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Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa Responsável pelo Conteúdo: Prof.ª Dr.ª Heloisa Gonçalves Jordão Revisão Textual: Prof.ª Dr.ª Luciene Oliveira da Costa Granadeiro A História da Língua Portuguesa como Disciplina Escolar A História da Língua Portuguesa como Disciplina Escolar • Construir novos conhecimentos e refletir, a partir de um breve panorama histórico, sobre a disciplina Língua Portuguesa, em relação tanto à definição de objetos de ensino quanto ao estabelecimento de currículos e aos modos do trabalho docente. OBJETIVO DE APRENDIZADO • Introdução; • A Escola como Agência de Letramento; • A Transposição Didática; • O Processo de Disciplinarização da Língua Portuguesa no Brasil. UNIDADE A História da Língua Portuguesa como Disciplina Escolar Introdução Vamos começar nosso estudo fazendo uma breve viagem no tempo, para entender como a disciplina Língua Portuguesa tem as feições que conhecemos hoje: seu currículo, seus livros didáticos e as diferentes tarefas e atividades propostas aos alunos. Conheceremos as bases históricas, sociais e teóricas que fundamentam a disciplina de Língua Portuguesa tal qual a conhecemos hoje. Figura 1 Fonte: Getty Images A Escola como Agência de Letramento Há décadas, no mundo ocidental, a associação entre a escola e o ensino da escrita é tida como óbvia. As competências relacionadas à leitura e à escrita, bem como a utilização dos elementos materiais envolvidos nessas práticas, estão tão imbricadas à cultura escolar que é praticamente impossível pensarmos a escola sem sua pre- sença. No entanto, algumas pesquisas apontam dois fatores importantes que nos farão refletir sobre as relações entre a escola e o ensino da leitura e da escrita. O primeiro deles é que, entre os séculos XVI e XVII, na Europa Ocidental, existiu uma categoria de pessoas escolarizadas que sabiam apenas ler. O segundo ponto é que a instituição que efetivamente ampliou a formação de leitores foi a Igreja e não a democratização da escola. Para entendermos como se deu esse processo, precisamos remontar ao século XVI, na França, apontado por especialistas como o momento no qual se identifi- cam as primeiras formas históricas de democratização das oportunidades escolares. Nesse momento, estava acontecendo o movimento da Reforma Protestante e sua resposta, a Contrarreforma empreendida pela Igreja Católica. Nesse processo, as duas igrejas, a Igreja Protestante e a Igreja Católica, iniciam um amplo esforço de 8 9 ensinar, por meio da leitura, a todas as crianças suas doutrinas primordiais, como uma forma de preservar seus fiéis. 500 anos da Reforma Protestante | Nerdologia. Disponível em: https://youtu.be/QkheKbaDZGs Quem exercia o ensino da leitura eram os padres que, para cumprir essa tarefa, utilizavam um método muito parecido ao que era empregado nos conventos: os alunos aprendiam a ler por meio da repetição das orações que conheciam de cor. Em outras palavras, para o ensino da leitura, eram apresentados às crianças textos sacros memorizados, e unindo sua declamação à imagem gráfica se praticava a cor- respondência fonografêmica, ou seja, a correspondência som-letra. Esse método se mostrava adequado tanto aos propósitos do ensino da leitura pela Igreja – ou seja, instruir por meio de textos exclusivamente religiosos – quanto representava uma al- ternativa possível em relação às ferramentas disponíveis: alguns poucos textos para a leitura e a falta de acesso a materiais para a prática da escrita. Esse sistema de ensino da leitura por meio de textos conhecidos de memória ou decorados era muito eficiente para o modelo de letramento em vigor na época, ou seja, tendo em vista os modos como a sociedade se relacionava com textos escritos. Ao longo dos séculos XVI e XVII, as sociedades na Europa experimentam uma relação com a escrita conhecida como letramento restrito. O que isso significa? O termo letramento restrito explica a relação que as pessoas tinham com os textos nessa época. Apesar de ter ocorrido um aumento na quantidade de textos, tanto manuscritos quanto impressos, que circulavam socialmente, eles ainda não faziam parte efetiva da vida das pessoas. Em outras palavras, apesar da ampliação dos textos e dos leitores, os textos que circulavam oralmente ainda eram muito mais significativos na vida das pessoas. Além disso, na época, a relação leitor-texto correspondia a dizer que ler é interiorizar exaustivamente e definitivamente o texto do outro, geralmente em meio a cerimô- nias religiosas e eventos festivos tradicionais (também relacionados à fé cristã). No entanto, é nessa época que a imprensa vai ganhando força e temos também uma crescente urbanização. Esses fatores ajudam a aumentar as práticas sociais de leitura ao longo dos séculos XVIII e XIX. Com o passar do tempo, ao decorrer desses séculos, as pessoas sentem a necessidade de ler outros textos e, ainda, lê-los de outras maneiras: se antes havia uma leitura intensiva de poucos textos religiosos conhecidos de cor, transita-se para uma leitura extensiva de textos desconhecidos, que poderiam ter seu conteúdo esquecido a qualquer tempo. Para refletirmos sobre as transformações nas relações entre as pessoas e os textos escritos, analise o relato de Anne Marie Chartier sobre as transformações nos modos de ler: Quando, no século XVIII, as impressoras mecânicas asseguraram um sucesso crescente para os jornais e revistas e para os romances, o fre- nesi que se apoderou dos leitores (e das leitoras) provocou incredulida- de e escândalo. Ler não era mais reler, em conjunto, um corpus limita- do e reconhecido de textos considerados de pouca utilidade: era tratar 9 UNIDADE A História da Língua Portuguesa como Disciplina Escolar individualmente múltiplas informações, tomar rapidamente conhecimen- to das notícias do mundo, ou mergulhar silenciosamente “em um ou- tro mundo” de histórias desconhecidas, efêmeras, reais ou inventadas. ((CHARTIER, 2016, p. 290) Curiosamente, é nesse contexto que são apontados os primeiros sinais de fracas- so no ensino da escrita, que seriam mitigados, apenas por volta de 1850, quando o barateamento do papel e o advento da pena metálica tornam possível a execu- ção de exercícios de escrita no processo de ensino e aprendizagem das primeiras letras, iniciando um processo de incremento nos resultados escolares. No entanto, a inserção da escrita na escola não ocorreu de maneira simples, tampouco rápida, tendo sido um processo que perdurou pelo menos um século para sua ampla popularização. De acordo com Hébrard (2001, p. 117), adotar o ensino da escrita nas escolas dependia da conquista de três pontos basilares: i) mestres que se dispusessem a ensinar a grafia das letras; ii) uma orientação pedagógica que permitisse conduzir as aprendizagens – como a gramática escolar dedicada à orto- grafia e os impressos contendo métodos associando leitura e escrita –; e, por fim, iii) instrumentos diversos que permitissem a escolarização dessa aprendizagem. É importante salientar que os novos modos sociais de circulação de textos escritos tornavam a habilidade da escrita cada vez mais desejável, impulsionando o número de pessoas que buscavam o acesso a ela. Abordando esse mesmo contexto, Boto assinala: A escrita começava a ser necessária para efetivar algumas habilidades do mundo urbano de caráter mercantil. [...] A lógica do fortalecimento das habilidades básicas do ler, escrever e contar conjugava requisitos de uma cultura clerical – que solicitava do fiel a leitura – com a urgência da cultura urbana, que precisava da escrita; e, para a vida mercantil, pedia também o cálculo aritmético. (BOTO, 2017, p. 264, grifos nossos) Assim, aponta-se como grande inovação: o ensino concomitante da leitura e da escrita. No entanto, a escrita é introduzida assumindo o papel de instrumento para a aprendizagem da leitura, ou seja, neste primeiro momento de sua introdução na escola elementar, ela não havia adquirido o statusde objeto de ensino. Os ma- nuais que circulavam na época orientavam que o ensino da escrita ocorresse de modo concomitante ao da leitura, no entanto, a escrita funcionava apenas como um apoio para o ensino da leitura. Desse modo, ao longo de toda essa trajetória, perguntamos: quando a escrita ganhou status efetivo de objeto de ensino? No caso da França, Anne-Marie Chartier aponta que o programa de 1830 instaurou o ensino de “elementos da língua fran- cesa”, sendo que, nessa mesma época, surgiram os ditados com foco no treino ortográfico, exercícios de conjugação e análise gramatical das palavras. Alguns anos depois, em 1850, as autoridades escolares francesas orientaram os professores a realizarem exercícios de composição escrita nas aulas de língua materna, designa- dos como composição francesa ou redação de estilo (CHARTIER, A-M., 2007, 10 11 p. 41). Essa época está bastante atrelada à popularização do papel, o que permitia uma modalidade de escrita mais permanente e, consequentemente, avaliável. Todas essas transformações descritas, acima, ganharam efetiva materialização na medida em que a escola renovava sua roupagem, assumindo um papel institucional. Para marcar esse novo espaço, o espaço escolar, foram desenvolvidas práticas cada vez mais distanciadas da esfera familiar ou religiosa. Assim, ao final do século XVIII e ao longo do século XIX, observou-se a consolidação da forma escolar na Europa por meio da profissionalização do trabalho de ensino, da dissociação do tempo escolar do tempo comunal, do crescimento de construções de espaços específicos voltados à prática educativa, da produção das disciplinas escolares e da proliferação de mate- riais escolares. Esperamos que essa breve reconstituição histórica tenha mostrado como o ensino da leitura e da escrita se deu, inicialmente, por meio da Igreja para posteriormente ser atribuído à escola como instituição. É importante pensarmos como a relação das pessoas com os textos, ou seja, os letramentos são influenciados por questões políti- cas (no caso da Reforma Protestante), tecnológicas (a imprensa) e culturais (processo de urbanização). Quando a relação das pessoas com os textos muda, o que se ensina na escola também sofre transformações. A Transposição Didática Um dos processos mais importantes associados à configuração da instituição es- colar como a conhecemos, atualmente, envolve a escolha de determinados saberes. Selecionados dentre um amplo conjunto de conhecimentos acumulados pela história da humanidade, esses saberes são cuidadosamente priorizados de acordo com as circunstâncias sociais, políticas e econômicas de uma dada época e, posteriormente, se transformam em conteúdos que devem ser ensinados pela escola. O modo pelo qual os saberes científicos chegam à sala de aula é chamado de processo de transposição didática. O conceito de transposição didática busca rela- cionar a forma e o funcionamento do processo de transposição de saberes daquilo que se considera o mundo real – incluindo os saberes acadêmicos – para o sistema escolar. Sendo assim, o saber ensinado em sala de aula é um elo de uma longa e complexa cadeia de transformações do saber construído historicamente pela huma- nidade, tendo sido, por meio dos sistemas escolares, recriado com vistas ao ensino e a aprendizagem. Esse processo opera com a existência de dois sistemas atuantes, em estreita inte- ração. O primeiro sistema tem caráter externo, pois ocorre fora dos muros escolares, envolve a seleção de conteúdos a serem ensinados, além de seguir as definições sociais e políticas das finalidades da escola em uma dada época e em um determinado contexto cultural. Após sua delimitação, os saberes sofrem uma adequação por meio da análise de especialistas em ensino e de pesquisadores das universidades. 11 UNIDADE A História da Língua Portuguesa como Disciplina Escolar Esse movimento envolve a sistematização e a possibilidade de planejar ordena- damente os saberes que, por fim, se transformam nos manuais, currículos e os pro- gramas didáticos. Essa transformação do saber real no saber prescrito em manuais e orientações didáticas compreende a etapa que transforma o objeto do saber, cons- truído historicamente, no objeto a ensinar, previsto nos manuais didáticos. O segundo sistema tem caráter interno, ou seja, ocorre no interior da sala de aula, e consiste nos modos como o(a) professor(a), por meio da interação, aproxima os alunos dos saberes previamente elencados em manuais e currículos. Vale destacar que, na escola, o saber não tem mais a mesma função que tem no mundo “dito real”, porque o contexto em que ele está situado desaparece pelas características do espaço/tempo escolar. Na sala de aula, o mesmo saber é proposto em situações que rompem com o uso habitual, transformando-o, no contexto esco- lar, em objeto de ensino. O trabalho do professor se realiza, portanto, num movimento de tensão, que exige a gestão da apresentação de elementos novos e antigos do mesmo objeto a ser ensinado. É preciso compreender que o objeto a ensinar deve apresentar uma faceta desconhecida, para ser um desafio de aprendizagem e, ao mesmo tempo, uma faceta antiga para poder ser articulado ao que já é sabido ou foi apreendido. Importante! Na teoria da transposição didática, o conhecimento científico é chamado objeto de saber. Já os saberes previstos nos currículos são objetos a ensinar. Quando esses objetos são colocados efetivamente na interação em sala de aula, são chamados de objetos de ensino. Assim, podemos concluir que os conteúdos das disciplinas, ou seja, os objetos a ensinar, são elaborações do sistema escolar que possuem finalidades didáticas bas- tante específicas e articuladas a condições sociais e políticas, os quais são determina- dos para a instituição escolar, em uma dada época e em um determinado contexto. A seguir, vamos entender como essas relações marcaram a história do ensino da língua portuguesa no Brasil. O Processo de Disciplinarização da Língua Portuguesa no Brasil Da mesma forma que fizemos uma retrospectiva histórica para entendermos como a escola se constituiu como agência de letramento, vamos analisar os prin- 12 13 cipais fatores que influenciaram a constituição da disciplina Língua Portuguesa no contexto brasileiro. Bem, estudiosos da história da disciplina costumam marcar três grandes fases envolvendo sua constituição. A primeira fase é chamada formação clássica e bele- trista, que compreende desde o período em que a disciplina “Língua Portuguesa” foi oficializada em 1871 quando foi criado no país, por meio de um decreto imperial, o cargo de Professor de Português e dura até meados do século XX. Embora esse decreto assinale a oficialização da disciplina, sua construção remete a um conjunto de materiais e práticas voltadas ao ensino da língua que já estavam em curso há algumas décadas. Para compreendermos a criação do cargo de professor de Português é importante conhecermos um pouco sobre uma das instituições de ensino mais importantes do Brasil, o Colégio Pedro II, que por muito tempo foi considerado um modelo para o ensino secundário no país. O ensino secundário seria o que chamamos, na atualida- de, de Ensino Fundamental Anos Finais, que compreende os 6ºs, 7ºs, 8ºs e 9ºs anos. Conheça mais sobre o Colégio Pedro II , disponível em: https://bit.ly/3hbgpx5 Em sua fundação no ano de 1837, o estudo da língua portuguesa foi incorporado ao currículo, inicialmente, por meio de duas disciplinas: Retórica e Poética. No ano seguinte, foi incluída a Gramática Nacional, como conteúdo a ser estudado pelos alunos. Podemos, assim, constatar que retórica, poética e gramática nortearam o ensino da língua portuguesa pelas publicações didáticas da época compostas por manuais de gramática e de retórica. A maior parte dos autores eram os próprios professores do Colégio Pedro II. Desse modo o ensino era voltado às práticas de leitura literária e recitação tendo a gramáticacomo “matriz ideal que pilota e se mantém como o ponto para o qual convergem as duas outras práticas” (NONATO, 2019, p. 1285). Após a criação do cargo em 1871, as três disciplinas são fundidas em uma só, a disciplina de Português. De todo modo, como já poderíamos esperar, a disciplina nasce muito baseada nas práticas e materiais que sustentavam as três disciplinas que lhes deram origem com foco em uma formação clássica e beletrista que perdura até meados do século XX. Os chamados Livros de Leitura eram constituídos por coletâneas de textos clás- sicos que configuravam o instrumento material que permitia que os alunos tivessem acesso a bons modelos literários. Esses textos eram inicialmente, a base para ativi- dades de leitura em voz alta (também conhecida como leitura oral) e em momento posterior para práticas de leitura silenciosa associada às tarefas escritas de com- preensão do texto lido. 13 UNIDADE A História da Língua Portuguesa como Disciplina Escolar O livro “Atravez do Brasil” composto por Olavo Bilac e Manuel Bonfim em 1910 como um volume voltado à “Prática da Lingua Portugueza” e descrito como um “livro de leitura para o curso médio das escolas”. É especialmente interessante a leitura da sessão inicial, intitula- da “Advertencia e explicação” onde os autores orientam os professores como utilizar a obra em suas aulas de Língua Portuguesa. Disponível em: https://bit.ly/2F0xDR1 Por fim, outro importante instrumento nas aulas de Língua Portuguesa eram os chamados livros de composição, manuais para o ensino da produção escrita. Essas obras eram geralmente organizadas em subdivisões, tendo como critério as tipologias textuais – narrações, descrições, cartas, dissertações, exposições e resu- mos – que delimitavam as unidades de trabalho. Partindo da tipologia textual, cada unidade apresentava um tema (assunto) e, em seguida, um modelo que deveria servir de apoio para a produção escrita solicitada ao aluno. Ao nos perguntarmos: quais eram os assuntos propostos aos alunos? Podemos observar com Nonato que: O traço transversal ao conjunto de temas prestigiados para a prática de produção do texto escrito dissertativo está na preferência por as- suntos de natureza enciclopédica, patriótica e moral (além de A Cari- dade, A experiência, Ar atmospherico, A compaixão, Amor filial – Dedicação, A Escola e a Instrucção, Calar a tempo, O exemplo e a reprehensão), o que remete ao empreendimento considerado civilizató- rio de invenção, pela mediação da forma escolar, do homem brasileiro moderno e urbano (v. BOTO, 2003). Em outros termos, os temas con- formam uma coleção de ideias logicamente encadeadas para produzir o efeito de valoração, por exemplo, de uma lição moral, elevando-lhe os atributos. (NONATO, 2019, p. 1289) Assim, a disciplina “Português” manteve a tradição das suas disciplinas fundantes e, por meio da abordagem de temas relacionados à civilidade, começou a ganhar uma roupagem condizente com as aspirações de um Brasil republicano, com traços mais marcados de urbanidade. Essa fase inicial da disciplina de Língua Portuguesa é, em outras palavras, a permanência da disciplina gramática para o ensino sobre o sistema da língua. Além disso, a retórica e a poética vão, pouco a pouco, sendo reconfiguradas em virtude das transformações sociais de usos da língua na socie- dade, cada vez mais próxima dos saberes científicos e menos atrelada à igreja: da necessidade de se falar bem, caminha-se para a necessidade de escrever bem. É fundamental destacarmos que a manutenção da tradição da gramática, da retórica e da poética relaciona-se intimamente ao alunado que frequentava o ensino secundário. Como vimos no subitem anterior, a escola elementar, mesmo sendo democratizada tardiamente no Brasil, ainda tinha algum espaço para as classes menos abastadas, dentro de um projeto de controle das crianças em centros urbanos. Já o ensino se- cundário era quase exclusivo aos grupos sociais economicamente privilegiados, ou seja, a camada mais rica da população, para a qual fazia sentido manter um conjunto de saberes considerados clássicos e beletristas, por meio do estudo de autores literá- rios consagrados em Portugal e no Brasil. 14 15 A segunda fase do ensino de língua portuguesa é identificada a partir dos anos 1950, chamada pelos pesquisadores como tecnicista, na qual podemos observar mudanças reais na composição dos conteúdos tratados na disciplina “Português”. As transformações sociais e históricas têm profunda influência nessas modificações, impulsionadas, sobretudo, pela ampliação do acesso à escola para as camadas mais pobres da população. Essa mudança, relativa ao aumento da quantidade de alunos e à sua a origem, implica outro fator diretamente relacionado: a seleção dos professores. Ao intensifi- car-se o processo de recrutamento de professores afrouxam-se os critérios para sua seleção e, como outra consequência direta, ocorre uma depreciação salarial e de status social. Vale ainda ressaltar que, nesse período, um grande número de profes- sores oriundos das recém-criadas faculdades de filosofia, letras e ciências humanas, traziam consigo não apenas a bagagem literária e filológica clássica, mas também reflexões sobre estudos voltados à pedagogia e à didática. Essas mudanças acarretam alterações importantes na organização do ensino. Antes, os manuais eram separados em gramáticas, composição, leitura. Nesse novo contexto, os compêndios de leitura foram associados aos de gramática e começaram a incluir tarefas e exercícios que deveriam ser propostos aos alunos. Em decorrência disso, observa-se um empobrecimento intelectual da função do professor, pois, tendo em vista que os manuais traziam as tarefas já formuladas, a voz principal na organi- zação do processo de ensino transita da expertise dos professores para os autores dos livros didáticos. Apesar da integração entre os diferentes manuais, conforme mencionamos aci- ma, a gramática ganha ainda mais relevância. A possível causa dessa relevância é apontada, por alguns autores, como decorrência da pouca atenção dada à retórica e à poética, atenção que só será retomada nas teorias de ensino da língua portuguesa ao final do século XX, como veremos adiante. Com a instauração do regime militar em 1964, as décadas de 1970 e de 1980 tes- temunharam mudanças radicais no ensino, impulsionadas pela sanção da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (5692/71). A lei propunha toda uma reformulação do que se ensinava, de modo que fossem atendidos os objetivos e ideologias do regime em vigor. Assim, a língua, nesse contexto, assume um papel de instrumento a serviço do desenvolvimento. A própria nomenclatura da disciplina é alterada transparecendo uma visão utilitária da língua, sob a denominação “Comunicação e expressão”. Importante! Um ensino focado na gramática concebe a língua como sistema. O enfoque retórico e poético traz uma abordagem de língua como expressão estética. Já a orientação ado- tada a partir da década de 1970 concebe a língua como comunicação. 15 UNIDADE A História da Língua Portuguesa como Disciplina Escolar Para além da interferência político-ideológica, é importante salientarmos que essa época marca a intensa popularização dos meios de comunicação, primeiramente pelo uso massificado do rádio e posteriormente da televisão, que impulsionaram os estudos desenvolvidos na área da Teoria da Comunicação. Esses estudos influen- ciaram fortemente as decisões curriculares que nortearam o ensino da língua nas escolas brasileiras. É nesse período que começam as discussões sobre a relevância do ensino focado na gramática e sobre a escolha dos textos a serem abordados em sala de aula, os quais não necessitam mais serem representantes das grandes obras clássicas da literatura brasileira e portuguesa. A partir da década de 1970, como resposta a demandas colocadas pelo mercado de trabalho e pelo desenvolvimento da industrialização (com destaque para a indústriada comunicação), no contexto sociopolítico da ditadura militar, uma maior diversidade de textos passou a figurar nos currículos de Língua Portuguesa, fazendo com que os textos literários perdessem sua hegemonia. Foi nessa época que os textos jornalísticos ganharam presença na sala de aula, na medida em que buscava-se formar sujeitos capazes de ler textos de diferentes gêneros, sobretudo aqueles de maior circulação social: notícias, HQs, anúncios, tirinhas etc. (BARBOSA; SIMÕES, 2017, p. 72) Vale destacar que essa ampliação dos textos abordados pela escola, na então disciplina Comunicação e Expressão, não configura uma transformação qualitativa do ensino da língua. Ora, por que ampliar os textos trabalhados na escola não seria um indicativo de melhoria na proficiência leitora e escritora dos alunos? Barbosa e Simões (2017) destacam que a inclusão dos textos que circulavam pelos meios de comunicação não representou a formação de leitores críticos e reflexivos, pois o modelo teórico e ideológico adotado à época visava à formação de alunos capazes de ler textos de diferentes esferas comunicativas por meio da codificação de men- sagens pelo receptor (no caso o aluno leitor) emitidas por produtores (à época uma imprensa controlada por um regime autoritário). Da perspectiva adotada, esperava-se que o aluno aprendesse a ler para decodifi- car as mensagens, que poderiam ser compreendidas de forma quase transparente. Ou seja, dessa perspectiva, o leitor é um sujeito passivo que não estabelece um diálogo com o texto, não o relaciona às suas próprias perspectivas e experiências e, principalmente não questiona o lugar de quem escreve e com quais intenções o faz. Abordando de maneira específica os textos jornalísticos, Barbosa e Simões desvelam como a concepção de língua dos currículos da década de 1970 estavam alinhadas com o projeto político-ideológico da época: Ao procurar formar sujeitos capazes de depreender informações de tex- tos jornalísticos de forma “transparente” – formando, por assim dizer, um mercado consumidor do jornal –, buscava-se, na verdade, formar sujei- tos orientados para o consenso, sem perspectiva de reflexão crítica em face dos enunciados jornalísticos com os quais os alunos viessem a interagir. Havia, portanto, um projeto político-ideológico definido que, com o objetivo de solidificar a massa trabalhadora, não tinha em mente 16 17 a formação para a cidadania crítica, mas para a instrumentalização dessa classe com a finalidade de desenvolver o capital. (BARBOSA ; SIMÕES, 2017, p. 73, grifo nosso) Por fim, vamos abordar agora a terceira fase, que pode ser chamada de modelo interacionista e vocação emancipatória (NONATO, 2019) que teve seu início na década de 1980, período marcado pelos movimentos de redemocratização do país. Nesse contexto político, a escola ganhou destaque, sendo reconhecida como a agência que poderia promover a transformação social. Em decorrência disso, é nesse período que a escola brasileira efetivamente acolhe as parcelas pobres da população, praticamente alcançando sua universalização. Nesse processo, foi incluído todo um diverso repertório cultural, além de uma imensa gama de variedades linguísticas, que até então estavam fora dos muros da instituição escolar. Somam-se a esse processo de redemocratização política as pesquisas divulgadas pelo linguista João Wanderley Geraldi ( CAVALCANTI; SILVA; SUASSUNA, 2014; BARBOSA, SIMÕES, 2017; PIETRI, 2018). As teorias divulgadas por esse autor representam bases importantes do desenvolvimento das ciências linguísticas, aplica- das ao ensino. Quais eram as propostas desse autor? Na proposta do autor (Geraldi), a concepção de linguagem insere-se no quadro teórico do sociointeracionismo. Importante! A concepção sociointeracionista busca contextualizar o ensino de língua dentro de um espaço sociocultural e histórico específico para cada situação: considera-se o contexto no qual a criança está inserida, incluindo-se nele a escola, compondo-se um grupo cul- tural, um grupo socioeconômico com características próprias que precisam ser levadas em consideração. De acordo com o autor, conceber a linguagem de uma perspectiva interacionista implica selecionar novos conteúdos e também estabelecer novas metodologias de ensino. Vamos conhecer quais são elas: • A concepção sociointeracionista ou sócio-histórica de linguagem inspirando as atividades de ensino; • A noção de texto, como um produto do trabalho interativo, e vinculado a suas condições discursivas de produção; • A noção de variedade linguística como própria de qualquer língua, deslocando a noção de certo/errado e definindo-se pelo ensino da chamada língua padrão; • A reorganização das práticas de sala de aula em torno da leitura, da produção de textos e da análise linguística. 17 UNIDADE A História da Língua Portuguesa como Disciplina Escolar Assim, Geraldi propõe que a análise gramatical não se restrinja às estruturas fo- nológicas e morfossintáticas da língua, mas que considerem o texto como a unidade mais significativa para o estudo da língua. A renovação proposta por Geraldi para o ensino de língua portuguesa teria como base três práticas articuladas: leitura, produção textual e análise linguística. É nesse momento que se mostram articuladas as bases teóricas para uma proposta de ensino enunciativo-discursiva, na qual o principal objetivo era formar alunos que soubessem dialogar com os textos lidos, formulassem réplicas, seja por meio da lei- tura ou por meio de produções textuais orais ou escritas. É também nesse período que a disciplina recupera a denominação Português. Por ora, cabe conceituarmos o que é assumir uma perspectiva enunciativo- -discursiva. Quando pensamos o ensino de línguas dessa perspectiva, é funda- mental a ideia de situação comunicativa. Ou seja, é necessário considerar que o texto emerge de uma situação concreta, norteada por elementos como: quem vai ler o texto, como e aonde ele irá circular – por meio de quais suportes, mídias, canais – e qual a intencionalidade de quem o produz? No interior dessa perspectiva, emerge o conceito de gêneros discursivos que ganha relevância nos estudos sobre ensino de língua portuguesa nos anos 1990. Nessa década, temos duas importantes frentes: os estudos sobre o letramento e os estudos da escola de Genebra. Esses últimos colocam no centro dos debates o con- ceito de “gênero do discurso”, considerados instrumentos e objetos de aprendizagem, como unidade norteadora da elaboração dos documentos curriculares, com o foco nas práticas sociais de uso da língua. Nesse contexto, temos a promulgação dos Parâmetros Curriculares Nacionais em 1997, representando um importante marco na história da disciplina: Assim, conforme os PCN, o ensino de português deve ser orientado pe- las práticas de linguagem (leitura, produção de textos e oralidade), o que significa tomar as práticas sociais de uso da linguagem como referência (e não somente as práticas escolares); deve tomar o texto como unidade de ensino e o gênero como objeto de ensino. Todo esse processo ela- borado na articulação da reflexão linguística que parte do uso e desem- boca no uso: movimento metodológico uso-reflexão-uso. (BARBOSA; SIMÕES, 2017) As três principais fases que marcam a história da disciplina Língua Portuguesa, clássica/beletrista, tecnicista e sociointeracionista, desvelam uma íntima relação com as transformações políticas e ideológicas vividas pelo Brasil. No interior de articulações tão amplas, é possível observar como é complexa a constituição de uma disciplina. Para compreendermos como se dá a transposição didática, ou seja, por quais processos e com que critérios determinados conteúdos relativos a um campo do conhecimento são selecionados, ou seja, tornam-se objetos de ensino para constituírem o currículo de uma disciplina, precisamos necessaria- 18 19 mente compreender, também, os processos políticos e sociais envolvidos. As razõespodem ser de duas naturezas: por um lado, razões de natureza social, política e cul- tural, por outro, as razões decorrem da própria evolução acadêmico-científica sobre os estudos da linguagem e das práticas didáticas. Nesta unidade, vimos que cada momento vivido pela sociedade brasileira, ao longo dos dois últimos séculos, influenciou, diretamente, a eleição de determinados conteúdos e práticas de ensino. Inicialmente, tínhamos três disciplinas distintas: gramática, retórica e poética, tendo no professor a figura de um sujeito extremamente letrado performando um papel autoral no desenvolvimento das práticas. A seguir, as disciplinas foram conjugadas em uma única, “Português”, que no decorrer de algumas décadas, devido à ampliação do público atendido pela escola e, consequentemente, da mudança de seu corpo docente, ganhou manuais que nor- tearam o trabalho a ser desenvolvido, mesmo que não apresentasse mudanças na concepção de língua adotada. Nas décadas de 1970 a 1980, durante o regime militar e diante da massificação dos meios de comunicação, a disciplina deixou a gramática e a leitura literária de lado e passou a focar na formação de alunos que soubessem decodificar mensagens, sem necessariamente questioná-las. Por fim, junto ao processo de redemocratização do país, a partir de 1990, a concepção de língua foi ressignificada, assim como o seu ensino e aprendizagem na escola. As práticas de linguagem consolidadas em textos de diferentes gêneros tornaram-se o eixo norteador do currículo na disciplina. Nesta disciplina, vamos compreender melhor a teoria-enunciativa da linguagem, os gêneros discursivos como objetos de ensino, o processo de formulação dos Parâ- metros Curriculares Nacionais, refletindo sobre todos os impactos dessas mudanças nas práticas desenvolvidas no interior das salas de aula de Língua Portuguesa. 19 UNIDADE A História da Língua Portuguesa como Disciplina Escolar Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Sites Centro de Memória e Acerdo Histórico O Centro de Referência em Educação Mário Covas abriga em seu portal um memorial que reúne acervos de memória e de referência do ensino público em São Paulo. São fotos, documentos normativos, produções de alunos e professores. https://bit.ly/3i6qlt4 Vídeos A concepção de linguagem determina o que e como ensinar Relato do Prof. Dr. Cláudio Bazzoni sobre o tema: “A concepção de linguagem determina o que e como ensinar” https://youtu.be/JUrY60mK2g8 Leitura Professor não pode ter medo de errar Revista “Na ponta do lápis” e confira uma excelente entrevista com o professor João Wanderlei Geraldi, importante pesquisador e grande influenciador no processo de construção da disciplina Língua Portuguesa, conforme abordamos nesta unidade. https://bit.ly/3jXC1Pj Breve história do ensino de Língua Portuguesa no Brasil Reportagem “Breve história do ensino de Língua Portuguesa no Brasil” de Márcia Pimentel. https://bit.ly/2Fk410p 20 21 Referências BARBOSA, J.; SIMÕES, P. Letramento midiático no ensino de português: a for- mação da contrapalavra crítica. Linha D’Água, v. 30, n. 2, p. 71-91, 27 out. 2017. 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