in Knowledge Management and Business Intelligence. WHO IS THE CAREGIVER SOCIAL AND WHAT IS YOUR ROLE? Ana Pimentel Barbosa Novembro/2009 Advisor: Prof. Paulo Josef Hirsch, D. Sc. Department: Industrial Engineering This work studies the factors that have contributed to the increased demand for care, especially in the Brazilian context, and the consequent emergence of social caregiver as an alternative service to that demand. It investigates and establishes who the social caregiver is and what their role he is. Analyzes the impasses generated because of the emergence of this new character, investigating the possible causes of this impasses. In the end, is proposes a model whose objective is to create an identity of the occupation of social caregiver. Key-words: Competence – Care – Social Caregiver – Aging. viii SUMÁRIO 1. Introdução/Contextualização: ............................................................................... 01 1.1. Demanda por cuidado....................................................................................... 01 1.2. Atendimento domiciliar ou Instituição asilar: eis a questão............................... 06 1.3. Os cuidadores sociais estão preparados para atender à atual demanda por cuidado?............................................................................................................ 09 2. Referencial teórico: ................................................................................................ 13 2.1. O que é cuidado? ............................................................................................. 13 2.2. O que é uma ocupação?................................................................................... 14 2.3. O que é a ocupação de Cuidador/Cuidador Social?......................................... 15 2.4. A ocupação de Cuidador Social e a profissão de Enfermagem ..................... 18 2.5. O que são competências? ................................................................................ 20 3. Diagnóstico: ............................................................................................................ 26 4. Modelo para o Mapeamento das competências da ocupação de Cuidador Social: ..........................................................................................................................32 5. Conclusões e Recomendações:............................................................................ 36 Apêndice I – Análise da pesquisa 1 – Cuidadores Sociais..................................... 39 Apêndice II – Análise da pesquisa 2 – Contratantes de Cuidadores Sociais ....... 52 Apêndice III – Análise da pesquisa 3 – Profissionais que lidam com Cuidadores Sociais ......................................................................................................................... 58 Gráficos ....................................................................................................................... 64 Tabelas ........................................................................................................................ 83 Bibliografia ................................................................................................................ 108 ix ÍNDICE DE GRÁFICOS Gráfico 1 – Perfil dos Cuidadores – SEXO....................................................................... Gráfico 2 – Perfil dos Cuidadores – IDADE...................................................................... Gráfico 3 – Perfil dos Cuidadores – ESCOLARIDADE..................................................... Gráfico 4 – Perfil dos Cuidadores – RELIGIÃO................................................................ Gráfico 5 – Perfil dos Cuidadores – Se trabalha como cuidador.................................... Gráfico 6 – Perfil dos Cuidadores – Há quanto tempo trabalha como cuidador............. Gráfico 7– Perfil dos Cuidadores – saúde ...................................................................... Gráfico 8 – Perfil dos Cuidadores – Problemas de saúde.............................................. Gráfico 9 – Experiência do Cuidador antes do curso ....................................................... Gráfico 10 – Experiência para exercer a ocupação de cuidador...................................... Gráfico 11 – Se o Cuidador pretende continuar estudando ............................................. Gráfico 12 – Se o Cuidador tem o hábito de ler/estudar por conta própria ...................... Gráfico 13 – Se o Cuidador costuma trocar ideias/experiências com outros cuidadores Gráfico 14 – O que levou o Cuidador a escolher tal ocupação ........................................ Gráfico 15 – Principais dificuldades do Cuidador para exercer tal ocupação (gráfico resumo da pergunta 18, tabela 8)................................................................ Gráfico 16 – Valores éticos citados pelos Cuidadores ..................................................... Gráfico 17 – Outros (valores éticos citados pelos Cuidadores)........................................ Gráfico 18 – Perfil da pessoa cuidada – Sexo.................................................................. Gráfico 19 – Perfil da pessoa cuidada – faixa etária ........................................................ Gráfico 20 – Perfil da pessoa cuidada – principais dificuldades apresentadas................ Gráfico 21 – Perfil dos contratantes – Sexo ..................................................................... Gráfico 22 – Perfil dos contratantes – Idade .................................................................... Gráfico 23 – Perfil dos contratantes – Escolaridade......................................................... Gráfico 24 – Perfil dos familiares (de contratantes) sendo cuidados – Idade .................. Gráfico 25 – Perfil dos familiares (de contratantes) sendo cuidados – Saúde ................. Gráfico 26 – Forma de contratação do cuidador .............................................................. Gráfico 27 – Dificuldades na contratação do cuidador, relatadas pela família................. Gráfico 28 – Se o contratante sabe quais são as atribuições do cuidador....................... Gráfico 29 – Se o contratante sabe diferenciar as atribuições do cuidador ..................... Gráfico 30 – Se o contratante considera que os conhecimentos e habilidades do cuidador são suficientes para exercer a ocupação...................................... Gráfico 31 – Valores que o contratante considera imprescindíveis a um bom cuidador.. x Gráfico 32 – Perfil dos profissionais – profissão............................................................... Gráfico 33 – Perfil dos profissionais – escolaridade......................................................... Gráfico 34 – Perfil dos profissionais – tempo de trabalho na área do cuidado ................ Gráfico 35 – Valores imprescindíveis a um bom cuidador, segundo os profissionais...... Gráfico 36 – Opinião dos profissionais quanto à escolaridade mínima do cuidador ........ Gráfico 37 – Se a ocupação de cuidador tem suas atribuições bem definidas ................ xi ÍNDICE DE TABELAS Tabela 1 – Complemento da pergunta 11 ........................................................................ Tabela 2 – Porque os cuidadores pretendem continuar estudando ................................. Tabela 3 – Como costumam trocar ideias/experiências com outros cuidadores ............. Tabela 4 – Motivo para tornar-se cuidador....................................................................... Tabela 5 – Outros motivos para tornar-se cuidador ......................................................... Tabela 6 – Do que os cuidadores mais gostam na sua ocupação ................................... Tabela 7 – Do que os cuidadores menos gostam na sua ocupação................................ Tabela 8 – Principais dificuldades do cuidador para exercer a ocupação........................ Tabela 9 – Resumo das respostas da pergunta 18 (tabela 8).......................................... Tabela 10 – Valores indispensáveis a um bom cuidador ................................................. Tabela 11 – Dados da tabela 10 resumidos ..................................................................... Tabela 12 – Perfil da pessoa cuidada. (NI = Não informado)........................................... Tabela 13 – Síntese dados da tabela 12 .......................................................................... Tabela 14 – Principais atribuições exercidas pelos cuidadores ....................................... Tabela 15 – Escolaridade dos contratantes ..................................................................... Tabela 16 – Principais dificuldades apresentadas pelas pessoas cuidadas .................... Tabela 17 – Perfil familiar cuidado – Idade ...................................................................... Tabela 19 – Dificuldades enfrentadas para a contratação de um cuidador ..................... Tabela 20 – Porque contratou um cuidador (em vez de enfermeiro ou familiar cuidar)... Tabela 21 – Como o contratante soube quais são as atribuições do Cuidador ............... Tabela 22 – Principais responsabilidades atribuídas ao Cuidador................................... Tabela 23 – Resumo da tabela 22 – Responsabilidades do Cuidador............................. Tabela 24 – O que os contratantes acham que falta aos cuidadores .............................. Tabela 25 – Valores que o contratante considera imprescindíveis a um bom cuidador .. Tabela 26 – Perfil dos profissionais – profissão ............................................................... Tabela 27 – Perfil dos profissionais – escolaridade ......................................................... Tabela 28 – Tempo que trabalha com a temática do cuidado.......................................... Tabela 29 – Principais problemas nas relações cuidador/pessoa cuidada ...................... Tabela 30 – Principais problemas nas relações cuidador/familiares da pessoa cuidada. Tabela 31 – Opinião dos profissionais sobre os conhecimentosimprescindíveis a um bom cuidador ............................................................................................... Tabela 32 – Opinião dos profissionais sobre as habilidades imprescindíveis a um bom cuidador ....................................................................................................... xii Tabela 33 – Opinião dos profissionais sobre os valores imprescindíveis a um bom cuidador ....................................................................................................... Tabela 34 – Resumo tabela 33......................................................................................... Tabela 35 – Escolaridade mínima cuidador ..................................................................... INTRODUÇÃO 1.1. Demanda por cuidado: No atual cenário mundial e – no caso mais específico, que será analisado, no Brasil – pode-se notar que diferentes fatores têm contribuído para o aumento da demanda por cuidado, especialmente para a parcela mais idosa da população. O primeiro desses fatores, diz respeito ao envelhecimento populacional, que vem aumentando significativamente nas últimas décadas. Segundo (KALACHE, 1987, p.201): “O envelhecimento da população mundial é um fenômeno novo ao qual mesmo os países mais ricos e poderosos ainda estão tentando se adaptar. O que era no passado privilégio de alguns poucos passou a ser uma experiência de um número crescente de pessoas em todo o mundo. Envelhecer no final deste século já não é proeza reservada a uma pequena parcela da população.” Nota-se, portanto, que este primeiro fator que está sendo analisado: o envelhecimento populacional, afeta a todos, indiscriminadamente. Cada país vem tentando adaptar-se a essa nova realidade de formas diferentes. A grande questão parece residir justamente aí, isto é, na forma como cada país sentirá os efeitos do envelhecimento e as possíveis soluções que cada um encontrará. Pesquisando sobre o envelhecimento no Brasil, depara-se com números bastante expressivos e que tendem a aumentar, conforme apontam os dados do IBGE (2009): “O índice de envelhecimento aponta para mudanças na estrutura etária da população brasileira. Em 2008, para cada grupo de 100 crianças de 0 a 14 anos existem 24,7 idosos de 65 anos ou mais. Em 2050, o quadro muda e para cada 100 crianças de 0 a 14 anos existirão 172,7 idosos.” Tais dados mostram que, no Brasil, a população idosa, dentro de 40 anos, será bem maior do que a população de crianças, jovens e adultos com idade inferior a 65 anos. Este aumento da expectativa de vida é decorrente dos avanços da medicina e das melhorias nas condições gerais de vida da população e, segundo o IBGE (2009), “repercutem no sentido de elevar a média de vida do brasileiro (expectativa de vida ao nascer) de 45,5 anos de idade, em 1940, para 72,7 anos, em 2008, ou seja, mais 27,2 anos de vida.” Ainda segundo a projeção feita pelo IBGE (2009), “o país continuará galgando anos na vida média de sua população, alcançando em 2050 o patamar de 81,29 anos, basicamente o mesmo nível atual da Islândia (81,80), Hong Kong, China (82,20) e Japão (82,60).” 2 O que se pode perceber, diante destes últimos dados apresentados, é que a expectativa de vida no Brasil deverá alcançar, no decorrer dos próximos quarenta anos, índices bem mais elevados que os atuais, o que exigirá mudanças significativas nas atuais estruturas de apoio e de cuidado à pessoa idosa, dentre outras mudanças que não nos cabem analisar, no momento, como a necessidade de uma reforma previdenciária, melhoria das condições da saúde pública, por exemplo. Os estudos e dados apresentados até o momento já nos dão um panorama da situação atual e fazem projeções para o futuro, dando-nos a possibilidade de prever que tipos de mudanças podem advir etc. Até aqui, o foco foi a questão do envelhecimento populacional, mas como comentado, há outros fatores responsáveis pela atual demanda por cuidados. Alguns dos fatores importantíssimos são mencionados por CAMARANO (2007), no texto: “Como na maioria dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, o envelhecimento da população brasileira tem sido acompanhado pelo envelhecimento da própria população idosa e por transformações acentuadas nos arranjos familiares. Desde os anos 1970, essa sociedade tem assistido a uma queda acelerada na fecundidade e na mortalidade nas várias idades, a mudanças no padrão de nupcialidade, expressa pelo adiamento na idade de se casar, pelo aumento no número de separações, de recasamentos e o incremento na proporção de pessoas que nunca se casam. Isto ocorre concomitantemente ao aumento generalizado da escolaridade feminina, à inserção maciça das mulheres no mercado de trabalho e a modificações nos sistemas de valores. Essas modificações podem enfraquecer os laços de solidariedade intergeracionais e já estão resultando em transformações nas formas de apoio à população idosa.” (p. 169) grifo nosso As transformações no cenário populacional brasileiro, conforme pontua historicamente CAMARANO, acima, revelam que diversos fatores contribuíram para a mudança nas formas de apoio à população idosa, conforme grifamos acima. Analisaremos cada um destes fatores. O IBGE (2009) aponta que “A fecundidade no Brasil foi diminuindo ao longo dos anos, basicamente como consequência das transformações ocorridas na sociedade brasileira, de modo geral, e na própria família, de maneira mais particular. (...) já apresentam estimativas que colocam a fecundidade feminina no Brasil abaixo do nível de reposição das Gerações (1,95 filho por mulher).” Isto significa que os nascimentos não estão sendo suficientes para repor as futuras gerações. Aliando-se este fato ao aumento da população idosa, pode-se 3 verificar que “O país caminha velozmente rumo a um perfil demográfico cada vez mais envelhecido” (IBGE, 2009). Percebe-se que o perfil da família brasileira vem mudando, nas últimas décadas, pois a emancipação da mulher e o aumento de sua escolaridade e ingresso no mercado de trabalho reduziram a disponibilidade da mesma para o cuidado dos filhos – uma vez que a tarefa de cuidar, historicamente, sempre foi atribuída à mulher. Esta nova geração de mulheres, portanto, não dispõe mais do tempo que outrora as mulheres dispunham para as tarefas domésticas. Tal fato e o aumento do custo de vida, nas últimas décadas, justificam a redução da taxa de fecundidade no Brasil. Embora ainda haja outros fatores, como citado por alguns autores, tal questão não será aprofundada aqui. Nota-se que a disponibilidade da família, especialmente da mulher – como dissemos acima – para o cuidado dos demais familiares e da casa foi reduzida, ao longo das últimas décadas. Paralelamente, como analisado no início deste trabalho, vem ocorrendo o aumento da expectativa de vida. As questões até aqui discutidas, de certa forma, podem ser resumidas no texto de CAMARANO (2007): “As perspectivas para o futuro próximo são de crescimento a taxas elevadas da população idosa e ‘muito idosa’, provocado pela entrada da coorte dos baby boomers na última fase de vida (elderly boomers) e pela redução da mortalidade nas idades avançadas. Apesar de esse crescimento estar acompanhado por uma melhora das condições de saúde desse segmento populacional, o número de idosos com fragilidades físicas e / ou mentais tende a aumentar. Além de mais numerosa, essa nova coorte será composta por mulheres com um perfil diferenciado das atuais idosas. Serão mais escolarizadas, mais engajadas no mercado de trabalho e com menor número de filhos, características compatíveis com o fato de fazerem parte da coorte que participou da revolução sexual e familiar ocorrida a partir de meados da década de 1960. Em síntese, espera- se que aumente o número de idosos dependentes de cuidados e que a oferta de cuidadores familiaresse reduza.” (p. 170) (grifo nosso) Torna-se evidente que houve um aumento da população idosa e muito idosa e, ao mesmo tempo, uma redução da oferta de cuidadores familiares. Este paradoxo que se apresenta como resultado das transformações sociais anteriormente abordadas leva-nos à seguinte reflexão proposta por (CAMARANO, 2007, p.170): “Isso levanta a questão de quem oferecerá cuidados para esse grupo populacional: a família ou as instituições? A resistência em instituições de longa permanência para idosos (ILPIs) não é uma prática comum nos países do hemisfério Sul. Historicamente, as instituições têm sido vistas com resistência e preconceito, tradicionalmente como ‘depósito de idosos’, como lugar de 4 exclusão, dominação e isolamento ou simplesmente ‘um lugar para morrer’ (Novaes, 2003). Em geral, as famílias que decidem pela institucionalização de seus idosos são vistas como praticando o abandono e tendem a experimentar forte sentimento de culpa. Os idosos de hoje nasceram numa época em que o papel da família (em especial, o da mulher) como a cuidadora dos membros dependentes era claramente estabelecido nos contratos de gênero e intergeracionais, resultando numa expectativa elevada por parte dos idosos de receberem o cuidado familiar.” (grifo nosso) O questionamento acima leva-nos à procura por respostas capazes de satisfazer esta difícil questão. Se, por um lado, a família apresenta pouca disponibilidade para prover os cuidados necessários aos idosos, por outro, surge a necessidade de provimento de tais cuidados por parte de instituições do Estado e por parte do mercado. Conforme (CAMARANO, 2007, p.174): “À medida que a família se torna cada vez menos disponível para desempenhar o papel de cuidadora de seus dependentes, crescem as demandas para que o Estado e o mercado ampliem o seu escopo de atuação.” (grifo nosso) A mesma autora também afirma que “A maior participação da mulher no mercado de trabalho, a fecundidade mais baixa e as mudanças na nupcialidade estão alterando a oferta de cuidadores.” (p. 173) (grifo nosso) Também concorda com essa opinião YAMADA (2006) ao afirmar que “A inserção da mulher no mercado de trabalho e a diminuição das taxas de natalidade vêm provocando uma redução no número de pessoas disponíveis na família para assumir o cuidado domiciliar de idosos dependentes.” (p.669) grifo nosso Nota-se, portanto, a partir das reflexões e estudos apresentados neste trabalho, até aqui, que houve um expressivo aumento da demanda por cuidado para suprir a indisponibilidade familiar. Especialmente de cuidado para pessoas idosas. E, especificamente pelo que afirma Camarano, há necessidade de o Estado ampliar seu escopo de atuação, ou seja, oferecer formas de atendimento a tal demanda. Mas, conforme já mencionado, as instituições asilares têm sido vistas com resistência e preconceito e como lugar de exclusão, isolamento etc. A grande questão passa a ser, agora, se os idosos devem ser acolhidos por instituições asilares – públicas ou privadas – ou haveria outra alternativa? Vejamos, neste momento, o que nos diz a legislação brasileira sobre essa questão, através da citação de CAMARANO e PASINATO (2004): 5 “No Brasil, a Constituição Federal de 1988 preconiza o atendimento aos idosos em seus domicílios como preferencial, em detrimento do atendimento proporcionado por instituições residenciais. Tal princípio também foi expresso na Política Nacional do Idoso (PNI) de 1994. A despeito dessas recomendações e do consenso entre os especialistas de que a manutenção do idoso em ambientes familiares é mais adequada para o seu bem-estar, reconhece-se a necessidade de estabelecer políticas públicas que possibilitem a modalidade de atendimento institucional a determinados idosos (Camarano e Pasinato, 2004).” (p.171) grifo nosso Reforçando o que a Constituição Federal preconiza e o que – segundo os autores acima, seria “consenso entre os especialistas”, a solução mais adequada seria manter os idosos em seus domicílios – também temos “O Estatuto do Idoso, sancionado em 2003, reforça a legislação anterior no que diz respeito ao cuidado do idoso, priorizando também o seu atendimento no interior da família, em detrimento do atendimento asilar.” (p.171) Antes de continuarmos as reflexões acerca da institucionalização ou não do idoso, cabe-nos diferenciar o idoso independente daquele que é considerado dependente, uma vez que as necessidades de atendimento e cuidados são diferenciadas. Para tal, encontram-se subsídios nos artigos de Úrsula Karsch, “Idosos dependentes: famílias e cuidadores” (2003) e de YAMADA, “Aspectos éticos envolvidos na assistência a idosos dependentes e seus cuidadores” (2006). Para melhor diferenciação, pode-se recorrer a KARSCH (2003, p.862) que explica: “O envelhecimento é considerado um fenômeno natural e processual que transforma pessoas adultas, saudáveis, produtivas e independentes em pessoas frágeis, vulneráveis, dependentes e muitas vezes acometidos de doenças crônicas e degenerativas que são as principais causas de morbidade, incapacidade e mortalidade do idoso em todas as regiões do mundo, inclusive nos países em desenvolvimento (OPAS, 2005).” Sendo considerado um fenômeno natural, entende-se que ser idoso não significa ser dependente. Há idosos que têm algum tipo de doença que não os torna dependentes, pois fazem praticamente todas as suas atividades de vida diária (AVD) normalmente, sem necessidade de auxílio. Há os idosos que – conforme menciona Karsch – são acometidos por doenças crônicas e degenerativas (que, não raro, levam à incapacidade) e, neste caso, tornam-se dependentes. Para estes últimos, há especial necessidade de cuidados, que serão realizados pela família ou por outros 6 meios, como instituições públicas ou privadas ou pela contratação de um enfermeiro ou de um cuidador, conforme o caso. KARSCH (2003, p. 862) também afirma que: “Estudos revelam que cerca de 40% dos indivíduos com 65 anos ou mais de idade precisam de algum tipo de ajuda para realizar pelo menos uma tarefa como fazer compras, cuidar das finanças, preparar refeições e limpar a casa. Uma parcela menor (10%) requer auxílio para realizar tarefas básicas, como tomar banho, vestir-se, ir ao banheiro, alimentar-se, sentar e levantar de cadeiras e camas, segundo Medina (1998). Estes dados remetem à preocupação por mais de 6 milhões de pessoas e famílias, e a um e meio milhão de idosos gravemente fragilizados no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2001 (IBGE, 2002).” Conforme estudos e pesquisas apontados acima, pode-se notar que uma parcela considerável dos idosos precisa de ajuda para a realização de suas atividades de vida diária (AVD). Nestes casos, um cuidador – seja ele um familiar ou não – pode dar conta do atendimento a tais necessidades. Tal número torna-se mais significativo se observado o total no Brasil, apontado pelo IBGE. Nota-se, portanto, que existe hoje uma grande demanda por cuidado e que a mesma tende a crescer nos próximos anos e décadas. Para o atendimento dessa demanda crescente, entende-se que é necessário que o Estado amplie o seu escopo de atuação, como mencionado anteriormente, e que outras formas de atendimento sejam criadas e / ou aprimoradas. Pergunta-se, então: estaria o Estado preparado para o atendimento de tal demanda? Ainda que haja uma infraestrutura pública para tal atendimento, esta seria a opção mais adequada? 1.2. Atendimento domiciliar ou Instituição asilar: eis a questão. Discutiu-se acerca do questionamento sobre quais seriam as melhores formas de atendimento ao idoso dependente. Em tal discussão, constatou-se que é “consenso entre os especialistas”, que a solução mais adequada seria manter os idosos em seus domicílios, em detrimento do atendimento por instituições asilares.Além disso, tanto a Constituição Federal, quanto o Estatuto do Idoso entendem que a manutenção do idoso em seu domicílio seria a opção preferencial e mais adequada ao seu bem estar. 7 Assim, reiterando tal discussão, segundo YAMADA (2006): “Muitas vezes em situações de dependência ou enfermidade, a assistência domiciliar é a melhor opção para a recuperação do idoso. Neste caso, os riscos de infecções secundárias, estresse e distúrbios psicoemocionais são menores do que o observado em ambiente hospitalar. Entretanto a manutenção do paciente em domicílio exige que familiares, especialmente cônjuges e filhos, assumam o cuidado, o que pode exigir a reorganização familiar.” (p.669) Pode-se constatar que o autor acima referenciado também defende a mesma opinião que os autores anteriormente citados, no que diz respeito à preferência pelo atendimento e cuidados domiciliares. Mas também já ficou evidenciado, no decorrer deste estudo, que as mudanças ocorridas na sociedade mudaram muito o perfil da família brasileira, que não dispõe de tempo e condições gerais para dispensar cuidados aos seus idosos. Desta forma, em muitos casos, mesmo havendo uma “reorganização familiar”, como propõe o autor acima, nem sempre é possível afastar a possibilidade de asilamento do idoso, pois a família não consegue dar conta de tais cuidados. Com relação a isto, KARSCH (2003) levanta importante questão: “Cuidar do idoso em casa é, com certeza, uma situação que deve ser preservada e estimulada; todavia, cuidar de um indivíduo idoso e incapacitado durante 24 horas sem pausa não é tarefa para uma mulher sozinha, geralmente com mais de 50 anos, sem apoios nem serviços que possam atender às suas necessidades, e sem uma política de proteção para o desempenho deste papel. Em países mais desenvolvidos, em que o envelhecimento populacional foi mais lento e recebeu mais atenção durante décadas, foi construída uma rede de organizações maiores e menores, que se define como community care, e cujo grande objetivo é manter o idoso em sua casa oferecendo suportes para a família e o cuidador.” (p.863) Como se sabe, a tarefa de cuidar, historicamente, é atribuída à mulher. No texto acima, a autora evidencia a necessidade de apoio – mesmo quando algum familiar cuida do idoso, no domicílio – de forma que o mesmo não fique sobrecarregado. A autora também menciona o tipo de apoio existente em países mais desenvolvidos, que oferecem suporte para a família e o cuidador. No Brasil, a realidade é bem diferente daquela existente nos países desenvolvidos e, diferentemente dos mesmos, também, o envelhecimento populacional ocorreu de forma bem mais acelerada. 8 Portanto, o entendimento geral é que “Por motivos vários, como a redução de custo da assistência hospitalar e institucional aos idosos incapacitados, a atual tendência, em muitos países e no Brasil, é indicar a permanência dos idosos incapacitados em suas casas sob os cuidados de sua família.” (Karsch, 2003, p.862) Pelos motivos já expostos, e pelo que afirma Karsch, acima, nota-se que – seja porque as instituições públicas ainda não estão preparadas para suprir a atual demanda por cuidado; seja porque o sistema se saúde no Brasil precisa melhorar; seja porque ainda há grande preconceito com relação ao asilamento; seja porque é melhor para o bem estar do idoso, seja qual for o motivo – a principal recomendação é a manutenção do idoso sob os cuidados da família. A mesma autora ainda ressalta que “A freqüência das doenças crônicas e a longevidade atual dos brasileiros são as duas principais causas do crescimento das taxas de idosos portadores de incapacidades. A prevenção das doenças crônicas e degenerativas, a assistência à saúde dos idosos dependentes e o suporte aos cuidadores familiares representam novos desafios para o sistema de saúde instalado no Brasil.” (p. 862) Com relação à questão do asilamento ou não do idoso, CALDAS (2003) também se expressa a respeito, dizendo: “No Brasil, a Política Nacional de Saúde do Idoso (Brasil, 1999), reconhecendo a importância da parceria entre os profissionais de saúde e as pessoas que cuidam dos idosos, aponta que essa parceria deverá possibilitar a sistematização das tarefas a serem realizadas no próprio domicílio, privilegiando-se aquelas relacionadas à promoção da saúde, à prevenção de incapacidades e à manutenção da capacidade funcional do idoso dependente e do seu cuidador, evitando-se assim, na medida do possível, hospitalizações, asilamento e outras formas de segregação e isolamento.” Diante do exposto neste trabalho, até o momento, pode-se perceber que a realidade brasileira é bastante diferente da existente em outros países, como já foi dito. Nela, há novos desafios que precisam ser superados. Pergunta-se, então, quem vai cuidar dos nossos velhos? Diante das questões analisadas e do contexto em que estamos vivendo, no qual passou a existir uma crescente demanda por cuidado em nossa sociedade, teve origem uma nova função/ocupação: a do CUIDADOR SOCIAL, profissional contratado 9 pela família para exercer os cuidados básicos e apoio às atividades de vida diária do idoso ou de qualquer pessoa – não necessariamente idosa. Sendo ainda recente, a função de “Cuidador” ainda é considerada como ocupação pela CBO - Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho, Emprego e Renda, não tendo reconhecimento como profissão. Observa-se, também, que o surgimento desta nova função/ocupação como possível solução e / ou minimização quanto ao atendimento da demanda existente e o crescimento contínuo de tal demanda fizeram crescer, paralelamente, a procura por tal ocupação por parte das pessoas, como forma de reinserção no mercado de trabalho. 1.3. Os cuidadores sociais estão preparados para atender à atual demanda por cuidado? Conforme já discutido anteriormente, mas cabe reforçar, no atual cenário brasileiro, “em virtude do aumento expressivo da população idosa em nosso país e a mudança estrutural da família contemporânea, surge a necessidade do cuidador domiciliário de idosos no mercado de trabalho.” (CHAVES, 2009). Reiterando tal demanda por cuidado, DUARTE (2006) também explica: “Uma das conseqüências dessas alterações foi o aumento expressivo, na comunidade, de pessoas com incapacidades (física, mental e/ou social), de diferentes níveis e com graus variáveis de dependência requerendo o auxílio temporário ou permanente de outras pessoas para continuarem a viver em suas moradias. A essas pessoas denominamos “cuidadores”. (p.37) grifo nosso CHAVES (2009) complementa o que disse anteriormente relatando saber que “(...) os cuidadores já estão desempenhando suas funções, mas com que qualidade e em que condições esse serviço está sendo prestado aos idosos? Os cuidadores possuem capacitação para tal função? Quem são essas pessoas que exercem a atividade de cuidadores domiciliários?” (CHAVES, 2009) grifo nosso Nota-se que os questionamentos apresentados no início deste capítulo também são compartilhados por outros como, por exemplo, MELLO (2008), que – referindo-se ao questionário de seu estudo – constatou que “As respostas indicaram que a maioria dos cuidadores tem a idéia de que seu cuidado depende da experiência que eles têm com os idosos, ignorando a necessidade de qualificação para tal função.” (p.267) grifo nosso 10 Conforme aponta o autor acima, para a maioria dos cuidadores, a qualidade do cuidado realizado é algo definido tão somente pela experiência. Evidentemente, não se pode ignorar a importância do conhecimento que pode ser elaborado e construído através da experiência, mas não se pode concordar que para o exercício da ocupação de cuidador não seja necessária a realização de uma boa capacitação. Para o cuidador, portanto, estar preparado para exercer tal ocupação– cujas atribuições ainda não estão devidamente descritas, apontadas – é ter experiência, é saber fazer um conjunto de tarefas com as quais ele já está familiarizado, acostumado a fazer, muitos deles, há muito tempo. Como perguntado anteriormente, “mas com que qualidade?”. Segundo o mesmo estudo, o autor destaca que “Por outro lado, poucos cuidadores, os com maior grau de escolaridade, demonstraram em suas falas a necessidade de uma preparação adequada para o cuidado de idosos, enfatizando sempre a importância de estar preparado para lidar com as doenças da velhice.” (MELLO, 2008, p. 267) grifo nosso Evidencia-se - com a análise do autor, na citação acima – que os cuidadores cujo grau de escolaridade é maior são justamente aqueles que têm o entendimento de que é necessário ter conhecimento e qualificação para o exercício da ocupação de cuidador e, evidentemente, de qualquer outra ocupação. Nota-se, ainda, que os demais cuidadores – com menor grau de escolaridade – segundo o referido estudo, atribuem demasiado valor à experiência, em detrimento do conhecimento. Seria, o “saber-fazer”, adquirido pela experiência, sobrepondo-se ao conhecimento, ou seja, ao “saber” capaz de oferecer embasamento à prática profissional. Referindo-se à pesquisa que realizou, MELLO (2008) destaca que: “Em relação ao treinamento para cuidar de idosos constatou-se que 7% (3) dos cuidadores são treinados para tal função e que 93,0% (40) dos cuidadores não tem treinamento para cuidar de idosos.” (CHAVES, 2009) O resultado da pesquisa, apresentado acima, mostra que a maioria dos cuidadores entrevistados não realizou treinamento/capacitação para o exercício da referida ocupação. O fato de a maioria dos cuidadores não ter realizado treinamento/capacitação leva-nos a concluir que os mesmos estão exercendo tal ocupação baseados apenas na experiência, como já foi dito, e no senso comum. 11 Com relação a isso, LACERDA (2008) alerta: “Para realizar o cuidado no domicílio é preciso ter conhecimento técnico e científico (e não um conhecimento do senso comum) para atender as necessidades do paciente.” (p.344) Segundo o mesmo autor: “O cuidado domiciliar tem gerado um mercado de trabalho informal composto por pessoas leigas que cuidam de forma, às vezes, pouco efetiva e com baixa qualidade.” (p.343) A questão reforçada pelo autor acima, também compartilhada pelos autores anteriormente citados, leva-nos a identificar uma grande preocupação com relação à qualidade do trabalho desenvolvido pelo cuidador e à falta de preocupação do mesmo com a sua própria capacitação para o exercício da referida ocupação. Somando-se às questões já apontadas (falta de preparo/capacitação adequada para o exercício da ocupação, excessiva valorização da experiência por parte dos cuidadores etc.), nota-se que o surgimento do cuidador no mercado, a partir da demanda identificada, passou a gerar uma espécie de estranhamento por parte de outras ocupações/profissões: os profissionais de enfermagem e os empregados domésticos (ocupam-se dos afazeres domésticos, limpeza da casa etc.). De modo geral, pode-se notar que o cuidador é comumente confundido com o profissional “empregado doméstico” e/ou com o profissional de enfermagem. Inclusive, os órgãos de classe, representativos das profissões citadas, têm se manifestado contrários ao reconhecimento da função/ocupação de cuidador como profissão porque entendem e alegam que as atribuições do cuidador são atribuições de suas respectivas áreas profissionais. Há cerca de dez anos, o autor deste trabalho leciona em turmas de cuidadores sociais – muitos destes, aliás, são ex-empregados domésticos – e tem ouvido depoimentos que reiteram tal questão. São comuns as queixas com relação aos limites da ocupação de cada um. Percebe-se, nitidamente, que as atribuições dos cuidadores não estão claras, não estão definidas, provocando, assim, o estranhamento anteriormente mencionado. Os profissionais de enfermagem têm suas atribuições bem definidas e, inclusive, reconhecimento como profissão. Os profissionais domésticos também já têm um reconhecimento como ocupação e atribuições definidas. Pode-se entender, portanto, que o foco da questão, isto é, o principal problema é que as atribuições dos cuidadores sociais não estão devidamente definidas, fazendo com que a referida ocupação seja confundida com outras. Não há, portanto, uma identidade da ocupação de cuidador social que lhe permita ser diferenciada das 12 demais ocupações. Não estando claras tais atribuições, torna-se difícil, também, uma capacitação adequada para o exercício da referida ocupação. Assim, na busca por uma possível solução para o problema identificado, nos próximos capítulos, tal questão será aprofundada. 13 2. REFERENCIAL TEÓRICO - CONCEITUAÇÕES 2.1. O que é Cuidado? Para que se possam entender melhor as questões aqui abordadas e, especialmente, entender o papel do cuidador, faz-se necessário conceituar o cuidado. Primeiramente, recorrendo-se ao dicionário AURÉLIO (1986), podem-se encontrar os seguintes significados para a palavra cuidado: “Atenção, precaução, cautela, diligência, desvelo, zelo, encargo, responsabilidade”, dentre outras. Para uma reflexão mais aprofundada acerca do significado da palavra cuidado, cabe recorrer à definição de BOFF (1999), na qual ele diz: “O que se opõe ao descuido e ao descaso é o cuidado. Cuidar é mais que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção, de zelo e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro.” (p. 33) BOFF (1999) também afirma que “(...) o ser humano é um ser de cuidado, mais ainda, sua essência se encontra no cuidado. Colocar cuidado em tudo o que projeta e faz, eis a característica singular do ser humano.” (p. 35) Analisando as afirmações de BOFF, acima, pode-se entender o “cuidado” como sendo algo inerente ao ser humano e, justamente, aquilo que o diferencia de outros seres fazendo-o verdadeiramente humano. Para ele, cuidar representa uma atitude, uma forma de ser na qual um ser humano preocupa-se com o outro, dando-lhe atenção, ocupando-se do outro e preocupando-se com o outro. Refletindo sobre a filologia da palavra cuidado, BOFF esclarece: “Outros derivam cuidado de cogitare-cogitatus e de sua corruptela coyedar, coidar, cuidar. O sentido de cogitare- cogitatus é o mesmo de cura: cogitar, pensar, colocar atenção, mostrar interesse, revelar uma atitude de desvelo e de preocupação. O cuidado somente surge quando a existência de alguém tem importância para mim. Passo então a dedicar-me a ele; disponho-me a participar de seu destino, de suas buscas, de seus sofrimentos e de seus sucessos, enfim, de sua vida.” (p. 91) 14 E ele conclui: “Cuidado significa então desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção, bom trato.” (p. 91) Para o autor, cuidado inclui duas significações básicas, ou seja, além de significar solicitude e atenção para com o outro, também significa preocupação, pois a pessoa que tem cuidado tem um envolvimento afetivo com o outro e, portanto, preocupa-se com ele. BOFF (1999) vai mais além e afirma que: “Os dois significados básicos colhidos da filologia nos confirmam a idéia de que o cuidado é mais do que um ato singular ou uma virtude ao lado de outras. É um modo de ser, isto é, a forma como a pessoa humana se estrutura e se realiza no mundo com os outros. Melhor ainda: é um modo de ser-no- mundo que funda as relações que se estabelecem com todas as coisas.” (p. 92) Portanto, cuidado pode significar uma forma de existir e conviver, ou seja, relacionar-se com todas as coisas que existem no mundo. Seria, então, a nossa atitude perante o mundo. As reflexões feitas aqui a respeito do conceito de cuidadolevam-nos ao entendimento de cuidado na esfera humana e social, abrangendo todas as áreas de conhecimento. Ele se insere em todas as áreas e, ao mesmo tempo, não pode ser “exclusividade” desta ou daquela área de conhecimento. 2.2. O que é uma ocupação? Segundo o dicionário AURÉLIO (1986), a palavra ocupação significa: ato de ocupar-se, trabalhar em algo; atividade, serviço ou trabalho manual ou intelectual realizado por um período de tempo mais ou menos longo; dentre outros significados similares a estes. O Ministério do Trabalho e Emprego – MTE, disponibiliza a versão atual da Classificação Brasileira de Ocupações - CBO, que foi instituída pela portaria ministerial nº 397, de 9 de outubro de 2002. (Site MTE, 2009) Segundo informações obtidas no site do MTE (2009), a Classificação Brasileira de Ocupações – CBO: “(...) tem por finalidade a identificação das ocupações no mercado de trabalho, para fins classificatórios junto aos registros administrativos e domiciliares. Os efeitos de uniformização pretendida pela Classificação Brasileira de 15 Ocupações são de ordem administrativa e não se estendem às relações de trabalho. Já a regulamentação da profissão, diferentemente da CBO é realizada por meio de lei, cuja apreciação é feita pelo Congresso Nacional, por meio de seus Deputados e Senadores, e levada à sanção do Presidente da República.” A atual versão da CBO vem substituir a anterior, publicada em 1994. Conforme consta no site do MTE (2009): “Desde a sua primeira edição, em 1982, a CBO sofreu alterações pontuais, sem modificações estruturais e metodológicas. A edição 2002 utiliza uma nova metodologia de classificação e faz a revisão e atualização completas de seu conteúdo.” A CBO é o documento que identifica, nomeia, atribui códigos e descreve as características das ocupações existentes no mercado de trabalho brasileiro. Segundo a CBO, por exemplo, o código da ocupação de Cuidador é 5162 (Cuidadores de crianças, jovens, adultos e idosos) e faz parte de uma “família” ou conjunto de outras ocupações similares. Especificamente, a ocupação de cuidador de idosos tem o código 5162 – 10. Conforme site do MTE (2009), “A nova versão contém as ocupações do mercado brasileiro, organizadas e descritas por famílias. Cada família constitui um conjunto de ocupações similares correspondente a um domínio de trabalho mais amplo que aquele da ocupação.” Também consta no referido site a informação de que a nova versão da CBO passou por um novo método de descrição o qual “... pressupõe o desenvolvimento do trabalho por meio de comitês de profissionais que atuam nas famílias, partindo-se da premissa de que a melhor descrição é aquela feita por quem exerce efetivamente cada ocupação.” (grifo nosso) É de fundamental importância a participação daqueles que efetivamente exercem as respectivas ocupações na reformulação das descrições das ocupações, pois, de fato, são aqueles que melhor conhecem aquilo que fazem. 2.3. O que é a ocupação de cuidador/cuidador social? Conforme o atual CBO, Livro 1 (2002), a descrição sumária da referida ocupação é: “Cuidam de bebês, crianças, jovens, adultos e idosos, a partir de objetivos estabelecidos por instituições especializadas ou responsáveis diretos, 16 zelando pelo bem-estar, saúde, alimentação, higiene pessoal, educação, cultura, recreação e lazer da pessoa assistida.” Conforme o mesmo documento (CBO, Livro 1, 2002), o código da ocupação de cuidador é “5162-10 Cuidador de idosos - Cuidador de pessoas idosas e dependentes, Cuidador de idosos institucional, Acompanhante de idosos, Cuidador de idosos domiciliar, Gero-sitter”. Objetivando aprofundar a definição sobre a referida ocupação, texto abaixo resume muito bem o que realmente acontece com relação à referida ocupação. Em tal artigo, denominado “Cuidadores: heróis anônimos do cotidiano”, MENDES (1998) explica que: “No Brasil há poucos estudos sobre cuidadores domiciliares, pois esse personagem é ainda desconhecido no cenário público. A referência para pesquisadores brasileiros, nessa área, tem sido a literatura internacional que trata da questão em sociedades diferentes da brasileira. Nos países desenvolvidos, os cuidados domiciliares já são visíveis e considerados como necessidade social, portanto, estão inscritos na esfera pública.” (p.171) Reiterando o que Mendes explica acima, KARSCH (1998) afirma que: “A figura do cuidador, alvo de estudos e pesquisas em outros países, tem sido ignorada no Brasil: pelo governo, na falta de estruturas para o auxílio de seu trabalho; pela família, devido à baixa valorização dessa função (muitas vezes concentrada em uma só pessoa)...” (p.22) Nota-se, portanto, conforme expressão dos autores acima referenciados, que no Brasil, ainda há poucos estudos sobre a ocupação de cuidador. A maioria dos textos encontrados, inclusive, refere-se mais ao cuidador familiar, ou seja, à pessoa que – tendo um familiar acometido por alguma doença que o torne dependente – passa a cuidar do mesmo. Conforme MENDES (1998): “O cuidar como atividade envolve um conjunto de ações absorventes: administrar remédios, assegurar uma dieta alimentar, efetuar a higiene pessoal, pentear o cabelo, escovar os dentes, cortar as unhas, dar banho, fazer a toalete, vestir, despir, locomover de um lugar para o outro (quarto/sala, quarto/banheiro), subir escada, sentar, levantar, deitar e realizar exercícios motores complementares à fisioterapia.” Entende-se, então, resumidamente, que o cuidador (seja um familiar ou alguém contratado para o desempenho de tal ocupação) é aquela pessoa que cuida de outra – que, na maioria das vezes, encontra-se em alguma situação de dependência – auxiliando na realização de atividades diárias, como as descritas acima. 17 Na concepção de CALDAS (1998), os cuidadores seriam classificados em “formais” e “informais”, conforme descreve: “Os cuidadores secundários seriam os familiares, voluntários e profissionais, que prestam atividades complementares. Usa-se a denominação cuidador formal (principal ou secundário) para o profissional contratado (atendente de enfermagem, acompanhante, empregada doméstica etc.) e de cuidador informal, usualmente, para os familiares, amigos e voluntários da comunidade.” (p.11) grifo nosso Embora numa descrição mais geral a autora faça referência ao termo “cuidador formal”, quando o descreve e caracteriza como “profissional contratado”, inclui em tal categoria os profissionais de enfermagem, os que a mesma denomina “acompanhantes” e os empregados domésticos. O que se pode notar é que a autora – como a maioria dos autores – não estende a sua análise acerca do papel desta nova categoria profissional em expansão: os cuidadores sociais. Estes são vistos como meros “acompanhantes”. Aliás, o foco da maioria dos estudos, com já foi dito, tem sido os cuidadores familiares. Em virtude disto, buscou-se apoio em outros autores que entendem o papel do cuidador numa esfera mais abrangente: social e humana. Assim, neste trabalho, optou-se por adotar a terminologia “cuidador social”, com base na definição de MARTINEZ (2009), que coordena o “Programa Cuidador Social” – que se destina à formação de cuidadores – do Comitê FURNAS da Ação da Cidadania, em parceria com FURNAS Centrais Elétricas. Segundo a autora: “O entendimento de cuidador social na equipe do programa é resultado tanto da experiência quanto do conjunto da literatura sobre envelhecer e cuidado. Assim o cuidador social é aquela pessoa que tem compreensão da realidade e conseqüências sociais do envelhecer, em especial, que está preparada para auxiliar as pessoas em suas necessidades cotidianas enquanto sujeito envelhecido, e que a partir daí se coloca disponível para respeitar o idoso em sua condição e atender com mais qualidade à demanda do cuidado, qualquerque seja ela, e que se identifique com o ato – humano e social – de cuidar.” (p.105) grifo nosso O autor deste estudo também entende a dimensão social do trabalho do cuidador e, por isso, destaca acima o que menciona Martinez, pois também entende 18 que a ocupação de cuidador encontra-se na esfera humana e social e não exclusivamente na área da saúde. Considera-se, inclusive, que a qualidade de vida proporcionada ou facilitada pelo cuidador pode refletir-se, evidentemente, na melhora da saúde da pessoa cuidada. O papel do cuidador acaba sendo, muitas vezes, de interlocutor. Tal papel de interlocução é mencionado por MARTINEZ (2009), quando a autora afirma que: “O cuidador social se torna uma pessoa fundamental no cuidado e/ou acompanhamento de uma pessoa com algum grau de dependência, doença ou que simplesmente necessita de auxílio nas atividades diárias. Ao compreender a dimensão humana e social de seu trabalho, poderá se transformar no melhor meio de comunicação entre o idoso, a família e/ou a equipe de saúde.” (p.110) grifo nosso Naquilo que diz respeito ao relacionamento do cuidador com a equipe de saúde, cabe, ainda, destacar o que comenta MARTINEZ (2009): “O cuidador muitas vezes acaba invisível aos olhos da sociedade, ora confundido como empregado doméstico, ora como profissional de enfermagem, não sendo atingida ainda a real compreensão de seu trabalho de apoio ao idoso, devido à falta de informação da família e da sociedade.” (p. 111) grifo nosso Com relação ao grifo acima, ou seja, a questão da não compreensão por parte da sociedade sobre o real papel do cuidador e com o fato de tal ocupação ser confundida com outras ocupações, especialmente com aquelas da área de enfermagem, pode-se notar que reside justamente aí a raiz do problema. Desta forma, tal discussão será aprofundada a seguir. 2.4. A ocupação de Cuidador Social e a profissão de Enfermagem: No Ministério do Trabalho e Emprego – MTE, a ocupação de enfermeiro tem no CBO (2002) o código: 3222 – “Técnicos e auxiliares de enfermagem que cuidam de pessoas de elevado grau de dependência.” (grifo nosso) Embora pareça evidente que a ocupação do cuidador – ainda não reconhecida como profissão – já tenha uma credencial do próprio MTE, uma vez que tem um CBO e o consequente reconhecimento como ocupação, sendo diferenciada, portanto, da ocupação de enfermagem (que tem outro código CBO), na prática, ocorrem alguns 19 conflitos, conforme já citado. Para que melhor sejam compreendidos tais conflitos, foram pesquisados alguns autores – bastante críticos, inclusive, com relação a tal questão – conforme segue. Além das questões apontadas anteriormente, LACERDA (2008), no texto abaixo, menciona a possível ilegalidade do exercício da profissão de enfermagem por parte de alguns cuidadores. Segundo o autor: “(...) os cuidadores informais aprendem a realizar procedimentos com enfermeiros ou auxiliares de enfermagem que atuam no cuidado domiciliar, e muitas vezes treinam uma pessoa para dar seqüência ao cuidado, pois a família não tem condições financeiras para manter um cuidado especializado. Este pode ser um familiar ou uma pessoa contratada pela família que não está cientificamente e nem tecnicamente capacitada. Essa situação colabora para o surgimento do cuidador informal que exercerá indevidamente e ilegalmente a profissão de Enfermagem.” (p.344) grifo nosso Chamaram à atenção as questões levantadas pelos autores aqui citados, especialmente por LACERDA (2008), pois a principal delas refere-se ao fato dos cuidadores estarem exercendo o que seria “a profissão de enfermagem”. Nota-se, portanto, uma falta de clareza e de diferenciação entre as atribuições da ocupação/profissão de enfermagem e das atribuições que podem ser exercidas pelo cuidador, ou seja, do que compete ao mesmo. LACERDA (2008), também destaca que “Como as demais profissões de livre exercício no país, a Enfermagem está regulamentada por uma lei que estabelece quem pode exercer legalmente essa profissão, e quais as qualificações necessárias: a Lei nº 7.498, denominada Lei do Exercício Profissional de Enfermagem. Nela, efetivamente, nem mesmo os técnicos e auxiliares de enfermagem poderiam prestar serviços no domicílio, como profissionais autônomos, sem uma supervisão direta ou indireta do enfermeiro.” (p.344-345) O referido autor refere-se, evidentemente, àqueles cuidadores que estariam exercendo atribuições que são inerentes à profissão de enfermagem. Neste caso, obviamente, seria uma ilegalidade tal exercício, ainda que não proposital, mas por ignorância. Sobre isso, LACERDA (2008) ressalta que “Os cuidadores informais que prestam algum tipo de cuidado no domicílio, em sua maioria não têm conhecimento de que estão exercendo ilegalmente atividades de enfermagem. 20 Dentre os 22 entrevistados, mais da metade não tem nenhum conhecimento ou nunca ouviu falar sobre os aspectos legais envolvidos em sua prática.” (p.350) LACERDA (2008), por outro lado, também reconhece que “O cuidador é a pessoa que se envolve no processo de cuidar do outro, com qualidades pessoais de forte traço de amor, mas, ainda, é relevante e necessário considerar quais as conexões dessa atividade com a categoria da profissão de Enfermagem, e quais as implicações éticas advêm do direito do cidadão por um atendimento seguro e justo.” (p.348) Assim, evidencia-se que o âmago da questão – a essência do problema – reside no fato de a ocupação de cuidador ainda não ter devidamente definidos os seus limites e possibilidades, ou seja, o que compete de fato a tal ocupação: quais as atribuições do cuidador, quais os conhecimentos que o mesmo deve possuir para o exercício da mesma e, ainda, quais valores éticos ele deve ter. Objetivando trazer mais elementos que possam contribuir para a clarificação das questões aqui propostas, além do “diálogo” realizado com alguns autores – especialistas no tema deste trabalho – também foram realizadas três pesquisas (que são apresentadas nos apêndices I, II e III) com aqueles que vivenciam (na prática) as questões discutidas neste estudo. Como bem comenta (CHAVES, 2009): “A falta de pesquisas nesta área de conhecimento agrava, ainda mais, a debilidade do serviço de cuidar, pois não sabemos quem são os cuidadores, quais são suas necessidades e dificuldades. Com o incremento das pesquisas poderemos, com base em dados brasileiros, sugerir políticas de saúde voltadas para essa problemática.” Será possível, a partir de mais estudos e pesquisas no campo do cuidar, chegar-se a um consenso no qual o Cuidador Social terá clareza do espaço que pode ocupar, sendo que os principais beneficiados serão aqueles que precisarem de cuidado. 2.5. O que são COMPETÊNCIAS? 21 Foram pesquisados alguns autores, estudiosos do referido tema, de modo que pudessem ser apresentados, neste capítulo, alguns conceitos de competência, conforme a seguir: De acordo com Fleury (2002), tal tema teve origem em 1973, com a publicação do artigo Testing for competence rather than inteligence, que significa “testar a competência em vez da inteligência), de autoria de David McClelland, renomado psicólogo da Universidade de Harvard. Ainda conforme Fleury (2002), McClelland define competências como características pessoais que podem levar a um melhor desempenho, a uma performance superior. Essas características pessoais seriam aptidões (talento natural), habilidades (aplicação prática de um talento existente) e conhecimento (o saber necessário para a realização de algo). Segundo Dutra (2004) e também Fleury (2002), as competências humanas podem ser entendidas como um conjunto de conhecimentos (saber), habilidades (saber fazer) e atitudes (saber ser), que geraria uma melhor capacidade de “entrega”, por parte das pessoas de uma organização.Para Le Boterf (2003, p.40), “A competência é uma disposição para agir de modo pertinente em relação a uma situação específica”. Ela seria resultante da combinação de recursos pessoais (conhecimentos, habilidades, qualidades, experiências, capacidades cognitivas, recursos emocionais etc.) com os recursos do meio (livros, tecnologia, bancos de dados, relacionamentos etc.). Para este autor, “O profissional não é aquele que possui conhecimentos ou habilidades, mas aquele que sabe mobilizá-los em um contexto profissional”. (p.48) grifo nosso Segundo Le Boterf (2003), o profissional não pode saber tudo. O que ele precisa, de fato, é “... saber mobilizar na hora certa não somente seus próprios conhecimentos e habilidades, mas também os de suas redes profissionais.” (p.53) Com o que Le Boterf chama de “recursos do meio”, acima mencionado, o indivíduo pode complementar os seus recursos pessoais, quando não possuir todos os saberes de que precisa para a realização de determinada ação. A competência consiste, justamente, em saber combinar esses recursos para produzir uma ação competente. Para ele, “O saber combinatório está no centro de todas as competências.” (LE BOTERF, 2003, p.13). Resende (2004) propõe a classificação das competências em: competências pessoais, competências Essenciais e Estratégicas, Competências de Gestão e Competências Organizacionais. Focaremos, neste trabalho, as que ele denomina 22 “competências pessoais”, uma vez que nosso objetivo aqui não é estudar o ambiente corporativo. Assim, conforme Resende (2004, p.32), “Competências pessoais reúnem as aptidões, as habilidades, os comportamentos (posturas) manifestos, e ainda o domínio e aplicação de conhecimentos”. Também há outra definição do mesmo autor que explica: “Competência é aplicação de conhecimentos, experiências, habilidades, características pessoais, valores (cabe aqui o “e/ou”), com obtenção de resultados práticos ou alcance de objetivos.” (RESENDE, 2008, p.62) (grifo nosso) De acordo com Resende (2008, p.41 e 42, respectivamente), “A habilidade destina-se a qualificar formas ou maneiras mais permanentes de aplicar conhecimentos, ainda que diferentes...” ou então, “De forma bem simples, podemos definir habilidades como uma maneira melhor de agir, aplicar conhecimentos, expressar-se, fazer as coisas.” A aptidão, segundo Resende (2008, p.42): “É o único dos três componentes da competência – no sentido amplo – que é inato, que se ‘nasce com’. Ou seja, já nascemos com as aptidões. Ou pelo menos com a tendência ou vocação para tê-las.” Segundo ele, as aptidões se dividem em três tipos: Mentais (inteligência abstrata, raciocínio lógico, raciocínio espacial, memória etc.), Emocionais (alegria, tristeza, amor, saudade, compaixão, empatia etc.) e Físicas (visão, olfato, sensibilidade tátil, reflexo, resistência ao cansaço etc.). Segundo o autor, “Conhecimentos e habilidades são adquiridos ou desenvolvidos após o nascimento. Aptidões são geneticamente herdadas e depois desenvolvidas.” (RESENDE, 2008, p.42) O conceito de competência surgido na literatura francesa nos anos 90 procurou ir além do conceito de qualificação. Um de seus mais expressivos autores, Philippe Zarifian (2008) define competência como: “A competência profissional é uma combinação de conhecimentos, de saber-fazer, de experiências e comportamentos que se exerce em um contexto preciso. Ela é constatada quando de sua utilização em situação profissional, a partir da qual é passível de validação. Compete então à empresa identificá-la e fazê-la evoluir.” (p.66) Para Zarifian (2008) a competência diz respeito à competência de um individuo (não é a qualificação de um emprego, de uma função) e ela se manifesta e também é avaliada quando mobilizada em uma situação profissional, ou seja, a forma como o indivíduo enfrenta essa situação está na essência da competência do mesmo. 23 Nota-se que na concepção de Zarifian, competência está relacionada à capacidade do indivíduo de tomar iniciativas e de ir além daquilo que está “prescrito”, “determinado”, de compreender e ter o domínio das situações novas com as quais se depara no trabalho e, especialmente, de assumir responsabilidade sobre elas. A concepção de competência de Zarifian (2008) é apoiada em três formulações: Primeira: “A competência é “o tomar iniciativa” e “o assumir responsabilidade” do indivíduo diante de situações profissionais com as quais se depara.” (p.68); Segunda: “A competência é um entendimento prático de situações que se apóia em conhecimentos adquiridos e os transforma na medida em que aumenta a diversidade das situações” (p.72); Terceira: “A competência é a faculdade de mobilizar redes de atores em torno das mesmas situações, é a faculdade de fazer com que esses atores compartilhem as implicações de suas ações, é fazê-los assumir áreas de co-responsabilidade.(p. 74)” Serão descritas, a seguir, as três formulações acima mencionadas: Na primeira formulação, pode-se perceber que há uma mudança fundamental na organização do trabalho, que é a não-prescrição, ou seja, o espaço para a autonomia e para a “automobilização do indivíduo”, como diz o autor. Para ele, cada palavra “tem importância em si mesma”, conforme explicado abaixo: Assumir: para o autor, a competência “é assumida”, pois ela é resultado de um “procedimento pessoal do indivíduo”, uma vez que o mesmo aceita assumir determinada situação de trabalho e, principalmente, ser responsável por ela. Tomar iniciativa: a palavra iniciativa deriva do verbo iniciar e quer dizer começar alguma coisa. Portanto, tomar iniciativa é uma ação que modifica algo que já existe. Então, pode-se inferir que ela também pode significar “introduzir algo novo”, começar alguma coisa ou, ainda, criar. Zarifian (2008) elucida o acima com o seguinte exemplo: “devo enfrentar um problema-qualidade já identificado. Tomo a iniciativa de aplicar tal procedimento, em vez de outro, em função da experiência que tenho desse tipo de situação, e do conhecimento de procedimentos possíveis que posso mobilizar. Assumir responsabilidade: a palavra responsabilidade vem do latim spondere, que significa responder por. No campo profissional, significa que o 24 empregado/trabalhador responde pelas iniciativas tomadas e pelas consequências das mesmas. Segundo Zarifian (2008), “A responsabilidade é, sem dúvida, a contrapartida da autonomia e da descentralização das tomadas de decisão. Não se trata mais de executar ordens (de cuja pertinência não nos sentimos responsáveis), mas de assumir em pessoa a responsabilidade pela avaliação da situação, pela iniciativa que pode exigir e pelos efeitos que vão decorrer dessa situação.” Ele continua “E essa responsabilidade é particularmente importante na medida em que toca outros humanos.” (p.70) (grifo nosso) Nota-se a preocupação do autor em diferenciar a responsabilidade sobre coisas da responsabilidade relacionada a seres humanos. No caso do trabalho do cuidador – que lida intimamente com seres humanos – tal destaque dado à responsabilidade é muito importante. Sobre situações: “(...) o comportamento em uma situação não é, nunca, efetivamente prescritível: não se pode prescrever o comportamento que o indivíduo deve adotar porque este comportamento faz intrinsecamente parte da situação. Da mesma maneira que não se pode separar o trabalho da pessoa que o realiza, não se pode separar a situação do sujeito que a enfrenta.” (ZARIFIAN, 2008, p.71) Na segunda formulação: “... não se trata de empregar um conhecimento prévio, mas de saber mobilizá-lo judiciosamente em função da situação. É por esse motivo que a dimensão puramente cognitiva deve ser associada à dimensão compreensiva. Entender uma situação é saber avaliá-la levando em conta “comportamentos” de seus constituintes, sejam eles materiais (máquinas) ou humanos.” (ZARIFIAN,2008, p.72) Segundo o autor, essa “dimensão compreensiva” atinge seu maior alcance na interação social, quando o indivíduo tem que interpretar comportamentos humanos “à luz da compreensão, mesmo parcial, das razões que os motivam.” Que se apóia em conhecimentos adquiridos: segundo o autor, para haver o exercício da competência é preciso que haja conhecimentos adquiridos em situações anteriores que poderão ser mobilizados em novas situações de trabalho. “É preciso então admitir uma dimensão de incerteza constante nos conhecimentos possuídos, e permanecer sempre aberto a contestações e a novas aprendizagens.” (p.73) E os transforma: Para Zarifian (2008, p.73), “... para que a bagagem de conhecimentos do indivíduo se transforme e aumente é preciso que a situação com 25 que ele se defronta tenha sido plenamente explorada do ponto de vista do que há a aprender com ela.” Quanto maior for a diversidade das situações, mais intensamente serão modificados os conhecimentos: “O indivíduo aprende melhor e mais rápido na medida em que deve fazer em face de situações variadas.” (ZARIFIAN 2008, p.73) A constante desestabilização dos esquemas cognitivos já adquiridos (que estão acomodados) permite que o indivíduo esteja aberto à aprendizagem do novo. E a terceira formulação: mobilizar redes de atores: situações mais complexas tendem a exceder as competências de um único indivíduo. Exige, portanto, que cada indivíduo “precise de competências que não possui e de auxílios que se baseiam na solidariedade da ação, auxílios que corroborarão eticamente suas tomadas de iniciativa.” (ZARIFIAN 2008, p.74) Quando um indivíduo percebe que uma situação mais complexa extrapola as suas competências, ele deve buscar o auxílio daqueles que possam dividir com ele a solução para aquela situação, deve buscar a complementação das suas competências no outro, através de redes sociais. Compartilhar as implicações de uma situação: “(...) Participar das implicações de uma situação profissional possibilita dar um sentido coletivo às ações, sentido que por si só remete a um futuro comum.” (ZARIFIAN 2008, p.74) Assumir campos de co-responsabilidade: já foi mencionada a importância do “assumir responsabilidade” para definir a competência. “Apesar disso, as exigências das redes de ajuda mútua e as intervenções coletivas em torno de situações de evento, assim como a participação nas implicações de atividades profissionais, colocam a questão da co-responsabilidade.” (ZARIFIAN 2008, p.74) De maneira geral, os conceitos de competência – brevemente apresentados aqui, exceto o último, que foi mais detalhado – têm pontos comuns, são complementares ou divergem bastante em alguns pontos. Para fundamentar a proposta de mapeamento de competências da ocupação de cuidador social apresentada neste trabalho, foram combinados alguns dos conceitos apresentados. 26 3. DIAGNÓSTICO: No primeiro capítulo deste trabalho, foi contextualizada a temática do cuidado no cenário brasileiro atual e foram realizadas reflexões sobre algumas questões que revelam o surgimento e crescente aumento da demanda por cuidadores sociais, a partir dos estudos de diversos autores e de dados estatísticos de entidades oficiais. A partir daí, no mesmo capítulo, foram levantados alguns questionamentos – baseado em autores como CHAVES (2009), que questiona, por exemplo, a qualidade e as condições em que a prestação de serviços de cuidado social vem sendo prestados, se os cuidadores possuem capacitação adequada para tal função, quem são essas pessoas que exercem a atividade de cuidadores domiciliários etc.; e MELLO (2008) que contesta o fato da maioria dos cuidadores entenderem que seu cuidado depende somente da experiência, ignorando, desta forma, a necessidade de qualificação para o exercício de tal função. Convém, ainda, destacar o que LACERDA (2008) adverte com relação ao fato de haver necessidade de conhecimento técnico e científico (e não somente um conhecimento do senso comum) para o exercício dos cuidados domiciliares. Segundo o mesmo, “O cuidado domiciliar tem gerado um mercado de trabalho informal composto por pessoas leigas que cuidam de forma, às vezes, pouco efetiva e com baixa qualidade.” Ainda no primeiro capítulo, diante do que expressam os autores citados no mesmo, comentou-se que o surgimento do cuidador no mercado, a partir da demanda identificada, passou a gerar uma espécie de estranhamento por parte de outras ocupações/profissões: os profissionais de enfermagem e os empregados domésticos. Até o momento, podemos identificar dois problemas bastante importantes neste contexto: a evidente falta de capacitação do cuidador para o exercício da referida ocupação e esse estranhamento entre ocupações. Pensava-se que até aí já havia sido identificado “O problema”. Ainda não. Os dois citados são, apenas, segundo este diagnóstico, consequências do problema que pode ser a raiz da questão. Para fundamentar este diagnóstico, além dos estudos teóricos citados, realizou-se um estudo, composto por três pesquisas com as pessoas que vivenciam o cotidiano do cuidado (prática): cuidadores, contratantes de cuidadores e profissionais (assistentes sociais, pedagogos, psicólogos, professores que atuam em cursos de cuidadores e estagiários de serviço social, cujo campo de estágio é relacionado ao trabalho do cuidador). 27 Com relação à falta de capacitação dos cuidadores: Em tal estudo foi perguntado aos cuidadores (pesquisa 1): Você acha que a experiência era suficiente para exercer a ocupação? Esta pergunta foi respondida por 78% (36) do total de 46 participantes, pois 10 pessoas (22%) não responderam (gráficos 9 e 10). Analisando qualitativamente as respostas dos questionários, verifica-se que os 24 respondentes (52%) que declararam “sim” na pergunta nº 10, ou seja, que tinham experiência como cuidador antes de iniciar o curso atual, são os mesmos respondentes que declararam “não” na pergunta nº 11, ou seja, que acham que a experiência que possuíam não era suficiente para exercer a ocupação de cuidador. O que se pode apreender de tais dados, é que estes 52%, embora já estivessem trabalhando como cuidadores e, portanto, tendo alguma experiência (65% da turma tem experiência, que varia de 2 meses a 21 anos), reconhecem que somente tal experiência não é suficiente para o exercício da ocupação de cuidador. Para os que responderam “não”, foi perguntado: o que você acha que faltou? Conforme tabela 1, verifica-se que um dos respondentes, embora bastante resumido, expressou bem a sua opinião e, talvez, a de todos: “faltou tudo”. Na fala dos demais, em sua maioria, notam-se expressões sinônimas e/ou semelhantes, todas relativas à necessidade de aprendizado, tais como: conhecimento, informação (provavelmente querendo dizer conhecimento), técnica, aprender a, preparo, esclarecimento, saber, conhecer etc. Um deles expressou “o conhecimento que com o curso estou tendo agora”. Isto é, ele – assim como os demais – reconhece que somente agora (que estão fazendo um curso) estão encontrando o que “estava faltando”: conhecimento. Ao serem consultadas algumas pessoas que contratam cuidadores (pesquisa 2), perguntamos: Quais as principais dificuldades que se enfrenta ao ter que contratar um Cuidador, em sua opinião? Ao serem analisados os relatos constantes na tabela 19, que se encontram classificados e resumidos no gráfico 27, pode-se verificar que as principais dificuldades apontadas pelos contratantes com relação ao momento em que se precisa contratar um cuidador para cuidar de um familiar resumem-se em 5 principais fatores (vide pesquisa). Dentre eles: “dificuldade para conseguir um cuidador realmente capacitado para o exercício da referida ocupação” e, ainda, “imposição de rotinas e outros por parte do cuidador chocando-se com as orientações 28 da família”.
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