Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS 1 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ...................................................3 PAULO FREIRE, 100 ANOS DE VIDA O EDUCADOR DE TODOS OS TEMPOS: PAULO FREIRE 100 ANOS DE VIDA 1921-2021 ............................................. 6 Tereza Gamba* NO CENTENÁRIO DE PAULO REGLUS NEVES FREIRE: LEGADO, REINVENÇÃO E COMPROMISSO COM O FUTURO .............. 8 Ana Lúcia Souza de Freitas* UM BREVE MAPEAMENTO DA PRESENÇA DA EDUCAÇÃO POPULAR E DA EJA NAS CARTAS DE CARLOS RODRIGUES BRANDÃO ..............................................15 Fernanda dos Santos Paulo* ORIENTAÇÃO EDUCACIONAL ORIENTAÇÃO EDUCACIONAL: A VIA DA CONSCIÊNCIA CONSTRUÍDA ...................28 Naima Kepes Ayub* O PERCURSO DE FORMAÇÃO DO OE EM TEMPOS DE PANDEMIA ..........................32 Silvana Corbellini* PRINCÍPIOS TEÓRICOS NO TRABALHO DA ORIENTAÇÃO EDUCACIONAL PARA UMA CONSTRUÇÃO DE UMA PRÁXIS ...............39 Michele Miranda Azevedo* ENTRE IDAS E VINDAS: MEMÓRIAS DE UM MESTRADO VISCERAL ...........................43 Locimar Massalai* O PAPEL DA ORIENTAÇÃO EDUCACIONAL NAS TRANSIÇÕES ESCOLARES DA EDUCAÇÃO BÁSICA ................................47 Aline Freire de Souza Aguiar* SENDO ÁRVORE NO CHÃO DA ESCOLA: EXPERIÊNCIA DA ORIENTAÇÃO EDUCACIONAL NA EMEIEF PROF. ALMIR ZANDONADI DE JI-PARANÁ, RO ..............50 Maria das Graças Melo* ENCONTROS E DESCOBERTAS NA ORIENTAÇÃO EDUCACIONAL PELO BRASIL ....................................................54 Marina Cantanhêde Rampazzo* OS CÍRCULOS DE CONSTRUÇÃO DE PAZ COMO FERRAMENTA DE FACILITAÇÃO DE DIÁLOGO ENTRE O AMBIENTE ESCOLAR E O AMBIENTE FAMILIAR ...........................57 Cristian Reginato Amador* Isabel Cristina Martins Silva** ORIENTADOR EDUCACIONAL: QUAL O CAMINHO? .............................................64 Noelci Prestes Cunha* EDUCAÇÃO - TEMAS RELACIONADOS A PRESENÇA E A IMPORTÂNCIA DO PAPEL DA PEDAGOGA NO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL.......................................68 Shayane Andriele Porto da Silva* Karine Santos** QUANDO LEITURA E ESCRITA PROVOCAM ESTUDANTES A REGISTRAREM SUAS MEMÓRIAS: PARTICIPANDO DAS OLIMPÍADAS DE LÍNGUA PORTUGUESA EM TEMPOS DE PANDEMIA ..........................74 Ivanil Magalhães da Silva* Locimar Massalai** O AVANÇO DA MEGAMINERAÇÃO NO PAMPA E A FORMAÇÃO DAS REDES DE RESISTÊNCIA NO LICENCIAMENTO AMBIENTAL ............................................78 Júlio Picon Alt* Camila Dellagnese Prates** Sérgio Botton Barcellos*** PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS2 PROSPECTIVA 42 2021/2022 - Revista de Orientação Educacional ISSN 1677-8065 Projeto gráfico e diagramação marcon.brasil Comunicação Direta - (51) 3221.7878 O conteúdo dos artigos é de responsabilidade dos respectivos autores. ASSOCIAÇÃO DOS ORIENTADORES EDUCACIONAIS DO RIO GRANDE DO SUL Fundada em 09 de março de 1966 SEDE PRÓPRIA: AV. ALBERTO BINS, 325- CJ./73/74 CEP:90030-142 - PORTO ALEGRE-RS FONE/ FAX: 51 3221-3487/ 32271306 Email: aoergs@aoergs.org.br - http://aoergs.blogspot.com Diretora de Planejamento: Marlene Petry Diretora Administrativa: Rosangela Maria Diel Diretora de Comunicação Social: Eudócia Garcia Andrade Diretoras Financeiras: Ana Alice Viana Rodrigues Resende Sonia Maria Barbosa da Silva Diretora de Formação: Ângela Maria Caldeira Burgos Diretora de Publicação: Manoelita Tabille Manjabosco Suplentes da Diretoria: Edi Medianeira Pereira Costa Lucia Regina Oliveira de Souza Conselho Fiscal Titulares: Andrea Muxfeldt Valer Erlita Cardoso Franco Maria Salete Hintz Suplentes do Conselho Fiscal: Denise Arina Francisco Isabelle Moreira Raupp Silvana Vargas da Silva Conselho Deliberativo Titulares: Adriano Borsatto Aline Rodrigues Harlacher Clarice de Fátima Fiuza Suplentes do Conselho Deliberativo: Lourdes Alaides Kalata Biberg Márcia Maria Heinen Oliveira Valquíria Jesus da Silva http://www.marconbrasil.com.br PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS 3 APRESENTAÇÃO A edição de número 42, da Revista PROSPECTIVA, uma das pu-blicações da Associação dos Orientadores Educacionais do Rio Grande do Sul, foi construída num contexto mar- cado pela Pandemia da Covid-19 e suas consequências. Decretada em 11 de março de 2020, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a Pandemia do Coronavírus vem desafiando a humanidade a repensar questões elementa- res. Os desafios impostos pela crise sanitária, além de exacerbar problemas sociais e eco- nômicos já existentes, também propiciaram outras reflexões, tais como: o lugar do direito à vida; a discriminação racial e geográfica; a desigualdade no acesso à saúde; o desequi- líbrio entre os imperativos da saúde pública e os direitos individuais. No Brasil, assistimos o completo descaso com a vida das pessoas. Mais de 600 mil mortos, um número estarrecedor! Segundo o epide- miologista Pedro Hallal, com base nos dados do estudo EPICOVID, de cada cinco mortes pela Covid-19, quatro poderiam ter sido evitadas se tivéssemos seguido as mesmas políticas adotadas por outros países que res- peitaram as orientações da comunidade cien- tífica. Sabe-se que a política que despreza a ciência faz parte da versão fundamentalista do neoliberalismo, modelo econômico defen- dido e seguido pelo atual governo brasileiro. Entre a luta pela vida, pela saúde e a bus- ca intensa e desesperadora pela cura, não podemos esquecer uma questão delicada e imperiosa que tem se apresentado neste momento: as consequências na saúde mental das pessoas que vivenciaram o luto e que estão sofrendo com a depressão causada pela perda de seus entes queridos. Importante destacar o papel da Ciência e, na esteira dela, as pesquisas defendendo a vida (orientações, tratamentos, vacinas), em contrapartida aos discursos negacionistas, cujo poderio simbólico se materializou em morte. A desinformação resultou em nefastas consequências, principalmente sobre a popu- lação mais empobrecida deste país. E, nesse cenário tão cruel, como não lembrar- mos Paulo Freire, mentor de uma Educação para a consciência?! Transformadora, liber- tadora, que não muda o mundo, mas ajuda a mudar as pessoas, ensinando-as a ler melhor, pensar melhor, julgar melhor o que está acon- tecendo, agir melhor e coletivamente. Assim, pessoas que sabem ler palavras, conseguem ler o mundo, sabem como fazer um mundo melhor, e contribuem para que mais pessoas sejam felizes. Ou seja: A escola não muda o mundo. A escola muda as pessoas. As pessoas mudam o mundo. Este período pandêmico que alterou de forma significativa a nossa forma de ser e estar no mundo, também atingiu as escolas. Os edu- cadores, em geral, foram desafiados em suas práticas, tendo que transformar sua própria casa em espaço escolar e os recursos tecno- lógicos, no principal meio para a construção de aprendizagens. Em se tratando da Educação no contexto da Pandemia, a UNESCO recomendou que as instituições possibilitassem o acesso a programas de ensino à distância e a platafor- mas e recursos educacionais abertos. Assim, escolas e professores poderiam chegar até os alunos de forma remota, na tentativa de diminuir o impacto negativo sobre o processo de ensino e aprendizagem historicamente desigual nas escolas públicas. Neste novo modelo de ensino, ganhou destaque o trabalho desenvolvido pelos Orientadores Educacionais nas escolas, arti- culando e mobilizando ações frente às diver- sas demandas que foram se apresentando. Apresentação PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS4 Coube a estes profissionais promover a ma- nutenção de vínculos entre escola e comuni- dade, construir estratégias de busca ativa, de oferta de escuta assertiva e de encaminha- mentos à rede de atendimento psicossocial. Em termos de critérios pedagógicos, foram os Orientadores Educacionais os responsáveis por promover reflexões acerca dos modelos de currículos, das metodologiasadotadas e dos critérios de avaliação, levando em conta as condições impostas por um momento atípico. Os diversos temas, relatos e reflexões regis- trados na edição de número 42, assim como ocorreu na edição de número 41, retratam a trajetória de resiliência, resistência e de esperança das educadoras e dos educadores, diante das adversidades deste tempo. A primeira seção desta edição, Paulo Freire, 100 anos de vida, além de prestar uma homenagem ao patrono da educação bra- sileira, traz reflexões pertinentes acerca da importância de suas obras e de sua práxis na atual conjuntura. No primeiro texto, Tereza Gamba, uma das idealizadoras da Revista PROSPECTIVA, afir- ma que a melhor forma de homenagear Paulo Freire no seu centenário de vida, é destacan- do sua memória histórica, que ilumina não só o nosso país, mas o mundo, pois seu legado deixou uma marca definitiva para a educa- ção pública como processo transformador e emancipador do ser humano. Ana Lúcia Souza de Freitas, professora, pes- quisadora e Cofundadora do Coletivo Leitoras de Paulo Freire na França, escreve uma Carta Pedagógica para homenagear Paulo Reglus Neves Freire no centenário de seu nascimen- to. Em sua carta, faz o convite a quem se reconhece nas iniciativas que somam esforços nesta celebração, para um diálogo sobre sua vida e obra. O texto de Fernanda Santos Paulo apresenta a Educação Popular e a Educação de Jovens e Adultos (EJA) em documentos inéditos (cartas, cadernos, agendas, diários) do acervo pessoal de Carlos Rodrigues Brandão, entre os anos de 1981 e 1995. Professor, pesquisador e edu- cador popular desde 1961, Brandão foi muito amigo de Paulo Freire. Juntos, trabalharam em movimentos e experiências de Educação Popular e essa relação se reflete no desen- volvimento da pesquisa, especialmente na articulação da interpretação dos documentos em estudo com referenciais freireanos. Já na segunda seção, Orientação Educacional, apresentam-se textos com temas mais específicos, relacionados ao ser e fazer da Orientadora e do Orientador Educacional, os quais abordam a reflexão acerca da Orientação Educacional entrela- çada na questão mais ampla da sociedade, na medida em que ela cumpre um papel de relevância social nas escolas. O texto de Naima Kepes Ayub, professora de Filosofia, Orientadora Educacional, ex-presi- dente e ex-diretora da AOERGS, escrito na década de 70, foi resgatado para esta edição devido à recorrente necessidade de se jus- tificar a importância destes profissionais da educação nas escolas. O percurso da formação no curso de especia- lização em Orientação Educacional na moda- lidade à distância, oferecido pela Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), iniciado em 2019 e concluído em 2020, é abordado pela profes- sora Silvana Corbellini. Michele Miranda Azevedo, explicita os princí- pios teóricos que permeiam sua práxis como Orientadora Educacional. No texto Entre Idas e Vindas: memórias de um mestrado Visceral, de Locimar Massalai, Orientador Educacional de Ji-Paraná/RO, o autor faz o exercício de rememorar toda a trajetória do seu mestrado. Em meio à narra- tiva, Locimar aponta alguns questionamentos referentes ao propósito e ao direcionamento da produção de conhecimento. PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS 5 O papel da Orientação Educacional nas transições escolares da Educação Básica, compreendendo como o ambiente pode ser preparado para que o estudante perpasse pela transição escolar com confiança em tudo que traz na sua bagagem de aprendizagem e o papel da Orientadora e do Orientador Educacional neste contexto, é o tema sobre o qual discorre Aline Freire de Souza Aguiar. Maria das Graças Melo faz uma narrati- va da sua experiência como Orientadora Educacional na rede municipal de Ji-Paraná, Rondônia. O texto Encontros e descobertas na Orientação Educacional pelo Brasil, da Orientadora Marina Cantanhêde Rampazzo, da Gerência de Orientação Educacional do Distrito Federal, é um registro histórico da trajetória inicial da constituição do Fórum Nacional em Defesa da Orientação Educacional. Cristian Reginato Amador e Isabel Cristina Martins Silva apresentam como tema central de seu artigo, a utilização dos Círculos de Construção de Paz como ferramenta apta a facilitar o diálogo nas escolas e aproximar a comunidade familiar e a comunidade escolar às questões relativas ao efetivo desenvolvi- mento dos estudantes no processo educacio- nal, uma das atribuições dos profissionais da Orientação Educacional. A partir do questionamento Orientador Educacional: qual o caminho?, Noelci Prestes Cunha, pautado no contexto de sua experi- ência, faz reflexões referentes à identidade dos Orientadores Educacionais. Para o autor, ainda existe uma interpretação errônea desta função, que contrapõe o que aponta Mirian P. S. Z. Grinspun, quando destaca o papel do Orientador Educacional em ajudar seus alunos na formação de uma cidadania crítica na escola, na sua organização e na realização de seu Projeto Político Pedagógico. Por fim, na seção Educação - temas re- lacionados, temos o texto de Shayane Andriele Porto da Silva, que analisa a pre- sença de pedagogas nas equipes técnicas mínimas de referência dos serviços de acolhi- mento, estabelecida pela Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único da Assistência Social (NOB-RH/SUAS), o que evidencia o papel e a importância dada à função de pedagoga no acolhimento institucional. Ivanil Magalhães da Silva e Locimar Massalai relatam sua experiência na participação da 7ª edição das Olimpíadas de Língua Portuguesa. Segundo os autores, através desta vivência, foi possível mover muito mais estratégias para atrair e alcançar os alunos, de modo a envolvê-los no processo de leitura e de produção textual, encarando os desafios das escolas públicas, agora ainda mais escanca- rados pela Pandemia. Os impactos da mineração na região sul do RS, no bioma Pampa, por meio de dois empreendimentos em fase de licenciamen- to, enfatizando as resistências locais aos projetos, incluindo o Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH), na busca de jus- tiça ambiental é o assunto do artigo de Júlio Picon Alt, Camila Dellagnese Prates e Sérgio Botton Barcellos. Se nada ficar dessas páginas, algo, pelo menos, esperamos que permaneça: nossa confiança no povo. Nossa fé nos homens e na criação de um mundo que seja menos difícil de amar. (Paulo Freire, em Pedagogia do Oprimido) Boa leitura! PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS6 PAULO FREIRE, 100 ANOS DE VIDA O EDUCADOR DE TODOS OS TEMPOS: PAULO FREIRE 100 ANOS DE VIDA 1921-2021 Tereza Gamba* Um ano muito especial, não só para os brasileiros, mas mundial, pois celebra 100 anos do maior educa- dor de todos os tempos. A importância do seu legado nos instiga a continuar lutando por uma educação pública de qualidade, inclusiva e socialmente referen- ciada. A melhor forma de homenageá-lo é destacar sua memória histórica, iluminando não só nosso país, mas o mundo. Seu legado tem uma marca definitiva para a educação pública, como processo transfor- mador e emancipador do ser humano. Ele mesmo afirma: “Ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho. Nós nos educamos mutuamente, mediatizados pelo Mundo.” No capítulo inacabado de Cartas Pedagógicas, Freire faz referência ao índio Pataxó, assassinado em Brasília, cujo nome estava anotado em um pedaço de papel ao lado do manuscrito. Este capítulo fazia parte do livro” Cartas Pedagógicas”, não foi concluído. Três dias depois ele morreria, dia 2 de maio de 1997, durante uma entrevista, no escritório de sua casa. Indignação. Esta foi a palavra que marcou seu sentimento, no seu último texto escrito. O Jornal Folha de São Paulo, edição de 11 de maio, lamenta a impossibilidade de refazer este país, com “adolescentes brincando de ma-tar”. Segundo a edição do Jornal, Paulo Freire escrevia seus textos a mão e depois o digitava no computador, pela secretária Lílian Contrera. Paulo Freire nasceu em 19 de setembro de 1921 em Recife. Formou-se em Direito, aos 26 anos de idade. A partir da experiência de ensinar português em diferentes escolas secundárias, passou a estudar o processo da transmissão da língua, criando um método próprio de alfabetização. Em 1963 assumiu a direção do Plano Nacional de Educação que previa alfabetizar 16 milhões de adultos, num prazo de 4 anos, tornando-se Patrono da Educação Brasileira. Com o golpe Militar de 1964, deixou o país. No exílio, como já nos referimos, percorreu o mundo marcando sua presença e seus ensinamentos. Paulo Freire era uma pessoa humilde, porque rico em sabedoria de luz. Escreveu e publicou 25 livros em 35 idiomas. Elevou o Brasil internacionalmente, assim como todos os países por onde marcou sua presença. Só voltou do exílio em 1979, quando começou a anistia no país. Foi homenageado várias vezes no exterior, especialmente pela UNESCO. Em 2018, 50 anos da publicação da “Pedagogia do Oprimido” a UNESCO o homenageou como “Patrimônio da Humanidade”. Este livro “Pedagogia do Oprimido” ele escreveu no Chile, em 1968, tendo também tra- balhado no Governo Chileno. Em Santiago há um importante Centro Paulo Freire que já o visitamos. Ele também fez parte do Governo da Guiné Bissau, na África sobre a qual ele escreveu um livro que o possuo. Conheci Guiné Bissau em 1980. Tudo nela lembrava Paulo Freire, tanto as livrarias como a população. Todas as suas obras escritas no exílio, não en- travam no Brasil. Então, tendo que ir a Buenos Aires, busquei nas livrarias as suas obras e arrisquei trazer o livro, Pedagogia do Oprimido, uma das suas importan- tes obras, mas não podendo trazê-lo, copiei algumas páginas que as coloquei em meio as minhas roupas, na mala, para atravessar a fronteira. A Pedagogia do Oprimido é o seu maior legado de indignação: * Orientadora Educacional, uma das mentoras da Revista PROSPECTIVA, participou da Diretoria Central da AOERGS, atualmente faz parte do Conselho Editorial. Integra As Equipes Docentes, movimento internacional de leigos católicos, educadores da escola pública. PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS 7 (...) Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brin- cando de matar gente, ofendendo a vida. Se a Educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda. Se a nossa opção é progressista, se estamos a favor da vida e não da morte, da equidade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio da consciência com o diferente e não de sua negação, não temos outro caminho senão viver plenamente a nossa op- ção. Encarná-la, diminuindo assim a distancia entre o que dizemos e o que fazemos. Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a vida, explorando os outros, discriminan- do o índio, o negro, a mulher não estarei ajudando meus filhos a ser sérios, justos e amorosos da vida e dos outros. No seu livro Pedagogia e Autonomia, ele diz: Ensinar exige apreensão da realidade. O melhor ponto de partida para estas reflexões é a inconclusão do ser humano de que se tornou consciente. Somos os únicos seres que, social e historicamente, nos tornamos capazes de aprender. Por isso, somos os únicos em que aprender é uma aventura criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico do que me- ramente repetir a lição dada. Aprender para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito. Toda a prática educativa demanda a existência de sujeitos, um que ensinando aprende, outro, que aprendendo ensina. A importância da politização está em não poder ser neutra. (...) Como professor, se minha opção é progressista e venho sendo coerente com ela, se não me posso permitir a ingenuidade de pensar-me igual ao edu- cando, de desconhecer a especificidade da tarefa do professor, não posso, por outro lado, negar que meu papel fundamental é contribuir positivamente para que o educando vá sendo o artífice de sua formação com a ajuda necessária do educador. Se trabalho com crianças, devo estar atento à difícil passagem ou caminhada da heteronomia para a autonomia, atento à responsabilidade de minha presença que tanto pode ser auxiliadora como pode virar perturbadora da busca inquieta dos educandos; se trabalho com jovens ou adultos, não menos atento devo estar com relação a que o meu trabalho possa significar como estímulo ou não à ruptura necessária com algo de- feituosamente assentado e à espera de superação. Primordialmente, minha posição tem de ser a de respeito à pessoa que queira mudar ou que recuse mudar. Não posso negar-lhe ou esconder-lhe minha postura mas não posso desconhecer o seu direito de rejeitá-la. Em nome do respeito que devo aos edu- candos não tenho porque me omitir, porque ocultar minha opção política, assumindo uma neutralidade que não existe. Esta omissão do professor em nome do respeito ao aluno, talvez seja a melhor maneira desrespeitá-lo. O meu papel, ao contrário, é o de quem testemunha o direito de comparar, de escolher, de romper, de decidir e estimular a assunção deste direito, por parte dos educandos. (... ) Para nós, Orientadores Educacionais, Paulo Freire significa uma luz iluminando nossa ação educativa junto à todos os educadores, como orientadores da educação que somos. REFERÊNCIAS FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 22ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ______. Pedagogia da Esperança: Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. ______. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessá- rios à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. ______. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000. PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS8 NO CENTENÁRIO DE PAULO REGLUS NEVES FREIRE: LEGADO, REINVENÇÃO E COMPROMISSO COM O FUTURO Ana Lúcia Souza de Freitas* Paris, 10 de novembro de 2021. A quem se reconhece nas iniciativas que somam esforços para celebrar o centenário de Paulo Freire “[...] cada geração de educadores críticos deve redescobrir o trabalho de Freire para se reconectar à longa história de lutas educacionais contra a exploração e a dominação” (APPLE, 2017, p.52). Escrevo esta Carta Pedagógica para homenagear Paulo Reglus Neves Freire no centenário de seu nasci- mento (1921-2021), convidando, a quem se reconhece nas iniciativas que somam esforços nesta direção, para o diálogo sobre sua vida e obra. Emprego seu nome próprio por extenso com o intuito de chamar atenção para a amplitude do legado que nos cabe conhecer, reinventar e pactuar compromisso com o futuro, em diálogo com as próximas gerações. Este convite propõe considerarmos, inicialmente, a amplitude do legado de Paulo Freire, nem sempre reconhecida e valorizada. Também propõe a reflexão sobre o compromisso com o conhecimento e a reinven- ção de seu pensamento pedagógico, reconhecendo que o ano do centenário será um marco histórico em relação aos estudos que o precedem. Além disso, compartilha a compreensão de que o tema das Cartas Pedagógicas se destaca entre as atividades realizadas em homenagem a Paulo Freire, pois se apresenta como um convite ao diálogo, por escrito. A atualidade das reflexões que compartilho resulta da experiência docente no ensino superior, marcada pela permanente reinvenção do legado de Paulo Freire, em articulação com a escola e outros espaços educati- vos. A escrita expressa o desejo de ampliar o diálogo e, para tanto, se apresenta como “provoc-ação”, ou seja, pretende ser mobilizadora da reflexão/ação política e pedagogicamente intencionada, sem deixar de reco- nhecer o valor da emoção que a constitui. Paulo Freire, declarado como patronoda educação brasileira desde 2012, é uma referência nacional e in- ternacionalmente reconhecida na história da educação. A lei federal sancionada pela então presidenta Dilma Roussef expressa tal reconhecimento, ao mesmo tem- po que incita controversos posicionamentos. Não por acaso, além de muito estudado, é também mitificado ou reduzido a slogans, além de provocar reações diversas e adversas. Lamentavelmente, vivemos um período, desde a última eleição presidencial, cuja ênfase tem sido resistir ao descaso de um governo que tem como * Doutora em Educação com estudos de Pós-Doutorado em Pedagogia Crítica. Pesquisadora convidada da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) Campus Jaguarão, integrando o Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas, Avaliação e Gestão da Educação/GEPPAGE.Cofundadora do Coletivo Leitoras de Paulo Freire na França. E-mail: 0311anafreitas@gmail.com . PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS 9 projeto “expurgar Paulo Freire”. Todavia, diante deste contexto, o estudo da vida e obra do patrono da edu- cação brasileira se fortalece como ato de resistência e o convite para o diálogo sobre seu legado se torna ainda mais relevante. Paulo Reglus Neves Freire, nascido em Recife, tornou-se um cidadão do mundo. Tomando como ponto de partida o trabalho com educação de adultos, tornou-se presença imprescindível no campo da peda- gogia crítica. O conhecimento de sua história de vida ganha especial relevância para a contextualização do estudo de seu pensamento se considerarmos o modo como exerceu uma autocrítica permanentemente. Sua escrita é reveladora do processo dialógico por meio do qual vai atualizando seu pensamento, buscando coerentemente exercer as ideias que persegue. Não por acaso, o filósofo gaúcho Ernani Maria Fiori escreve o prefácio da obra Pedagogia do oprimido – Aprender a dizer a sua palavra – partindo da seguinte afirmação: “Paulo Freire é um pensador comprometido com a vida: não pensa ideias, pensa a existência.” (FIORI, 1987, p.9). Paulo Freire menino; Paulo Freire alfabetizador na experiência de Angicos; Paulo Freire andarilho da utopia no tempo do trabalho no Conselho Mundial das Igrejas; Paulo Freire docente do ensino superior no retorno ao Brasil e Paulo Freire gestor educacional na cidade de São Paulo, são algumas das tantas facetas que revelam os múltiplos Paulo Freire (TORRES, 2001). Os diversos momentos de sua história de vida repercu- tem numa produção teórica com diferentes ênfases e peculiaridades evidenciadas no conjunto de sua obra, ao mesmo tempo que apresentam uma concepção de educação que se adensa no decorrer da experiência e se consolida como referência por meio de suas pedagogias: Pedagogia do oprimido (FREIRE, 1987); Pedagogia da Pergunta (FREIRE; FAUNDEZ, 1985); Pedagogia da esperança (FREIRE, 1992); Pedagogia da autonomia (FREIRE, 1996) e Pedagogia da indig- nação (FREIRE, 2000). Ou seriam diferentes facetas da fundante Pedagogia do oprimido? Enfim, múltiplas são as formas que sua presença política e pedagó- gica permanece viva na experiência de educadoras e educadores que nele se inspiram e se referenciam na luta por justiça social, para a qual uma educação problematizadora e libertadora é imprescindível. A respeito da amplitude do pensamento de Paulo Freire, uma exemplar referência é a escrita de Rosa Maria Torres – reconhecida educadora popular equato- riana – em seu artigo Os múltiplos Paulo Freire. A autora toma como ponto de partida o depoimento do próprio educador sobre sua insatisfação quanto ao modo como muitas leituras desconsideram o movimento de seu pensamento. Nas palavras da autora: Mistificado por uns, demonizado por outros, incom- preendido por muitos, Paulo Freire frequentemente não se sentia reconhecido nas versões de si mesmo, as quais, citando seu pensamento eram desenvolvi- das pelos teóricos e práticos, setores progressistas e setores reacionários, no mundo inteiro. Várias vezes referiu-se aos seus críticos e aos seus seguidores dizendo que localizassem historicamente as suas obras, reconhecessem a evolução de seu pensamen- to e sua própria autocrítica, que acompanhassem a sua trajetória mais recente e que lhe permitissem, de uma vez por todas, ter o direito a continuar pen- sando, aprendendo e vivendo além de suas obras e, particularmente, além de Educação como prática da liberdade (1967) e Pedagogia do oprimido (1969), duas das suas obras mais conhecidas, nas quais muitos seguidores e críticos o deixaram virtualmente suspenso (TORRES, 2001, p.231). A reflexão de Rosa Maria Torres, feita há duas déca- das, é bastante oportuna para o reconhecimento sobre a amplitude do legado de Paulo Freire no contexto do centenário de seu nascimento. Lamentavelmente, as celebrações ocorrem mediante a conjuntura da pande- mia da Covid-19, aliada à danosa atitude negacionista do governo brasileiro, na qual já contabilizamos mais de 600.000 mortes. Assim, vivemos um tempo de vidas marcadas pelas inumeráveis perdas de familiares e amigos, além das perdas de emprego e das conquis- tas de direitos e tantas expressões de retrocesso do processo democrático. O contexto pandêmico acirrou desigualdades e evidenciou como, mesmo diante de uma situação pública de tal relevância, os interesses exclusivamente econômicos podem se sobrepor ao sentido da vida como um valor inalienável. Por outro lado, as circunstâncias da pandemia também gestaram ações coletivas de resistência e solidariedade para enfrentar a nova configuração das dificuldades. No âmbito educacional, o assombro instaurado pela demanda do ensino remoto emergencial, sem o PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS10 devido apoio de políticas educacionais específicas, transformou-se em esforço coletivo das escolas e suas/seus educadoras/es para a criação de ativida- des virtuais e a busca de novas formas de interação com as/os estudantes. Assim, as ações de compar- tilhamento, para além do âmbito institucional, redi- mensionam o próprio sentido do trabalho coletivo. Também acontecendo neste contexto, a celebração do centenário de Paulo Freire contou com uma infini- dade de atividades realizadas quase exclusivamente de modo virtual. Este é um aspecto importante a ser considerado. Se por um lado, as atividades realizadas virtual- mente restringiram a proximidade física que permite o calor do abraço, assim como as múltiplas formas de manifestação de cumplicidade, por outro, proporciona- ram alguns diferenciais a serem valorizados. Entre ou- tros, a realização do diálogo em maior escala, levando em conta pelo menos dois aspectos que ampliaram a abrangência das participações: a expansão geográfi- ca e a flexibilidade temporal. A expansão geográfica se tornou um diferencial visto que a conexão virtual permitiu aproximar sujeitos sem que a distância física se tornasse um empecilho. A flexibilidade temporal se configurou um diferencial em função do modo como a disponibilização das atividades em plataformas online e redes sociais viabilizaram acessos síncronos e as- síncronos. Assim, o diálogo exercido em maior escala repercutiu em vários aspectos, tais como a visibilidade dos estudos realizados, a configuração de relações anteriormente não imaginadas e a “provoc-ação” de curiosidades epistemológicas sobre o pensamento freireano em diferentes áreas de conhecimento e es- paços de atuação. Do ponto de vista imediato, é evidente que o con- texto da pandemia repercutiu nas relações cotidianas de trabalho, com implicações para a saúde física e mental das/os professoras/es. Além do risco das ati- vidades presenciais, a configuração do ensino remoto emergencial acarretou tensionamentos e situações estressantes diante da multiplicação de demandas relacionadas à realização das atividades virtuais e à criação de condições de acesso aos/às estudantes. Diante de tais circunstâncias que marcaramo ano do centenário, as homenagens a Paulo Freire, organizadas prioritariamente de modo virtual, deflagraram um amplo movimento de compartilhamento de encontros que proporcionaram exercer, conforme já referido, o diá- logo em maior escala. Assim, de muitas maneiras, as celebrações do centenário constituíram contrapontos às circunstâncias da pandemia, atribuindo visibilidade à presença de Paulo Freire em diferentes contextos educativos, fomentando esperança e fortalecendo o sentido coletivo do compromisso com o conhecimento e a reinvenção de seu legado. Deste modo, o crescente movimento de estudos e a diversidade das produções que emergem no ano do centenário fazem esperançar quanto ao compromisso com o futuro. Esta compreensão corrobora a afirmação do educador Michael Apple, empregada como epígrafe desta Carta Pedagógica “[...] cada geração de educado- res críticos deve redescobrir o trabalho de Freire para se reconectar à longa história de lutas educacionais contra a exploração e a dominação” (APPLE, 2017, p.52). Sem dúvida, o ano do centenário ratificou a atualidade de Paulo Freire como referência às práticas de resistência na luta por uma educação libertadora, contra todas as formas de opressão, em favor da justiça social. Dito de outra forma, reiterou a importância do conhecimento e permanente reinvenção de seu legado enquanto compromisso coletivo, em diálogo com as próximas gerações. Pelo exposto, o ano do centenário será um marco histórico em relação aos estudos que o precedem. Com certeza teremos um fértil campo de estudos relacionados a mapear a abrangência da produção emergente neste período, em diferentes formas de expressão. Sem a pretensão de fazer um efetivo le- vantamento, destaco alguns exemplos para elucidar quão fecunda e diversa está sendo a produção de conhecimento relacionada ao pensamento de Paulo Freire no ano do centenário. Refiro-me às incontáveis atividades realizadas em forma de lives, webnários, aulas abertas etc que disponibilizadas virtualmente seguem contribuindo, de modo assíncrono, para conectar experiências e incentivar novas iniciativas de estudos. Também se evidencia um conjunto significativo de Dossiês Temáticos em homenagem a Paulo Freire, publicados em periódicos online, compartilhando estudos e pesquisas com diferentes PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS 11 ênfases e proposições. Além disso, chama atenção a diversidade de publicações coletivas de e-books, dis- ponibilizados gratuita e eletronicamente, relacionando o pensamento de Paulo Freire a diferentes temas da atualidade, tais como educação ambiental, educomu- nicação, fake news, entre outros. De modo bastante peculiar, os e-books produzidos no ano do centenários também se caracterizaram como publicações coletivas que compartilham a amorosidade da escrita de cartas dedicadas a Paulo Freire. A produção de Cartas a Paulo Freire é uma boni- teza singular do ano do centenário. As escritas são tão amorosas quanto densas em relação à denúncia do tempo que estamos vivendo. São convidativas à leitura vagarosa e reflexiva, em diálogo com o pensamento freireano. A riqueza das escritas a ele dedicadas diz respeito, entre outros aspectos, ao modo como as leituras da realidade, feitas de modo denso e parti- cular por diferentes sujeitos, se complementam em relação às denúncias que realizam e ao modo como freireanamente exercem o ato político de esperançar. As autorias são diversas e se identificam ao afirmar a relevância de Paulo Freire na história de vida e forma- ção de muitas educadoras e educadores que hoje são referência em diferentes espaços de atuação, como se evidencia nas seguintes publicações Cartas a Paulo Freire: escritas por quem ousa esperançar (SOUSA, 2021a; 2021b; 2021c); 100 Cartas para Paulo Freire de quienes pretendemos Enseñar (VERGARA, 2021); Cartas para Paulo Freire: escritos para esperançar (SILVA; FIGUEIREDO, 2021). A abundância das produções reunidas nestas publicações é um indicativo da presença do legado de Paulo Freire, cujo conteúdo merece ser amplamente compartilhado, cuidadosamente estudado e tomado como fonte de inspiração para seguir o compromis- so com sua permanente reinvenção. Levando em conta a crescente produção de materiais online sobre o pensamento freireano no ano do centenário, será este um marco relevante em relação aos estudos que o precedem. Os materiais produzidos neste período são relevantes fonte de estudos, sugerindo múltiplas possibilidades. Entre elas, um estudo sobre o signifi- cativo crescimento das produções disponíveis online sobre o tema das Cartas Pedagógicas. A expressão, empregada por Paulo Freire em seus últimos escritos (VIEIRA, 2018), se reinventa em diferentes experiên- cias que somam esforços para concretizar o potencial emancipatório que lhe é intrínseco. Com o intuito de contribuir nesta direção, destaco a seguir algumas das produções relacionadas ao XXII Fórum de Estudos: Leituras de Paulo Freire, evento que se realiza anualmente e de forma itinerante do Rio Grande do Sul (FREITAS, 2020a). Após mais de duas décadas contando com a realização consecutiva de encontros anuais e presenciais, suspenso no ano de 2020 em função do distanciamento social durante a pandemia da Covid-19, o evento realizou-se de modo totalmente virtual, de 20 a 22 de maio deste ano. Na modalidade a distância, o Fórum se diferen- ciou quanto à produção e disponibilização de vídeos mediante a criação de um canal próprio, na plataforma do YouTube. Nesta edição do evento, as Cartas Pedagógicas ganharam relevância tanto como forma de inscrição de trabalhos quanto como tema de estudos. Resultam da experiência coletiva na XXII edição do evento algumas produções que contribuem para adensar a reflexão a este respeito. Além do e-book com os Anais, publicizando trabalhos nesta modalidade de escrita, foram realizadas 03 lives sobre o tema das Cartas Pedagógicas, em atividades que precederam o evento. A figura a seguir dá pistas para realizar buscas nesta direção. PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS12 Figura: Lives que precederam o XXII Fórum1 Fonte: Elaborado pela autora. 1 Os links correspondentes a cada uma das atividades e encontram-se no canal do Fórum de Estudos: Leituras de Paulo Freire no YouTube. Ano 2020 - Live com Freire - Cartas Pedagógicas: experiências de reinvenção na formação com educadores/as - Disponível em: https://m.youtube.com/watch?v=mwLPvV3d4uU&t=462s. Ano 2021 - Pré-Fórum UFFS - Por onde andam as Cartas Pedagógicas? - Disponível em: https://m.youtube.com/ watch?v=tbFp90bmXFk&t=1997s. Ano 2021 - Pré-Fórum UNISC - Registro e Cartas Pedagógicas - Disponível em: https://m.youtube.com/watch?v=5q1SYSOq8qI. PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS 13 A inédita disponibilização online da experiência do Fórum permitirá sem dúvida realizar o diálogo em maior escala, conforme referido anteriormente. De modo especial, poderá contribuir para despertar curiosidades e incentivar o conhecimento do legado de Paulo Freire acerca das Cartas Pedagógicas. Este é também o sentido desta escrita dedicada a quem se reconhece nas iniciativas que somam esforços para celebrar o centenário de Paulo Freire. Merece desta- car, o emprego de letras maiúsculas é uma forma de chamar atenção para a expressão, concebendo-a como um nome próprio do legado de Paulo Freire e, por este motivo, considerando que o convite à escrita de Cartas Pedagógicas é também um convite para manter viva a presença de Paulo Freire em nossas experiências. Espero que sintam-se animados/as a seguir o diá- logo a este respeito, de diferentes formas, inclusive por meio da escrita. Por isso, antes de concluir comparti- lho a sugestão de cinco apontamentos para esboçar uma Carta Pedagógica (FREITAS, 2020b), desta vez, apresentando-os em forma de perguntas para apoiar a auto-organizaçãoem relação à escrita, conforme segue. 1. Qual a experiência/reflexão que você deseja com- partilhar com sua Carta Pedagógica? 2. Quem você escolhe como destinatárias/os? 3. Que título você propõe para desafiar a curiosidade sobre o tema/foco da escrita? 4. Qual sua principal motivação para o desenvolvi- mento do conteúdo do texto? 5. Que “provoc-ações” sua Carta Pedagógica apre- senta para a continuidade do diálogo? Embora numeradas, as perguntas não indicam uma sequência a ser seguida, mas dizem respeito a alguns elementos a serem conjuntamente considerados, va- lorizando a escrita como processo. Neste sentido, a elaboração de uma Carta Pedagógica pode promover a reflexão pessoal e a organização do próprio pen- samento, em diálogo consigo mesmo/a. Além disso, quando publicizadas - compartilhadas publicamente ou publicadas - ampliam possibilidades de diálogo. Por fim, reforço o convite à escrita sugerindo, desde já, a participação na XXIII edição do Fórum de Estudos: Leituras de Paulo Freire, que ocorrerá em maio de 2022 na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). O ano que vem – um ano de eleição presidencial – será provavelmente mais promissor; é possível que as cir- cunstâncias permitam retomar a realização de eventos acadêmicos presenciais e que o legado de Paulo Freire continue fomentando acalorados encontros nos quais se renova a esperança para energizar a luta que continua. Encerro com uma citação de Paulo Freire cujo significado se adensa a cada nova leitura. Escrever, para mim, vem sendo tanto um prazer profundamente experimentado quanto um dever irrecusável, uma tarefa política a ser cumprida. (...) escrever não é uma questão apenas de satisfação pessoal. Não escrevo somente porque me dá prazer escrever, mas também porque me sinto politicamente comprometido, porque gostaria de convencer outras pessoas, sem a elas mentir, de que o sonho ou os sonhos de que falo, sobre que escrevo e porque luto, valem a pena ser tentados. (FREIRE,1994, p.15-16). Despeço-me, como de costume, deixando um forte abraço freireano, na expectativa de prosseguir o diálogo, de diferentes formas, inclusive com Cartas Pedagógicas. REFERÊNCIAS APPLE, Michael Whitman. A educação pode mudar a sociedade? Tradução de Lilian Loman. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. FIORI, Ernani Maria. Aprender a dizer a sua palavra. In: FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 22ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 9-21. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 22ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ______. Pedagogia da Esperança: Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. ______. Cartas à Cristina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. ______. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessá- rios à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. ______. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000. FREIRE, Paulo; Faundez, Antônio. Por uma Pedagogia da Pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS14 FREITAS, Ana Lúcia Souza de. Andarilhagens de uma educadora pesquisadora: Cartas Pedagógicas e outros registros de participação no Fórum de Estudos Leituras de Paulo Freire. São Paulo: BT Acadêmica; Porto Alegre: Poiesis & Poiética Casa Publicadora, 2020. _____ . Leituras de Paulo Freire: Uma trilogia de re- ferência. 2ª ed. ampliada. Nova Iorque: Editora BeM, 2020b. E-book Kindle. SILVA, André Gustavo Ferreira da; FIGUEIREDO. Allan Diêgo Rodrigues. Cartas para Paulo Freire: escritos para esperançar. Recife, PE – Centro Paulo Freire de Estudos e Pesquisa, 2021 [livro eletrônico ]. Disponível em: https://www.centropaulofreire.com.br/arquivos/ CartasParaPauloFreireEscritosParaEsperancar.pdf Acesso: 10 out 2021. SOUSA, Cidoval Morais de. (Coord); COSTA, A. R. F. da et al. (Edit); OLIVEIRA, J. & CABRAL, A. (Ilustr). Cartas a Paulo Freire: escritas por quem ousa espe- rançar - Campina Grande: EDUEPB, 2021a, 464 p. Disponível em: http://eduepb.uepb.edu.br/e-books/ Acesso: 10 out 2021. SOUSA, Cidoval Morais de. (Coord); COSTA, A. R. F. da et al. (Edit); OLIVEIRA, J. & CABRAL, A. (Ilustr). Cartas a Paulo Freire 2: escritas por quem ousa esperançar. Campina Grande: EDUEPB, 2021b, 413 p. Disponível em: http://eduepb.uepb.edu.br/e-books/ Acesso: 10 out 2021. SOUSA, Cidoval Morais de. (Coord); COSTA, A. R. F. da et al. (Edit); OLIVEIRA, J. & CABRAL, A. (Ilustr). Cartas a Paulo Freire 3: escritas por quem ousa esperançar. Campina Grande: EDUEPB, 2021c, 666 p. Disponível em: http://eduepb.uepb.edu.br/e-books/ Acesso: 10 out 2021. TORRES, Rosa Maria. Os múltiplos Paulo Freire. In: ARAÚJO FREIRE, Ana Maria (Org.). A pedagogia da libertação em Paulo Freire. São Paulo: Editora Unesp, 2001, p. 231-242. VERGARA, Francisco Gárate (Coord). 100 Cartas para Paulo Freire de quienes pretendemos Enseñar. Santiago do Chile: Talleres LOM, 2021, 356 p. Disponível em: https://ariadnaediciones.cl/nueva/index. php?option=com_content&view=article&layout=edi- t&id=192 Acesso: 10 out 2021. VIEIRA, Adriano Hertzog. Cartas Pedagógicas (verbe- te). In: STRECK, Danilo; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José (orgs.). Dicionário Paulo Freire. 4. ed. rev. amp. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018, p. 75-76. PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS 15 UM BREVE MAPEAMENTO DA PRESENÇA DA EDUCAÇÃO POPULAR E DA EJA NAS CARTAS DE CARLOS RODRIGUES BRANDÃO Fernanda dos Santos Paulo* Resumo: O artigo analisa a presença da Educação Popular e da Educação de Jovens e Adultos (EJA) em Cartas de Carlos Rodrigues Brandão, através de uma pesquisa documental. As categorias apresentadas originaram da relação entre as cartas de Brandão e Educação Popular. As Correspondências analisadas se constituem no movimento de resistência emancipatória de setores progressistas da sociedade. Nesse sentido, pode-se dizer que a Educação Popular no Brasil foi um movimento de luta pelo direito à educação de qualidade social e a EJA se constituiu uma das lutas políticas da Educação Popular. As Cartas são consideradas como pedagógicas e como documentos históricos que contribuem para a historicidade da Educação Popular e da EJA, especialmente a partir de um material inédito, ainda não publicizados. São destacados temas presentes nas Cartas em diálogo com referenciais da Educação Popular e da EJA, os quais se constituem em territórios de resistência. Palavras-chave: Educação Popular. Educação de Jovens e Adultos; Carlos Rodrigues Brandão; Cartas Pedagógicas. Pedagogia freiriana. INTRODUÇÃO Este texto apresenta a Educação Popular e a Educação de Jovens e Adultos (EJA) em cartas de Carlos Rodrigues Brandão, entre os anos de 1981 e 1995. O estudo é parte do projeto de pesquisa financiado pelo CNPq, inserindo-se no campo da história da educação, em especial da Educação Popular. O projeto analisa a história da Educação Popular em documentos inéditos (cartas, cadernos, agendas, diários) do acervo pessoal do educador Carlos Rodrigues Brandão, assentado em Poços de Caldas/Minas Gerais. A análise das cartas utiliza-se do recurso metodoló- gico de análise documental. Para Cellard (2008, p. 296), documento é “tudo o que é vestígio do passado, tudo o que serve de testemunho, é considerado como docu- mento ou ‘fonte’”. Os documentos podem ser dos mais variados tipos (escritos ou não), incluindo jornais, diários, cartas, gravações, fotografias, filmes, mapas, etc. (GIL, 2008). Em nosso caso, utilizamos cartas (correspondên- cias) de um intelectual brasileiro, da Educação Popular, o educador Carlos Rodrigues Brandão. Segundo Lüdke e André (1986), a partir da análise documental, conseguimos estudar e analisar documen- tos buscando identificar informações acerca de um determinado tema e de questões problematizadoras. Assim sendo, a análise foi constituída pela escolha do recorte temporal, da garimpagem documentale * Doutora em Educação (2018), no Programa de Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e Mestra em educação pelo Programa de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em Educação Popular e Movimentos Sociais. Graduação em Pedagogia e Filosofia. Militante do Movimento de Educação Popular, da Associação de Educadores populares de Porto Alegre (AEPPA)e do Fórum de Educação de Jovens e Adultos do Rio Grande do Sul (FEJARS). Atualmente é professora-pesquisadora permanente dos Cursos de Mestrado e Doutorado do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC). Pesquisa Educação Popular nas suas diferentes dimensões (histórica, filosófica, epistemológica e política) e em contextos escolares e não escolares. E-mail: Fernanda.paulo@unoesc.edu.br PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS16 exame do material. Foram criadas tabelas com dados referentes às cartas (emissor, destinatário, data, local e assunto). A interpretação dos resultados é qualitativa, escolhendo não somente a codificação e a quantidade da presença dos termos (Educação Popular e da EJA) nas cartas. Utilizamos, também, o contexto das cartas (quem escrevia, período da escrita, local, temática, etc.). A categorização é advinda do texto e contexto das correspondências. O tratamento dos resultados (a interpretação crítica) deu-se com base nos referenciais freireanos, articulando os documentos e suas relações. Bardin (1979) nos coloca como desafio desvendar o conteúdo latente (explícito e implícito) que os docu- mentos possuem. O conjunto de documentos, composto por 257 cartas, foram o material empírico. Destas cartas, 81 trataram da Educação Popular e 12 da EJA, com termos explícitos (palavras-chave). Outras tratam do tema sem utilizar essas expressões, mas com palavras aproximadas, como: alfabetização popular, trabalho popular, aprender com o povo, trabalho sério com pesquisa, pesquisa com camponeses, Nicarágua: o analfabetismo será totalmente erradicado, etc. A análise documental, por meio da análise de conteúdo partiu da seguinte questão: Qual a presença da Educação Popular e da EJA nas cartas de Carlos Rodrigues Brandão escritas entre os anos de 1981 e 1995? CONTEXTUALIZANDO A EDUCAÇÃO POPULAR NO CENÁRIO BRASILEIRO Relacionar a educação às concepções sociais, políticas e culturais de cada momento histórico para compreender a Educação Popular nos dias de hoje requer tomá-la como um fenômeno situado e datado na história da educação de alguns países da América Latina1, tendo o Brasil como um foco de origem (BRANDÃO, 2002, p.139). De acordo com Brandão (2002), ‘Educação Popular’ é um termo com diferentes nuances e seu significado varia conforme o tempo histórico, assim com essas sin- gularidades. Ele contribui para nos ajudar a situarmos a Educação Popular no Brasil. Nas suas palavras, os movimentos em que uma alternativa de projeto cultural, 1 Para Brandão, “a história da educação dirigida às classes populares na América Latina não é linear”(1986, p.79). através da educação, tomou um rosto identidário da Educação Popular ou vizinho dela, foram: a) as escolas anarquistas de e para os trabalhadores (década de 1920); b) a luta pela escola pública no país (década de 1930); c) Educação Popular como cultura popular “dos anos 60”; d) a educação do e através dos MPs; e) a proposta de educação pública das autodenominadas administrações populares de governos municipais e estaduais no país, hoje em dia (2002, p.143). Cabe ressaltarmos que “[...] os acontecimentos dos anos sessenta/setenta constitui apenas o seu momento mais notável, por enquanto. Este olhar quer ver e dizer o seguinte: a Educação Popular não foi uma experiência única” (BRANDÃO, 2002, p. 141-142). Nas diferentes faces da Educação Popular no Brasil há vertentes políticas, pedagógicas e filosóficas também peculiares e as experiências dos Movimentos Populares, junto a uma metodologia de educação crítica problematizadora, foram consideradas uma educação autenticamente popular, sobretudo pelo seu compromis- so com uma educação político-transformadora. Isso é, “a educação na qualidade de política” busca não só “ca- racterizar a situação das classes populares na América Latina”, que se encontram reprimidas à hegemonia das classes dominantes (GADOTTI; TORRES, 1994, p.9), mas sobretudo com elas e a partir delas, construir uma educação contra-hegemônica e anticolonizadora. Sendo assim, para Gadotti o surgimento da Educação Popular [...] como prática pedagógica e educacional pode ser encontrada em todos os continentes, manifestadas em concepções e práticas muito diferentes e até an- tagônicas. A Educação Popular passou por diversos momentos epistemológicos – educacionais e orga- nizativos, desde a busca pela conscientização, nos anos 50 e 60, e a defesa da escola pública popular comunitária, nos anos 70 e 80, até a Escola Cidadã, nos últimos anos, num mosaico de interpretações, convergências e divergências. (1999, p. 6). Na década de 1950, o Estado brasileiro caracteri- zou-se pela prática política populista e nacionalista e há registros da ocorrência de um grande debate em torno da Educação Popular, sobretudo a respeito da educação de adultos. Nos seus últimos anos, o pen- samento de Paulo Freire começa a seduzir outros (as) PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS 17 tantos (as) educadores (as) em prol de uma Educação Popular que naquele momento preconizava a alfabeti- zação na perspectiva da conscientização (BEISIEGEL, 1974). Iniciava-se no país um movimento de se pensar a educação crítica destinada às classes populares e um desses espaços de debate, conforme Paiva (1984), foi o II Congresso Nacional de Educação de Adultos. Esse foi um tempo fecundo, pois se iniciou um processo de produções de materiais didáticos, com conteúdo político, para educandos adultos, tendo por objetivo a conscientização política (FÁVERO, 1984). Nessa perspectiva, as campanhas de alfabetização das décadas de 1950 e 1960 dirigidas às classes po- pulares possuíam uma vertente da Educação Popular, podendo nesse contexto destacar a Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler2, sendo que, a esse respeito, O conceito de Educação de Adultos vai se movendo na direção da Educação Popular na medida em que a realidade começa a fazer algumas exigências à sensibilidade e à competência científica dos edu- cadores e das educadoras. Uma destas exigências tem que ver com a compreensão crítica dos educa- dores do que vem ocorrendo na cotidianidade do meio popular. Não é possível educadoras e educa- dores pensar apenas os procedimentos didáticos e os conteúdos a serem ensinados aos grupos popu- lares não podem ser totalmente estranhos àquela cotidianidade. O que acontece, no meio popular, nas periferias das cidades, nos campos – trabalha- dores urbanos e rurais reunindo-se para rezar ou para discutir seus direitos –, nada pode escapar à curiosidade arguta dos educadores envolvidos na prática da Educação Popular. (FREIRE, 2001 a, p.16) - (grifo nosso). Nesse período histórico, surgiram muitos tra- balhos de educação voltados para as classes po- pulares, tais como: Educação de Base, Educação de Adultos e Educação Popular. Conforme Fávero (1983), os Movimentos Populares e os Movimentos de Cultura Popular3, do qual participou Paulo Freire, 2 Promovida pela Secretaria Municipal de Educação de Natal. 3 O MCP foi criado inicialmente no Recife, depois estendido a outras cidades de Pernambuco. Esse movimento cultural foi criado pelo prefeito Miguel Arraes e organizado sob a orientação e a liderança de Germano Coelho. Cf. Beisiegel (1989) e Coelho, (2002), cujo objetivo era a de não separar a cultura do trabalho e da educação. 4 MEB criado pela CNBB com apoio da Presidência da República. o Movimento de Educação de Base4, criado pela Confederação Nacional dos Bisposdo Brasil e os Centros Populares da Cultura, criados pela União Nacional dos Estudantes, impulsionaram a Educação Popular no Brasil. Esse tempo se configura como o “terceiro tempo da Educação Popular”, assim caracte- rizado por Brandão, tendo como precursor Paulo Freire (“principal idealizador”), assim como as experiências dos movimentos de cultura popular (2002, p, 140). Foi nesse momento histórico que surgiu a necessi- dade de se criar programas de formação política para que as camadas populares pudessem se expressar, ler e compreender criticamente a sua realidade para se mobilizar a favor da transformação social. Essas inicia- tivas tiveram origem nas instituições da sociedade civil, tais como: Centros Populares de Cultura, Movimento de Cultura Popular, Movimento de Educação de Base (MEB), entre outros. Inicialmente, essas experiências de Educação Popular estavam voltadas para a alfabeti- zação de adultos com vistas ao processo de conscien- tização. Mas, se resgatarmos os documentos do MEB, os programas de formação se destinavam para além do processo de alfabetização, pois se buscava promover a valorização do homem e da mulher tendo como ponto de partida as necessidades e os anseios de libertação do povo (FÁVERO, 2004; RAPOSO, 1985). Ou seja: Considerando as dimensões totais do homem enten- de-se como educação de base o processo de auto- conscientização das massas, para uma valorização plena do homem e uma consciência crítica da reali- dade. Esta educação deverá partir das necessidades e dos meios populares de libertação, integrados em uma autêntica cultura popular, que leve a uma ação transformadora. Concomitantemente, deve propiciar todos os elementos necessários para capacitar cada homem a participar do desenvolvimento integral de suas comunidades e de todo o povo brasileiro. (MEB, 1962, apud, RAPOSO, 1985). Brandão, em conversa comigo, relata que o “MEB - um dos movimentos de cultura popular dos anos 60 PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS18 e que subsiste até hoje - manteve ao longo dos anos um programa de formação de quadros talvez sem pa- ralelo no Brasil”. Foi mediante esse relato que busquei ler alguns documentos e trabalhos sobre o MEB para encontrar neles o processo de organização e a proposta dos programas de formação de quadros. Em relação a essa questão, um dos documentos do MEB/Maranhão5 sobre a avaliação de suas atividades afirma que um dos aspectos positivos foi o de despertar as pessoas através da formação de consciência crítica à ação. Contudo, salientava que uma das dificuldades estava na formação de líderes no sentido de prepará-lo para ações mais complexas. Esse limitante também é perce- bido no caso das educadoras e educadores populares de Porto Alegre, pois as limitações estão atravessadas pelas imposições do sistema no qual estamos inseri- dos. Entretanto, é inegável a extrema importância que o MEB teve no processo de formação de lideranças, voltada para a Educação Popular libertadora. Nessa perspectiva, uma das marcas sócio-históricas dedicadas à formação política foi a “descoberta e o apri- moramento de tipos de relações de prática pedagógica entre educadores e educandos, entre profissionais com- prometidos com a “causa popular” e agentes educandos individuais (sujeitos populares) ou coletivos (Movimentos Populares)”, conforme explicita Garcia Huidobro e Sérgio Martinic, citado por Brandão em seu livro intitulado ‘O que é educação popular’ (p. 88-89). Da mesma forma, o Movimento de Cultura Popular (MCP) também desenvolveu uma respeitável ação de formação política através do trabalho com a cultura popular, tendo por intenção instrumentalizar o povo para a participação crítica na sociedade. De acordo com a visão de Fávero, esse movimento pressupunha a “organização das classes populares” (1984, p.9) tendo por objetivo “elevar o nível de consciência so- cial das forças do movimento popular” (SCOCUGLIA, 2001, p. 53). Ao ler e analisar as atividades desses movimentos percebemos que, através das condições concretas de vida e de atuação das pessoas, se almejava uma forma- ção crítica a serviço de um “projeto de mudança social” (BRANDÃO, 1984, p.173) e para isso se utilizavam 5 Consta no Relatório de Animação Popular do MEB. Rio de Janeiro, 1965. In: Maria da Conceição Brenha Raposo instrumentos de investigação social, de avaliação participativa e de materiais didáticos críticos, para que fosse possível entender que “ninguém supera a fraque- za sem reconhecê-la” (FREIRE, 2000, p. 47). Ou seja, esse movimento de Educação Popular buscava realizar atividades libertadoras de valorização humana, como “exercício da decisão enquanto posição de sujeito” (FREIRE, 2000, p. 46), não para a adaptação, mas para provocar mudanças efetivas na vida dos sujeitos. Esse período chamado por Brandão de “fértil, difuso e de uma imensa militância política através da educação” (2002, p.149) é considerado como “um pa- radigma teórico que surge no calor das lutas populares” (GADOTTI & TORRES, 1994, p. 8). Nesse processo, a Educação Popular se configura como “uma pedagogia anunciada das classes popula- res”, onde se dá o marco inicial na década de 1960, quando se concebe “uma pedagogia na educação bra- sileira (e latino-americana) que leva em consideração a realidade brasileira com vistas a sua transformação” (PALUDO, 2001, p. 91) em que, conforme Fávero (1984), contemplava “aspectos inovadores - no que diz respeito ao método e ao conteúdo sócio-político”, respeitando as características comuns dos setores populares, pois: Não supunham um falso mundo de igualdade e bem- -estar; revelavam as desigualdades e os problemas básicos, de forma que a educação não fosse uma superposição à vida e ao trabalho; estabeleciam íntimo relacionamento entre o ensino e as condições de vida do adulto analfabeto e, nesse sentido, inicia- vam efetivamente um processo de ‘emancipação do homem’ (FÁVERO, 1984, p. 287). Nesses pressupostos, para Freire (1987), a educa- ção comprometida com a justiça social tem como ele- mento essencial o diálogo entre os sujeitos, enquanto princípio educativo. Daí que emerge a investigação da realidade como um trabalho político-pedagógico, o diálogo entre os diferentes saberes (popular e científico) e a relação comprometida entre educador (a) e educan- dos (as) na construção de uma educação libertadora (Educação Popular). Um outro aspecto da Educação Popular é o processo de construção de conhecimen- tos críticos e transformadores, que possibilita não só PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS 19 à análise crítica da realidade, mas também a criação de “novas formas de poder” (SADER, 2009, p.100.). Porém, toda a efervescência política nas décadas de 1950 e 1960 a favor da Educação Popular foi in- terrompida com o golpe de estado em abril de 1964, quando se consolidou o regime militar, fazendo com que entre os anos de 1964 até meados dos anos de 1980 o Brasil vivesse um período lembrado como ‘período de chumbo’, enfatizando regulamentos como repressão, censura, tortura e morte. Nesse contexto, os movimentos organizados anteriormente passaram a ser perseguidos e intimidados e com isso a educação também mudou de configuração. Por sua vez, segundo Aquino (2001), mesmo com o endurecimento crescente do regime militar que impedia qualquer processo rei- vindicatório, o país ainda contava com manifestações de oposição à ditadura, destacando-se o movimento estudantil, o MEB e os grupos da juventude católica. Nos governos do regime militar, programas como o de alfabetização de adultos6 mudaram de enfoque, passando não mais a ter a mesma intencionalidade da proposta da Educação Popular. Em seu lugar, a educa- ção passou a ter um caráter assistencial e conservador, também destinado para a modernização econômica e segurança nacional. As políticas oficiais do Estado autoritário7 estiveram em oposição às experiênciasde Educação Popular e só a partir da década de 1980 que no Brasil retomou-se a sua essência, partindo da organização popular e po- lítica em prol da democratização do Estado brasileiro. Diante desse novo reordenamento político, os Movimentos Populares e os(as) educadores(as) vin- culados(as) à área da Educação passaram a lutar por políticas públicas, tomando assim, um novo sentido da luta popular. Um exemplo disto, é a implementação coletiva da gestão democrática e popular na escola e na cidade, sob influência do partido da classe trabalhadora e das experiências de Paulo Freire, quando assumiu a Secretaria de Educação de São Paulo8. A partir des- sas experiências, outras cidades se inspiraram nesse 6 MOBRAL: Movimento Brasileiro de Alfabetização, cujos princípios eram diferentes daqueles que Paulo Freire pressupunha. 7 Suas bases políticas estavam nos Atos Constitucionais e na Doutrina de Segurança Social. 8 Refiro-me o governo Olívio Dutra. modo de fazer educação, investindo na construção da educação pública, popular e cidadã expandindo-se para uma política de cidade cidadã, nos princípios da participação popular. Com as experiências acima referidas, foi retomada a Educação Popular na Escola Cidadã, considerando-a como um projeto inovador, tanto no campo da edu- cação, como nas políticas para a cidade, que esteve enraizada nos movimentos de Educação Popular desde a década de 1980, quando esses espaços de partici- pação reivindicavam uma educação diferente daquela instaurada no regime militar. A ‘Educação Popular na Escola Cidadã’, assim como outros projetos como o MOVA tiveram em Paulo Freire um dos seus idealizadores. Esses projetos con- têm, nas expressões de Paludo (2001), uma proximida- de com a organização dos (as) trabalhadores (as) e, na década de 1980, intensificou-se a realização de estudos e debates acerca dos princípios da EP. Consideramos essas experiências como sendo inovadoras do ponto de vista da luta histórica a favor da educação pública popular. Situando o espaço-tempo da Educação Popular na escola pública, estas são concretizadas na déca- da de 1990, inicialmente em São Paulo/SP, quando Paulo Freire foi secretário municipal de educação. Posteriormente, contamos com essa experiência aqui em Porto Alegre, também inspirada pela proposta de educação freireana (AZEVEDO, 2007). Cabe ressaltar que outros municípios dos estados brasileiros também tiveram e ou ainda tem essa experiência. Nessa direção, a escola cidadã e a Educação Popular estão associadas a um outro tipo de cidade que se deseja cidadã e um exemplo pontual, é o movi- mento das Cidades Educadoras, que abarcando na sua totalidade seria “mais do que investir na educação, em escolas e universidades” (MORIGI, 2011, p.37). Tendo em vista que a cidade enquanto espaço educativo faz parte do cotidiano das pessoas e necessariamente precisaria ser um lugar construído permanentemente PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS20 por elas seria necessário fortalecer o sentido da par- ticipação, articulando ao projeto de cidade as lutas dos Movimentos Populares que buscam a justiça so- cial, através da mobilização pelos direitos humanos. Entendendo assim, a educação em seu sentido amplo pode ser considerada enquanto um elemento-cha- ve para o acesso a todos os outros tipos de direito. Portanto, a cidade pode educar ou deseducar, conforme sua proposta político-pedagógico, do mesmo modo que a educação, se voltada para um projeto emancipatório de cidade e de sociedade, certamente conceberá a luta na e pela educação, numa perspectiva da justiça social. Dessa forma, essas experiências pontuais de pro- postas de Educação Popular, no âmbito escolar ou não, têm como um dos desafios transformar a escola e a cidade (exemplos aqui citados) como espaços públicos de qualidade social. No tocante à historicidade da Educação Popular, reconhecemos que é imprescindível um estudo mais apurado sobre as suas experiências mais pontuais, prin- cipalmente nos dias de hoje. Porém, neste momento, por razão de tempo não nos propomos a aprofundar a pes- quisa sobre essas especificidades, embora reconheça- mos que as experiências pontuais da Educação Popular se inserem em uma pauta importante e necessária a ser abordada na pauta da formação político-pedagógico de educadores (as), com vistas à emancipação humana. Todavia, é no campo que encontramos experiências mais abrangentes de Movimento Popular, a exemplo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), entre outros. No caso do MST, ele foi criado na década de 1980 e posteriormente nasce às experiências da luta pelo direito à educação dos sem-terra. Conforme Caldart (2003) e Wolff (2007), o MST é um movimento que trabalha na perspectiva da Educação Popular em especial na sua proposta pedagógica da ‘Pedagogia do Movimento’. O MMC tem como luta reivindicatória a valorização e respeito as trabalhadoras rurais. Referente à luta pela educação, a Via Campesina tem tencionado “elemen- tos básicos da pedagogia socialista” (RIBEIRO, 2009, 9 Diante do exposto, só citamos alguns MPs em que os protagonistas são as classes populares, excluindo experiências de MS de caráter burguês. p.431) nos pressupostos da Educação Popular, em que as experiências do trabalho e da educação precisam ser compreendidas na sua totalidade. O movimento das mulheres do campo evidencia que o seu processo de luta contra a opressão e exploração faz parte dos pro- cessos de formação política, o que pode ser ratificado nas suas cartilhas. Contudo, no atual momento, mesmo que em menor abrangência, contamos com muitas experiências de Educação Popular nas cidades do nosso país. Para tan- to, realizamos um breve mapeamento de movimentos que vem contemplando, nas últimas décadas, os temas da Educação Popular nas suas propostas, a saber: 1) oMovimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), que é um movimento urbano que se organiza para lutar contra a miséria e os processos de exclusão social; 2) Movimentos de Economia Solidária, que pres- supõem o desenvolvimento local sustentável, através da cooperação e da solidariedade; 3) Movimento Negro, o qual busca alternativas de mudança da realidade existente, sobretudo em relação ao preconceito e dis- criminação racial; 4) Movimentos de democratização da escola pública, na forma de Conselhos Escolares, Constituinte Escolar, Projeto Político Pedagógico, educação do/no campo, etc.; 5) Movimentos da de- mocratização popular, como OP, conselhos e fóruns populares; 6) Movimento de educadores(as) populares e de educadores(as) sociais: Reivindicam reconheci- mento, valorização e formação política e pedagógica; 7) Movimento de Associações Comunitárias e de Bairro, que travam lutas específicas por melhores condições de vida, sem deixar de relacioná-las com as contradi- ções urbanas de um modo mais geral; 8) Movimento dos Indígenas e dos Quilombolas: organizam-se pelo reconhecimento e posse da terra, assim como pela identidade cultural; 9) Movimento Popular de Saúde: fomentam a mobilização social em defesa do direito à vida; 10) entre outros que podem ser resgatados em Gohn (1985), Ammann (1991) e Paludo (2010)9. Quanto às aproximações possíveis, no que se referem aos movimentos explicitados acima, percebe- mos que existem entre eles características comuns, sendo que podemos citar pelo menos duas delas: as PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS 21 peculiaridades que dizem respeito à territorialização e as lutas por mudanças dos contextos de exclusão so- cial que os desumanizam. Muitos desses movimentos abordam a EP de alguma forma, às vezes explicita- mente outras nem tanto, mas são reconhecidos por suas propostas de alternativas ao modelo de sociedade excludente. Ou seja, apesar de suas especificidades, nesses movimentos são os (as) oprimidos (as) que se orga- nizam na buscade intervenção e transformação da realidade e essas, por sua vez, são características da Educação Popular que, segundo Zitkoski, pressupõe “a atuação consciente da classe trabalhadora na luta em defesa de seus direitos” (2011, p.20). Nessa mesma linha, Ammann escreve sobre o que incide o surgimento de Movimentos Populares: “a consciência da falta de moradia, de escolas, de equipamentos de saúde, de transporte, de creche, de energia elétrica, de esgoto etc. que as compele a iniciar a luta” (1991, p. 57). No tocante a essa questão, trazemos algumas ex- periências de Educação Popular, no contexto de Porto Alegre, que expressam as lutas urbanas, realizadas a partir de situações locais das comunidades, mas que contemplam temas mais abrangentes, como é o caso da luta pela educação pública, gratuita e de qualidade. Das experiências que conhecemos, citaremos ape- nas três, por considerarmos que estas se aproximam entre si enquanto prática social: 1) o CAMP10; 2) os Conselhos Populares11; 3) a AEPPA12. Estes movi- mentos trabalham com a Educação Popular e lutam pela EJA – os quais têm a Pedagogia freireana como referência. As três experiências possuem um trabalho com enfoque de formação de lideranças e mobilização na construção de um projeto popular de educação que pressuponha uma sociedade mais justa. 10 Centro de Assessoria à Movimentos Populares. A equipe é formada por sócios militantes que trabalham com os processos de organização coletiva em prol do da justiça social. Para maiores informações: <http://www.camp. org.br>. 11 São espaços criados pelas Lideranças Comunitárias, tendo por objetivo discutir os problemas das comunidades e mobilizar as pessoas para defender seus direitos. Para conhecer uma experiência de Conselho Popular de POA, socializamos o endereço do blog: <http://cplombadopinheiro.blogspot.com.br/>. 12 Associação de Educadores Populares de Porto Alegre-RS. Que se coloca como um “espaço de socialização de experiências e de articulação para ações coletivas que promovam um projeto político pedagógico de formação inicial e continuada nos pressupostos da educação popular”. Carta de Princípios disponível no blog: <http:// aeppa-poa.blogspot.com.br/>. Podemos considerar que a Educação Popular, tanto na década de 1960 como nos dias atuais, não tem se realizado apenas como forma de ser um espaço de cri- ticar um tipo de educação, mas, sobretudo, para anun- ciar possibilidades de se construir coletivamente novas alternativas de organização em sociedade, tendo como horizonte a emancipação humana. Portanto, embora tenhamos avançado em relação aos regimes ditatoriais e que na retomada dos Movimentos Populares muitos destes estiveram à frente na construção ou viabilização de políticas públicas de Educação Popular, ainda é ur- gente construir alternativas à lógica do capital, presente no contexto do neoliberalismo. Uma educação como prática da liberdade, contrária à perversidade da educação capitalista, é construída coletivamente, tem como pressuposto a educação crí- tico-problematizador e se realiza no movimento de teo- rização e reflexão do seu processo. Nessa concepção, concordamos que a “Educação Popular é, sobretudo, o processo permanente de refletir a militância. Refletir, portanto, a sua capacidade de mobilizar em direção a objetivos próprios” (FREIRE, 2001a, p.16). Brandão considera que: A Educação Popular foi e prossegue sendo a se- qüência de idéias e de propostas de um estilo de educação em que tais vínculos são re-estabelecidos em diferentes momentos da história, tendo como o foco de sua vocação um compromisso de ida-e-volta nas relações pedagógicas de teor político realizadas através de um trabalho cultural estendido a sujeitos das classes populares compreendidos não como beneficiários tardios de um “serviço”, mas como protagonistas emergentes de um “processo”. (2002, p.141-142). Na perspectiva acima, a Educação Popular não pode ser um modelo pronto a ser seguido, não se PROSPECTIVA 41 - 2020/2021 - Revista de Orientação Educacional - AOERGS22 constitui numa fórmula de depósito de conhecimento ou um tipo de serviço de cunho assistencialista. Porém, apresenta-se como um lugar de estudo participativo e criativo, em que a “Educação Popular e mudança social andam juntas” (FREIRE; NOGUEIRA, 1989, p.62). Por fim, é interessante referir com Brandão que nos pontua alguns limites do entendimento do que é uma Educação Popular, dentre eles: a) não é só um programa de educação; b) não é só educação de jovens e adultos; c) não é um modelo a ser desenvolvido de educação para o povo (1986, p.79-83). Na concepção freireana de Educação Popular, ela não é uma edu- cação para o povo e não é só educação pública, visto que o seu objetivo maior é a emancipação humana e social. Para que isso se efetive, é preciso compreen- dê-la como educação crítica-problematizadora, a ser construída através da participação popular, mediante uma intencionalidade política que possui uma opção de classe (FREIRE, 1981; ARROYO, 1986). Tal como compreendemos a Educação Popular, nos estudos que realizamos até aqui, percebemos que carecemos de pesquisas mais aprofundadas, críticas e analíticas sobre que concepção de ser humano e proje- to de sociedade estão lhe conduzindo nos dias atuais. Se para nós a EP tem como horizonte a emancipação humana, a luta não se pauta somente pelo acesso a alguns direitos, mas sobretudo pela conquista da justiça social que demanda o rompimento do modo de produção capitalista. Nesse entendimento, no capitalismo, a educação não tem razão de ser emancipatória, até porque seu principal objetivo é transformar as pessoas em obje- tos do capital, que por sua vez necessita de um tipo de escolarização que preconize um modelo mínimo de sobrevivência humana, ditado pelo mercado. Consequentemente, essa concepção de educação não terá como intento a superação do capital e, por isso, não importa a ela ensinar à classe popular ins- trumentos políticos de ler e compreender o mundo de forma crítica e nem mesmo ter a finalidade de abolir as desigualdades sociais. Como podemos evidenciar, os princípios da 13 Termo muito utilizado pelo Banco Mundial, que inclusive o utiliza para defender políticas que reduzam a pobreza. Sugerimos o texto de Dermeval Saviani, 1998. Educação Popular são completamente diferentes da sociedade capitalista que, por sua vez, ambiciona formar pessoas para que compreenda o ser humano de forma fragmentada, o trabalho enquanto mercado- ria a ser vendida e a sociedade como excludente por natureza (FREIRE, 2000; MARX, 2003; MÉSZÁROS, 2008). É com base em tal perspectiva que apontamos a Educação Popular como uma alternativa possível e necessária à educação do mercado, pois ela tem como perspectiva a organização das classes populares na luta contra a exclusão social, fruto da sociedade capi- talista que assinala a propriedade privada, o lucro, a concorrência e o controle sobre o trabalho como formas de garantia do desenvolvimento e fortalecimento desse modelo societal. Diante dessa realidade, pautar a formação na con- cepção da Educação Popular, é pertinente e coerente com as lutas dos Movimentos Populares, os quais defendem um projeto de sociedade transformador. Entretanto, parece ser urgente e indispensável, princi- palmente no atual contexto da educação capitalista-ne- oliberal que nos apresenta políticas sustentadas pela equidade13, distinta da concepção de igualdade social defendida pela Educação Popular, pautar, repensar e problematizar as suas propostas, a fim de fomentar processos de formação político-pedagógico que vislum- brem uma sociedade emancipatória (FREIRE, 1997a; SAVIANI, 1998). Em conformidade com os referenciais freireanos sobre a Educação Popular, o sistema vigente é opressor desde a sua gênese, visto que defende, mesmo que de forma oculta, uma sociedade alienada e que, no entanto, busca sustentar-se por uma educação dirigida à manu- tenção da sociedade
Compartilhar