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Letramento como prática social APRESENTAÇÃO Certamente você já escutou o termo letramento e, dentro de diferentes contextos de uso, percebeu que ele pode ser usado com sentidos diferentes. Nesta Unidade de Aprendizagem, vai ser discutido o conceito de letramento pela perspectiva dos Novos Estudos sobre Letramento, que entendem as práticas de letramento como práticas sociais. Também vamos compreender o porquê das discussões recentes sobre esse conceito e sobre o esforço de distingui-lo do conceito de alfabetização. Bons estudos. Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Refletir sobre a história dos Estudos sobre Letramento.• Analisar o conceito de letramento na área dos Novos Estudos sobre Letramento.• Relacionar os conceitos de letramento e alfabetização.• DESAFIO As práticas de letramento são práticas sociais e, portanto, dependem do contexto social e histórico. Em contextos de periferia, muitas crianças alfabetizadas participam de práticas de letramento institucionais para auxiliar os familiares não alfabetizados. Lília, uma menina de 10 anos, moradora de um bairro de periferia na cidade de Porto Alegre/RS, não está mais frequentando a escola pois se sente desmotivada com as notas baixas e os comentários dos professores sobre sua falta de higiene e cuidados com os materiais escolares. Quando questionados, os professores afirmam que Lília vem de um contexto "iletrado", pois a família não estimula práticas de letramento escolares. Contudo, ao observar a rotina de Lília, percebemos que ela tem um grande prestígio dentro da sua comunidade. Por saber ler, escrever e fazer contas, Lília é responsável pelo controle da "caderneta" no mercado, por acompanhar os familiares mais velhos no posto de saúde e conversar com o médico, participar das reuniões pedagógicas na creche dos irmãos e primos mais novos e fazer a leitura das correspondências para os familiares e vizinhos analfabetos. Por que, apesar de participar ativamente de tantas práticas de letramento, Lília fracassa na escola e é considerada iletrada pelos professores? INFOGRÁFICO Neste infográfico, você vai conhecer seis pontos principais que definem letramento como uma prática social, situada no tempo e no espaço. CONTEÚDO DO LIVRO Um indivíduo alfabetizado não será necessariamente letrado. Letramento e alfabetização não são sinônimos. Enquanto o primeiro utiliza a língua como prática social, o segundo apenas decodifica o signo linguístico. Neste capítulo Letramento como Prática Social da obra Fundamentos e metodologias da língua portuguesa, você conhecerá todo o processo histórico educacional: da alfabetização até o surgimento do termo letramento, em seguida, refletirá sobre as diferentes abordagens que esse conceito adquiriu ao longo dos anos e, para finalizar, você irá contrastar os dois conceitos: letramento e alfabetização. Boa leitura. FUNDAMENTOS E METODOLOGIAS DA LÍNGUA PORTUGUESA Roberta Spessato Letramento como prática social Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Refletir a respeito da história dos estudos sobre letramento. Analisar o conceito de letramento na área dos novos estudos sobre letramento. Relacionar letramento e alfabetização. Introdução Letramento e alfabetização, embora mantenham uma relação bastante íntima, são dois conceitos distintos. Enquanto o letramento é complexo e abrangente, a alfabetização representa um processo mais mecânico. Neste capítulo, inicialmente, você vai conhecer a história dos estudos sobre letramento. Em seguida, vai ver como o conceito de letramento é utilizado em diferentes áreas. Por fim, vai verificar quais são as distinções entre letramento e alfabetização. 1 A educação e o letramento no Brasil Desde o início da sua colonização, o Brasil passou por diferentes fases edu- cacionais. No entanto, segundo Ramos (2001), a educação, em todos os seus níveis, foi e continua sendo caracterizada por certo elitismo e pela exclusão de crianças e jovens oriundos de classes populares. Paiva (1983) afi rma que, ainda na época da colonização, quando a educação era dominada pelos jesuítas, o ensino direcionava-se aos fi lhos de colonos brancos e de caciques indígenas. Ou seja, à população negra, aos escravos, não se permitia o estudo. A aprendizagem daqueles que eram vistos como inferiores acontecia por meio de sermões, com o objetivo de ensiná-los a praticar a moral cristã. Para Ribeiro (1982), esse sistema garantia o domínio social, cultural e econômico de uma minoria letrada, o que atendia aos interesses tanto da elite colonizadora quanto do Império Português. Do descobrimento ao conceito de letramento O Brasil foi descoberto no século XV, no ano de 1500, por Pedro Álvares Cabral, e a estrutura educacional brasileira não sofreu grandes modificações entre os séculos XV e XVIII. De acordo com Ramos (2001), a primeira ten- tativa de mudança no quadro educacional ocorreu devido à ascensão do ciclo econômico da mineração e ao surgimento da classe média e de um mercado interno brasileiro. Essas transformações, como pontua Ribeiro (1982), provocaram a expulsão dos jesuítas, em 1759, e inauguraram o ensino público primário. No entanto, somente após 1808, com a vinda da família real ao Brasil, surgiu a ideia de instaurar um sistema nacional de educação completo, composto de escolas primárias (gratuitas), de ginásios (equivalentes ao ensino médio) e de uni- versidades. Embora aparentemente tenha existido um avanço educacional no País, a educação era para poucos. Apenas tinham acesso a ela pessoas ligadas à coroa portuguesa ou que faziam parte da elite intelectual e social branca. Décadas se passaram, e a educação continuou a ser para poucos. Apenas indivíduos brancos e socialmente superiores tinham a possibilidade de estu- dar no Brasil. Desse modo, mesmo com as inúmeras reformas educacionais realizadas após 1808, não houve nenhum resultado significativo, como afirma Ramos (2001, p. 5): “Em 1890, o percentual de analfabetos no Brasil era de 85%, baixando para 75% na década seguinte. Em 1929, mais da metade (65%) da população brasileira de 15 anos ou mais havia sido excluída da escola”. A necessidade de proteger a ordem social era um dos principais motivos de não viabilizar o acesso educacional à população menos favorecida. No entanto, com o desenvolvimento da sociedade urbana, comercial e industrial, o analfabetismo passou a ser um grande problema. No início do século XX, o crescimento populacional nos grandes cen- tros urbanos, unido à violência, acentuou a necessidade de controle social e acarretou um “novo” modelo educacional, o qual se baseava em um discurso filantrópico sobre acabar com a pobreza. A educação como forma de progresso, para Ramos (2001), não teve como objetivo melhorar a situação social do povo brasileiro, e sim preparar mão de obra qualificada para servir à elite. Dessa Letramento como prática social2 maneira, a educação das crianças de classes populares continuou a limitar-se a uma preparação para o trabalho e ao adestramento em ofícios manuais, em substituição à educação formal. Em 1937, segundo Ramos (2001), instituiu-se o ensino profissional, des- tinado às classes mais populares e direcionado à formação de mão de obra para a indústria e para o comércio. Inclusive, nessa mesma época, surgiram as escolas técnicas federais, os cursos do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), etc. Realmente, é inquestionável que houve um avanço e uma nova perspectiva para a classe trabalhadora urbana, contudo sempre dentro dos seus limites de classe. Entre 1945 e 1964, o Estado e a educação brasileira foram marcados pelo ideário político populista. Segundo Ramos (2001), essa fase se caracterizou por uma significativa queda no percentual de analfabetos, pela expansão da escolaridade básicae por campanhas de alfabetização de adolescentes e adultos. Além disso, o método de Paulo Freire começou a emergir na alfabetização de adultos. Pela primeira vez na história da alfabetização, começou-se a analisar o ensino a partir do universo vocabular do aluno, e não da imposição de palavras alheias ao seu vocabulário. A ideia era utilizar uma visão antropológica de cultura unida à alfabetização. No entanto, durante a ditadura militar, de 1964 a 1985, ocorreu um processo paradoxal na educação brasileira. Investiu-se no ensino técnico (para formar mais mão de obra) e na educação de jovens e adultos, já que a taxa de anal- fabetismo ainda era muito significativa. Contudo, não se buscava indivíduos pensantes, mas apenas reprodutores de conhecimento. Portanto, com a expansão da alfabetização, as práticas escolares de leitura e de escrita enfatizavam o processo de “decodificação”, baseando-se em cartilhas. As cartilhas ensinavam os alunos a desmontar palavras em sílabas e sílabas em letras, para depois montar outras palavras, e assim por diante. Na verdade, acreditava-se que as pessoas apenas precisavam aprender a ler e a escrever; não era necessário que elas refletissem sobre o que liam ou escreviam. Cagliari (1999) define o processo de decodificação como uma forma de adestramento, o que acarreta defasagens na aprendizagem. Além disso, afirma que o uso de cartilhas é ineficaz para o ensino e a aprendizagem. Veja: A maneira como as cartilhas lidam com a fala e a escrita confunde as crianças uma vez que passa a ideia de que a linguagem é uma “soma de tijolinhos” representados pelas sílabas e unidades geradoras. Ora, as crianças aprende- ram a falar de outra maneira e, portanto, para elas a linguagem apresenta-se 3Letramento como prática social como um todo organizado de maneira muito diversa daquela que a escola lhes mostra. No fundo, as cartilhas deixam de lado toda a trama da linguagem, ficando apenas com o que há de mais superficial (CAGLIARI, 1999, p. 82). Somente com o fim da ditadura e com a redemocratização brasileira é que a alfabetização passou a ser estudada com um viés mais crítico e analítico. Assim, em meados da década de 1980, a palavra “letramento” aparece pela primeira vez no livro de Mary Kato intitulado No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística, de 1986. A noção de letramento surgiu por uma necessidade educacional e social, pois a partir dela a metamorfose educacional e social teve início. É o que afirma Tfouni (2002, p. 23): Em termos sociais mais amplos, o letramento é apontado como sendo produto do desenvolvimento do comércio, da diversificação dos meios de produção e da complexidade crescente da agricultura. Ao mesmo tempo, dentro de uma visão dialética, torna-se uma causa de transformações históricas profundas, como o aparecimento da máquina a vapor, da imprensa, do telescópio e da sociedade industrial como um todo. A inclusão desse novo conceito ao vocabulário educacional-científico foi o grande indicador de uma transformação educacional. Na óptica de Soares (2004), o nascimento dessa terminologia foi um dos reflexos das mudanças nas práticas sociais da educação brasileira: as novas demandas sociais de uso da leitura e da escrita careciam de uma nova palavra para denominá-las. O letramento e o seu papel de transformação social As transformações nas políticas públicas se refl etiram também na análise do nível educacional que o Brasil possuía. Portanto, em 1990, criou-se o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e, pela primeira vez na história da educação brasileira, houve um exame avaliativo para se verifi car como estava o nível de leitura e de escrita dos alunos do ensino básico. Os resultados desse exame apontaram para um nível muito abaixo do esperado. Os indivíduos alfabetizados, embora soubessem ler e escrever, não tinham necessariamente domínio da leitura e da escrita; ou seja, verificou-se que ser alfabetizado não era sinônimo de ser letrado. Para Soares (2004), Letramento como prática social4 alguém que saiba escrever ou ler qualquer palavra sem a noção do seu signi- ficado não é um ser crítico. De acordo com a autora, “O indivíduo letrado, o indivíduo que vive em estado de letramento, é não só aquele que sabe ler e escrever, mas aquele que usa socialmente a leitura e a escrita, pratica a leitura e a escrita, responde adequadamente às demandas sociais de leitura e de escrita” (SOARES, 2004, p. 40). Nesse contexto, surgiram discussões e reflexões teórico-metodológicas acerca do conceito de letramento. A distinção entre letramento e alfabetiza- ção começou a ser estudada e enaltecida, pois a noção de que a leitura é a principal ferramenta para a criticidade social passou a fazer parte do sistema educacional brasileiro. Mendonça (2011), baseando-se em Araújo (1996), divide a história da alfabetização em três períodos, que você pode relacionar com tudo o que já leu até aqui. Veja a seguir. 1. Antiguidade e Idade Média: predomínio do método da soletração. 2. Do século XVI até a década de 1980: reação contra o método da soletração. Criação de novos métodos sintéticos e analíticos. Nesse segundo período, houve a criação de cartilhas, as quais foram utilizadas para a alfabetização de crianças, jovens e adultos. 3. A partir de meados da década de 1980: questionamento e refutação da necessidade de associar os sinais gráficos da escrita aos sons da fala para aprender a ler. O início dessa fase está ligado ao surgimento do letramento. A partir do letramento, questionamentos sobre a função social da leitura e da escrita surgiram e se conjugaram em uma nova fase educacional bra- sileira. Mendonça (2011) afirma que o letramento baseia-se num trabalho que parte da realidade do aluno e que valoriza a sua oralidade por meio do diálogo. Dessa forma, para atingir o letramento, é necessário abordar conteúdos específicos da alfabetização e utilizar estratégias adequadas às hipóteses dos níveis descritos na psicogênese da língua escrita. Como apoio, a autora recomenda a leitura de textos de qualidade, de diferentes gêneros, assim como a interpretação e a produção textual. Com essas estratégias, é possível desenvolver a alfabetização aliada à função social da língua materna, atingindo o letramento. 5Letramento como prática social O desenvolvimento do pensamento para a investigação, a compreensão de fenômenos e a resolução de problemas caracteriza o letramento científico. A prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), por exemplo, contempla cinco eixos cognitivos (BRASIL, [2020]): 1. dominar linguagens; 2. compreender fenômenos; 3. enfrentar situações-problema; 4. construir argumentação; 5. elaborar propostas. Cada eixo corresponde à capacidade do aluno e ao seu conhecimento científico para resolver as questões da avaliação. Ou seja, não há uma relação de “decoreba”, mas de assimilação de conhecimento para determinados contextos. Afinal, as questões envolvem a necessidade de compreender e de tomar decisões sobre o mundo natural e as mudanças nele ocorridas. 2 As diferentes manifestações do letramento Ler não signifi ca apenas decodifi car algo que está escrito. O ato da leitura pode ocorrer em diferentes situações e contextos sociais, sejam eles orais ou escritos. Perceber a leitura e a escrita como práticas de consciência social é uma das representações do letramento. Ou seja, o indivíduo se apropria da escrita a fi m de ser um cidadão crítico capaz de interagir em diferentes con- textos sociocomunicativos, e não apenas na escola. Saber ler e escrever não signifi ca ser letrado, apenas ser alfabetizado. Segundo Cagliari (1999, p. 104), “[...] alfabetizar é ensinar a ler e a escrever [...] O segredo da alfabetização é a leitura”. O autor ainda enfatiza que, no processo de alfabetização, é essencial que o aluno, após aprender a decifrar aquilo que está escrito, consiga escrever para signifi car o conhecimento adquirido. Para Soares (2004) e Rojo (2009), otermo “letrado” designa um domínio, uma apropriação da leitura e da escrita. Ou seja, com o letramento, o usuário da língua ultrapassa o conceito de alfabetização e usa o idioma como objeto de ampliação de práticas sociais. Dessa forma, as autoras acreditam que, embora haja um contínuo entre alfabetização e letramento, é fundamental que a alfabetização não aconteça individualmente, sem o letramento. Letramento como prática social6 Letramento autônomo e letramento ideológico O letramento tem como objetivo preparar o sujeito para usar a leitura e a escrita como práticas sociais. Ou seja, por meio do letramento, o usuário da língua se capacita para ocupar o seu espaço na sociedade. Os estudos de Marcuschi (2001) abordam duas concepções de letramento: o letramento autônomo e o letramento ideológico. O letramento autônomo relaciona-se, principalmente, a questões técni- cas, já o letramento ideológico se vincula a tópicos sociais. O letramento autônomo ignora os aspectos contextuais das práticas e enaltece os aspectos formais da língua. Ou seja, ele não acredita que a leitura contextual oral se classifique como uma forma de letramento. Para Street (1993), esse modelo é mais praticado na literatura acadêmica e aparece, de maneira implícita, em programas de práticas de letramento. Além disso, para o autor, esse tipo de letramento não depende de qualquer contexto social, pois depende apenas do indivíduo. O letramento autônomo é composto por características bastante específicas. A seguir, veja algumas delas. A ausência de letramento está relacionada com o atraso, a incivilidade. O letramento está relacionado com a modernidade e o progresso. Nesse modelo, mesmo com o reconhecimento de formas não padrão, há uma valorização da norma culta. O letramento é algo que o indivíduo tem ou não tem, pois não é uma prática social, mas algo inerente ao usuário da língua. No letramento autônomo, há um enaltecimento da língua escrita, pois se acredita que por meio da leitura e da escrita é possível transformar as estruturas mentais. Nessa visão, letramento e oralidade são fundamentalmente diferentes, sendo que o letramento é superior à oralidade; enquanto o letramento dá poder, a oralidade limita. Por outro lado, segundo Kleiman (1995), o letramento ideológico entende que o falante letrado usa a leitura e a escrita não apenas com o intuito de decodificar signos linguísticos, e sim para compreender diferentes esferas sociais, ressignificar-se como indivíduo e atuar como agente ativo na sociedade em que se insere. 7Letramento como prática social O letramento ideológico apresenta diferentes manifestações, associadas com diferentes domínios da vida. As práticas de letramento variam de acordo com o contexto de uso. Ou seja, as práticas de linguagem baseiam-se em estruturas sociais e têm diferentes propósitos, os quais refletem práticas sociais mais amplas. As práticas de letramento não são homogêneas e muito menos estáticas, pois elas mudam. Novas práticas são frequentemente adquiridas por meio de processos de aprendizagem informal e da construção de sentido. O letramento ideológico é composto por características bastante específicas. A seguir, veja algumas delas. Esse tipo de letramento compreende que a sociedade faz parte da sig- nificação do indivíduo. As práticas particulares e as concepções de leitura e escrita dependem do contexto situacional, portanto não podem ser desvinculadas ou tratadas como neutras ou meramente técnicas. A natureza do letramento define-se em função da maneira como, em dado contexto social, as atividades de leitura e escrita são concebidas e praticadas. Os usos da escrita em um contexto específico têm relação estreita com processos sociais mais amplos que procuram transmitir valores, crenças e tradições. No letramento autônomo, há uma concepção conhecida como “a grande divisão”. Nessa perspectiva, a oralidade e o letramento são fundamentalmente diferentes: o letramento é encarado como sinal de progresso e de modernidade, o que não acontece com a oralidade. Ou seja, a ausência de letramento está relacionada com atraso e incivilidade. Portanto, nessa visão, o letramento é superior à oralidade. Além disso, o letramento confere poderes cognitivos aos usuários; já a oralidade, não. Eventos e práticas de letramento Há um contraste entre eventos e práticas de letramento. Os eventos de letra- mento englobam os elementos mais analíticos de atividades que envolvem a leitura e a escrita em determinado momento. Já a acepção de práticas de letra- Letramento como prática social8 mento não se relaciona à situação imediata, mas busca analisar o signifi cado que os indivíduos atribuem à escrita e à leitura nos eventos em que atuam. Lopes (2004, p. 46), baseando-se em Heath (1982), afirma que o evento de letramento é definido como “[...] qualquer ocasião em que uma peça escrita integra a natureza das interações dos participantes e seus processos interpre- tativos”. Ou seja, os eventos de letramento processam-se conforme as regras tacitamente estabelecidas e podem se desenvolver numa sequência de ações, envolvendo apenas uma pessoa ou um grupo delas para elaborar uma peça escrita ou para ler alguma previamente produzida. Lopes (2004) ainda ressalta que as formas como os eventos acontecem nem sempre são idênticas, já que cada evento tem as suas características próprias. A noção de práticas de letramento refere-se à maneira culturalmente absorvida por um grupo social para fazer uso da língua escrita. Para Lopes (2004, p. 47), “[...] o comportamento adotado mediante esses usos é que vai revelar as concepções, valores e crenças constituídas em uma cultura, frente à escrita e, assim, os sentidos que faz esse recurso comunicativo num dado contexto”. Portanto, a prática de letramento organiza-se por meio da análise das unidades abstratas que possibilitam a interpretação daquilo que é observável no evento. Os novos estudos do letramento A sociedade está em constante mudança, assim como a língua. Se a sociedade e a língua mudam, além de aprofundar os estudos sobre a concepção de le- tramento, é necessário compreender que novos gêneros e discursos também surgem. Com a evolução da tecnologia e com o avanço da comunicação, para Rojo (2012) e Baptista (2016), duas novas visões teóricas entram em cena: letramentos múltiplos e multiletramentos. Embora as nomenclaturas se pareçam, trata-se de duas diferentes concepções. A noção de letramentos múltiplos compreende a manifestação da multi- plicidade de práticas de letramento envolvendo a leitura e a escrita. Tal noção recupera abordagens de gêneros do discurso e interroga o nascimento desses gêneros nos espaços digitais. Por outro lado, a concepção de multiletramentos refere-se à multiplicidade de linguagens, não de gêneros. Isso ocorre porque os usuários da língua, hoje, leem por meio de várias modalidades além das tradicionais, usando desde imagens até emojis. Mesmo que se trate de duas novas perspectivas, elas não se anulam; pelo contrário. Enquanto na primeira perspectiva é possível perceber o papel dos 9Letramento como prática social diferentes gêneros textuais e o seu uso social, na segunda, “multi” representa as diferentes manifestações linguísticas que uma língua pode desenvolver. Como você pode notar, há muitos fatores que participam do processo de ensino e aprendizagem de uma língua. Ou seja, quando o indivíduo se apropria das diferentes manifestações linguísticas e as utiliza socialmente, ele já pode ser considerado um indivíduo letrado, não apenas alfabetizado. É papel do professor e da escola prepará-lo para situações tanto formais quanto informais com o uso da língua. O docente deve ter como principal objetivo fazer com que os alunos sejam seres ativos e críticos na sociedade, usufruindo da linguagem em diferentes contextos sociointeracionais. 3 Letramento e alfabetização A leitura sempre é feita no sentido de decodificar e compreender um texto, certo? Dessa forma, o ato de ler ultrapassa as letras e a escrita, porque um texto, além de manifestar-se de maneira oral ou escrita, pode ser verbal, não verbal ou misto. Ou seja, um texto é, simplesmente, a concretização de uma mensagem. Para que qualquer ato comunicativo atinja o seu objetivo, é necessária uma leitura textual. A leitura não obtém sucesso se a sintonia entre os interlocutores não for estabelecida, já que o ato da leitura prevê que um autor/enunciador, ao falar/escrever, constrói seu discurso em função de um ouvinte/leitor. Portanto, a leitura representa uma atividade dialógica interacional depen- dente de um contexto social. De acordo com Bakhtin (2003, p. 323), “[...] as relações dialógicas são relações (semânticas) entre toda espécie de enuncia- dos na comunicação discursiva. Dois enunciados, quaisquer que sejam, se confrontados em um plano de sentido, acabam em relação dialógica”. Desse modo, o ato de ler não simboliza somente a decodificação de palavras, mas a assimilação do sentido e do valor que essas palavras carregam num contexto social e comunicativo. Por meio da leitura, as pessoas desenvolvem a sua capacidade reflexiva em distintas esferas sociais. No entanto, saber decodificar signos linguísticos ou sentenças não assegura que a pessoa seja letrada, apenas atesta que ela é alfabetizada. O ato de ler não é diretamente proporcional ao ato de decodificar, já que representa um movimento que proporciona a compreensão do indivíduo como elemento principal da sua existência numa determinada situação. Na visão de Freire (2009, p. 11), o ato de ler “[...] não se esgota na decodificação Letramento como prática social10 pura da palavra escrita ou da linguagem escrita”, pois “[...] a leitura do mundo precede a leitura da palavra”. Ser letrado não é sinônimo de ser alfabetizado ou escolarizado. O exame do Saeb é prova disso. Todos os alunos que fizeram a avaliação eram escolarizados e alfabetizados, mas não necessariamente eram letrados. Na óptica de Mortatti (2004), o sujeito alfabetizado e escolarizado não será necessariamente letrado; no entanto, ninguém atinge o letramento sem ser alfabetizado e escolarizado. Para a autora, “[...] a alfabetização e a escolarização, bem como a disponibi- lidade de uma diversidade de material escrito e impresso, em nosso contexto atual, são condições necessárias, mas não suficientes, para o letramento”; além disso, “[...] somente o fato de ser alfabetizada não garante que a pessoa seja letrada” (MORTATTI, 2004, p. 107-108). Embora a escolarização seja o principal meio de se obter o letramento, nem sempre é possível viabilizá-lo. Enquanto países mais pobres seguem lutando pela educação e por uma comunidade mais letrada e crítica, há países ricos que podem não ter o problema do analfabetismo, mas carregam consigo uma quantidade de pessoas que não usam a leitura como forma de significação social. De acordo com Ferreiro (2002), quando a pessoa é alfabetizada mas não é letrada, ela é conhecida como “iletrada”. O iletrismo está presente em todos os tipos de sociedade, como você pode ver a seguir: Os países pobres não superaram o analfabetismo, os ricos descobriram o iletrismo. [...] Iletrismo é o novo nome dado a uma realidade muito simples: a escolaridade básica universal não assegura a prática cotidiana da leitura, nem o gosto de ler, muito menos o prazer da leitura. Ou seja, há países que têm analfabetos (porque não asseguram um mínimo de escolaridade básica a todos seus habitantes) e países que têm iletrados (porque, apesar de terem assegurado esse mínimo de escolaridade básica, não produziram leitores em sentido pleno) (FERREIRO, 2002, p. 16). A conceituação de letramento é muito mais profunda e analítica do que a de alfabetização. Na alfabetização, o objetivo revela-se na decodificação de signos linguísticos; por outro lado, no letramento, há uma visão minuciosa em relação ao uso social da língua. A leitura e a escrita atingem a compreensão ao fazerem parte do processo de significação do indivíduo. Caso a leitura e a escrita façam sentido para o sujeito, ele é letrado; senão, ele é apenas alfabetizado. Como destaca Kleiman (1995, p. 20), o “[...] fenômeno do letramento, então, extrapola o mundo da escrita tal qual ele é concebido pelas instituições que se encarregam de introduzir formalmente os sujeitos no mundo da escrita”. Ser 11Letramento como prática social letrado representa poder transitar com a linguagem em inúmeros contextos sociais e ser capaz de produzir textos de diferentes níveis segundo a necessidade contextual. Como afirma Ferreiro (2002, p. 16), ser letrado é: [...] poder transitar com eficiência e sem temor numa intrincada trama de práticas sociais ligadas à escrita. Ou seja, trata-se de produzir textos nos suportes que a cultura define como adequados para as diferentes práticas, interpretar textos de variados graus de dificuldade em virtude de propósitos igualmente variados, buscar e obter diversos tipos de dados em papel ou tela e também, não se pode esquecer, apreciar a beleza e a inteligência de um certo modo de composição, de um certo ordenamento peculiar das palavras que encerra a beleza da obra literária. Na óptica de Tfouni (2002, p. 20), “[...] enquanto a alfabetização se ocupa da aprendizagem da escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos socio-históricos da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade”. Ou seja, o sujeito utiliza o conhecimento auto- matizado da leitura e da escrita com o objetivo de apropriar-se da linguagem como mecanismo de assimilação e interação a fim de participar de diferentes contextos comunicativos ativamente. Na visão de Lopes (2004), a alfabetização e o letramento relacionam-se ao domínio da escrita. Contudo, a interpretação do vocábulo “domínio” é o que diferencia esses conceitos: a alfabetização refere-se à aquisição formal da escrita; já o letramento diz respeito à habilidade de proceder diante de con- textos situacionais que envolvem e têm como referência a escrita. Em síntese, como você viu, há uma linha tênue entre a alfabetização e o letramento, pois não existe letramento sem alfabetização. Ou seja, por mais que se busque o letramento, a alfabetização integra esse processo. Leia o artigo de Katlen Böhm Grando “O letramento a partir de uma perspectiva teórica: origem do termo, conceituação e relações com a escolarização”, disponível no link a seguir. https://qrgo.page.link/iDUVF Letramento como prática social12 ARAÚJO, M. C. C. S. Perspectiva histórica da alfabetização. Viçosa: Universidade Federal de Viçosa, 1996. BAKHTIN, M. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 307-335. BAPTISTA, L. M. T. R. Multiletramentos, letramento visual e ensino de espanhol: algumas questões sobre as práticas comunicativas contemporâneas. In: BAPTISTA, L. M. T. R. (org.). Autores e produtores de textos na contemporaneidade: multiletramentos, letramento crítico e ensino de línguas. Campinas: Pontes, 2016. v. 1, p. 65-84. BRASIL. 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Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. RIBEIRO, M. L. S. História da educação brasileira. 4. ed. São Paulo: Moraes, 1982. ROJO, R. H. R. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola, 2009. ROJO, R. H. R. Pedagogia dos multiletramentos: diversidade cultural de linguagens na escola. In: ROJO, R. H. R. (org.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola, 2012. cap. 1. SOARES, M. B. Letramento: um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. STREET, B. V. Cross-cultural approaches to literacy. Cambridge: Cambridge University, 1993. TFOUNI, L. V. Letramento e alfabetização. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2002. Leituras recomendadas BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Le- tramento científico. Brasília, DF, 2010. Disponível em: http://download.inep.gov.br/ download/internacional/pisa/2010/letramento_cientifico.pdf. Acesso em: 26 fev. 2020. SOARES, M. B. Alfabetização e letramento. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2003. Letramento como prática social14 DICA DO PROFESSOR O brasileiro lê pouco. Não aprende nem a ler e a escrever na escola. Essas são afirmações frequentes e devem ser analisadas e problematizadas com cuidado. O que é certo é que o professor tem um papel muito importante na formação de seus estudantes como leitores. Vamos saber mais sobre como o docente pode colocar em prática esse papel? Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! EXERCÍCIOS 1) Qual o principal argumento da grande divisão? A) A oralidade é superior ao letramento. B) O letramento é plural e fluido. C) Oralidade e letramento são fundamentalmente distintos. D) A ausência de letramento está associada ao progresso. E) A oralidade confere a seus usuários poderes cognitivos. 2) Conforme o modelo autônomo de letramento, podemos afirmar que: A) Letramento e oralidade são similares. B) Letramento é algo que alguém tem ou não tem. C) Oralidade dá poder, autoriza, e o letramento limita. D) Oralidade está associada com modernidade e progresso. E) Dialetos têm mais recursos do que as formas padrões de linguagem. 3) Conforme o modelo ideológico de letramento, podemos afirmar que: A) Existem diferentes letramentos associados com diferentes domínios da vida. B) Não há relações de poder quando se pensa em práticas de letramento. C) Todas as práticas de letramento têm o mesmo propósito. D) Os sujeitos não adquirem novas práticas de letramento ao longo da vida. E) O letramento é autônomo, independentemente do contexto social. 4) O que são eventos de letramento? A) Qualquer ocasião em que a obra literária clássica esteja no centro da interação. B) Qualquer ocasião em que os falantes estejam utilizando a variedade padrão da língua. C) Qualquer ocasião em que se alfabetize crianças pequenas. D) Qualquer ocasião em que sujeitos eruditos participem. E) Qualquer ocasião em que algo escrito é constitutivo da interação e dos processos interpretativos. 5) O que são os Novos Estudos sobre Letramento? A) Perspectiva que surge contrária à grande divisão e propõe um conceito de letramento como prática social. B) Perspectiva que propõe que todos os indivíduos devem ser alfabetizados para que participem do mundo da escrita. C) Perspectiva que sugere um entendimento de letramento como aprendizagem da língua padrão. D) Perspectiva que surge no Brasil para terminar com o termo alfabetização. E) Perspectiva que surge nos EUA para estudar obras clássicas da literatura estadunidense. NA PRÁTICA O conceito de letramento em uma perspectiva social requer que os docentes pensem de uma maneira diferente da tradicional. Quando um aluno tem trajetórias de escrita diferentes das dos demais alunos da turma, é essencial que isso não seja escondido. É necessário lidar com as diferenças e valorizar cada uma dessas experiências sociais com a escrita fora da escola. Você é professor e na turma em que leciona há alunos que pertencem a uma cultura periférica, ou seja, são advindos de um bairro onde se fala de forma diferente. Você percebe que esses alunos, de certa forma, não são incluídos pelos demais colegas nas atividades tanto dentro quanto fora de sala de aula. Ao observar de forma mais efetiva o comportamento da turma de forma geral, você percebeu que esses alunos que "falam de forma diferente" não são solicitados para os grupos que você costuma formar, ou seja, acabam sempre ficando à margem, sendo você a responsável por incluí-los. De acordo com a sua experiência, você começou a agir de forma a minimizar essas situações. A imagem representa as ações tomadas por você em sala de aula. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! SAIBA MAIS Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor: Entrevista com Magda Soares - Parte I Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! Entrevista com Magda Soares - Parte II Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! Entrevista com Magda Soares - Parte III Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! Alfabetizações, Alfabetismos e Letramentos: trajetórias e conceitualizações de Luciana Piccoli Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino!
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