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História Moderna I São Cristóvão/SE 2009 Andreza Santos Cruz Maynard Dilton Cândido Santos Maynard Projeto Gráfi co e Capa Hermeson Alves de Menezes Diagramação Neverton Correia da Silva Elaboração de Conteúdo Andreza Santos Cruz Maynard Dilton Cândido Santos Maynard Maynard, Andreza Santos Cruz. Cândido Santos Maynard -- São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe, CESAD, 2009. 1. História. I. Maynard, Dilton Cândido Santos. II. Título. CDU 94 Copyright © 2009, Universidade Federal de Sergipe / CESAD. Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada por qualquer meio eletrônico, mecânico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização por escrito da UFS. FICHA CATALOGRÁFICA PRODUZIDA PELA BIBLIOTECA CENTRAL UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE História Moderna I M471h História Moderna I / Andreza Santos Cruz Maynard, Dilton UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE Cidade Universitária Prof. “José Aloísio de Campos” Av. Marechal Rondon, s/n - Jardim Rosa Elze CEP 49100-000 - São Cristóvão - SE Fone(79) 2105 - 6600 - Fax(79) 2105- 6474 Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva Ministro da Educação Fernando Haddad Secretário de Educação a Distância Carlos Eduardo Bielschowsky Reitor Josué Modesto dos Passos Subrinho Vice-Reitor Angelo Roberto Antoniolli Chefe de Gabinete Ednalva Freire Caetano Coordenador Geral da UAB/UFS Diretor do CESAD Antônio Ponciano Bezerra Vice-coordenador da UAB/UFS Vice-diretor do CESAD Fábio Alves dos Santos Coordenador do Curso de Licenciatura em História Lourival Santana Santos NÚCLEO DE MATERIAL DIDÁTICO Hermeson Menezes (Coordenador) Jean Fábio B. Cerqueira (Coordenador) Baruch Blumberg Carvalho de Matos Christianne de Menezes Gally Edvar Freire Caetano Gerri Sherlock Araújo Diretoria Pedagógica Clotildes Farias (Diretora) Rosemeire Marcedo Costa Amanda Maíra Steinbach Ana Patrícia Melo de Almeida Souza Daniela Sousa Santos Hérica dos Santos Mota Janaina de Oliveira Freitas Diretoria Administrativa e Financeira Edélzio Alves Costa Júnior (Diretor) Sylvia Helena de Almeida Soares Valter Siqueira Alves Núcleo de Tutoria Janaina Couvo Priscilla da Silva Goes (Coordenadora de Tutores do curso de História) Núcleo de Avaliação Guilhermina Ramos Elizabete Santos Núcleo de Serviços Gráfi cos e Audiovisuais Giselda Barros Núcleo de Tecnologia da Informação Fábio Alves (Coordenador) João Eduardo Batista de Deus Anselmo Marcel da Conceição Souza Michele Magalhães de Menezes Assessoria de Comunicação Guilherme Borba Gouy Pedro Ivo Pinto Nabuco Faro Isabela Pinheiro Ewerton Jéssica Gonçalves de Andrade Lucílio do Nascimento Freitas Neverton Correia da Silva Nycolas Menezes Melo Péricles Morais de Andrade Júnior Sumário AULA 1 Essa tal Idade Moderna: transição para novos tempos, novos mundos....................................................................................07 AULA 2 Guerras, peste e fome: a formação do sistema econômico comercial ........................................................................................... 15 AULA 3 Navegar é preciso: a expansão ultramarina europeia e a edenização do Novo Mundo .............................................................. 25 AULA 4 O Renascimento ................................................................................ 35 AULA 5 A Igreja em transformação: a Reforma Protestante .......................... 47 AULA 6 A Contra-Reforma.............................................................................. 57 AULA 7 Cultos populares, Sabás e perseguições .......................................... 67 AULA 8 O Absolutismo ................................................................................... 75 AULA 9 As Revoluções Inglesas: a Revolução Gloriosa e o fi m do absolutismo inglês ............................................................................. 85 AULA 10 O Iluminismo...................................................................................... 93 META Apresentar aspectos da disciplina História Moderna 1, ressaltando os principais problemas a serem abordados por ela. OBJETIVOS Ao fi nal desta aula, o aluno deverá: identifi car os principais traços que caracterizam o período entre os séculos XV e XVIII denominado como Idade Moderna; apreender a importância desse momento da vida Ocidental, considerando os valores e propostas surgidas no período; reconhecer a Idade Moderna como um período de transição. PRÉ-REQUISITOS Leituras sobre a crise do Medievo. Noções de História Econômica. Aula 1ESSA TAL IDADE MODERNA: TRANSIÇÃO PARA NOVOS TEMPOS, NOVOS MUNDOS Os marcos históricos eleitos para demarcar o início da Idade Moderna variam. A fi gura 1 representa Maomé II, sultão do Império Otomano, entrando em Constantinopla com seu exército, em 1453; a imagem 2 mostra um exemplar da Bíblia de Guttemberg, o primeiro livro impresso por Johannes Gutenberg. O processo de impressão dessa bíblia se iniciou por volta de 1450, terminando em 1455, e marcou o início da produção em massa de livros no Ocidente; a fi gura 3 representa a partida da frota comandada por Cristóvão Colombo do porto de Palos, na Espanha, em 3 de agosto de 1492. Essa viagem culminou com o descobrimento da América, em 12 de outubro de 1492. (Fonte: 1, 2 e 3 - http://upload.wikimedia.org) 1 2 3 8 História Moderna I INTRODUÇÃO Transição. Parece ser esta a melhor palavra a ser utilizada quando que- remos caracterizar a Idade Moderna. De certo modo, é como a pintura de um quadro ou mesmo de uma casa. Para atingir determinada tonalidade, o pintor utiliza combinações de cores, coloca um tom sobre o outro, até chegar ao que idealizou. Pois bem. Neste livro, falaremos de um tempo em que não se enxerga mais o antigo, mas ainda não se vislumbrou nitidamente o novo. Começamos, portanto, afi rmando que a Idade Moderna foi um período de transições. No intervalo que se estende entre os séculos XV e XVIII, mudanças varreram o mundo. Na região hoje conhecida como Europa, os homens experimentaram inovações que iam do jeito de navegar à com- posição dos cardápios, e aos modos à mesa. A partir destes novos tempos insistia-se, por exemplo, para que, durantes as refeições, as pessoas não fi cassem a balançar sobre as cadeiras, pois “tal atitude sugere o trejeito de que está para liberar gases do tubo digestivo ou, pelo menos se esforça para tanto”, ensina Erasmo de Rotterdam (ROTTERDAM, s/d, p.140). Mudou também o jeito de governar e as formas de lidar com o sobrenatural. Indubitavelmente um mundo novo se abriu. Se o medievo foi um tempo para muitos marcado por uma quase imobilidade, não é correto dizer o mesmo do mundo a partir do século XV. Daí em diante a Terra tornou-se maior e, paradoxalmente, menor. Expandiu-se, pois os mapas tiveram que ser redesenhados para abrigar um novo continente, um novo oceano. Ao mesmo tempo, as distâncias encur- taram. Novos tipos de embarcações transformaram vidas, circundaram a África, facilitaram compromissos, guerras, festas e negócios. Alimentos desconhecidos chegavam às mesas de italianos, espanhóis e franceses ao mesmo tempo em que nativos americanos experimentavam doenças e uma mortandade inéditas. Claro, as enfermidades não fi caram restritas a um só grupo. Os europeus não transportaram apenas ouro e prata do Novo Mundo. Levaram daqui também alguns males. Mas como caracterizar a Idade Moderna? Eis uma das maiores difi cul- dades para quem se dedica ao estudo do período.Não se trata apenas de periodizar. Para alguns autores, o tal “mundo moderno” – o período que vai da crise da sociedade feudal europeia no século XIV até as revoluções democrático-burguesas, no século XVIII – pode ser visto como algo que “se reveste de uma série de especifi cidades que podem, em linhas gerais, ser analisadas, tomando-se como referência a percepção que alguns tiveram de que estavam vivendo um novo tempo” (FALCON, 2000, p.9). Deter- minemos, ainda que provisoriamente, duas coordenadas fundamentais para o ofício do historiador. O tempo e o espaço. O primeiro, no caso aqui es- tudado, abrange o século XV e se alarga até aproximadamente o alvorecer do século XVIII. O espaço, sem dúvida, é a Europa Ocidental. Desidério Eras- mo nasceu em Rotterdam, nos Países Baixos, em 1467, e faleceu na Basiléia, na Suíça, em 1536. Estudou teologia em Paris e foi um infl uente pensador humani- sta. Suas críticas à postura da Igreja são vistas como uma antecipação da Reforma Prot- estante. Sua obra mais conhecida é O Elogio da Lou- cura (1509). 9 Essa tal Idade Moderna: transição para novos tempos, novos mundos Aula 1Afi nal de contas, o período acima delimitado corresponde ao tempo em que os europeus avançaram sobre os mares, descobriram as belezas e agruras do Atlântico e, em pouco tempo, tornaram-se senhores de parte considerável do mundo. Nesta época, a Europa espalha sua infl uência, vê crescer seu poder. Se você pretende ter uma ideia de como homens e mulheres vivenciaram este período, talvez a melhor opção fosse dar atenção às “vozes” da época. Claro, não espere que os relatos e imagens obtidas sejam fi dedignos. Afi nal de contas, a realidade não é algo assim tão fácil de fi xar nas páginas dos livros ou reter nas tintas e pincéis. Todavia, não é incorreto dizer que, em textos, mapas e pinturas do período, é possível perceber traços do cotidiano, da economia, da religião, da política. As fontes históricas, se corretamente questionadas, sempre têm algo a nos dizer. UMA PERIODIZAÇÃO QUE VARIA A Idade Moderna foi, sim, um período de transição. Como explica Francisco José Calazans Falcon –, “são mudanças ocorridas, em ritmos e intensidades diversos, conforme a sociedade, que formam o núcleo básico dessa transição” (FALCON, 2000, p.12). Trata-se de um tempo com novas visões de mundo, formas de pensamento inovadoras. E as opções para demarcar este período, se consultarmos a bibliografi a sobre o tema, são diversas. O marco mais comum é a tomada de Constantinopla pelos turcos, em 1453. Mas é possível considerar outros acontecimentos, como a invenção da imprensa através de caracteres móveis por Johann Gutenberg, talvez por Mapa do mundo em 1722. Mundi de http://ceneviva.ricardowerneck.googlepages.com/ 10 História Moderna I volta de 1442, ou a chegada de Cristovão Colombo à América (1492). In- dependentemente deste ponto inicial, o importante é reconhecer que entre os séculos XV e XVI ocorreram transformações cruciais que “atingiram praticamente todos os níveis da existência social dos povos europeus em geral e, em especial, os habitantes das regiões centro-ocidentais da Europa” (FALCON, 2000, p.23). Além disto, poderíamos olhar para os céus e es- colher mais outro ponto de partida. Ao publicar Sobre a revolução das esferas celestes, em 1543, o astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), ajudou a transformar a concepção do universo. É um tempo marcado ainda pela passagem da transcendência à imanência, no qual se promove o surgimento de uma nova concepção no estabelecimento da verdade, dona de linguagem própria e leis, e não mais apenas a versão revelada e eclesiástica. Nesta inquieta maré de mudanças, ganha força a secularização. Em di- versos campos do saber, observa-se a diminuição das sombras da Metafísica e da Teologia, campos dominantes e centralizadores até então. Lentamente, em certos casos de modo bastante discreto, avança uma nova concepção terrena e humana de mundo. A verdade, agora, pode e deve ser atingida principalmente através do uso da razão. Como dirá um personagem de Wil- liam Shakespeare (1554-1616), “a causa é escrava de memória, violenta ao nascer e provisória” (SHAKESPEARE, 2000, p.98). Ou seja, os motivos, os sinais, as comparações, as novas rotas comerciais, os novos modos de se portar socialmente... Tudo isto se desenha na ampla tela em que se pinta a Idade Moderna. Mas tudo pode ser também provisório, alterado pelas metamorfoses contínuas que os novos tempos trazem. E tais mudanças arquitetam uma espécie de bifurcação ideológica. De um lado, a religião; do outro, as luzes (pensemos no ápice que será o século XVIII). Aqui, neste imenso terreno do tempo que abarca a transição feuda- lismo/capitalismo, a verdade estará ao alcance do homem, e não mais será algo reservado a uns poucos clérigos. Mas vamos com calma. O sentimento religioso, o misticismo, o irracional não desaparecem. Aliás, convivemos com tudo isto hoje em dia. Homens, mulheres e crianças ainda morrem por intolerância religiosa mundo afora. A diferença, possível de se perceber já no nascer desta tal Idade Moderna, está no fato de que nela a religião não é mais a única instância de explicações. Outros campos, como a economia e a política, apresentam transformações graduais, mas signifi cativas. Reforcemos: as coisas ocorrem de maneira lenta. E assim, aos poucos, “nas sociedades ocidentais, foi havendo uma tomada de consciência quanto à modernidade nascente, em cujo seio já se vislumbra, indecisa, a teoria do progresso” (FALCON, 2000, p.11). O resultado deste conjunto de trans- formações é a formação de uma sociedade moderna e distinta daquelas que lhe haviam precedido. Nicolau Copér- nico nasceu em Torún, Polônia, em 1473, e faleceu em Frauenburgo, no mesmo país, em 1543. Defendeu a teoria do heliocen- trismo e, com ela, fundou a astrono- mia moderna. William Shake- speare Ing lês , (1554- 1616) considerado por muitos o maior dramaturgo que já existiu. Entre as suas obras mais conhecidas estão: Hamlet, Macbeth, Otelo e Romeu e Julieta. 11 Essa tal Idade Moderna: transição para novos tempos, novos mundos Aula 1Talvez uma coisa valiosa a ser dita inicialmente é que modernidade e Idade Moderna não são a mesma coisa. É da visão desta nova sensibili- dade, desta conscientização, deste novo espírito chamado modernidade, que se desprende a concepção da História Moderna como uma época dessemelhante. Nesta obra falaremos, como se pode perceber, basicamente da Europa Ocidental. É ali que as mudanças cruciais acontecem. H.R. Trevor-Roper, ao proceder uma caracterização da Europa Moderna, nos apresenta a ideia de modernidade como uma continuidade com cortes. Conforme Trevor- Roper, o período 1500-1800 é marcado pelo progresso. Tempo iniciado pelo Renascimento e encerrado pelo Iluminismo, sendo este uma derivação do primeiro. Os dois processos possuem, portanto, vínculos essenciais. Mas trata-se de um progresso irregular, muito pouco suave: “há períodos de acentuada regressão, e quando o progresso geral recomeça após essa regressão, não se retoma necessariamente nas mesmas áreas” (Trevor-Roper Apud BERUTTI, FARIA, MARQUES, 2003, p.10). Segundo afi rma Colin McEvedy, “certamente cada século teve suas recessões e colapsos, e algumas vezes numa dada área – a Itália e a Espanha são exemplos disso – pode ter retrocedido durante longo período”. En- tretanto, se consideramos a Europa como um todo ou o norte da Europa em particular, “a prosperidade, a instrução e o conhecimento aumentaram século após século no nosso período” (McEVEDY, 2007, p.8). Ora, a Idade Moderna experimenta diversas fases. O mundo europeu saído das crises que atingem países como Inglaterra, França no fi nal do século XV é também aEuropa Ocidental que vê nascer o século XVI experimentou um progresso quase geral, época de uma expansão quase universal. Porém, já no século XVII observa-se uma crise profunda, um problema que atinge de maneiras diferentes a maior parte da Europa. Podemos dizer que entre 1500 e 1620, aproximadamente, o continente europeu vivenciou a Idade da Renascença. Nestes tempos, a liderança econômica provinha do Sul da Itália e Espanha. Uma liderança também intelectual. O italiano era um idi- oma a ser aprendido e as cidades italianas eram referências fundamentais nos negó- cios do mundo conhecido. Aliás, a Idade Moderna é marcada por cidades que se alternam como centrais: Gênova, Veneza, Florença, Roma, Lisboa, Madrid, Londres e Paris ditam economia, produzem novos Hugh R. Trevor- Roper H i s t o r i a d o r britânico (1914- 2003) que se ded- icou a estudar a Idade Moderna na Inglaterra e o na- zismo alemão. Orbis Universalis, de 1512. Mapa do veneziano Jerônimo Marini. Provavelmente esta é a primeira carta geográfi ca a localizar o Brasil (antes Vera Cruz, Santa Cruz, dos papagaios ou mesmo “del brazille”). Infl uenciado pelos árabes, o autor o construiu com orientação para o Sul. http://www.novomilenio.inf.br/santos/ mapa83.htm acesso em 23 out.2009. 12 História Moderna I saberes, estabelecem doutrinas religiosas, disputam o status de do mundo . Por sua vez, o período que vai de 1620 a 1660 envolveu revoluções. Prin- cipalmente na Inglaterra, ocorrem transformações cruciais. A monarquia é controlada, enquanto o Parlamento e a burguesia ampliam seus poderes. Finalmente, entre 1660 e 1800, o Velho Mundo conheceu os tempos do Iluminismo. Graças a isto, a liderança intelectual passa à França, Inglaterra e Holanda. Regiões mediterrâneas se viram para o norte em busca de ideias. Transição para novos mundos, novos tempos. Entre os século XV e XVIII, a Europa mudou. Aos poucos, os muitos espaços dominados por senhores feudais deram lugar a territórios organizados sob o controle de um Estado, de um corpo de leis e de um exército feitos para servir a um rei. Algumas das diversas mudanças ocorridas nestes dias serão estudadas mais adiante. CONCLUSÃO O curso de História Moderna I, razão do conjunto de aulas que será apresentado neste livro, tem como alvo refl exões sobre as transformações experimentadas pela Europa entre meados do século XIV e o século XVIII. O objetivo é apresentar de maneira sumária as alterações na visão de mundo, na geografi a, na política e na economia, de forma a ressaltar este período como um momento de transição acentuada, marcado pela emergência de Estados organizados, pela diminuição do poder da Igreja e pela ascensão do individualismo e da razão como aspectos centrais da vida em sociedade. RESUMO A Idade Moderna compreende um período de mudanças ocorridas entre os séculos XV e XVIII. As transformações ocorrem, por exemplo, na geografi a, com a descoberta de novas terras e mares, na política, com o fortalecimento do poder real, na religião, com a Reforma Protestante, assim como nas artes, com o Renascimento. Tais mudanças, por suas particulari- dades, estabelecem esta mesma época como um tempo de transições, pois as concepções típicas do medievo ainda não estão plenamente superadas, mas também não são mais hegemônicas. Trata-se de um momento de ascensão da Europa e de seus Estados como os mais poderosos do globo terrestre. A partir da Europa, uma série de mudanças ocorrerá em diferentes esferas das sociedades. 13 Essa tal Idade Moderna: transição para novos tempos, novos mundos Aula 1ATIVIDADE A partir do que foi visto nesta aula, escreva por quais motivos podemos afi rmar que a Idade Moderna envolve um tempo de transições. COMENTÁRIOS SOBRE A ATIVIDADE A Idade Moderna foi um período de transições por todas as alterações nela vivenciadas. Ele possui uma periodização variável (os manuais de História indicam momentos diferentes para o seu início e o seu término), mas percebe-se que o cerne das suas transformações está entre os séculos XV e XVIII. AUTOAVALIAÇÃO Esta atividade exigirá do aluno algo básico para um historiador: a capaci- dade de síntese. O texto desta aula inicial oferece informações diferenciadas. Ao se esforçar para condensar aquilo que foi dito na aula em poucas linhas, o aluno exercita a capacidade de criticar e estabelecer um sentido ao que foi lido. Por isto, é importante que haja bastante atenção na confecção desta atividade. Ela, inclusive, será fundamental quando for necessário realizar uma revisão ou preparar um texto sobre o assunto. REFERÊNCIAS BERUTTI, Flávio, FARIA, Ricardo, MARQUES, Adhemar. Conceito de modernidade. In: História Moderna através de textos. 10 ed. São Paulo: Contexto, 2003 (Coleção textos e documentos, 3), p. 9-21. FALCON, Francisco José Calazans, RODRIGUES, Antônio Edmilson M. Rodrigues. Tempos Modernos: ensaios de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. HARMAN, P.M. A Revolução Científi ca. Trad. Sérgio Bath. São Paulo: Ática, 1995. (Série Princípios). McEVEDY, Colin. Atlas de História Moderna (até 1815). Trad. Bernardo Joffi ly. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. REZENDE, Cyro. Sistema econômico comercial. In: História Econômica Geral. 3 ed. São Paulo: Contexto, 1997, p. 67-86. ROTTERDAM, Erasmo. De Pueris (Dos Meninos)/A Civilidade Pueril. São Paulo: Escala, S/D. SHAKESPEARE, William. Hamlet. Trad. Adriana J. Buarque. São Paulo: Universo Livros, 2007. 14 História Moderna I KAPUR, Shekhar. Elizabeth. Inglaterra, 1998. EUA, 125min. Sinopse: Com a morte de Maria, Elizabeth é coroada rainha da Inglaterra. Seu país encontra-se com difi culdades fi nancei- ras, seus inimigos não acreditam na capacidade da nova soberana em realizar as mudanças ne- cessárias no reino dividido entre a fé católica e a protestante. Elizabeth enfrentará intrigas palacianas, as inquietações e os problemas liga- dos ao campo religioso. Observações: O fi lme enfatiza o desempenho dos espanhóis no sen- tido de estabelecer uma ligação política entre as coroas espanhola e inglesa. Pode ser utilizado para abordarmos as práticas que caracterizam o Estado absolutista. As representações existentes no fi lme buscam evidenciar a ritualística da corte. Capa do DVD do fi lme Elizabeth. Fonte: http://movieobserver.fi les.wordpress.com. FILMOGRAFIA RECOMENDADA BESSON, Luc. Joana D’Arc. França, 1999. 124 min. Sinopse: Em meio à Guerra dos Cem Anos nasce Joana D’Arc (Milla Jovovich). Muito religiosa, ao crescer ela acredita ter a missão de lib- ertar seu país da dominação inglesa. Assim, com 19 anos, Joana liderará o exército francês contra os inimigos. Suas vitórias como guerreira, entretanto, não a livrarão de um destino cruel. Observações: O fi lme enfoca acontecimentos importantes na história da Guerra dos Cem Anos. Joana D’Arc (1412-1430), iletrada, mística e apaixonada por sua terra, é representada como uma mulher que beira a loucura. O fi lme pode despertar debates sobre o poder da fé e da religiosidade na formação de um povo. A retomada de Reims por Joana, a fra- gilidade da fi gura real e as manipulações em torno desta personagem também podem ser exploradas através desta película.Capa do DVD do fi lme Joana D’Arc. Fonte: http://www.sebodomessias.com.br. META Apresentar a conjuntura de crises produzidas no século XIV e suas relações com o surgimento de um novo comportamento diante da política, economia e religião. OBJETIVOS Ao fi nal desta aula, o aluno deverá: identifi car as crises experimentadas pelos europeus no século XIV; destacar a importância da desagregação do sistema econômico funcional, pautado nas incumbências sociais de clérigos, dos senhores de terras e dos servos; PRÉ-REQUISITOS Noçõesde História Econômica. Leituras da aula anterior. Conhecimentos gerais sobre a crise do medievo. Noções sobre a geografi a da Europa. Aula 2GUERRAS, PESTE E FOME: A FORMAÇÃO DO SISTEMA ECONÔMICO CO- MERCIAL 1- Cerco de Orléans (Jules Eugène Lenepveu, 1886-1890), pintura romântica representando Joana D’Arc na Batalha de Orleans. O Cerco de Orleans (de 12 de outubro de 1428 a 08 de maio de 1429) marcou a primeira grande vitória de Joana D’Arc na Guerra dos cem anos e o início do declínio inglês nos outros estágios da guerra; 2- Ilustração na Bíblia de Toggenburg (1411), em que um sacerdote reza por dois doentes com peste negra. (Fontes: 1 e 2 - http://pt.wikipedia.org) 1 2 16 História Moderna I INTRODUÇÃO Já ao fi nal do século XIII a Europa estava em crise. A depressão experi- mentada resultava de um crescimento fomentado pela adoção de inovações técnicas. Lembremos: o arado representava uma ferramenta com ampla diferença nos resultados das colheitas da Europa. Mas o salto na produção de alimentos, cada vez maior e de melhor qualidade, exigiu um alargamento constante de zonas agricultáveis. Portanto, a contínua expansão de áreas de cultivo era a única forma viável de manter a economia funcionando bem. Nesta segunda aula estudaremos como, neste momento de crise, podemos observar mudanças que promoverão novos arranjos sociais, estabelecerão novos modos de organizar os negócios e lançarão as bases para as aventuras além-mar, assim como facilitarão a concentração do poder nas mãos dos reis europeus. O organograma seguinte ilustra as relações de dependência entre os três principais segmentos do medievo. A funciona- lidade de cada grupo social acabou duramente abalada. Cabia aos servos produzir, aos cavaleiros defender dos males desta vida, e aos clérigos garantir a proteção contra as forças do além. Porém, durante as crises, os cavaleiros pouco puderam fazer. O mesmo pode ser dito dos clérigos. A produção esteve longe do esperado. O conjunto de problemas apresentados a seguir será fundamental para fraturar um modo de manter a economia. Ao mesmo tempo, estas crises abrem as portas para práticas comerciais inéditas e, jun- tamente com elas, para a chegada de novos personagens sociais. Lavrar, cuidar da terra, garantir o pão. Eram estas as atribuições funda- mentais dos ser- vos. Elas garanti- am aos cavaleiros a t ranqüil idade necessária para cumprir as suas: proteger os seus senhores e aliados em guerras, evitar os saques, vencer torneios, honrar suas famílias. Por fim, aos clérigos estava reservada a tarefa de prote- ger a sociedade no universo sobre- natural. Orar era a sua principal in- cumbência. Assim, orando, os cléri- gos asseguravam a proteção divina ao povo. A partir das crises ocorri- das na Baixa Idade Média, esta socie- dade de funções tripartidas entrou em declínio. UMA EUROPA MENOR... No século XIV a Europa diminuiu. Ainda assim, a população do con- tinente continuou a crescer até cerca de 1310. Apenas com o advento de fomes violentas e generalizadas, resultando em uma desorganização das atividades agrárias, o crescimento populacional paralisou. Uma primeira coisa a ser observada é que o Velho Continente experimentou mudanças climáticas, aliadas a desastres naturais, confl itos armados frequentes e a uma consequente redução populacional. Neste mesmo período, dois outros problemas afl igem os europeus: por 17 Guerras, peste e fome: a formação do sistema econômico comercial Aula 2um lado, havia a Guerra dos Cem Anos (1337-1453). Este confl ito envolveu três importantes regiões econômicas: Inglaterra, França e Flandres; por outro, a traumática experiência da Peste Negra (1347-1350), trazendo a morte por um mal desconhecido. E o que era difícil, fi cou pior graças aos problemas provocados pelas crises demográfica e monetária. A partir de tantos problemas, um novo panorama econômico fi ndou estabelecido. A crise Agrária Os problemas climáticos (nevascas, chuvas torrenciais ou secas prolongadas) foram essenciais para abalar gravemente a produção agrícola europeia em fi ns dos quatrocentos. Porém, não bastasse a força da natureza, sempre difícil de ser controla- da e prevista em suas ações, ainda é possível observar as contribuições humanas para a construção de uma crise talvez sem precedentes nos campos da Europa. Entre os aspectos ligados a governos e comerciantes, estão as guerras constantes envolvendo regiões como França, Península Ibérica, Escócia, Irlanda, Itália, Alemanha, a zona do Báltico. Tudo isto provocou grandes destruições nos campos. Um dos resultados de tanta devastação foi a tendência de baixas no preço do trigo a partir de 1350. Claro, houve exceções no cereal chegam a 35% na Áustria, 63% na Inglaterra e 73% na Renânia. O trigo era (na verdade, ainda é) um alimento fundamental na vida do europeu. Por conta disto, a crise agrária fomentou uma série de graves problemas. Como fi os de um único novelo, as difi culdades apareceram: as más colheitas provocaram surtos de fomes. Tamanha penúria, incerteza e desespero levaram populações ao abate generalizado de animais domésticos. Fragilizados, subnutridos, homens e mulheres sucumbiram às epidemias. A Crise Demográfi ca O grande problema para a demografi a em meados do século XIV foi a Peste Negra. Entre 1348 e 1350, o mundo experimentou uma pandemia (epidemia em grandes proporções) de uma doença que cruzou mares e montanhas, vinda da Ásia, atingindo a Europa impiedosamente. Era a Peste Negra. Mortífera na maior parte dos casos, a doença exerceu papel crucial no rumo da vida econômica do século XIV. A Guerra dos Cem Anos (1337-1453) foi na verdade um conjunto de confrontos bélicos entre França e Inglaterra. Os ingleses, embora apresentassem maior poder militar, tiveram nos franceses adversários com grande capacidade de resistência. Os confl itos foram, em parte, motivados por disputas por regiões de relevância econômica, como a região de Flandres. Esta longa série de batalhas conheceu períodos de interrupção dos combates e mesmo paz. Fonte: http://www.guerras.brasilescola.com (1361-1362 e 1374-1375, por exemplo). Porém, entre 1350 e 1450, as baixas 18 História Moderna I A Peste Negra foi um problema menor em regiões de baixa densidade populacional. Por isto mesmo a doença atingiu mais aos pobres que aos ricos, pois estes puderam fugir dos locais contaminados. Por se propagar mais facilmente em lugares com maior concentração de pessoas, a peste fez-se mais presente em núcleos urbanos do que nos campos. Cidades como Florença e Provença, por exemplo, enfrentaram grandes difi culdades com a doença. E como se desafi asse a força da Igreja, a enfermidade arrastou-se até mosteiros e abadias. As comunidades religiosas, repletas de membros, foram alvos fáceis da doença. Vamos a outro exemplo. Um livro produzido sob os impactos da peste pode ajudar a entender os efeitos produzidos pela doença sobre os corpos e o imaginário dos europeus. Vejamos o que nos deixou Giovanni Boccaccio (1313-1375) em sua obra Decamerão. É verdade, a citação é longa. Mas não reclame, pois ela vale a pena: ...tínhamos atingido já o ano bem farto da Encarnação do Filho de Deus, de 1348, quando, na mui excelsa cidade de Florença, cuja beleza supera a de qualquer outra da Itália, sobreveio a mortífera pestilência. Por iniciativa dos corpos superiores, ou em razão de nossas iniqüidades, a peste, atirada sobre os homens por justa cólera divina e para nossa exemplifi cação, tivera início nas regiões orientais, há alguns anos. Tal praga ceifara, naquelas plagas, uma enorme quantidade de pessoas vivas. Incansável, fôra de um lugar para outro; e estendera-se de forma miserável, para o Ocidente. Na cidade de Provença, nenhuma prevençãofoi válida, nem valeu a pena qualquer providência dos homens. A praga, a despeito de tudo, começou a mostrar, quase ao principiar a primavera do ano referido, de modo horripilante e de maneira milagrosa, os seus efeitos. A cidade Giovanni Boccaccio Escritor humanista italiano. Admirador de Dante Aligheri, publicou biografi as de mulheres ilus- tres, poemas, mas ganhou notoriedade com Decamerão, um divertido conjunto de cem novelas, elaborado entre 1348 e 1353. As novelas inlfuenciam, ainda hoje, muitos escri- tores. O texto revela forte crítica às insti- tuições medievais e centraliza os valores humanos. DECAMERÃO. Através da literatura, podemos observar evidências dos problemas da Baixa Idade Média e das rupturas que se anunciavam. 19 Guerras, peste e fome: a formação do sistema econômico comercial Aula 2fi cou purifi cada de muita sujeira, graças a funcionários que foram admitidos para esses trabalhos. A entrada nela de qualquer enfermo foi proibida. Muitos conselhos foram divulgados para a manutenção do bom estado sanitário. Pouco adiantaram as súplicas humildes, feitas em número muito elevado, às vezes por pessoas devotas isoladas, às vezes por procissões de pessoas, alinhadas, e às vezes por outros modos dirigidas a Deus. (...) A peste, em Florença, não teve o mesmo comportamento que no Oriente. Neste, quando o sangue saía pelo nariz fosse quem fosse, era sinal evidente de morte inevitável . Em Florença, apareciam no começo, tanto em homens como nas mulheres, ou na virilha ou na axila, algumas inchações. Algumas destas cresciam como maçãs; outras, como um ovo; cresciam umas mais outras menos; chamava-as o populacho de bubões. (...) ...tiveram os meus olhos (como há pouco se afi rmou) certo dia, entre outras vezes, a seguinte experiência: as vestes rôtas de um pobre sujeito, morto por essa doença, foram jogadas à rua. Dois porcos, de início, segundo costumam fazer, sacudiram-nas com o focinho, depois as seguraram com os dentes, cada um deles esfregando-as na própria cara. Apenas uma hora depois, após uma convulsões, como se tivessem ingerido veneno, os dois porcos caíram mortos por terra, sobre trapos em tão má hora jogados à rua. (BOCCACIO, 1971, p.13--15). EFEITOS DA PESTE NEGRA Os lamentos de Boccaccio não são à toa. Afi nal de contas, a pandemia matou entre 25% e 35% da população europeia. Seus efeitos foram desiguais. Se, por exemplo, na Alemanha as mortes não foram tão acentuadas, na França quase 70% da população morreu. Num triste efeito dominó, uma queda demográfi ca tão abrupta e de ampla abrangência simplesmente aprofundou a crise agrária e desarticulou governos e negócios. Ocorre um “completo desequilíbrio entre oferta e demanda, e entre preços e salários” (REZENDE, 1997, p. 71). Ou seja, a crise demográfi ca alimentou um co- lapso no campo. Os prejuízos provocados por ambas foram acompanhados de perto por mais outro grande problema: a crise monetária. E assim problemas se acumularam. A baixa na mão-de-obra, provocada pela perda de trabalhadores para a peste e para as guerras, forçou o aumento dos salários. O Velho Mundo começou a experimentar o alargamento do mercado consumidor e a difusão da mão-de-obra assalariada. Com o tempo, um novo cenário de crescimento começou a se desenhar. Tudo isto pressionava por meios de pagamentos. Porém, a Europa carecia de metais amoedáveis. A depressão chegou. As faces da peste negra: 1 . Bubôn ica – aparecimento de inchaço (bubões), principalmente nas axilas e virilhas, sendo mortífera em 70% dos casos; 2. Septicêmica – o bacilo Pasteurella pestis passa dire- tamente para a cor- rente sanguínea, letal em 100% dos casos; 3. Pulmonar – uma espécie de pneumo- nia (preferencial- mente em estações frias), mortífera em quase 100% dos casos. D e p o i s d e s s a pandemia, houve várias epidemias da mesma doen- ça: cinco no sé- culo XIV; dez no século XV (Cf. REZENDE, 1997) 20 História Moderna I DEPOIS DA DEPRESSÃO Como se pode perceber, as três crises (demográfi ca, agrária e monetária) em conjunto provocaram um abalo geral sobre um sistema que se expandia há três séculos. Podemos dizer que foi uma crise de crescimento. Desestabilizada por tantos problemas a economia senhorial, baseada no critério de funcionalidade, não se sustentava mais. Em meio aos tormentos, os clérigos pareciam não mais proteger. Aliás, como escreveu o já citado Boccaccio, eles sequer se protegiam. E os senhores de terra, cavaleiros em suas armaduras reluzentes, o que dizer deles? Suas funções de defesa também não eram mais plenamente cumpridas. Por fi m, os servos, formadores do último elo da cadeia, encontraram espaço para ganhar au- tonomia. A crise generalizada abriu brechas para que parte dos excedentes dos senhores acabasse chegando aos servos, com salários inesperadamente altos, e promovessem um acúmulo de riquezas. Portanto, a partir das crises do século XIV, podemos considerar alguns aspectos como fundamentais para a constituição do cenário dos séculos XV e XVI. São eles: 1) falência da funcionalidade dos senhores laicos e da Igreja. Isto, sem dúvida, contribuiu para a centralização administrativa lançada pelos monarcas dos Estados Nacionais. A Igreja perdeu espaço. 2) crescente intromissão dos Estados na vida econômica. A interven- ção estatal na economia começa a se tornar uma prática comum, expediente que não experimentará grandes retrocessos desde então. Observemos, por exemplo, as interferências estatais nos níveis de preços e salários (na França, em 1349 ou na Inglaterra, em 1351). 3) apogeu das sociedades comerciais privadas, que assumiram um caráter tipicamente capitalista. A necessidade de desenvolver as atividades comerciais esbarra nas difi culdades com os meios de pagamento. Temos, assim, uma crescente procura de metais nobres e a reativação do comércio de artigos de luxo do Oriente. Quais as consequencias de tudo isto? Uma inédita aliança, fruto das necessidades dos monarcas e da astúcia de comerciantes e nobres acaba delineando-se. Burgueses e Estados aproximam-se e estabelecem ajudas mútuas. Os reis necessitavam de fi nanças para bancar uma burocracia civil e militar visando taxar adequadamente suas populações. Como contrapar- tida, os negociantes recebem apoio dos Estados e formam as sociedades comerciais privadas, grandes companhias de comércio. Mas atenção: isto não deve levar à conclusão apressada de que se montou um Estado a serviço da burguesia nascente. Trata-se antes de uma relação tensa, na qual os dois lados procuram tirar o melhor proveito disto. 21 Guerras, peste e fome: a formação do sistema econômico comercial Aula 2CONCLUSÃO Tudo isto foi acompanhado por um processo fundamental, algo que modifi cou o jeito de lidar com a terra na Europa. A partir de um redimen- sionamento visando maior produtividade, as atividades agrícolas foram regionalmente especializadas e promoveram o surgimento de áreas de monoculturas. A policultura europeia dava lugar a um uso mais racional dos solos. Com isto nascem “áreas exclusivamente dedicadas à cultura de cereais, outras onde predomina a vinha, áreas dedicas às plantas têxteis e tintoriais, e outras onde a pecuária se faz absoluta” (REZENDE, 1997, p. 78,). Deste modo, com as regiões especializadas em determinadas culturas, alterou-se também a concepção que se tinha sobre o trabalho camponês. Agora, é preciso considerar a qualidade deste serviço, não apenas a quantidade dele. A construção de um cenário de terrenos especializados, a mudança de policulturas para monoculturas teve resultados importantes. Afi nal, elas contribuíram para que os eixos econômicos tradicionais perdessem seu lugar. O Mediterrâneo e o Báltico não mais alimentavam a Europa. Assiste- se à decadênciados Eixos econômicos tradicionais. A África e a Ásia se tornam destinos imprescindíveis e a obtenção de novas rotas, necessidade inevitável. Assim, a Europa Centro-Atlântica surge para comandar a eco- nomia continental. RESUMO O início da Idade Moderna apresenta sérios problemas herdados do Medievo. A inefi ciência dos métodos de cultivo no campo, aliada às suces- sivas guerras e doenças do período contribuíram para a diminuição popu- lacional na Europa. Com isso havia menos braços para cuidar da lavoura. Tal problema alimentou difi culdades econômicas no Continente. Nesse sentido, a peste negra merece destaque, tendo sido responsável pela morte de 1/3 da população europeia. Um resultado crucial deste conjunto de crises que assolou o Velho Continente ao fi m do século XIV foi a fratura no tradicional critério de funcionalidade entre servos, senhores e clérigos. ATIVIDADE 1. A obra de arte pode ser uma interessante fonte para a História. Como tudo que o homem tocou, a arte pode ajudar a analisar o passado. Claro, não a vê-lo como numa fotografi a, mas para ajudar a entender o que as pessoas faziam, como agiam, sentiam e interpretavam os problemas e acontecimen- tos do seu tempo. Sabendo disto, procure informações sobre manifestações artísticas do período aqui analisado e, após isto, escreva sobre os possíveis “sinais” de crise que você conseguiu identifi car nelas. 22 História Moderna I COMENTÁRIOS SOBRE A ATIVIDADE Entre as obras enfocando o período, percebemos uma diversidade de possibilidades de abordagem. Porém, merece destaque a frequência de imagens ligadas ao universo sobrenatural. A morte se faz presente na arte, numa nítida infl uência dos tempos da peste negra. AUTOAVALIAÇÃO A atividade de pesquisa exigirá do aluno capacidade de observação e refl exão sobre o conteúdo da aula. Será preciso ter atenção para interpretar as imagens e proceder a considerações sobre como os artistas representavam as mudanças trazidas nos momentos fi nais do medievo. REFERÊNCIAS REZENDE, Cyro. Sistema econômico comercial. In: História Econômica Geral. 3 ed. São Paulo: Contexto, 1997. p. 67-86 McEVEDY, Colin. Atlas de História Moderna (até 1815). Trad. Bernardo Joffi ly. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. BOCCACIO, Giovanni. Decamerão. 2ed. Trad. T.Guimarães. São Paulo: Abril Cultural, 1971. BERUTTI, Flávio, FARIA, Ricardo, MARQUES, Adhemar. A crise do feudalismo. In: História Moderna através de textos. 10 ed. São Paulo: Con- texto, 2003 (Coleção textos e documentos, 3).p.22-37. Filmografi a recomendada: MONICELLI, Mario. O Incrível Exército de Brancaleone . Itália/Espanha/ França, 1966. 120 min. Sinopse: Brancaleone de Norcia (Vittorio Gassman), um atrapalhado cavaleiro, é contratado como líder de um pequeno e diversifi cado bando: inicialmente são três saqueadores, mas depois se juntam ao grupo um nego- ciante judeu, um nobre de poucas posses. Os “contratantes” de Brancaleone estão com um pergaminho (na verdade roubado de um cavaleiro ferido) que lhes dava a posse do reino de Aurocastro. Contudo, a aventura até o tal feudo é muito mais complicada do que parece. Observações: Esta comédia italiana apresenta representações bastante interessantes sobre os problemas da Baixa Idade Média. A peste negra, as guerras, a fome, assim como a decadência da cavalaria são abordados na película. O poder da Igreja e os problemas em torno da fé também são explorados pelo diretor. A narrativa é inspirada em D.Quixote (1605), de Miguel de Cervantes. 23 Guerras, peste e fome: a formação do sistema econômico comercial Aula 2 Capa do DVD do fi lme O Incrível exército de Brancaleone. Fonte: http://blog3.opovo.com.br META Apresentar os fatores fundamentais que contribuíram para as Grandes Navegações do século XVI. OBJETIVOS Ao fi nal desta aula, o aluno deverá: identifi car os principais fatores contribuintes para as Grandes Navegações do século XVI; reconhecer a importância de um ideal de propagação da fé e da crença em um “Paraíso terreal” entre os europeus nas Grandes Navegações; perceber os desdobramentos das Grandes Navegações para o mundo do século XVI, considerando as transformações econômicas, tecnológicas e culturais nelas envolvidas. PRÉ-REQUISITOS Leituras sobre a crise do Medievo. Noções de História Econômica. Aula 3NAVEGAR É PRECISO: A EXPAN-SÃO ULTRAMARINA EUROPEIA E A EDENIZA- ÇÃO DO NOVO MUNDO Mapa representando a Rota da Seda – conjunto de caminhos que liga a costa do mar Mediterrâneo à China, atravessando 7 mil km entre os ter- ritórios dos atuais Iraque, Irã, Turcomenistão, Uzbequistão, Afeganistão e Paquistão, e por onde eram transportadas mercadorias do Extremo Oriente para a Europa e o mundo árabe. A tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos (1453) inviabilizou o comércio europeu pela rota, aumentando a necessidade da expansão marítima. (Fonte: http://pt.wikipedia.org) Painel representando Bartolomeu Dias e seus marinheiros em meio a uma tormenta, antes de chegar ao Cabo da Boa Esperança. Dias foi o primeiro europeu a navegar para além do extremo sul da África, dobrando, em 1488, o Cabo das Tormentas (futuro Cabo da Boa Esperança) e chegando ao Oceano Índico a partir do Atlântico. Antes, para se chegar à Índia era preciso cruzar o Mar Mediterrâneo, passando por Gênova e Veneza. A viagem de Bartolomeu Dias, continuada posteriormente por Vasco da Gama, abriu o caminho mari- timo para a Índia. (Fonte: http://pt.wikipedia.org) 26 História Moderna I INTRODUÇÃO “Eu vi um céu novo, e uma terra nova. Porque o primeiro céu e a primeira terra se foram, E o mar já não é. E eu João, vi a cidade santa, A Jerusalém nova, que da parte de Deus descia do céu, Adornada como uma esposa ataviada para seu esposo”. (Apocalipse, XXI, 1 e 2) “Navegar é preciso, viver não é preciso”. É quase impossível não lem- brar dos versos de Fernando Pessoa (1888-1935), quando falamos das Grandes Navegações. Sim, pois o século XVI foi o século do transporte marítimo. As difi culdades das viagens por terra, a necessidade de novos terrenos, de especiarias e ouro, impunham aos homens dos seiscentos a urgência em lançar-se ao mar. Navegar era preciso. Viver, nem tanto. São várias as razões para navegar no século XVI. A primeira delas encontra-se na busca por alimentos. Afi nal de contas, a Europa passara por crises terríveis. Naqueles tempos, a fome e as crises de subsistência atormen- tavam soberanos e comerciantes. Portugal, pioneiro nas aventuras, passou por aproximadamente 21 crises de subsistência entre os séculos XIV e XV. Primeiro, foram os rios que tomaram viajantes das rotas terrestres: Sena, Meno, Reno, Danúbio, Loire, Saona, Rodano, Pó. Depois, o afas- tamento das costas se torna uma exigência daqueles que buscavam novas terras agricultáveis, metais preciosos, especiarias e uma melhor sorte em suas vidas. O salto destes marujos rumo ao desconhecido, ao mar temido, ao tenebroso inimigo de suas mulheres, compreende um empreendimento comercial, sem dúvida alguma. Negociantes da Itália e de outros países se envolvem diretamente no fi nanciamento das viagens dos reinos ibéricos. Porém, é preciso considerar outras motivações. Entre elas, a concepção das novas terras como espaços do sagrado, a crença em um novo Éden merece ser considerada. O período denomina- do pelos historiadores de “descobrimento” compreende desdobramentos das signifi - cativas mudanças ocorridas nas estruturas da sociedade europeia. A efervescência do Mercantilismo, a gestação e o fortalecimento dos Estados A frase, inspirada na afirmação em latim “ Navigare necesse; vivere non est necesse”, na verdade é de outro autor . A frase é de Pompeu, (106- 48 a.C ) generalromano. Segundo Eduardo Martins, “foi o general ro- mano Pompeu , que precisava le- var trigo de uma p rov ínc ia pa ra Roma e exortou os marinheiros a zar- parem, num dia de tempestade e vento muito forte. Ou seja, navegar, para cumprir a missão, era mais impor- tante que viver”. MARTINS, Eduar- do. O que eles não disseram. História Viva. Ano I, n.5, mar.2004.p.17 Fernando António Nogueira Pessoa foi um poeta e escritor lusitano. Nasceu e mor- reu em Lisboa. É considerado, jun- tamente com Luís Vaz de Camões (1524-1580), um dos principais ex- poentes da língua portuguesa. Caravelas portuguesas. Fonte: http://www.novomilenio.inf.br 27 Navegar é preciso: a expansão Ultramarina Européia e a edenização... Aula 3Nacionais, a construção de novos tipos de embarcações – as caravelas – mais rápidas e seguras, a aquisição de novas técnicas e instrumentos – o astrolábio, o quadrante, a bússola -, assim como a criação da Escola de Sagres (localizada em Cabo São Vicente, Portugal) alteraram defi ni- tivamente a arte de navegar. Pioneiro nas Grandes Navega- ções, Portugal, “de frente para o oceano, é o lugar ideal para se con- trolar a economia-mundo” como escreveu Fernand Braudel (1996, p. 22). Em 1415, Ceuta é atingida e inaugura o avanço europeu na caça de novos territórios. Nesta em preitada, Portugal teve na Espanha seu grande rival durante os primeiros tempos do processo de “descoberta”. Ainda em 1942, o genovês Cristóvão Colombo, apropriando-se da tecno- logia de Sagres, fi nanciado pela coroa espanhola, antecipou-se aos lusitanos e atingiu o novo continente na altura da América Central. Anos depois, em 1500, Cabral pisou terras americanas mais ao sul. Dentro desse período, muitos portugueses e espanhóis possuíram uma visão edenizada do novo mun- do. Observem-se os relatos dos viajantes, diversas obras literárias ou mesmo certas ilustrações da época. É perceptível, em considerável parte destes, a imagem da América como a de um “paraíso terreal”. “Cristãos e especiarias”, teria respondido Vasco da Gama quando questionado sobre aquilo que buscava na Índia, em 1519. Ora, embrenhando-se pelos mares do Oeste, os portugueses acreditavam que encontrariam tanto soberanos A s c a r a v e l a s foram inventadas entre os séculos XV e XVI. Du- rantes as Grandes Navegações, por- tugueses e espan- hóis utilizaram- nas. Eram barcos de cerca de 30 metros (tamanho máximo) , com capac idade de transporte para 50 toneladas. Eram de fácil navega- ção, possuíam 3 mastros e utiliza- vam velas latinas, maiores do que aquelas utilizadas nas tradicionais naus. Este tipo de vela permitia navegar contra o vento e, deste modo, evitar con- t r a t e m p o s e m regiões descon- hecidas pelos ex- ploradores. A em- barcação poderia também carregar artilharia. Astrolábio. Fonte: http://www.educ.fc.ul.pt Quadrante. Fonte: http://www.astro.mat.uc.pt Bússola. Fonte: http://blig.ig.com.br 28 História Moderna I quanto povos de fé cristã. Porém, para desencanto dos exploradores, a predominância era de mulçumanos. Ao chegar à Índia, Vasco da Gama percebeu que navegava em “mare islamicum”. O Oceano Índico era um terreno do Islã e o que ele, Vasco, encontrou? “Tutti i mori della Mecca”, ou seja, todos moradores de Meca (BRAUDEL, 1996, p.22). Percebe-se que o poderio comercial mulçumano ameaçava Portugal. O controle por eles exercido sobre o comércio de especiarias (canela, noz- moscada, gengibre, pimenta, açafrão etc.), assim como em entrepostos que serviam de escala na viagem destes produtos rumo à Europa, alimentara a fúria dos exploradores europeus. Em momentos como estes, caiu o véu de encantamento com as descobertas que pareciam envolver as navegações. Em seu lugar, apareceu o massacre. Foi assim, por exemplo, entre 1502 e 1505. Acompanhado de pesada armada, Vasco da Gama ataca, cobra tributos, dispara os seus canhões vorazmente. Mutila. Vence os seus inimigos. A violência passa a ser um expediente recorrente nas ações dos exploradores. Uma tripulação inteira é queimada em meio aos avanços de Vasco e suas embarcações. O paraíso estava distante daquela terra de “pagãos”. Tantas atrocidades evidenciam o empenho português em deter o avanço mulçumano, em desarticular as suas rotas comerciais. E pouco a pouco Lisboa avança: Quíloa, Sofala, Moçambique, Socotorá, Somo Quíso... O mar é percorrido, demarcado e controlado pelos lusitanos. Cristóvão Colombo foi um navegador ital- iano, provavelmente nascido em Gêno- va. Há divergências quanto ao seu ano de nascimento (1437 ou 1448) e mesmo sobre o seu nome. Sob o pa- trocínio de Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela, chama- dos Reis Católicos da Espanha, Colombo liderou a expedição que atingiu o conti- nente americano em 12 outubro de 1492. O Objetivo inicial da sua viagem era chegar às Índias. Chegou a receber os títulos de Grande Almirante do Mar Oceano, Vice-Rei e Governador Perpétuo das Índias, e Cavalheiro da Corte dos Reis de Espanha. Faleceu em 1509. Orbis universallis, de 1552. Autor: Sebastian MUNSTER (1589 1552). Biblioteca Nacional. Disponível em http://objdigital.bn.br 29 Navegar é preciso: a expansão Ultramarina Européia e a edenização... Aula 3A crença do europeu na existência de um paraíso terreal, até então oculto, foi fundamental nas transformações ocorridas a partir do século XV. A força dos “signos do maravilhoso”, herdada da mentalidade medieval, atravessou os mares e, num primeiro instante, sacralizou o novo continente. Seria possível, falar em um mundo fascinado pelo maravilhoso, pelo sobrenatural? Poderíamos falar em homens abismados, extasiados com aquilo que foi visto na selva brasileira, por exemplo? Cabe, em meio ao racionalismo dos nossos dias, falar em medo ou angústia nas histórias do “descobrimento” e colonização? Talvez não. Mas se deixarmos nossos olhos atentos aos escritos de alguns personagens daqueles tempos, algo a mais do assunto venha à tona. Poderemos encontrar sinais de uma idealização das novas terras. Tal edenização manifesta-se em textos diferenciados. A América apresenta-se, inicialmente, como uma antítese do continente europeu. Aqui, até os criminosos tornavam-se virtuosos. Um mercador fl orentino escreveu que “aqueles mesmo que na Espanha foram conhecidos como ho- mens de má vida, ao chegarem às Índias mudaram totalmente de condição, tornaram-se virtuosos e procuraram viver civilizadamente”. A conclusão do negociante italiano não poderia ser outra: “mudando o céu, mudam de natureza” (GERBI, 1996, p.433). Distantes dos problemas do solo ibérico, o europeu deslumbra-se com as belezas tropicais. A Europa doente e fria contrastava com a América, saudável e de clima ameno. Vamos aos exemplos. Entre os historiadores do período colonial, a escrita característica para o Novo Mundo é, salvo raras exceções, marcada- mente elogiosa. Os trabalhos refl etem basicamente duas coisas: 1- a intenção dos autores em construir uma imagem paradisíaca da América e mesmo do Brasil; 2- Evidencia-se aí a esperança ou a crença na existência de um paraíso terreal num ponto até então desconhecido. Segundo o padre Antônio Vieira, (1608-1697) depois da primeira criação, “Deus não criou, nem cria substância alguma material ou corpórea; porque somente cria de novo as almas, que são espirituais: logo que terra nova, e que céus novos são estes, que Deus tanto tempo antes prometeu que havia de criar?”. O próprio Vieira respondeu ao escrever: “digo esta nova terra e estes novos céus, são a terra e os céus do mundo novo descoberto pelos portugueses”. Por fi m o clérigo arremata: “esta é a terra nova e o céu novo, que Deus tinha prometido porIsaías” (VIEIRA, 2001, p.597). Antes do sacerdote, o já citado Cristóvão Colombo apresentou argumento semelhantes aos reis espanhóis: “ao levar adiante a empreitada dos índios, nem a razão, nem a matemática, nem os mapas me tiveram qualquer utilidade: cumpriram-se apenas as profecias de Isaías” (VEJA, 1991, p.76). So- bre a existência do paraíso terreal, é conhecida a promessa divina ao personagem bíblico: “porque eis aqui estou em que crio uns céus novos, Instrumento ini- cialmente utilizado para determinar a posição dos astros no céu. Foi utiliza- do para a navegação marítima a partir identificação das posições das estre- las. O astrolábio era composto por um disco de latão graduado na borda, um anel de suspen- são e num ponteiro chamado medic- lina. Poderia ser utilizado em em- barcações e mesmo carregado para terra firme. Depois, foi substituído por um instrumento semel- hante denominado Sextante. Padre Antônio Vieira Re- ligioso português, nascido em Lisboa, que se destacou como escritor e orador jesuíta. Tornou-se fi gura infl uente na política do século XVII. É autor de uma obra respeitável. Alguns dos seus textos mais conhecidos estão em Ser- mões (1679), publicados em vários tomos. Faleceu na Ba- hia, em 18 de julho de 1697. 30 História Moderna I e uma terra nova: e não persistirão na memória as primeiras calamidades, nem subirão sobre o coração” (ISAÍAS, LXV, 17). A partir da crença neste possível paraíso, a América parecia ser o local que Deus assegurou construir. Observe-se também que Colombo assinava no formato greco-latino Xpo Ferens, identifi cando-se com Cristo, cuja abreviatura era “X”. Deste modo, ele insinuava que desde o batismo estava ligado a São Cristóvão e, como este santo, nascera designado a grandes travessias. Sendo assim, a possibilidade de haver encontrado o “jardim delicioso”, a “cidade santa”, a “Jerusalém nova” (conforme GÊNESIS II, 8) não pareceu impossível àqueles que primeiramente aportaram na América. Conforme afi rma Sérgio Buarque de Holanda: “como nos primeiros dias da criação, tudo aqui era dom de Deus , não era obra do arador, do ceifador ou do moleiro”. Na sua História da América Portuguesa, de 1730, Rocha Pita (1660- 1738) chegou a afi rmar que “é enfi m o Brasil o paraíso terreal descoberto”. Descrevendo nossas terras, o ufanismo é constante no autor baiano: “o sol em nenhum outro hemisfério tem raios tão dourados” e “vastíssima região, felicíssimo terreno em cuja superfície tudo são frutos, em cujo centro tudo são tesouros” (PITA, 1976, p.19) Com as primeiras explorações da nova terra, alguns elementos simbóli- cos reforçaram a ideia de um “jardim delicioso”: a ausência de invernos com nevascas e chuvas de granizo certamente contribuía para a edenização da América. Como a fl ora, a fauna brasileira era também motivo de espanto a muitos colonos. Não apenas o papagaio, pássaro que conforme Sérgio Buarque de Holanda, era associado na Índia ao Éden e ali “não faltava quem situasse, por sua vez, o Éden bíblico, contribuiria naturalmente para sua inclusão entre as aves paradisíacas” (HOLANDA, 1959, p.236), mas também o beija-fl or (que Fernão Cardim julgou ser uma borboleta que se convertia em pássaro formoso) e o louva-a-deus, para muitos colonos capaz de se converter em vegetal, além de diversos outros animais e insetos, foram alvos de especulações, servindo de argumento para a edenização Novo Mundo. Isto, é provável, relaciona-se com o fato de que “durante o Renasci- mento e ao longo do século XVIII, a tendência para se procurarem em todas as coisas os signifi cados ocultos, longe de constituir uma especialidade hispânica e sobretudo castelhana, estava generalizada para todo o mundo ocidental” (HOLANDA, 1959, p.248). Nem mesmo os choques entre os colonos e os nativos destruíram, por completo, esta imagem. Ainda que para muitos a descoberta da América acabasse reduzindo-se a uma troca de males (a gripe do Velho Continente pela sífi lis do Novo) o evento cristalizou-se como o instante de contato do europeu com um mundo paradisíaco. Para alguns, a antropofagia indígena, a sua permanência na “idade do ouro”, eram o único aspecto lamentável no empreendimento das Grandes Navegações (PETER e REVEL, 1976, 31 Navegar é preciso: a expansão Ultramarina Européia e a edenização... Aula 3p.141-159). Mesmo com todos os problemas, a América era “- um novo Éden de vastidão desmesurada, um milagre com que o homem preso nos limites do espaço pigmeu da Europa, mal pode sonhar”, sentenciaria, no século XIX, o irlandês Thomas Moore (GERBI, 1996, p.257). E se a descoberta de tal “paraíso” por um lado motivou a vinda de tantos outros europeus, por outro auxiliou na arquitetura da imagem pecaminosa do nativo: diante de inúmeras riquezas sem, contudo, saber aproveitá-las. Conquistar o “paraíso” tornava-se, portanto, ideologicamente justifi cável. Dominar era preciso. CONCLUSÃO Certamente esta edenização sofreu fortes abalos com a efetiva colo- nização. As montagens dos aparatos burocráticos e militares de Portugal e Espanha no Novo Mundo fi zeram este trabalho. Também é certo que esta sacralização da América não foi o único motivo para a “descoberta” e colonização do novo continente. Muito se deve às mudanças econômicas, políticas e tecnológicas. Quão longe se iria sem as caravelas? Todavia, tal idealização possui grande valor. A crença dos ibéricos num “mar tenebroso” abriu as portas para a fé num “paraíso terreal” e nos movimentos para encontrá-lo acabaram por domar as águas temidas e rebatizá-las de Atlântico. RESUMO As Grandes Navegações foram um empreendimento de muitas motiva- ções. A necessidade de alimentos; a busca por terras agricultáveis; a neces- sidade de ouro, prata e especiarias ajudam a explicá-la. Contudo, precisamos levar em conta outras facetas desta aventura. Uma delas é o caráter de uma cruzada em favor da propagação da fé levada adiante por muitos defensores das viagens. A afi rmação da existência de um Paraíso em terra se adequou ao novo universo aberto aos europeus que chegaram primeiro à América. Porém, é aconselhável evitar buscar fatores explicativos isoladamente. A aventura das Grandes Navegações requer uma explicação ampla, na qual todos os aspectos aqui citados sejam considerados. 32 História Moderna I ATIVIDADE 1. Como se fazia uma viagem no século XIV? Quanto tempo levava para viajar de um país ao outro da Europa? E da Europa a qualquer outro conti- nente conhecido? E no século XV? E no XXI? Faça uma pequena pesquisa sobre isto, levantando dados sobre as formas de transporte humanas no tempo. Depois, construa um quadro comparativo colocando ao lado das informações a fonte em que cada uma delas foi obtida. Depois, refl ita: o que mudou? Quais as vantagens e desvantagens de cada tempo? COMENTÁRIOS SOBRE A ATIVIDADE As Grandes Navegações marcam um avanço fundamental na história dos transportes. As inovações reunidas para este empreendimento do século XVI propiciaram embarcações mais rápidas e seguras. No século XXI, apesar de todos os avanços tecnológicos, nem sempre é confortável viajar. Além disto, a velocidade ou o modo como somos obrigados a viajar muitas vezes retiram de nós a possibilidade de apreciar paisagens, de comparar construções, de usar a viagem para refl etir. AUTOAVALIAÇÃO Esta atividade propõe-se a colocar para o aluno a necessidade de comparar formas de transporte, sem necessariamente hierarquizá-las. Ela objetiva motivar no leitor o desejo de observar os prováveis ganhos resul- tantes das transformações tecnológicas em diferentes tempos, mas também colocá-lo para refl etir sobre os desdobramentos das viagens. Sugere ainda um procedimento básico de pesquisa, com a coleta de informação e sua apresentação em forma escrita.REFERÊNCIAS BÍBLIA SAGRADA. EDELBRA: Erechim / RS, 1979. BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo: séculos XV e XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1996. GERBI, Antonello. O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900). São Paulo: Companhia das Letras, 1996. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1977. O JULGAMENTO DE Colombo. Veja. 16 out. 1991. p. 68-88 33 Navegar é preciso: a expansão Ultramarina Européia e a edenização... Aula 3PETER, Jean Pierre e REVEL, Jaques. O Corpo: o homem doente e sua história. In: LE GOFF, J. e NORA, P. (org.). História: novos Objetos. RJ Francisco Alves, 1976.p. 141-159. PITA, Sebastião da Rocha. História da América portuguesa. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1976. VIEIRA, Pe. Antônio. Sermões. São Paulo: Hedra, 2001. v.I Filmografi a indicada: SCOTT, Ridley. 1492: a conquista do Paraíso. França/Espanha/Estados Unidos/Inglat- erra, 1992. Sinopse: O fi lme narra a luta de Cristóvão Colombo (Gerard Depardieu) para convencer a Coroa Espanhola a fi nanciar sua expedição com destino às Índias. Após con- seguir o apoio da Rainha Isabel de Castela (Sigourney Weaver), Colombo parte em busca de ouro e especiarias. Porém, acaba encont- rando muito mais do que esperava. Os desafi os do mar são apenas o começo da aventura e tragédia em que se converteria a sua vida. Ob- servações: Obra de fotografi a cuidadosa, com cenas impactantes. O fi lme de Ridley Scott focaliza muito mais Colombo, o homem, do que propriamente a complexa teia de fatores que possibilitaram as Grandes Navegações. Na película, Colombo, é representado como um idealista, alguém obstinado e tolerante. O fi lme pode ser visto como um confronto entre a imagem idealizada das novas terras e a sua posterior transformação em território maldito, permeado de mortes, traições e tristeza. Ele possui seqüências que podem ser analisadas separadamente em aulas e seminários. É preciso estar atento para a maneira estereotipada com que alguns indígenas são apresentados. Capa do DVD do fi lme 1492: a conquista do paraíso. (Fonte: http://images.quebarato.com.br) META Apresentar características fundamentais do Renascimento Artístico experimentado pela Europa, privilegiando as experiências na Itália. OBJETIVOS Ao fi nal desta aula, o aluno deverá: identifi car os principais traços que caracterizam o chamado Renascimento; Reconhecer a relevâncias das mudanças produzidas pelo Renascimento na vida europeia do século XVI; perceber a importância da história da arte como elemento articulador dos conteúdos na abordagem da História Moderna. PRÉ-REQUISITOS Leituras da aula anterior. Aula 4O RENASCIMENTO Vista do teto da Capela Sistina/Vaticano, afresco de Michelângelo, 1508-1512. (Fonte: http://www.territorioscuola.com) 36 História Moderna I INTRODUÇÃO “Não existe arte, existem apenas artistas”. É deste jeito que Sir Ernst Gombrich, conhecido historiador do assunto, defi ne a importância das manifestações artísticas como refl exos da vida em sociedade (GOM- BRHICH, 1999, p.16). Olhar atentamente para as manifestações artísticas de um povo também é estudar aspectos da sua vida cotidiana, dos movimentos da sua economia e religiosidade. Porém, através da arte não nos deparamos exatamente com um espelho da realidade, um desenho nítido e simétrico do passado. Encontramos sinais, traços, pistas deixadas pelo tempo. Por isto, é importante o estudo do Renascimento Artístico ocorrido na Europa entre os séculos XV e XVI. Afi nal de contas, o Renascimento marca o processo de construção do homem moderno e da sociedade contemporânea. São tempos em que se percebem sinais cada vez mais claros de individualismo, esboçado em fi ns de Idade Média, do Racionalismo, e de uma ambição ilimitada, “típicos de comportamentos mais imperativos e representativos do nosso tempo”, nos lembra Nicolau Sevcenko (SEVCENKO, 1985, p.5). O mesmo conjunto de mudanças eleva a razão abstrata como base para o Estado Moderno. Jun- temos a tudo isto um inegável desejo de liberdade e autonomia de espírito. Um desejo de investigação, de exploração do homem e de suas coisas... Ernst Hans Jo- s e f G o m b r i c h (Viena,1909-Lon- dres,2001). Histo- riador da arte. Es- creveu A História da Arte, livro origi- nalmente publicado em 1950, trabalho fundamental para quem se dedique à crítica ou história da arte. Com lin- guagem acessível e elegante, o livro foi um sucesso, ven- dendo milhões de cópias e sendo tra- duzido em aproxi- m a d a m e n t e 3 0 idiomas. Entre os títulos que recebeu em reconhecimento ao seu trabalho, foi nomeado Membro do Império Britâni- co, em 1966, e or- denado Cavaleiro em 1972. O Leviatã desenhado por Abra- ham Bosse para a obra de Thomas Hobbes. Foi no Renascimento que emergiu, ainda que embrionaria- mente, o Estado moderno – pacifi - cando as guerras feudais, unifi cando moedas, impostos, leis, fronteiras e aduanas, e instituindo uma moral própria e uma razão diferente do resto da sociedade: a razão de Estado. Hobbes, juntamente com Nicolau Maquiavel e Jean Bodin, participa da “tríade fundadora” do conceito de Estado moderno, em particular, e do pensamento político moderno em geral. (Fonte: http://projetophronesis. fi les.wordpress.com) 37 O Renascimento Aula 4ANTECEDENTES O fi lósofo pré-socrático Heráclito de Éfeso (540 a.C.-470 a.C) defendia a ideia de que tudo fl ui. Assim, como exemplo, lembrava que um homem nunca entra mais de uma vez no mesmo rio, pois nunca será o mesmo homem, tampouco o mesmo rio. Ora, se considerarmos este mesmo princípio de mudanças contínuas, opostas, mas ao mesmo tempo comple- mentares, compreenderemos um pouco do impacto das idas e vindas dos europeus por suas próprias terras, mas também das suas imersões nas culturas do Oriente. Uma crescente procura de produtos obtidos em feitorias comerciais fi ncadas no Oriente ocorre paralelamente às turbulências sociais e econômi- cas vividas pela Europa ao fi nal do medievo. As Cruzadas também provo- caram um empreendimento comercial. Esta efervescência dos negócios serviu como base para a gestação de um novo estilo de vida e de um novo tipo social. Ainda desajeitado, mas arrogante e exigente, nascia o burguês. Vejamos o que diz Sevcenko: “A nova camada dos mercadores enriquecidos, a burguesia, procurava de todas as formas conquistar um poder político e um prestígio social correspon- dentes a sua opulência material” (SEVCENKO, 1985, p.5). Sem saber ao certo como sentar-se adequadamente à mesa, sobre como portar-se em certas ocasiões, esta personagem invade a vida social europeia. E, como toda invasão, a chegada da burguesia provocou rebuliços. Em outras aulas, vimos que as mudanças vividas durante o início do Renascimento encontram pelo menos três fatores explicativos: a Peste Negra, a Guerra dos Cem Anos (1346-1450) e as revoltas populares (con- sulte a aula 2). Juntemos a isto a adoção do trabalho assalariado como prática nas esferas produtivas. Subproduto deste avanço é o surgimento de uma concorrência entre os indivíduos, o fortalecimento do individualismo, a partir da ruptura de antigos laços de dependência. Senhores e servos são lentamente eclipsados por patrões e empregados. O RENASCIMENTO EM DUAS CIDADES: FLORENÇA E VENEZA No século XVI, Florença era um centro do humanismo. Rica cidade, considerada “o palco mais prodigioso da efervescência renascentista”, Florença vivenciou o amor dos artistas ao belo, a sua idealização. Viu nas- cerem artistas como Michelangelo Buonarotti. Entre os fl orentinos logo se defi niu uma das mais infl uentes correntes do pensamento humanista: “o platonismo, cheio de consequênciaspara toda a história das idéias e da arte do período” (SEVCENKO, 1985, p.18). Para os platonistas, a beleza era a manifestação do divino. A busca pelo belo representava o maior exercício 38 História Moderna I de virtude, o mais puro e sincero ato de adoração a Deus. Mas não se deve achar que eles considerassem a arte simples imitação da natureza. Os artistas adeptos do platonismo pretendiam antes a superação da natureza pela perfeição absoluta. Diferentemente da perspectiva adotada em Florença, em Pádua, sob a infl uência de Veneza, um grupo de intelectuais se mostrou inspirado pelo aristotelismo. Desligaram-se das preocupações teológicas, interessados nos estudos dos fenômenos naturais. Os paduanos chegam a questionar os dogmas da Igreja - negaram a criação, a imortalidade da alma e os mila- gres, abraçaram ardorosamente o naturalismo e defenderam a supremacia natural da razão. Todavia, o Renascimento não pode e não deve ser visto como uma ruptura abrupta ou como um movimento unifi cado e homogêneo. Precisa- mos considerar um conjunto de alterações ocorridas na Europa há certo tempo. Mudanças que, conjugadas, desembocam neste movimento sem antecedentes, diversifi cado em suas manifestações, variável de cidade para cidade. Contudo, o núcleo deste processo, sem dúvida, pode ser apontado no Humanismo. Mas o que foi o Humanismo? HUMANISTAS – CONCEITUAÇÃO INICIAL O Humanismo foi um movimento de renovação. De acordo com Sevcenko, o movimento representava a busca pela renovação dos estudos tradicionais e possuía raízes no século XIV, “baseado no programa dos studios humanitatis (estudos humanos), que incluíam a poesia, a fi losofi a, a história, a matemática e a eloqüência, disciplina esta resultante da fusão entre a retórica e a fi losofi a” (SEVCENKO, 1985, p.13). Portanto, o Humanismo compreendeu um esforço em modifi car a produção do saber, inclusive aquele oriundo das universidades medievais, fortemente infl uenciadas pela preocupação em enfatizar três campos: o Direito, a Medicina e a Teologia. Ao se voltarem para a crítica ao saber produzido com a intenção de renovar e atualizar o conhecimento, os humanistas ajudaram a modifi car a posição do homem dentro dos debates do período. Através deste exer- cício crítico, vemos emergir o antropocentrismo, ou seja, o homem e suas experiências passam a ser o centro das preocupações. Os valores humanos passam a servir de coordenadas. É diante destas referências que Macbeth, personagem de William Shakespeare, pondera: “Atrevo-me a fazer tudo o que é próprio de um homem. Quem se atreve a mais, homem não o é” (SHAKESPEARE, 2003, p.164). O H u m a n i s m o cristão – Conforme Nicolau Sevcen- ko, “segundo essa corrente, o Cris- tianismo deveria centrar-se na lei- tura do evangelho (...), no exemplo da vida de Cristo, no amor desprendido, na simplicidade da fé e na refl exão in- terior. Era já o an- seio da reforma da religião, do culto e da sensibilidade religiosa que se anunciava e que seria desfechada de forma radical, fracionando a cris- tandade, por outros humanistas, como Lutero, Calvino e Melanchton” ( S E V C E N K O , 1985, p.20). 39 O Renascimento Aula 4O MECENAS SURGE A cultura burguesa, se quisesse se impor, tinha que combater a cultura medieval. Deste modo, na Itália, França e Países Baixos, a prática se repete: “muito mercador bem-sucedido queria legar sua imagem aos vindouros; muito burguês respeitável que fora eleito vereador ou burgomestre desejava ser pintado com as insígnias do seu cargo” (GOMBRICH, 1999, p.413). Os artistas serviam para isto. As prósperas famílias de burgueses enriquecidos com o comércio, os novos príncipes, os grandes clérigos disponibilizam parte de seus recursos para as artes. Graças a isto, poemas foram escritos, afrescos inventados, palácios construídos, igrejas e catedrais erguidas, estátuas talhadas. As cidades se embelezaram. Para o historiador Michael Baxandall, o termo mecenas soa restritivo. Devemos entender o mecenas como um sujeito ativo deste processo, alguém determinante “e não necessariamente benevolente: podemos chamá-lo o cliente. A melhor pintura produzida no século XV era realizada sob en- comenda por um cliente que exigia sua execução conforme suas especifi - cações”. Entre os empreendimentos possíveis, a pintura de quadros era o investimento relativamente mais baixo. Mas era algo que conferia visibilidade signifi cativa às ações dos “clientes”. Com o tempo, apurado pelas contínuas encomendas, pela concorrência frente aos seus rivais nos círculos sociais, o cliente, o mecenas, fi ndou sendo um “comprador de habilidades” (BAX- ANDALL, 1991, p.11, 31). Entre os “vendedores de habilidades”, um dos mais importantes pre- cursores do Renascimento italiano foi Giotto di Bondone (1266-1337). Ele nos ofereceu uma pioneira ruptura com padrões medievais. Suas pin- turas apresentam um esforço para estabelecer certa individualidade nas fi sionomias, nas vestes. Tomemos como exemplo o afresco A Lamentação (1303-1310), pintado na Capella degli Strovegni, em Pádua. Há nela uma busca emocionada por expressões, por dotar a imagem não apenas de uma dimensão de volume, de espaço, mas por impor à pintura um caráter dramático. Embora não sejam imagens tão sofi stica- das quanto veremos depois em artistas como Leonardo Da Vinci (1452-1519), Giotto fez algo ex- tremamente difícil. Ele descobriu caminhos, preparou o terreno para as mudanças que a arte sofreria nos anos do Renascimento. Giotto nasceu em Colle Vespignano, nas cercanias de Florença,Itália. Aluno do conheci- do artista toscanês Cimabue, foi, além de pintor, arquiteto. A Lamentação. Fonte: http://naturalpigments.com Leonardo di ser Piero da Vinci, nasceu em Vinci, na região da Tos- cana, província de Florença. Foi discí- pulo de Verocchio, respeitado pintor fl orentino. Foi um renascentista de múltiplas ocupa- ções: engenheiro, arquiteto, botânico, músico, escultor, matemático, pin- tor, poeta, cientista. Trabalhou a maior parte da vida em Milão, mas viveu ainda em Roma, Bolonha, Veneza e na França, país onde faleceu. Eis apenas alguns dos seus trabalhos mais famosos: Mona Lisa (1503-1507), A Última Ceia (1495-1498), A Adoração dos Ma- gos (1481-1482), A Virgem dos Roche- dos (1483-1486). 40 História Moderna I ARTE DE PESQUISA E INTERAÇÃO A arte do Renascimento é arte de pesquisa. É arte feita de maneira me- ticulosa, cheia de inovações, marcada por experiência, ousadia, progressos técnicos. Uma destas inovações é o estabelecimento da perspectiva como primordial na construção das obras. Graças ao uso gradativamente mais frequente da perspectiva, ampliam-se os quadros em que a sensação obtida é a de que se pode ir além da pintura. Os pintores deliciam seus clientes com a ilusão da profundidade. Claro, isto não foi feito de uma hora para outra. Foram muitas as ex- periências, as tentativas para chegar a um equilíbrio. Os renascentistas se abrem para a investigação da natureza. Novas cores, novas técnicas surgiram. Os artistas observam pássaros, cavalos. Ousam até a dissecar cadáveres. E qual o resultado de tanto esforço? Na interpretação de Nicolau Sevcenko, o artista ascende não mais como artesão, mas como cientista. E, com isto, “abre-se um enorme fosso entre a arte voltada para a elite e presa a todos esses procedimentos científi cos e a arte popular, a que se habituou chamar de primitiva” (SEVCENKO, 1985, p.32). Porém, Peter Burke nos convida a olhar com um pouco mais de calma esta paisagem e perceber as relações contínuas e frutíferas entre os dois tipos de arte, a de “elite” e a “popular”. Conforme Burke, “estudos recentes da cultura popular afi rmaram, de maneira muito razoável, que é mais
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