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AULA 2 PROFESSOR PESQUISADOR EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA Prof. Otto Henrique Martins da Silva 02 CONVERSA INICIAL Olá! Teremos hoje uma aula interessante, que tratará de resolução de problemas (problematização), modelagem matemática e etnomatemática. São questões que envolvem, diretamente, a prática pedagógica docente, e que, portanto, discutem uma forma metodológica do ensino da matemática. Além dessas discussões, são sugeridas duas aplicações voltadas à resolução de problemas e à modelagem matemática, sobre as quais você poderá aprofundar seus conhecimentos. CONTEXTUALIZANDO Como realizar um ensino de matemática voltado a situações reais e, quando possível, ao cotidiano do estudante? Quais as formas metodológicas que possibilitam isso? TEMA 1 – RESOLUÇÃO DE PROBLEMA A formulação e a resolução de problemas são abordagens bastante utilizadas no ensino de matemática, tanto no nível básico quanto no ensino superior. Devemos não só conhecê-las, mas também termos uma boa compreensão sobre as concepções e as possibilidades concretas do uso de ambas no ensino de matemática. Nesse caso, é necessária uma boa noção sobre o que vem a ser um “problema” ou uma “problematização” na aprendizagem da disciplina. Primeiro, discutiremos a problematização, pois ela antecede as discussões sobre a resolução de problemas. Também porque parece ser muito importante o entendimento do que vem a ser um problema ou uma problematização num contexto tanto filosófico quanto de ensino. Inicialmente, podemos entender a problematização como uma ação do sujeito que questiona uma dada realidade quando se confronta com algum obstáculo que lhe interpõe uma dificuldade ou que lhe traz inquietações em suas reflexões. Em relação a essa questão e à compreensão dessa realidade, podemos encontrar um problema cuja resolução necessite de estratégia, além de outras relações que possam surgir a partir das ações de enfrentamento. Então, sob essa perspectiva, temos um problema, pois surge a necessidade de 03 um momento para reflexões decorrente de uma perturbação ou provocação ao sujeito. A problematização no processo de ensino e aprendizagem possibilita uma contextualização, porque se faz necessário estabelecer ou explorar um contexto para realizar as relações do que está sendo problematizado com elementos ou aspectos de seu entorno. Por exemplo, a partir de um problema ou problematização de uma dada situação, pode-se levantar temas que dizem respeito à própria contextualização histórica e à gênese do conhecimento em questão. Em relação a isso, Bachelard (1977) destaca que Antes de tudo o mais, é preciso formular problemas. E seja o que for que digam, na vida científica, os problemas não se apresentam por si mesmos. É precisamente esse sentido do problema que dá a característica do genuíno espírito científico. Para um espírito científico, todo conhecimento é resposta a uma questão. Se não houver questão, não pode haver conhecimento científico. Nada ocorre por si mesmo. Nada é dado. Tudo é construído. (Bachelard, 1977, p. 148, citado por Delizoicov, 2001, p. 128) De outro modo, a contextualização da abordagem problematizadora possibilita, de forma concreta, uma articulação com o uso da história da matemática, por exemplo, e assim pode-se resgatar os processos históricos sobre a criação e a evolução dos conceitos matemáticos, pois, de acordo com Delizoicov, [...] seria propiciada a contextualização da origem, formulação e solução dos problemas mais relevantes que culminaram com a produção dos modelos e teorias, o que teria o potencial de explicar o significado histórico dos problemas junto aos estudantes e, talvez por isso, permitir-lhes a apreensão das soluções dadas e o respectivo conhecimento produzido. (Delizoicov, 2001, citado por Pietrocola, 2001, p. 134). A problematização ou a resolução de problemas como metodologia de ensino na matemática são questões bastante estudadas e discutidas por pesquisadores em educação matemática, e, a partir dessas pesquisas, pode-se discutir a compreensão de um problema e como essa metodologia poderia ser desenvolvida na prática pedagógica do professor. Contudo, devemos diferenciar problemas de exercícios, ou seja, distinguir aqueles que se caracterizam pelo uso de um algoritmo de forma mecânica na solução daqueles que procuram, principalmente, desenvolver uma estratégia para encontrar a solução (Dante, 1988). De modo geral, exercícios contribuem na aprendizagem por meio da retomada dos conceitos aprendidos e de suas aplicações na realização das atividades de fixação; porém, de acordo com Dante (1988, p. 85), “de modo 04 geral, eles não suscitam a curiosidade do aluno e nem o desafiam”. Mas, o que poderia desafiar e provocar os alunos no âmbito do ensino de matemática? Uma forma de dar significado ao ensino de matemática é propor questões que estejam relacionadas ao dia a dia do estudante, ou seja, questões relacionadas à compra de automóveis, habitações, aparelhos eletroeletrônicos, empréstimos bancários, índices inflacionários e de correções de preços e do salário mínimo etc. Assim, a partir dessas situações, podemos relacionar cálculos percentuais, juros simples e compostos da matemática financeira. E, no caso de aquisição de imóveis, podemos trabalhar com áreas, perímetros, custos de reformas e maquetes do imóvel em questão. Outros problemas relacionados a dados estatísticos e/ou probabilidades podem proporcionar situações interessantes para o ensino de matemática, como tabelas de campeonatos de futebol que possibilitem análises de performance dos times ou de possibilidades de cada um ser campeão. Para a resolução de problemas, destacamos, ainda, a proposta denominada de a arte de resolver problemas, desenvolvida por Polya (1995), que foi publicada no Brasil no ano de 1986. De acordo com o autor, a proposta deve seguir quatro etapas: 1. compreensão do problema; 2. estabelecimento de um plano; 3. execução do plano; 4. retrospecto. Você encontrará a descrição de cada uma delas a seguir. 1.1 Compreensão do problema Segundo o autor, para encontrar a resolução de um problema, devemos compreendê-lo e desejar resolvê-lo a partir de um enunciado claro; além disso, temos que ter certeza de dados, condições, incógnitas, fórmulas e algoritmos. Para uma melhor compreensão, esquemas podem auxiliar no entendimento do problema quando relacionados com as informações, possibilitando uma visão completa da situação. 05 1.2 Estabelecimento de um plano A partir da compreensão do problema, devemos elaborar um plano para solucioná-lo, propondo uma estratégia que possibilite um percurso para conhecer a incógnita. Contudo, convém refletir e estabelecer conexões entre as informações e a incógnita de forma motivada, e, caso necessário, observar situações similares para conceber alguma ideia que auxilie na estratégia de resolução. 1.3 Execução do plano estabelecido Depois de completar a etapa em que estabelecemos o plano a ser seguido, devemos colocá-lo em prática, o que corresponde a realizar os encaminhamentos organizados que serão executados com bastante cuidado devido a operações e cálculos matemáticos. 1.4 Retrospecto O retrospecto ‒ ou a revisão do processo de solução do problema ‒ corresponde à última etapa, e possibilita consolidar e aperfeiçoar o conhecimento utilizado e também a capacidade de resolver problemas. TEMA 2 – APLICAÇÕES DE RESOLUÇÃO DE PROBLEMA A seguir, mostramos um problema geométrico proposto por Polya (1995) e a discussão sobre sua solução. Um problema de traçado geométrico Inscrever um quadrado num triângulo dado. Dois vértices do quadrado devem situar-se sobre a base do triângulo e os dois outros vértices sobre os dois outros lados do triângulo,um em cada. ‒ Qual é a incógnita? ‒ Um quadrado ‒ Quais são os dados? ‒ É dado um triângulo, nada mais. ‒ Qual é a condicionante? ‒ Os quatro vértices do quadrado devem situar-se sobre o perímetro do triângulo, dois deles sobre a base e um vértice em cada um dos dois outros lados. ‒ É possível satisfazer a condicionante? ‒ Acho que sim. Não tenho muita certeza. ‒ Parece achar que o problema não é muito fácil. Se não puder resolver o problema proposto, procure primeiro resolver algum problema correlato. É possível satisfazer uma parte da condicionante? ‒ Que quer dizer por parte da condicionante? ‒ Como vê, a condicionante refere-se a todos os vértices do quadrado. Quantos vértices tem o quadrado? 06 ‒ Quatro. ‒ Uma parte da condicionante seria relativa a menos de quatro vértices. Mantenha apenas uma parte da condicionante, deixe a outra de lado. Que parte da condicionante é fácil de satisfazer? ‒ É fácil traçar um quadrado que tenha dois vértices sobre o perímetro ou mesmo três vértices sobre o perímetro. ‒ Trace uma figura. O aluno traça a Figura 2. ‒ Manteve uma parte da condicionante e deixou a outra de lado. Até que ponto ficou a incógnita assim determinada? ‒ O quadrado não ficará determinado se tiver apenas três vértices sobre o perímetro. ‒ Muito bem. Trace uma figura. O aluno traça a Figura 3. ‒ Como disse, o quadrado não fica determinado pela parte da condicionante que foi mantida. Como é que ele pode variar? ‒ ... ‒ Três dos vértices do quadrado estão sobre o perímetro do triângulo, mas o quarto não está lá onde deveria ficar. O seu quadrado, como observou, está indeterminado, ele pode variar, assim como o seu quarto vértice. Como é que pode variar? ‒ ... ‒ Tente experimentalmente se desejar. Trace outros quadrados com três vértices sobre o perímetro, da mesma maneira que traçou os dois quadrados já na figura. Trace os quadrados grandes e pequenos. O que parece ser o lugar geométrico do quarto vértice? Como é que ele pode variar? O professor levou o aluno até próximo da ideia da solução. Se este for capaz de perceber que o lugar geométrico do quarto vértice é uma reta, ele terá chegado à solução. (Polya, 1995, p. 15-17) 07 TEMA 3 – MODELAGEM MATEMÁTICA A modelagem é um encaminhamento interessante no ensino de matemática em situações do dia a dia que contenham problemas para serem resolvidos ou estudados. Porém, de acordo com Bassanezi (2002), a modelagem matemática também é um método de pesquisa, e pode ser compreendida como a “arte de transformar problemas da realidade em problemas matemáticos e resolvê-los interpretando suas soluções na linguagem do mundo real” (Bassanezi, 2002, p. 16). Assim, podemos compreender que o problema real pode ser, de forma aproximada, representado por meio de um modelo matemático associado ao conhecimento matemático, principalmente no que diz respeito à solução do problema. Segundo Biembengut (2009), a modelagem matemática é o processo que envolve a obtenção de um modelo a partir de um problema. Ou seja, Seja qual for o caso, a resolução de um problema, em geral quando quantificado, requer uma formulação matemática detalhada. Nessa perspectiva, um conjunto de símbolos e relações matemáticas que procura traduzir, de alguma forma, um fenômeno em questão ou problema de situação real, denomina-se "modelo matemático". (Biembengut; Hein, 2009, p. 12) De acordo com os autores, podemos citar como exemplos de modelos matemáticos as equações algébricas, os diagramas e as representações geométricas, cujas elaborações estão relacionadas diretamente ao conhecimento matemático. De acordo com o filósofo da ciência Bunge (1974, p. 10), “toda teoria específica é, na verdade, um modelo matemático de um pedaço da realidade”, e, portanto, podemos considerar os modelos matemáticos como representações aproximadas da realidade por meio das teorias científicas. De acordo com Bassanezi (2002, p. 19-20), o modelo está restrito a dois tipos: objeto e teórico. O primeiro termo é definido pelo o autor como a "representação de um objeto ou fato concreto”, cujas “características predominantes são a estabilidade e a homogeneidade das variáveis”. Ainda, segundo o autor, suas representações podem ter a forma de um desenho ou um mapa, ou de uma fórmula matemática, como um modelo epidemiológico que considera o grupo de infectados como sendo homogêneo; ou de um desenho para representar o alvéolo dos favos usado pelas abelhas na produção de mel. O modelo teórico, segundo Bassanezi (2002, p. 20), vincula-se a uma teoria geral existente, e “será sempre construído em torno de um modelo objeto 08 com um código de interpretação”. Um exemplo de modelo teórico é aquele usado na obtenção da equação da tratória, descrita a seguir: 3.1 Tratória Muitos problemas que serviram para testar métodos matemáticos ou estimular desafios e competições entre matemáticos nos séculos XVII e XVIII tiveram sua origem na observação de processos mecânicos, geralmente simples. O estudo de curvas especiais que servissem para modelar tais fenômenos físicos proporcionou o desenvolvimento tanto da Mecânica como do próprio Cálculo Diferencial e Integral. No rol das curvas que surgiram na ocasião, podemos citar a catenária, a braquistócrona, a velária, a tratória entre outras tantas. Destas, a tratória é a menos conhecida atualmente. Acredita-se que o problema que a originou tenha sido proposto por C. Perrault por volta de 1670 que, para ilustrar a questão, puxava seu relógio de bolso, apoiado sobre uma mesa, pela corrente. Movendo a ponta da corrente sobre a borda da mesa, o relógio descrevia uma curva que tendia à borda, era a tratória. Para a obtenção da equação da tratória, basta entender que, durante o movimento de arrasto do relógio, a corrente está sempre tangente à trajetória descrita pelo relógio. Também, a distância entre o ponto de tangência (relógio) e o eixo-x (borda da mesa), sobre a reta tangente (corrente), é constante (comprimento da corrente esticada). A tradução desta linguagem para a linguagem matemática permite descrever o fenômeno pelo modelo: 𝑑𝑦 𝑑𝑥 = − 𝑦 √𝑎2−𝑦² , cuja solução é a tratória mostrada no gráfico a seguir (Bassanezi, 2002, p. 21); Em relação aos modelos matemáticos, esse autor afirma que os modelos matemáticos são classificados em: Linear ou não linear – caso as equações básicas possuam essa característica. Estático – quando representa a forma de um objeto (a forma geométrica de um alvéolo) ou dinâmico – quando simula variações de estágios do fenômeno (crescimento populacional de uma colmeia). Educacional – quando é baseado em um número pequeno ou simples de suposições, tendo quase sempre soluções analíticas (modelo presa- predador de Lotka-Volterra). [...] Geralmente estes modelos não representam a realidade com o grau de fidelidade adequada para se fazer previsões. Entretanto, a virtude de tais modelos está na aquisição de experiência e no fornecimento de ideias para a formulação de modelos mais adequados à realidade estudada; ou aplicativo – baseado em hipóteses realísticas e, geralmente, envolve inter-relações 09 de um grande número de variáveis, fornecendo em geral sistemas de equações com numerosos parâmetros. Estocástico ou Determinístico, de acordo com o uso ou não de fatores aleatórios nas equações. Os modelos determinísticos são baseados na suposição que se existem informações suficientes em um determinado instante ou num estágio de algum processo, então todo o futuro do sistema pode ser previsto precisamente. Os modelos estocásticos são aqueles que descrevem a dinâmica de um sistema em termos probabilísticos (cf. M. Thompson). Os modelos práticos tendem a empregar métodos estocásticos, e quase todos os processos biológicos são formulados com estes modelos quando se tem pretensões de aplicabilidade. (Bassanezi, 2002, p. 20-22). O autorainda destaca que a modelagem matemática transpõe “o problema de alguma realidade para a Matemática onde será tratado através de teorias e técnicas próprias desta Ciência” (Bassanezi, 2002, p. 25). Uma outra forma de organização do processo da modelagem matemática é proposta por Biembengut (2009, p. 13). Segundo essa autora, isso ocorre em três etapas importantes: a) Interação reconhecimento da situação-problema; familiarização com o assunto a ser modelado → referencial teórico. b) Matematização formulação do problema →hipóteses; resolução do problema em termos de modelo. c) Modelo matemático interpretação da solução; validação do modelo → avaliação (Biembengut, 2009, p. 13). Ainda segundo Biembengut (2009), após a definição do tema na primeira etapa, realiza-se um estudo, buscando maior clareza da situação-problema à medida que se interage com os dados de pesquisa. Na segunda etapa, que pode ser iniciada mesmo sem a conclusão da primeira, é constituída a formulação do problema e da resolução, consistindo, portanto, na ‘tradução” da situação-problema para a linguagem matemática com o objetivo de se obter “um conjunto de expressões aritméticas ou fórmulas, ou equações algébricas, ou gráficos, ou representações, ou programa computacional, que levem à solução ou permitam a dedução de uma solução” (Biembengut, 2009, p. 14). Vale destacar que a modelagem matemática corresponde a uma metodologia pensada como uma forma pedagógica de se ensinar os conteúdos matemáticos na educação básica, e que “norteia-se por desenvolver o conteúdo programático a partir de um tema ou modelo matemático e orientar o aluno na realização de seu próprio modelo-modelagem” (Biembengut, 2009, p. 18). 010 TEMA 4 – APLICAÇÕES DE MODELAGEM MATEMÁTICA A seguir, apresentaremos um exemplo do uso da modelagem matemática envolvendo as grandezas físicas (Gomes, 2015). 4.1 Relações entre grandezas físicas O projeto intitulado Relações entre Grandezas Físicas versou sobre um conjunto de experimentos feitos em grupo de alunos com orientação escrita quanto a material e procedimento e com acompanhamento da professora. Os alunos fazem a montagem, realizam os ensaios, efetuam as medidas, coletando os dados, organizando-os em tabelas e depois em gráficos. Fazem, então, a análise pelo ajuste de uma curva no gráfico e a determinação de alguns parâmetros relevantes e possíveis de se extraírem, considerando o nível de ensino em que estão. Com isso, em algumas situações modelam o fenômeno ajustando uma curva teórica com parâmetros obtidos dos dados experimentais. Os resultados relativos ao projeto desenvolvido nos 1os anos do Ensino Médio-EM da E. E. João Ramalho em São Bernardo do Campo, no ano de 2001, são documentados em relatórios e apresentados para apreciação coletiva em uma exposição. Posteriormente, os dados para o experimento do pêndulo simples foram usados para o ajuste em computador. O ajuste linear e o modelo da equação linear (ver Figura 1) propiciam o cálculo da aceleração da gravidade por modelagem matemática. 4.2 João e o Pé de Feijão A proposta da modelagem de dados do crescimento do pé de feijão foi feita pelo Prof. Geraldo Pompeu Jr. da UNESP de Guaratinguetá no Curso de Especialização em Modelagem Matemática em Ensino- Aprendizagem coordenado pelo Prof. Rodney Carlos Bassanezi da UFABC no ano de 2009 (Biembengut et al., 2013). Sua proposta era de acompanhar o crescimento do pé de feijão registrando diariamente a 011 sua altura. Os dados organizados numa tabela seriam transformados num gráfico. O ajuste e o modelo poderiam ser estudados de acordo com o nível de ensino e habilidade dos alunos. O uso do computador, além de altamente motivador, seria útil para a compreensão rápida dos ajustes e modelos viáveis. Quando em contato com essa proposta pensei na associação do experimento de Ciências (Botânica) com a história infantil “João e o Pé de Feijão”, encontrada em diversas versões na literatura infantil (Rocha, 2004; Bellinghausen, 2006). A história contada para crianças pequenas poderia ser complementada com o experimento de observação da brotagem e crescimento do pé de feijão. Com crianças maiores, mesmo ainda na Educação Infantil, se estimularia a produção de registros dos dados, elaboração de tabelas e gráficos adequados para a faixa etária. No Ensino Fundamental-EF, a abordagem seria já mais elaborada incluindo a resolução de problemas vinculando a história, às observações experimentais, o tratamento da informação e os cálculos. No EF (anos finais) e no EM, o tratamento informatizado relacionado à modelagem matemática por meio de ajustes de curvas e extração de parâmetros do modelo seriam possibilidades mais elaboradas da modelação. Apresento assim, algumas sugestões para esse trabalho atendendo a etapas conforme a faixa etária considerada, descritas a seguir. 1ª etapa – Contação de história Contar (ou ler) a história de João e o Pé de Feijão, o que pode ser complementado ou substituído por um vídeo da mesma história, início de um projeto de trabalho integrado com vários conteúdos abordados de forma diversificada e lúdica. 2ª etapa ‒ O pé de feijão ou feijoeiro: brotamento e crescimento É feita a experiência de observação e medição da altura do pé de feijão. No caso da Educação Infantil, pode-se trabalhar a questão do feijão na alimentação da criança e de sua família. Receitas que envolvam o feijão: cozinha e degustação na escola. Aspectos nutricionais do feijão. Esta etapa pode ser complementada por outros aspectos como os da agricultura, comercialização e consumo do feijão no Brasil para alunos do EF. Com relação à medição, sempre será feita por comparação. No entanto, o que se faz com régua ou papel quadriculado (ou milimetrado) em anos mais avançados, na Educação Infantil e nos anos iniciais do EF as medidas podem ser feitas por marcações em papel colocado num suporte vertical (a parede, por exemplo, como nas fotos da Figura 2) ou cortado em tira no tamanho da planta a cada dia a ser colada em cartolina ou numa folha do portfólio da criança. Essa tira de papel pode ser colorida ou com desenhos feitos pela própria criança representando a sua observação naquele dia. A ligação entre pontos no topo de cada coluna guia a visão para acompanhar a evolução do crescimento do pé de feijão. Essa ligação pode ser feita desenhando-se a linha ou com barbante ou cola colorida (Figura 3). 012 3ª etapa – Modelagem matemática do fenômeno Após a coleta dos dados, passa-se à organização dos dados em tabelas e gráficos e sua análise. No computador podem ser construídos usando-se o diagrama de dispersão nas suas mais variadas formas. Os pontos no gráfico podem ser ligados simplesmente por linhas retas. Os ajustes-tentativas podem ser feitos pelas linhas de tendência como na Figura 4 onde são mostradas as fórmulas obtidas com ajuste polinomial. Um modelo que descreva o crescimento de qualquer pé de feijão a ser verificado experimentalmente já é uma etapa mais elaborada e objeto de outra oficina. O modelo adequado neste caso seria o modelo logístico de crescimento que descreve o crescimento em duas etapas onde há mudança de concavidade da curva. Na 1ª etapa o crescimento é mais rápido e descrito por uma função exponencial. Na 2ª etapa, mais lento, e descrito por uma função exponencial assintótica. (Bassanezi, 2006, p. 333-340) 4.3 Descobrindo a presença do número π nas coisas Outro projeto foi desenvolvido em caráter de “revisão” de conceitos básicos de Geometria onde as dificuldades em relação a esses conteúdos eram visíveis e presentes não só nas turmas de EJA como no EM regular dos anos 2010 e 2011. O tema é instigado onde aspectos históricos e curiosidades sobre o número π podem ser levantados (Lima, 2004) bem como literários como no romance de ficção científica “Contato” de autoria do físico e astrônomo CarlSagan (1986, p. 494 e 499-500). Sua abordagem nesta oficina trata da modelagem matemática de medidas de circunferência e área do círculo em função do diâmetro, levando à determinação do parâmetro de relação entre essas grandezas: o número π (Lima, 2004). As curvas a serem ajustadas são modeladas por uma função linear no caso do perímetro (P) e uma função quadrática no caso da área (A) em função do diâmetro (D). A sequência didática envolveu várias etapas descritas a seguir. 013 1ª etapa – Coleta dos dados Solicitou-se aos alunos a coleta de objetos cilíndricos em casa. Em algumas salas a professora trouxe alguns objetos e outros da própria sala de aula foram usados. Estabeleceu-se uma discussão sobre o objetivo da atividade, a nomenclatura envolvida, o processo e os instrumentos de medida a serem usados. A medida do diâmetro de cada objeto foi feita com régua e do perímetro com barbante e régua ou fita métrica em alguns exemplos na sala de aula. Aos alunos foi solicitado que escolhessem 3 objetos em casa, fizessem as medidas e apresentassem os resultados em uma tabela e trouxessem para a sala de aula. 2ª etapa – Análise dos Dados Os dados coletados individualmente foram compartilhados coletivamente, trazidos para a lousa e organizados numa única tabela cujos dados de diâmetro variavam de uns poucos centímetros como no caso de tampas de garrafa ou embalagens de batom até 30 ou 40 cm como no caso de baldes ou panelas, por exemplo. Os alunos construíram no caderno uma tabela contendo o nome dos objetos, a medida do diâmetro e do seu perímetro. Após uma discussão não conclusiva sobre a relação possível entre diâmetro e perímetro, observando a tabela e os objetos, os alunos foram orientados a calcularem a razão perímetro (P) e diâmetro (D) – relação P/D, organizando-a numa outra coluna da mesma tabela. A obtenção de valores muito próximos de P/D chama a atenção sobre a sua igualdade envolvendo a discussão sobre os erros na medida e sua propagação no cálculo. 3ª etapa – Determinação do número π De posse desses dados, a análise foi concluída em sala de aula e também na sala de informática. Os alunos geraram uma tabela com os dados de P, D e a razão P/D em ambiente real e virtual. A observação anterior leva a proposição do modelo linear para a relação entre P e D com coeficiente linear nulo, ou seja: P = πmedição ∙ D O valor de πmedição foi obtido de duas maneiras a serem comparados,1 seguindo os procedimentos: 1. Por meio da média dos valores da razão P/D feita com calculadora e com planilha eletrônica. 2. Pelo ajuste de uma função linear cujos coeficientes foram obtidos computacionalmente por regressão linear. 3. Comparação dos valores obtidos nas duas maneiras com o valor de π = 3,14 (até a segunda casa decimal). A estimativa do erro cometido é obtida pelo cálculo do desvio da média pela fórmula: Erro = Mod (valor medido – valor esperado)/valor esperado Uma das alunas, ao apresentar sua análise em planilha eletrônica, mesmo com as dificuldades de escrita espontânea comuns a nossos alunos, mas que denota a sua percepção e compreensão do assunto tratado, dá o seguinte parecer: “Foram obtidas duas formas de cálculos, a de número PI e no PI médio deu-se o valor 3,37 e no resultado da soma do PI pelo gráfico deu-se 3,34. Mas acredito que o resultado que seria mais correto é do gráfico”. Outra aluna estimou o erro na medição do perímetro de um objeto (um porta-lápis) de diâmetro D = 6 cm. O perímetro foi medido e depois comparado com o valor calculado P = π ∙ D usando π = 3,14 e avaliando-se o erro na medida (Gomes, 2015). 1 O aplicativo computacional usado foi o MS-EXCEL disponibilizado pelo ACESSA SÃO PAULO do Governo do Estado de São Paulo às escolas públicas estaduais (Gomes, 2015). 014 Saiba mais Para saber mais sobre modelagem matemática nas relações entre grandezas, leia o artigo completo de Vivilí Maria Silva Gomes. Disponível em: <https://www.ime.usp.br/caem/anais_mostra_2015/arquivos_auxiliares/oficinas/ Oficina12_Vivili.pdf>. TEMA 5 – ETNOMATEMÁTICA A partir do V Congresso Internacional de Educação Matemática, realizado no ano de 1984 em Adelaide, na Austrália, as críticas com relação à educação matemática tornaram-se mais intensas, especialmente quanto ao ensino de matemática. De acordo com D’Ambrósio (1998), [...] o Quinto Congresso Internacional de Educação Matemática, que se realizou em Adelaide, Austrália, em agosto de 1984, mostra uma tendência definitiva sobre preocupações socioculturais nas discussões sobre educação matemática. Questões sobre “Matemática e sociedade”, “Matemática para todos” e mesmo a crescente ênfase na “História da matemática e de sua pedagogia”, as discussões de metas da educação matemática subordinadas às metas gerais da educação e sobretudo o aparecimento da nova área, a etnomatemática, com forte presença de antropólogos e sociólogos, são evidências da mudança qualitativa que se nota nas tendências da educação matemática. (D’Ambrósio, 1998, p. 12.) A partir das discussões realizadas nesse congresso em que o consenso era que a educação matemática deveria se voltar para as questões socioculturais, Ubiratan D’Ambrósio se destacou pela teorização da Etnomatemática. Ele afirmou, sobre essa proposta, que: [...] utilizamos como ponto de partida a sua etimologia: etno é hoje aceito como algo muito amplo, referente ao contexto cultural, e, portanto, inclui considerações como linguagem, jargão, códigos de comportamento, mitos e símbolos; matema é uma raiz difícil, que vai na direção de explicar, de conhecer, de entender; e tica vem sem dúvida de techne, que é a mesma raiz de arte ou técnica. Assim, poderíamos dizer que etnomatemática é a arte ou técnica de explicar, de conhecer, de entender nos diversos contextos culturais [...]. (D’Ambrósio, 1998, p. 5-6.) Em relação ao termo etnomatemática, D’Ambrósio adverte que [...] é um grande equívoco pensar que a etnomatemática pode substituir uma boa matemática acadêmica, que é essencialmente para o indivíduo ser atuante no mundo moderno. Na sociedade moderna, a etnomatemática terá utilidade limitada, mas, igualmente, muito da matemática acadêmica é absolutamente inútil nessa sociedade. (D'Ambrósio, 2011, p. 43.) https://www.ime.usp.br/caem/anais_mostra_2015/arquivos_auxiliares/oficinas/Oficina12_Vivili.pdf https://www.ime.usp.br/caem/anais_mostra_2015/arquivos_auxiliares/oficinas/Oficina12_Vivili.pdf 015 FINALIZANDO Chegamos ao fim desta aula em que três grandes questões sobre a educação matemática foram discutidas: a resolução de problemas, a modelagem matemática e a etnomatemática. Em relação a essas discussões, lembramos que elas são encaminhamentos metodológicos muito interessantes, e que você poderá aplicá-las em suas aulas futuramente. Portanto, busque aprofundar-se no assunto por meio da literatura citada ao longo desta aula. 016 REFERÊNCIAS BACHELARD, G. O racionalismo aplicado. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. BASSANEZI, R. C. Ensino-aprendizagem com modelagem matemática. São Paulo: Contexto, 2002. BELLINGHAUSEN, I. B. João e o pé de feijão. São Paulo: DCL, 2006. BIEMBENGUT, M. S.; HEIN, N. Modelagem matemática no ensino. São Paulo: Contexto, 2011. BUNGE, M. Teoria e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1974. D’AMBROSIO, U. Etnomatemática: elo entre as tradições e a modernidade. 4. ed. Belo Horizonte: Autentica, 2011. _____. Etnomatemática: arte ou técnica de explicar e conhecer. 5. ed. São Paulo: Ática, 1998. DANTE, L. R. Criatividade e resolução de problemas na prática educativa matemática. 1988. 192f. Tese (Livre Docência) ‒ Universidade Estadual Paulista ‒ Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro, 1988. DELIZOICOV, D. Problemas e problematizações. In: PIETROCOLA, M. (Org.). Ensino de física: conteúdo, metodologia eepistemologia em uma concepção integradora. 2. ed. Florianópolis: UFSC, 2001. GOMES, V. M. S. Oficina 12: modelagem matemática nas relações entre grandezas físicas. Universidade Federal do ABC. Disponível em: <https://www.ime.usp.br/caem/anais_mostra_2015/arquivos_auxiliares/oficinas/ Oficina12_Vivili.pdf>. LIMA, E. L. O que é o número π? Brasília: SEB-MEC, 2004. p. 126-129. Coleção Explorando o Ensino ‒ Matemática, v. 1. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/EnsMed/expensmat_icap1.pdf>. Acesso em: 30 dez. 2017. POLYA, G. A arte de resolver problemas: um novo enfoque do método matemático. Tradução e adaptação de Heitor Lisboa de Araújo. Rio de Janeiro: Interciência, 1995. ROCHA, R. Joãozinho e o pé de feijão. São Paulo: FTD, 2004. SAGAN, C. Contato. Rio de Janeiro: Guanabara Dois, 1986. https://www.ime.usp.br/caem/anais_mostra_2015/arquivos_auxiliares/oficinas/Oficina12_Vivili.pdf https://www.ime.usp.br/caem/anais_mostra_2015/arquivos_auxiliares/oficinas/Oficina12_Vivili.pdf