Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Autor: Prof. Rubens Lopes Júnior Colaboradores: Prof. Enzo Fiorelli Vasques Prof. Tânia Sandroni Antropologia e Cultura Brasileira Professor conteudista: Rubens Lopes Júnior Nascido em São Caetano do Sul – SP em 1985, é graduado em Relações Internacionais pela Faculdade Santa Marcelina de São Paulo (2007), mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2011) e doutor em Comunicação Social também pela Universidade Metodista (2018). Realizou o curso Business Programme no Newcastle College, Inglaterra, em 2016, sendo o professor responsável pelos alunos intercambistas brasileiros daquela turma. É docente no ensino superior e em pós-graduação lato sensu há 6 anos, transitando por diversos cursos e temáticas. Possui diversas orientações de projetos de pesquisa nos cursos superiores, bem como orientações de Trabalhos de Conclusão de Curso e artigos de pós-graduação. Já participou de diferentes bancas e comissões julgadoras e leciona disciplinas em inglês. É também coordenador auxiliar do curso de Relações Internacionais no campus Santos na Universidade Paulista (UNIP). © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) L864a Lopes Júnior, Rubens. Antropologia e Cultura Brasileira / Rubens Lopes Júnior. – São Paulo: Editora Sol, 2019. 176 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXV, n. 2-219/19, ISSN 1517-9230. 1. Antropologia. 2. Cultura. 3. Religião. I. Título. CDU 572 U503.43 – 19 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Lucas Ricardi Fabrícia Carpinelli Sumário Antropologia e Cultura Brasileira APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 A IMPORTÂNCIA DA ANTROPOLOGIA E DA CULTURA PARA AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ................................................................................................................... 11 1.1 A antropologia na dimensão da ciência ..................................................................................... 13 1.2 O evolucionismo e a antropologia biológica ............................................................................ 15 1.3 O funcionalismo e a antropologia cultural ................................................................................ 20 1.4 O estruturalismo e a linguística ..................................................................................................... 25 2 AS DIMENSÕES DA CULTURA ..................................................................................................................... 28 2.1 Sentido e alcance da cultura ........................................................................................................... 38 2.2 Cultura e sociedade ............................................................................................................................. 43 3 ANTROPOLOGIA, RELIGIÃO, RITOS E MITOS .......................................................................................... 46 3.1 A religião na perspectiva da antropologia cultural ................................................................ 47 3.2 A religião na perspectiva histórico-político-social no ocidente ....................................... 51 4 RITOS E MITOS E SUA INFLUÊNCIA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ..................................... 57 Unidade II 5 IDEOLOGIA E SUAS CONCEPÇÕES ............................................................................................................ 72 5.1 Identidade e nacionalismo ............................................................................................................... 79 6 ANTROPOLOGIA NA PRÁXIS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: O CONCEITO DE PODER E SUA RELAÇÃO COM A CULTURA .............................................................. 90 6.1 A dimensão da cultura nas negociações internacionais ....................................................103 6.2 A antropologia e as dinâmicas do poder como influenciador cultural ........................112 Unidade III 7 A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE BRASILEIRA: UM DIÁLOGO COM FREYRE, BUARQUE E RIBEIRO ...........................................................................................................125 7.1 O papel dos portugueses na colonização brasileira .............................................................129 7.2 A importância do indígena na formação brasileira ..............................................................138 8 O PAPEL DOS ESCRAVOS AFRICANOS NA FORMAÇÃO BRASILEIRA.........................................147 8.1 É possível falar em identidade brasileira? ................................................................................153 7 APRESENTAÇÃO Você deve estar se perguntando: para que estudar antropologia? O que tem a ver isso com aquilo? Pois bem... Tudo! E a justificativa para essa resposta é simples: em um mundo cada vez mais interconectado, no qual o aparelho celular é, muitas vezes, a extensão do corpo humano, colocando em xeque as fronteiras físicas dos países em questão de segundos, o internacionalista deve estar apto a compreender todas as dimensões dessas relações. Existem pessoas oriundas de diferentes culturas em todas as partes do mundo. Sendo assim, compreender essas dinâmicas em sua dimensão antropológica e cultural é fundamental para que você possa lançar um olhar construtivo para a sua prática profissional (atual ou futura). Assim, para um profissional ser bem-sucedido, é importante que saiba lidar com o outro. Para isso, é fundamental que possamos estudar e compreender a aplicabilidade de conceitos como etnocentrismo, relativismo, rito, mito, alteridade, troca simbólica e cultura. O estudo da antropologia enquanto instrumento de compreensão da realidade é fundamental. Outro aspecto de suma importância para o seu sucesso profissional em nossa área é compreender o papel e as dinâmicas próprias de nosso país. Para tal, o estudo da evolução histórica da cultura brasileira, sua cadeia de significação, nossa multiculturalidade e o que entendemos por identidade e etnia também poderão nos ajudar. Compreender o porquê de fazermos o que fazemos é primordial para o sucesso profissional do internacionalista. É necessário saber que cada cultura é fruto de um determinado contexto, assim como admitir as diferenças e não deixar que elas atrapalhem os negócios. Imagine você negociando com uma empresa alemã, por exemplo, que marca a reunião para começar às 14h15min, e nós, brasileiros, de uma forma assustadoramente natural, frequentemente marcamos nossos horários assim: “umas 14h, 15h está bom...”. O estudo antropológiconos dá subsídios para que possamos compreender questões contemporâneas que invadem os portais eletrônicos e os telejornais diários, como migrações internacionais e soberanias territoriais. A antropologia também é responsável por estudos sobre diversidade cultural, hegemonias e muitas outras coisas. Assim, ao final desta disciplina, você estará apto para: • Reconhecer os conceitos centrais da antropologia e identificar aspectos essenciais da cultura brasileira frente ao campo das relações internacionais. • Distinguir e oportunizar aspectos relevantes das interligações entre os diversos fatores da vida social e cultural, sistemas de crença, dinâmicas globais, comportamentos individuais e meio ambiente físico e o respeito da e pela alteridade. • Compreender a complexidade da cultura brasileira e as dinâmicas cotidianas. 8 Observação Lembre-se: por trás das relações internacionais existem pessoas e sociedades que possuem suas próprias dinâmicas, sendo elas responsáveis por comportamentos e práticas que aparecem nas relações entre os players internacionais. INTRODUÇÃO Para facilitar a compreensão da nossa disciplina, dividimos o conteúdo em três pilares: a antropologia, a cultura brasileira e a relação entre esses aspectos frente às relações internacionais. Inicialmente, discutiremos o que são a antropologia, as dimensões da cultura e a conexão desses estudos com as relações internacionais. No campo antropológico, vamos estudar a dimensão científica da antropologia, abordando três correntes de pensamento (evolucionismo, funcionalismo e estruturalismo) através do estudo de suas ideias centrais. Entretanto, ao mesmo tempo, dialogaremos com o âmbito biológico e cultural da antropologia. Outro aspecto relevante para o internacionalista é a linguística, ciência que também é classificada como parte da antropologia, mesmo porque no meio internacional nos deparamos inevitavelmente com culturas e línguas distintas. Salientamos que esse panorama é somente uma parte do todo, uma breve apresentação de algumas teorias e correntes, não de todas. A escolha dessas teorias se deu pelo fato de serem mais interessantes para o campo das relações internacionais. De modo algum o assunto se encerra aqui. Sinta-se à vontade para buscar novas bibliografias, pois a ideia é mostrar, acima de tudo, a importância desse estudo para nossa área. Vale ressaltar também que antropologia é tanto uma ciência quanto um pensar filosófico e pode ser uma excelente ferramenta para o internacionalista se capacitar e exercer sua profissão. Já no campo da cultura, trataremos do próprio conceito de cultura, seu desenvolvimento histórico e sua influência na antropologia e nas relações internacionais. Para tal, estudaremos as definições de cultura e seus múltiplos sentidos, bem como as características que existem em cada uma delas. Também veremos o sentido e o alcance da cultura, pois é necessário compreendermos como ela opera e até onde vai sua influência. Completando esse passeio pelo conceito de cultura, analisaremos a relação da cultura com a sociedade. Vamos ainda estudar o aspecto da religião na antropologia. Embora falar de religião seja um tanto quanto complexo, afinal, em nosso imaginário, “política, futebol e religião não se discute”, ela é fator determinante para as relações internacionais contemporâneas. Mesmo depois da Paz de Vestfália, em 1648, quando a religião foi relegada ao campo do privado, ela não desaparece por completo. Muito pelo contrário, ela se transforma de tal maneira que sua influência fica evidente em outras formas do fazer religioso. Por isso, iremos estudar a religião na perspectiva antropológica e em sua dimensão política, pois 9 ela foi elemento fundador de diversas sociedades. Vamos estudar também o papel do rito na sociedade contemporânea, pois ele transcende o caráter religioso nos dias de hoje. O mito também é importante porque ele atua como narrativa nas sociedades e pode, inclusive, influenciar comportamentos humanos. Na sequência, você compreenderá a importância da antropologia para as relações internacionais, lembrando que o profissional desse campo irá atuar no âmbito empresarial, em organizações voltadas para os negócios internacionais, e também na diplomacia, seja ela de Estados ou corporativa, ou trabalhar com assessoria especializada em assuntos de alcance global, por exemplo. Enfim, há um leque de possibilidades que se desenrola no mundo atualmente, e é de suma importância termos exemplos de como essas dinâmicas funcionam. Por isso, vamos ver conceitos como ideologia e poder, entendendo tais termos nas concepções mais conhecidas de Marx e Foucault, respectivamente. Ideologia é algo muito falado, mas pouco compreendido de fato. Também vamos trabalhar os conceitos de pós-modernidade e nacionalismo, pois em tempos nos quais existem muitas referências sociais, há uma crise do indivíduo na contemporaneidade justamente por essa multiplicidade de referências. Inclusive tivemos, no século XX, várias nações que elevaram seu nacionalismo ao grau mais perigoso possível, culminando em regimes fascistas e guerras globais. É importante compreendermos a dimensão dos símbolos e como eles são usados para dar coesão social. Por isso, vamos ver na prática como o samba foi utilizado no governo Vargas para dar coesão social, no intuito de se criar um símbolo que desse unidade ao país recém-saído da monarquia, sendo utilizado até como elemento na política externa. O samba? Sim! Ou você acha mesmo que todo brasileiro nasce sambando? E já que vamos falar de um gênero musical, a própria música ocidental é fruto de uma política da Igreja Católica para a manutenção e a ampliação do seu poder na Europa. Dessa forma, o poder pode ser visto em diferentes situações que, se não estudarmos de fato, sequer percebemos a sua influência. É o caso dos filmes de Hollywood, que também foram utilizados para fins ideológicos e para o exercício de poder. Por fim, conversaremos em verde e amarelo. Veremos um panorama sócio-histórico da formação do Brasil e as relações entre as três etnias principais que formaram o povo brasileiro. Nossos interlocutores são consagrados autores brasileiros, como Gilberto Freyre (2004). Utilizaremos sua obra-prima, Casa-grande & Senzala. Nosso outro interlocutor será Sérgio Buarque de Holanda (2016) e seu livro Raízes do Brasil. E completando nossos autores, dialogaremos com Darcy Ribeiro (2015), conhecido autor das causas indígenas. Estudaremos as três etnias responsáveis pelo surgimento do povo brasileiro. Primeiro, falaremos sobre os portugueses. Longe daquela perspectiva do senso comum em que os europeus são um povo “frio”, os portugueses que chegam na então Ilha de Vera Cruz já têm larga experiência em colonização, bem como na utilização da miscigenação para povoar sua colônia. Ou seja, nossa primeira geração não nasceu como fruto do amor que leva à constituição de família, mas sim para haver população suficiente para consolidar a colônia. 10 Na sequência, ao estudar os indígenas, entenderemos quais aspectos das culturas ameríndias ainda se fazem presente em nosso DNA. Ainda veremos que a figura da mulher e do menino indígena foram cruciais para os interesses da Coroa Portuguesa e que também são fruto da organização social nativa as relações de parentesco no exercício do poder. Por fim, ao estudarmos a influência dos escravos negros africanos, poderemos perceber como as dinâmicas sociais de exploração se enraizaram em nossa sociedade, consolidando aspectos que nos custam admitir. Eles foram responsáveis por espalhar a língua portuguesa, por exemplo. Isso molda nossa forma de enxergar o mundo. Compreender o fenômeno global em sua dimensão antropológica irá capacitá-lo a enxergar novos horizontes nos negócios globais. Portanto, estudaremos alguns conceitos como nacionalismo, migrações e ideologia, o papel da cultura nos negócios, entre muitas outras questões que se fazem relevantes e influenciam diretae indiretamente os mercados globais. 11 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Unidade I 1 A IMPORTÂNCIA DA ANTROPOLOGIA E DA CULTURA PARA AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A antropologia é tanto uma ciência como um pensar filosófico. Ela lida com uma variedade de temas que são fundamentais para as relações internacionais, caminha desde a linguística até a arqueologia e também estuda conceitos como cultura, subcultura, tradição e folclore. Aliás, Geertz (2013) afirma que a cultura é a semente que fez surgir a antropologia. Ela percorre temas como tabus sociais e economia, e discute questões de poder e Estado dentro da chamada antropologia política. É uma ciência que possibilita uma infinidade de abordagens socioculturais, as quais dão um arcabouço de conhecimento de dinâmicas que são fundamentais para o profissional de relações internacionais. A palavra antropologia é composta por dois substantivos gregos: anthropos, que significa “homem”, e logia, que significa “estudo”. Porém, Gomes (2008) afirma que antes de ser estudo, o sufixo logia deriva de logos, que, também em grego, significa “razão”. Sendo assim, podemos perceber como a antropologia está diretamente relacionada à razão – base da filosofia e ciência – e às relações entre os homens. Observação A palavra homem, utilizada pelos autores clássicos, designa ser humano, e o não uso da palavra mulher está relacionado ao desenvolvimento dessas sociedades. Olhe só, uma observação antropológica! Embora a palavra antropologia seja de origem grega, não foram eles que inventaram tal estudo pelo fato de que eram uma sociedade fechada em si. Se eram assim, como poderiam estudar o outro? É só no reconhecimento de que existem culturas – no plural – que podemos pensar em antropologia ou no estudo do homem. Desse modo, os estudos antropológicos sistematizados como disciplina só surgiram diante de um contexto social europeu no qual as sociedades que estavam ali instaladas passaram a reconhecer a existência de outras sociedades completamente diferentes da sua. Esse momento remete exatamente à transição sociocultural do período renascentista ao momento do surgimento da sociedade capitalista moderna e à expansão além-mar desses povos; momento importantíssimo para o surgimento de elementos que posteriormente vêm a ser fundamentais nas relações internacionais. 12 Unidade I Laplantine (2003) afirma que o nascimento da antropologia contemporânea se dá na descoberta do que os europeus chamam de Novo Mundo, pois, ao se depararem com realidade tão distinta da sua, eles sentiram a necessidade de explicar aquilo que haviam descoberto. O mais interessante é que, embora a antropologia seja um campo relativamente recente, o interesse do ser humano em buscar respostas para questões fundamentais data desde as primeiras tribos e civilizações de que se tem registros. Acontece que com as descobertas de civilizações diferentes daquelas europeias, um objeto de estudo se mostra à frente de pesquisadores e estudiosos de questões sobre a humanidade. A antropologia, então, compreende o homem na sua dimensão individual e em sua dimensão coletiva, o ser em sociedade inserido dentro de uma (às vezes mais) cultura. Esse momento da história ocidental remete ao iluminismo, consolidando o fato de a antropologia ser uma ciência que está em diálogo com o campo da filosofia. Observação Conforme o Dicionário Priberam, iluminismo é: 1. Doutrina de certos movimentos religiosos marginais, baseada na crença de uma iluminação interior ou em revelações inspiradas diretamente por Deus. 2. Movimento de renovação científica na Itália, no século XVIII. Para que esse tipo de estudo seja possível, deve existir uma característica fundamental para essa ciência: a capacidade de se distanciar de sua própria cultura. Pois, somente assim, é possível que se estude outra cultura sem se utilizar a sua por base. Para se obter esse pensar é preciso ter-se ou criar-se a capacidade de sair ou tomar distância de sua própria cultura, dos valores por ela cultivados, para daí penetrar e entender outras culturas pelos valores dessas outras culturas, não de sua própria. Tal método de pensar é condição sine qua non para existir o pensamento antropológico (GOMES, 2008, p. 12). Consequentemente, a distância em relação a nossa sociedade nos dá a possibilidade de perceber que aquilo que para nós era tido como natural é uma construção social. Esse aspecto da antropologia é o choque cultural que leva o pesquisador a repensar a abordagem comum a partir da perspectiva de sua própria cultura. É o início da reflexão que leva ao surgimento do conceito de alteridade. Ademais, o contato com outras culturas nos causa um estranhamento, uma certa perplexidade que, acima de tudo, fez com que os pesquisadores refletissem sobre o que não enxergavam a respeito da própria cultura. Afinal, o “conhecimento (antropológico) da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única” (LAPLANTINE, 2003, p. 13). 13 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA É diante dessa condição que a antropologia começa a se desenvolver tanto como pensar filosófico quanto como ciência. Figura 1 – Comida chinesa 1.1 A antropologia na dimensão da ciência Se partirmos do pressuposto de a antropologia ser ciência, só pelo fato de ser ciência, ela já nos diz algo: o ser humano pode ser estudado. Não só estudado, mas “pode ser objetivado, esquadrinhado, medido, calculado, dimensionado no tempo e no espaço, tal qual outros objetos científicos” (GOMES, 2008, p. 13). Compreendendo a antropologia por essa perspectiva, ela está lado a lado com outras ciências que compõem um bloco denominado ciências humanas ou ciências sociais. Ela seria, hipoteticamente, irmã da sociologia, que se preocupa com o ser humano inserido na coletividade (sociedade). Também poderia ser prima da economia, que enxerga o aspecto material da sociedade, desde bens e trocas. Embora facilmente possamos entender a economia como uma ciência exata – afinal, economia remete aos números –, essa ciência também trata de temas como desigualdade social, por exemplo. A antropologia também pode ser considerada prima da ciência política, pois esta busca compreender as relações de poder dentro de uma sociedade, bem como mecanismos de convivência e até mesmo controle. Até a psicologia pode ser compreendida como parente da antropologia, pois ela estuda a psique do ser humano. É verdade que ela transita por entre o indivíduo em seu aspecto fisiológico filosófico, mas não deixa de ser uma ciência humana. Sendo assim, podemos compreender que a “antropologia é a ciência humana que presume abordar um pouco de tudo que cada outra ciência humana aprecia” (GOMES, 2008, p. 15). Porém, ao mesmo tempo, “só pode ser considerada como antropológica uma abordagem integrativa que objetive levar em consideração múltiplas dimensões do ser humano em sociedade” (LAPLANTINE, 2003, p. 9). Nessa ótica, a antropologia é uma ferramenta de compreensão da realidade. E quando pensamos na antropologia enquanto ciência, admitimos que uma variedade de mecanismos de compreensão 14 Unidade I podem fazer parte de um leque maior. Assim, ciências como a arqueologia, a linguística, a antropologia biológica e muitas outras ciências fazem parte da antropologia. Além do mais, precisamos definir incialmente que a antropologia é uma ciência ambiciosa, pois ela não é apenas o estudo dos elementos que compõem as sociedades, mas sim um estudo que abrange todas as sociedades humanas, inclusive aquela em que nós estamos inseridos. Ela estuda as diversidades geográficas, históricas e culturais, daí a preocupação em situar o outro. Figura 2 – Museu de Antropologia do México Para melhor compreendermos essa tal antropologia, dividimos seu campo em duas dimensões de atuação: a antropologia biológica e a cultural. A antropologia biológica se preocupacom a busca pelo entendimento do ser humano e sua natureza biológica, física. Ela estuda o ser humano enquanto um espécime e questiona qual é o nosso lugar no mundo e na cadeia evolutiva, assim como todo tipo de assuntos que trazem questionamentos dessa natureza. Já a busca pelo entendimento do ser humano enquanto produtor de cultura fica a cargo da antropologia cultural. Afinal, o ser humano é o único dos animais que é capaz de criar cultura e ser influenciado por ela. Compreender quais são as relações, os símbolos, signos e significações; as dinâmicas sociais, seus ritos e mitos; estudar os elementos que passam de geração em geração, não como herança genética, mas através da linguagem e tradições, fica a cargo dessa dimensão antropológica. Não é segredo que a segunda concepção antropológica descrita nos é mais atraente, não é mesmo? Em nossa sociedade cada vez mais interconectada, hoje mais do que em outros tempos, as diferenças culturais ficam evidentes e vão influenciar todas as negociações entre diferentes culturas e sociedades. Embora a parte que nos remete à cultura seja a mais interessante para nosso curso, é importante compreendermos cada degrau e subdivisão que a antropologia possui. 15 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Em seu desenvolvimento enquanto campo de estudo, a antropologia acabou por ser dividida em diferentes subgrupos e sofreu influência de diferentes correntes de pensamento. Uma corrente de pensamento é uma espécie de teoria que normalmente influencia todos os aspectos de uma sociedade em um determinado momento no tempo. Consequentemente, as ciências da época são influenciadas também. Para melhor compreendermos como essa dinâmica se dá, nos próximos tópicos iremos estudar algumas dessas correntes e, ao mesmo tempo, exemplificar a influência dessa corrente de pensamento em alguma subdivisão da antropologia para que possamos entender quais as relações entre esses dois aspectos. Como ressaltamos anteriormente, essa nossa reflexão não contempla todos os campos antropológicos nem todas as correntes de pensamentos, mas sim aquelas que são mais interessantes para as relações internacionais. 1.2 O evolucionismo e a antropologia biológica A antropologia biológica ou antropologia física é um campo de estudo que se preocupa com temas como a transição do nomadismo para o sedentarismo e em compreender como o ser humano se deslocou e se adaptou aos quatro cantos do planeta (embora ele seja esférico!). A antropologia biológica se preocupa em compreender a evolução do ser humano, ou seja, como passamos de neandertais para Homo sapiens. Enfim, todos os temas que seguem essa linha de questionamento se encontram na esfera da antropologia biológica. Compreender a antropologia biológica é saber que ela é muito mais do que documentários televisivos sobre a “busca do elo perdido” ou “qual a semelhança do ser humano com o chimpanzé”. É saber que ela foi influenciada pela teoria evolucionista de Charles Darwin, de 1859, por exemplo. É compreender essa teoria que afirma que a continuidade da vida depende de “uma série de processos químicos” e “da capacidade de disputa de cada espécie dentro do ambiente em que está inserida” (GOMES, 2008, p. 16). A antropologia biológica é uma espécie de elo entre as pesquisas das ciências biológicas e os estudos das ciências humanas. O evolucionismo é uma linha de pensamento que ganha popularidade no século XIX. Ele é responsável pela influência da Teoria Geral da Evolução também nos fenômenos de cunho cultural. Uma corrente de pensamento normalmente se transforma em teoria. Ela é fruto do trabalho de muitos pesquisadores de diversas áreas. Através dessa ótica proposta por uma corrente de pensamento, há uma infinidade de possibilidades a frente do pesquisador, sendo que ele tem total liberdade de escolher como irá estudar tal sociedade, desde que siga alguns padrões estabelecidos nesse consenso do pensar. Por meio da influência do evolucionismo, a antropologia passa “a ser pensada como uma ciência que iria contribuir para enquadrar o homem e suas culturas num plano contínuo, ou ao menos paralelo ao plano biológico” (GOMES, 2008, p. 12). 16 Unidade I Segundo Marconi (2013), mesmo com Darwin sendo o pai da teoria, na área da cultura outros já estavam – ao mesmo tempo e até mesmo antes que ele – desenvolvendo teorias nas quais os objetos de estudo eram classificados em estágios de evolução. Para se estudar uma cultura sob a ótica evolucionista, existem três princípios básicos: sucessão linear, métodos comparativo e sobrevivência. Linear porque ela é cronológica, um estudo das suas mudanças ao longo do tempo. É a mesma lógica utilizada no algoritmo das redes sociais, nossa timeline. Ela demonstra um desenvolvimento, sempre está em constante evolução e segue o tempo, que sempre vai para frente. Portanto, justificava a lógica presente na cultura europeia de existirem sociedades superiores (eles) e inferiores (seus colonizados). É necessário o método comparativo, porque nele se parte do pressuposto de que existe hierarquia por causa da evolução das sociedades não seguir o mesmo curso, sendo assim, é necessário comparar uma cultura com a outra para avaliar e validar tal teoria. Mas qual o critério comparativo? Sobrevivência. Entretanto, temos duas perspectivas para a ideia de sobrevivência. Primeiro, na perspectiva de continuidade da espécie, sendo literalmente uma luta de vida ou morte pela continuidade da vida. Porém, no campo da cultura, o conceito de “sobrevivência” significa a capacidade de “perpetuação de um fenômeno originário em épocas anteriores, em condições diversas” (MARCONI, 2013, p. 247). Figura 3 – Charge da Teoria da Evolução E qual a relação dessa ciência com as relações internacionais? Vamos fazer um rápido exercício reflexivo: imaginemos um país que seja uma teocracia. Agora, imagine você em um eventual trabalho de negociação internacional entre uma empresa de um país laico de base científica-tecnológica, negociando com uma empresa ou até mesmo um governo teocrático e tradicional. 17 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Observação Conforme o Dicionário Priberam, teocracia é: 1. Sociedade em que a autoridade, considerada como emanação de Deus, é exercida pelos seus ministros. 2. Governo em que o poder está na mão do clero. É uma situação na qual há um interlocutor oriundo de uma lógica cultural oposta ao outro. Consequentemente, os diferentes hábitos e formas de se enxergar o mundo estarão presentes em todos os aspectos dessa negociação, dificultando ainda mais esse processo. Ou o profissional de relações internacionais está preparado para tais circunstâncias nas quais há um choque cultural, ou não haverá negociação. Vamos além: uma das frases clássicas que resume a teoria de Darwin é “a sobrevivência do mais apto”. Essa frase “sintetiza a teoria da evolução, mesmo que se compreenda modernamente que a disputa entre as espécies dá vez, com frequência, a processos cooperativos” (GOMES, 2008, p. 16). Disputa, processos cooperativos... Como é parecido com o meio internacional, não? Gomes (2008) afirma que o ser humano surgiu há cerca de 200 mil anos, sendo que em torno de 80 mil anos evoluiu fisicamente para nossa condição atual, sem nenhuma grande mudança posterior. Além do mais, o autor afirma que a evolução humana ocorreu através de processos idênticos aos outros animais. Nitidamente, percebemos a influência da teoria evolucionista darwiniana nesse estudo. Porém, o ser humano desenvolveu habilidades muito além de outros animais, incluindo a fabricação e utilização de ferramentas, o domínio do fogo e a criação de sistemas linguísticos, aumentando sua capacidade de comunicação. Toda essa evolução se dá, então, por conta da criação de uma dimensão cultural de convivência. Talvez um dos pontos fundamentais para a consolidação da sociedade moderna seja a “adoção generalizada de um costume social excepcional, a proibição do incesto, isto é, de relaçõessexuais entre pais e filhos e irmãos e irmãs, como regra fundamental da sociedade humana” (GOMES, 2008, p. 17). Assim, o incesto torna-se tabu. O evolucionismo influencia a antropologia principalmente no século XIX, pois essa ciência, ao se ancorar nessa perspectiva de evolução das espécies, identifica que existe uma espécie humana, igual a sua, mas que seu desenvolvimento, no que tange aos aspectos socioculturais, econômicos e políticos, se desenrola em um tempo e lógica completamente diferentes da europeia. Vale também nossa atenção ao fato de que essa perspectiva evolucionista também serve de subsídio para o colonialismo. 18 Unidade I A antropologia evolucionista, cujas ambições nos parecem hoje desmedidas, não hesita em esboçar em grandes traços afrescos imponentes, através dos quais afirma com arrogância julgamentos de valores sem contestação possível. A convicção da marcha triunfante do progresso é tal que, juntando e interpretando fatos provenientes do mundo inteiro (à luz justamente dessa hipótese central), julga-se que será possível extrair as leis universais do desenvolvimento da humanidade (LAPLANTINE, 2003, p. 52). Embora a teoria evolucionista se encaixe facilmente no campo da antropologia física, ela dialoga entre os aspectos biológicos e culturais. E, mesmo que seja fácil de constatar o fato de a biologia influenciar a cultura, podemos também pensar na direção contrária. Um exemplo disso é a utilização do fogo para se cozinhar os alimentos. Por conta dessa prática, “os grandes molares, encontrados nos fósseis de alguns ancestrais humanos e próprios para triturar sementes, ficaram dispensados dessa função, já que sementes cozidas são mais facilmente mastigáveis” (GOMES, 2008, p. 17). Existem duas questões básicas que orientam as pesquisas de antropologia biológica: a primeira delas é compreender a posição do Homo sapiens na escala evolutiva. A segunda é tentar entender o quanto de “animal” ainda há no ser humano; é compreender o quanto de nossas ações ainda é fruto dos instintos de ser humano – aqui no sentido do verbo “ser” – e o quanto de ser humano é oriundo de transformações culturais, como religião ou política, por exemplo. Novamente, podemos traçar um paralelo com o campo das relações internacionais. Essa busca da antropologia biológica pode nos ajudar a entender e refletir sobre as nações viverem em paz ou se o ser humano é incapaz de tal feito, dado o seu instinto de sobrevivência, assim como os animais, nessa perspectiva evolucionista. Uma das ferramentas que dá subsídio para a antropologia biológica é a anatomia. Por que a anatomia? Porque grande parte da pesquisa desse campo está em esqueletos e ossos fossilizados. Outra ferramenta da antropologia biológica é a genética. Embora as pesquisas sobre genética sejam recentes, datando principalmente da segunda metade do século XX, ela nos dá subsídios para compreender as diferenças e semelhanças entre as espécies. Além do mais, na pesquisa forense, a genética pode ser utilizada para a resolução de crimes. Nos anos 1980, os estudos sobre genética e a própria aplicação dessa ferramenta científica foi fundamental para o reconhecimento biológico dos netos das avós da Praça de Maio, na Argentina, pois com a morte dos pais no período da ditadura argentina, muitos desses netos e netas sequer sabiam que não eram filhos legítimos das famílias em que foram criados. 19 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Saiba mais Sobre o tema, assista ao filme: 500: os bebês roubados pela ditadura argentina. Dir. Alexandre Valenti, Argentina: Intuition Films & Docs, 2013. 105 minutos. Se pensarmos na relação da dimensão cultural com a dimensão biológica do estudo das sociedades através de antropologia, podemos chegar na arqueologia. Quando se pensa na palavra arqueologia, é inevitável que imaginemos uma escavação em alguma tumba muito antiga, em um lugar longínquo, quem sabe de um grande faraó, ou em pedras preciosas, brilhantes, esperando o primeiro explorador de chapéu marrom para serem capturadas. No entanto, essa descrição está baseada em cenas que, de alguma forma, fazem parte do nosso imaginário. Cada um de nós imagina a cena de um jeito, mas, coletivamente, algumas ideias são praticamente as mesmas. É o conceito de imaginário ligado ao conceito de cultura. Imaginário foi um termo que ganhou notoriedade em meados do século XX, mas que já vinha sendo estudado desde um século antes. Para Maffessoli (2001), imaginário remete a uma espécie de estado de espírito de um povo. Não é algo simplesmente racional, pois traz consigo o imponderável, um certo mistério. “É uma força social de ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não quantificável” (MAFFESSOLI, 2001, p. 75). Exatamente por isso que, quando pensamos em arqueologia, algumas imagens já vêm na nossa cabeça. Embora tenhamos algumas sinapses cerebrais, elas são constituídas por conta das relações sociais. Quer ver o poder do imaginário? Pense em aniversário. O que vem na sua mente? Festa, comemoração, bolo, parabéns.... Não há mágica nisso, mas uma correlação da realidade com o pensamento coletivo. Contudo, independentemente de nosso imaginário, compreender a dimensão da arqueologia para a antropologia é importante para o estudo das relações internacionais. Afinal, ela é uma excelente forma de se compreender – através de uma espécie de reconstituição a partir dos “achados” – como era a dinâmica de uma sociedade antiga. A ideia é reconstituir o passado por meio das evidências concretas que podem ser, literalmente, desenterradas: lascas de pedras que um dia foram facas, furadores e raspadores; ossos, esqueletos e corpos mumificados, que podem dar dados sobre idade, doenças, hábitos alimentares, status social [...] (GOMES, 2008, p. 17). Agora, imagine o que é preciso para chegarmos a esse ponto. Ser arqueólogo é estar durante muito tempo à disposição da escavação, suando na poeira que vem da limpeza de esqueletos ou dos cacos de 20 Unidade I objetos raros. E se pensarmos sob o aspecto cultural da antropologia, reconstituir a dinâmica de uma sociedade antiga é criar a possibilidade de se compreender diversos processos de mudanças culturais, estudando sua relação com a cultura nos dias de hoje. Figura 4 – Antropólogos trabalhando É por isso que a arqueologia é considerada uma técnica de descoberta, que atende tanto a antropologia biológica como a cultural. O interessante é que, ao mesmo tempo, muitas técnicas da própria arqueologia vêm da química, da geologia e até mesmo da própria anatomia. Uma das tarefas mais árduas da arqueologia é conseguir datar determinado sítio arqueológico a partir do estudo de materiais retirados naquele local. E outro desafio de peso é dialogar com conceitos da antropologia cultural, pois, se é possível reconstruir uma sociedade antiga a partir dos achados, é possível estudar a sua evolução. 1.3 O funcionalismo e a antropologia cultural Sabemos que a antropologia cultural, embora em uma dimensão diferente, dialoga com a antropologia física. Porém, vale ressaltar que o campo da antropologia cultural é fundamental para o internacionalista. Ela também é conhecida como filosofia da cultura, e suas reflexões giram em torno da lógica, de modo muito parecido como ocorria na filosofia antiga. Um dos mais importantes instrumentos de pesquisa que traz grande contribuição para a antropologia é a etnografia, que é um estudo descritivo das sociedades designadas como objetos de estudos. Tal campo de estudos é, então, um emaranhado de estruturas “amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem de, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar” (GEERTS, 2013, p. 7). Para que o etnógrafo tenha sucesso na sua pesquisa, é necessário “estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por diante” (GEERTZ,2013, p. 4). 21 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Vimos há pouco que a antropologia cultural possui uma característica histórica fundamental para sua existência: ela é fruto do iluminismo. Conseguinte, os caminhos traçados pelas sociedades que foram influenciadas por essa corrente de pensamento tiveram contato com relatos, livros e diários trazidos por exploradores e comerciantes de outros lugares, descrevendo culturas distintas da europeia, o que chamou muita atenção de curiosos e pesquisadores. Porém, segundo Laplantine (2003), não basta viajar e ver o diferente para se tornar etnólogo. Para ele, a etnografia só surge quando o pesquisador admite que ele próprio deve estar no campo de estudos, pois somente através da observação direta é possível realizar a etnografia. Ademais, é somente nesse período que o conceito de homem se constitui não somente como sujeito, mas também como um objeto passível de estudo. A antropologia social também contribui para a modificação da própria maneira de se fazer ciência. No Renascimento, a capacidade de observação se populariza, acrescentando uma nova forma de compreender o mundo diferente daquela visão de mundo dos gregos antigos. O Renascimento foi um período histórico que remete ao século XI, quando a Europa começa a enxergar o mundo de uma nova maneira. É o momento de reinvenção da vida econômica, há um aumento populacional e o nascimento das modernas cidades. Ao mesmo tempo, é o período da expansão de várias nações europeias. Por exemplo, da “conquista da Inglaterra pelos Normandos, alguns passos importantes no sentido da reconquista da Espanha aos muçulmanos, a primeira cruzada” (PALISCA; GROUT, 2014, p. 96). Porém, também é importante destacar que essas mudanças na concepção de mundo também se dão no campo cultural. É nesse período que temos as primeiras traduções dos escritos árabes e gregos, também é o momento do surgimento das primeiras universidades, entre diversos outros fatores que funcionaram como um despertar das capacidades humanas. Isso porque, há muitos séculos, a cultura europeia esteve sob o domínio da igreja cristã institucionalizada. Dessa maneira, esse momento de ruptura com o antigo sistema de vida foi como um renascimento para aquelas sociedades. No fundo, é a constituição de uma nova forma de se enxergar o ser humano, que, assim, passa a ser compreendido em sua “existência concreta, envolvida nas determinações de seu organismo, de suas relações de produção, de sua linguagem, de suas instituições, de seus comportamentos” (LAPLANTINE, 2003, p. 40). Um grande etnógrafo da antropologia que merece nossa atenção é Franz Boas (1858–1942). Ele é considerado um pesquisador de campo e conhecido por ser um detalhista na sua descrição etnográfica, pois ele descrevia, por exemplo, desde o tipo de material com que as casas eram construídas até a nota que era cantada na melodia das canções locais. Ele também é um dos defensores de que o costume de uma sociedade só tem significação dentro dela mesma. Também foi pioneiro em defender que somente o pesquisador qualificado – e não mais o viajante que escrevia um diário – tem capacidade para analisar o costume naquele contexto. Assim, a partir de Boas, a etnografia começa a se preocupar com o que estudar, e não sair pegando qualquer material aleatoriamente. 22 Unidade I Boas também coloca todos os objetos de estudos em um mesmo patamar, afirmando que não existe um melhor e um pior. Para ele, uma história contada por qualquer pessoa tem tanto valor, etnograficamente falando, do que a mitologia da sociedade. E o pesquisador também deu muita importância para a linguística, pois, para ele, estudar a língua é necessário porque as tradições locais não poderiam ser traduzidas. Outro grande nome da etnografia que merece destaque é Bronislaw Malinowski (1884–1942). Ele é conhecido, assim como Boas, por ser um dos antropólogos que mais viveu em campo. Sua pesquisa visava compreender até o que as pessoas daquelas sociedades sentiam. Ele também era um pesquisador que defendia que se apenas um objeto de uma sociedade fosse estudado, esse objeto já traria pistas do perfil da sociedade toda. Esse aspecto é um contraste com o detalhismo de Franz Boas. Além do mais, Malinowski defendia que uma sociedade, para ser compreendida antropologicamente, deveria ser estudada na sua totalidade. Ele, de certa forma, rompe com as abordagens históricas que até então eram populares na antropologia. Com Malinowski, a antropologia se torna uma “ciência” da alteridade que vira as costas ao empreendimento evolucionista de reconstituição das origens da civilização e se dedica ao estudo das lógicas particulares características de cada cultura (LAPLANTINE, 2003, p. 61). Figura 5 – Museo “Alto Bierzo” de Bembibre de El Bierzo, província de León, Espanha – Etnografía Talvez o maior legado de Malinowski tenha sido contribuir com a utilização da corrente de pensamento chamada de funcionalismo no campo da antropologia. O funcionalismo é uma teoria que admite que o “o indivíduo sente um certo número de necessidades, e cada cultura tem precisamente como função a de satisfazer à sua maneira essas necessidades fundamentais” (LAPLANTINE, 2003, p. 62). Cada sociedade, então, elabora subdivisões, através da criação de instituições políticas ou econômicas, por exemplo, para que possam responder a anseios coletivos. Essas soluções são sempre originais porque elas fornecem a resposta para determinada sociedade. Ademais, na visão funcionalista, as sociedades são estáveis e não possuem conflitos, buscando o equilíbrio justamente na criação dessas instituições. 23 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA O funcionalismo é uma corrente de pensamento que, no estudo antropológico, contribuiu para a ruptura com as antecessoras. É a mudança de foco do olhar histórico e evolucionista para a lógica da cultura como um todo, um sistema, “relacionando a sociedade a um organismo, a uma unidade complexa, a um todo organizado” (MARCONI, 2013, p. 255). É uma corrente que também tem devida importância nas mudanças de paradigmas da sociologia. Se o funcionalismo se preocupa com o todo, com a maior parte dos componentes e das relações que eles estabelecem entre si, todos os detalhes da sociedade importam. Assim, o funcionalismo pode ser considerado como o pai da etnografia, pois ela nada mais é do que uma forma funcionalista de se descrever uma sociedade. “Cada costume é socialmente significativo, já que integra uma estrutura, participando de um sistema organizado de atividades. Uma cultura não é simplesmente um organismo, mas um sistema” (MARCONI, 2013, p. 256). Outro aspecto interessante do pensamento de Malinowski é o fato de o autor romper com o estigma evolucionista que herdara de outra época, direcionando sua forma de enxergar o mundo para a alteridade. Ou seja, ele se identificava com a sociedade estudada, não com a sociedade dita civilizada da qual nascera. Assim, o funcionalismo nos deixa de herança o fato de que a cultura é um sistema, com lógica própria, oriunda de um determinado contexto. São partes independentes que se relacionam entre si. Divide a existência em cultural e natural, e é uma corrente de pensamento que delimita e estuda o conceito de necessidades. O funcionalismo introduz uma característica que vem a ser fundamental na antropologia: o relativismo cultural, possibilitando o estudo de outras culturas sem ser projetada a visão cultural do pesquisador. Embora inicialmente os costumes ou rituais que ficaram conhecidos na Europa pudessem ser interpretados como bizarros, algumas pessoas passaram a questionar qual era o sentido para aquele povo que praticava tal ritual. Laplantine (2003) afirma que essa mudança faz parte do próprio amadurecimento do campo antropológico, que passa a enxergar o mau selvagem como bom selvagem. Vale atentarmo-nos para o fato de que essa transição não exime nem condena o fato de que a admiração possa ser apenas estética ou romantizada.Vale ressaltar que esse ímpeto expansionista europeu do século XVI é responsável por iniciar o processo de colonização das Américas. A religião dominante na Europa nesse período também tem papel fundamental, pois havia uma “destinação cristã de construtores do reino de Deus no Novo Mundo, de soldados apostólicos da cristandade universal” (RIBEIRO, 2015, p. 45). A religião era uma justificativa para uma expansão territorial e norteava um processo civilizatório. É importante atentarmo-nos também ao fato de que esse é o contexto de surgimento do conceito de civilização. Para Laplantine (2003), essa questão de designar um rótulo para outras culturas diferentes da europeia já vem desde os gregos. Para eles, tudo que não era parte da cultura helenística era visto como bárbaro. No período renascentista – séculos XVII e XVIII, principalmente – se chamavam de selvagens. O termo primitivos ganha força somente no século XIX. A influência desse modo de enxergar o mundo aparece na literatura da Ciência Política, no conceito de estado de natureza utilizado por Thomas Hobbes, por exemplo. 24 Unidade I Saiba mais Para Thomas Hobbes, o estado de natureza é a “guerra de todos contra todos”, contrastando com a sociedade civil que seria criada a partir do pacto de surgimento do Estado. Sobre o assunto, leia: WEFFORT, F. C. Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 2006. (v. 1). HOBBES, T. O Leviatã. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Se pensarmos nas próprias relações internacionais contemporâneas, enxergamos o mesmo discurso de civilização X bárbaros na justificativa de intervenções ocidentais no Oriente Médio, em sua maioria sob uma sombra maior chamada de terrorismo. Essa visão de mundo que hierarquiza as sociedades justifica ações além das fronteiras de seus países, ocasionando efeitos instantâneos e irremediáveis em sociedades tidas como inferiores. Analisar através da ótica antropológica, segundo Laplantine (2003), é uma forma de se expulsar o outro da cultura para a natureza, pois eles estão em uma parte da cultura na qual a sociedade europeia – e, no caso de nosso exemplo, a sociedade ocidental – não participa. É como se a sociedade que interfere na outra – que é vista como inferior – já tivesse superado essa fase em outros tempos. Como exemplo dessa afirmação, a própria forma como os europeus descrevem os ameríndios, por exemplo, nos mostra tal faceta. Para eles, além do critério religioso, a aparência física, a nudez, os hábitos de alimentação, a linguagem, absolutamente todos os elementos em que consistiam as sociedades eram distintos. Ora, eles não acreditavam no deus cristão (porque sequer conheciam o que o europeu entende por religião) e, por conta disso, foram considerados “sem alma”; eles não tinham a linguagem europeia, por isso foram taxados como um povo sem língua; eles tinham aparências diferentes (eram considerados feios) e se alimentavam como “animais”. Assim, não houve outra perspectiva a não ser taxá-los exatamente como animais. O século XIX é emblemático para as relações humanas aos olhos da antropologia; já para as relações internacionais, é importante por questões geopolíticas. É o período de consolidação de conquistas coloniais, principalmente na África, pois nas Américas o expansionismo se dá desde o século XVI. Um momento importante para a determinação de cursos históricos é a assinatura do Tratado de Berlim no ano de 1885, determinando a partilha da África entre seus colonizadores. Para nosso campo de estudos é importante o fato de que esse tratado põe fim à soberania de nações africanas. Ao mesmo tempo, consolida-se a antropologia moderna. É também no século XIX que a noção de selvagem vem a transformar-se em primitivo. 25 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA É no movimento dessa conquista que se constitui a antropologia moderna, o antropólogo acompanhando de perto, como veremos, os passos do colono. Nessa época, a África, a Índia, a Austrália, a Nova Zelândia passam a ser povoadas de um número considerável de emigrantes europeus; não se trata mais de alguns missionários apenas, e sim de administradores. Uma rede de informações se instala (LAPLANTINE, 2003, p. 48). Toda essa exemplificação pode ser considerada fruto de mutações de aspectos culturais, sendo que nos dias de hoje acrescenta-se o fato do rápido desenvolvimento tecnológico, inédito para a humanidade. Assim, as sociedades atuais não seriam mais sociedades tradicionais, mas ainda não temos como classificá-las e nem os estudos dão conta de suas mudanças justamente por conta da velocidade delas. Diante dessa perspectiva, a antropologia pode ser considerada um instrumento de investigação para o melhor entendimento de aspectos cruciais para o profissional de relações internacionais, como crises de identidade nacionais. A antropologia cultural pode nos ajudar a compreender também o pluralismo cultural, ou seja, choque de línguas, formas de pensar e técnicas de convívio e sobrevivência. Talvez o aspecto mais relevante para nós pode ser uma forma de se evitar conflitos ocasionados por choques religiosos, econômicos e socioculturais. 1.4 O estruturalismo e a linguística A linguística é uma ciência muito importante para o profissional de relações internacionais. Ela estuda as “línguas humanas, suas estruturas internas, suas conexões mútuas, suas histórias, sua capacidade de mudança e, especialmente, o significado que elas dão ao homem e à cultura” (GOMES, 2008, p. 24). Se partirmos dessa perspectiva, estudar a língua de um país é, acima de tudo, também estudar um pouco de sua cultura e sua própria história, conhecimento que pode ser fundamental para o sucesso em nossa profissão. Vale ressaltar que os antropólogos da área da linguística estudam muito mais línguas não europeias, pois eles acreditam que através da língua seja possível aprender tanto o mundo da natureza como o da cultura. “A língua seria o veículo da cultura, que, por sua vez, é a intermediação entre o homem e a natureza” (GOMES, 2008, p. 24). Como um exemplo de contribuição da linguística para as relações internacionais, podemos elucidar o fato de que o estudo da evolução de uma determinada língua pode demonstrar o seu deslocamento físico e, consequentemente, servir de ferramenta para se estudar fluxos migratórios. Também podemos, através do estudo histórico da língua, compreender o poder de persuasão dela através do estudo da retórica e do discurso, ferramentas fundamentais nas negociações internacionais. Orlandi (2003) afirma que o discurso é a capacidade e a linguagem necessária do ser humano para dar sentido entre a realidade natural e social em que está inserido. Já Bourdieu (1996), a partir de 26 Unidade I uma ótica cultural, afirma que para se compreender um discurso, é necessário entender as condições da formação dele. Se pensarmos na sociedade brasileira, a análise de Beltrão (1980) pode nos ser útil para reflexão. Ele afirma que a história brasileira é escrita através da capacidade de absorção, por parte das culturas nativas, das características de seus conquistadores. Mas, ao mesmo tempo, possui a capacidade de conservação dos traços culturais da sua cultura original. Estamos falando de outro conceito muito importante para nossos estudos: miscigenação, que vamos estudar logo mais. Para chegar a essa conclusão, Beltrão (1980) estuda a língua falada no Brasil, pois, para o autor, ela era – e continua sendo – o instrumento principal de comunicação das pessoas. Embora a nossa língua tenha o tronco latino, ela foi enriquecida depois da interação das culturas indígena e africana. Podemos pensar também que o estudo da linguística pode servir como ferramenta de compreensão do desenvolvimento cultural de uma sociedade, pois cada língua nasce dentro de cada cultura específica. O português é falado no Brasil por conta de nossa história, fruto das nossas próprias interações sociais. Entretanto, historicamente, desde nossa colonização, a língua falada no Brasil erade origem ameríndia e, por conta das interações entre os colonos e jesuítas, a mais difundida era o tupi. O português só se tornou língua oficial no século XIX, com a chegada da Coroa Portuguesa. Assim, a população foi obrigada a adotar a língua portuguesa “sem estudá-la, aprendendo-a de ouvido, envolvendo-a nas roupagens verdes das florestas ou sanguínea-e-negras da distante, ensolarada e saudosa África” (BELTRÃO, 1980, p. 10). As línguas “têm as palavras de que suas culturas precisam para representar suas características e propriedades” (GOMES, 2008, p. 25). Assim, justifica-se o fato de as línguas terem a capacidade de serem todas diferentes entre si. A língua é capaz de explicar desde pensamentos abstratos até descrições precisas. As palavras se misturam e se transformam, como em um grande caldeirão sob o fogo, fazendo com que novas palavras sejam criadas. Elas podem até ser misturadas com outras línguas, mas sua significação é fruto do contexto em que ela está inserida. Se pensarmos de uma forma prática, os estudiosos da linguística foram capazes de estudar e compreender que uma língua tem sua própria sistematização. Os sons emitidos só fazem sentido ali naquele sistema que estão inseridos e não fazem sentido algum em outro sistema. É por isso que o internacionalista tem que estudar outras línguas, como o inglês e o espanhol, pois faz parte das relações que se desdobram no sistema internacional. Ademais, as palavras representam coisas reais, mas só possuem sentido se inseridas em um determinado sistema, que pode ser o português, o inglês, o espanhol, o russo, o francês... Cada idioma representa um sistema próprio de significação e – não é mera coincidência – tais palavras também podem designar nacionalidades. 27 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Figura 6 – Globo representando as línguas Vale ressaltar que embora a antropologia se debruce em grande parte nos estudos de povos de origens não europeias, a linguística nos dias de hoje é, segundo Laplantine (2003), responsável também por estudos na área de comunicação, frutos de modernas técnicas como a mass media e a cultura audiovisual. Observação Conforme o Dicionário Priberam, mass media é uma locução inglesa, do inglês mass, massa + latim media, meios. Trata-se do conjunto dos meios de comunicação social. Os estudos da linguística ficaram populares sob a influência do pensamento estruturalista. Segundo os pesquisadores adeptos dessa corrente, o estruturalismo é um refinamento da teoria funcionalista. Um dos principais antropólogos do estruturalismo é Claude Lévi-Strauss (1908–2009), um belga que chegou, inclusive, a dar aulas como convidado no Brasil. Segundo Marconi (2013), a concepção de estrutura é oriunda do campo da linguística, pois, como vimos, esse campo de estudo sistematiza a língua em uma forma estrutural, como a estrutura que sustenta um prédio, por exemplo. Dessa maneira, a estrutura funciona como um modelo de compreensão, pois o objeto de estudo são as relações sociais. Refere-se à estrutura como um sistema que reflete a realidade social ou cultural, seu funcionamento, as alterações regulares a que está sujeita, o rumo das transformações provocadas por fatores externos à cultura, e as previsões de reação quando alguma de suas partes é afetada (MARCONI, 2013, p. 263). Para ser estrutura, esse modelo de estudo deve possuir quatro aspectos. O primeiro deles é ter um caráter de sistema, o que significa que, por conta dessas relações, qualquer alteração afeta todo o sistema, o que é muito parecido com o pensamento da corrente funcionalista. O segundo é a possibilidade de se agrupar os elementos a serem estudados em modelos, em uma espécie de família. O terceiro é seu caráter de previsibilidade, pois, a partir das duas primeiras premissas, é possível até prever como será a 28 Unidade I reação em caso de mudança em qualquer um de seus elementos. E, finalmente, o quarto é a totalidade, pois ela deve explicar todos os fatos que estão sendo observados e estudados. Em suma, o estruturalismo pode ser considerado simultaneamente um conjunto de teorias e um método de análise da realidade. Sua herança consiste em uma visão sistêmica da cultura voltada à totalidade do fenômeno. Cria noções como estrutura social e a adota modelos de estudo. É uma forma de pensamento que é importante para a história das ciências. Vale ressaltar que os conceitos, aspectos e contextos históricos descritos contemplam apenas um breve panorama para situar a importância da antropologia para as relações internacionais. Vamos, agora, compreender a dimensão da cultura e sua influência em nossa área do saber. 2 AS DIMENSÕES DA CULTURA Cultura é uma palavra que a todo momento é falada por nós. Entretanto, o que não percebemos é que ela não é somente uma palavra, mas sim um conceito. Como não percebemos isso, também não notamos que esse conceito tem diversos sentidos. É muito comum ouvirmos coisas como “essa pessoa é muito culta” ou até mesmo “falta cultura para esse povo”. Mas o que é essa tal cultura? Será que é possível “adquirir” cultura, como algo que você compra e possui? Ou será algo intrínseco ao ser humano? E nem é preciso dizer que cultura é fundamental nas relações internacionais, não é mesmo? É importante refletirmos sobre esse conceito, sua dimensão e sua relação com a antropologia e, principalmente, com as relações internacionais. Antes de começarmos nossa reflexão, vamos admitir três pressupostos sobre cultura: • Ela não é inata. Você não nasce com ela. Não há como você nascer no Brasil com a cultura da Rússia já pronta em você. • Não é certa, nem errada. Não entramos aqui em méritos de especificidades de cada cultura. Sabemos que é difícil falar que não é errada a morte por apedrejamento como condenação em alguns países, por exemplo. Mas para que possamos estudar a cultura, é necessário estar antenado ao princípio básico da antropologia: o outro. • Ela não se refere ao comportamento individual, mas sim coletivo – embora possamos dizer que uma pessoa é culta. Pois então, percebeu a complexidade do termo? Segundo Gomes (2008), a conceituação de cultura é tão complexa que na década de 1950 um antropólogo americano compilou mais de 250 variações de sentido desse conceito! Pior: hoje talvez tenhamos mais, pois cultura não é algo que se restringe ao estudioso, mas sim algo que está presente no povo. Entretanto, para facilitar nossa compreensão, os estudiosos agruparam tais definições em grupos menores. 29 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Talvez a relação mais evidente no que tange ao termo cultura seja a velha máxima de cultura popular e cultura erudita. Aliás, o termo cultura é mais conhecido como sinônimo de erudição, pois é percebido como uma espécie de refinamento social. Ela fica evidente nos comportamentos socais, como a etiqueta demonstrando atributo de classe, no conhecimento filosófico, literário, musical – clássico – e muitas outras formas de interação social. Além disso, ela aparece muito nas redes e colunas sociais. Essa conceituação de cultura é a “acepção original da palavra ‘cultura’ tal como concebida pelos romanos (‘cultura’ é palavra latina que vem do verbo ‘colere’, ‘cultivar’)” (GOMES, 2008, p. 33). Um desdobramento interessante dessa forma de conceber cultura vem da Alemanha do século XVIII, entendendo a cultura como uma espécie de formação, no sentido de desenvolvimento tanto individual (daí nossa confusão com o termo) quanto coletivo. A cultura nessa concepção estaria relacionada e seria responsável pela formação intelectual do indivíduo, assim como a formação comportamental. Os padrões a serem seguidos eram os tidos como refinados, os superiores. Como consequência, haveria pessoas com mais ou menos cultura e sociedades com culturas mais consolidadas do que outras. É essa concepção de cultura que fez nascer no brasileiro o que alguns estudiosos como Darcy Ribeiro e Paulo Freyre entendem como “síndrome do colonizado” ou “complexode vira-lata”: aquela forma de pensar no qual tudo que “vem de fora” é melhor do que a cultura daqui, pois somos inferiores. É comum também compreendermos cultura no campo das manifestações artísticas, sendo as produções de um povo. Essas produções transitam entre cultura popular e erudita, passando desde o teatro até as manifestações folclóricas. Nos próximos tópicos iremos analisar a fundo as dimensões do popular e do erudito, pois tais perspectivas são fundamentais nas relações internacionais, principalmente no que tange aos protocolos de negociação. Outra categoria que se encaixa no conceito de cultura diz respeito aos hábitos de um povo, sua forma de ser. Normalmente, são costumes próprios de uma determinada sociedade que acabam por ser indicadores justamente do seu modo de vida. Os comportamentos – e aqui incluindo o intelectual e emocional – de uma coletividade também fazem parte da conceituação de cultura. No Brasil, as diferenças regionais são um belo exemplo dessa perspectiva. Assim, diz-se que no Nordeste, comer rapadura com farinha, e em Minas Gerais, comer broa de milho – faz parte da cultura dessas regiões. Dormir em rede no Nordeste, ir à praia aos domingos no Rio de Janeiro, passar as tardes de sábado nos shopping centers em São Paulo e noutras cidades modernizadas – é parte da cultura. O jeito maneiroso do baiano, a desconfiança do mineiro, a elástica de gozação do carioca, ou rígida lógica do português – são manifestações de suas respectivas culturas (GOMES, 2008, p. 34). Temos também o entendimento de cultura como a identidade de um povo. Ela se forma em torno de símbolos carregados de significados que fazem com que valores estejam acima de diferenças sociais, como região, religião ou até mesmo classe social. O simbólico é responsável por diferenciar um povo de outro, 30 Unidade I pois cada coletividade tem seu respectivo simbolismo. Falando novamente de Brasil, grandes exemplos de como a cultura é interpretada dessa maneira são o futebol, o Carnaval e até mesmo o “jeitinho brasileiro”. Existem também algumas concepções de cultura que são mais difíceis de enxergar. Um exemplo é a compreensão da cultura ser “aquilo que está por trás dos costumes e das atitudes de um povo. Aqui o conceito de cultura se intelectualiza, torna-se abstrato” (GOMES, 2008, p. 35). Essa visão entende a cultura como uma espécie de estrutura – ou sistema – inconsciente, sendo responsável pelo comportamento e pensamento de um povo. Lembrete Estrutura, sistema, modelo, padrão... Estamos diante de um exemplo da influência do estruturalismo nos estudos de cultura, assim como vimos há pouco na antropologia. A cultura também pode ser considerada como algo simplesmente que dá sentido a todos os aspectos da vida social de um determinado povo. Ela seria, ao mesmo tempo, valores, comportamentos, pensamentos, atos políticos ou econômicos, religião, artes... enfim, o pano de fundo para todas as ações de uma coletividade. Por fim, podemos também compreender a cultura de uma forma mais genérica: “tudo aquilo que o homem vivencia, realiza, adquire e transmite por meio da linguagem” (GOMES, 2008, p. 35). Essa definição é uma das primeiras que os estudiosos da cultura cunharam no século XIX. Quantas concepções! E quantos exemplos brasileiros! Ao mesmo tempo, chamamos atenção para uma coisa: todos são construções sociais. Além disso, nenhum deles abarca 100% dos hábitos sociais e não explica precisamente como as coisas são. É justamente por isso que os profissionais das relações internacionais têm que estar aptos a compreenderem a importância da cultura na maioria das concepções possíveis. Figura 7 – Meninas africanas 31 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Como vimos, existem muitos sentidos do termo cultura. Entretanto, para que possamos compreender sua importância para as relações internacionais, devemos estudar as conceituações de cultura e, obviamente, seus impactos nas dinâmicas de nossa profissão. Segundo Laraia (2009), o fascínio pelo outro já aparece no filósofo grego Herótodo – embora os gregos fossem uma sociedade fechada, como vimos anteriormente. Aparece também nos relatos de Marco Polo e até do padre José de Anchieta. Todos eles ficaram instigados pelos hábitos diferentes dos seus após o contato com o outro. Embora seja importante compreender um panorama histórico do conceito de cultura, nas relações sociais contemporâneas – aqui incluídas também as relações entre nações – esse conceito é evidente. Um exemplo é o trânsito na Inglaterra, onde as vias seguem uma lógica oposta à nossa. Podemos falar de hábitos alimentares, como o não consumo de carne de vaca na Índia ou a proibição do consumo de carne de porco entre judeus e muçulmanos, dentre tantas incontáveis possibilidades. Entretanto, vale nossa reflexão para um fato determinante sobre a importância da cultura para os estudos sociais: ela rompe com o determinismo biológico, isto é, “os antropólogos estão totalmente convencidos de que as diferenças genéticas não são determinantes das diferenças culturais” (LARAIA, 2009, p. 11). É exatamente por isso que elucidamos anteriormente que cultura não é inata. A pessoa não nasce com ela, não é um fator biológico. Em outras palavras, se transportarmos para o Brasil, logo após o seu nascimento, uma criança sueca e a colocarmos sob os cuidados de uma família sertaneja, ela crescerá como tal e não se diferenciará mentalmente em nada de seu irmãos de criação. Ou ainda, se retirarmos uma criança xinguana de seu meio e a educarmos como filha de uma família de alta classe média de Ipanema, o mesmo acontecerá: ela terá as mesmas oportunidades de desenvolvimento que os seus novos irmãos (LARAIA, 2009, p. 14). Observação Vale ressaltar que, embora haja uma ruptura com a biologia, os estudos sobre cultura não negam a importância dessa ciência, pois somos a mesma espécie. Assim, o papel da cultura ganha mais importância ainda para os estudos antropológicos e para as relações internacionais. Um bom exemplo disso está no fato de que até pouco tempo atrás “a carreira diplomática, o quadro de funcionários do Banco do Brasil, entre outros exemplos, eram atividades exclusivamente masculinas” (LARAIA, 2009, p. 14). Na complexidade atual das relações sociais, compreender a dimensão da cultura é fator determinante no sucesso profissional. 32 Unidade I Entre o final do século XIX e o início do XX surgiram algumas teorias sobre a cultura embasadas no princípio do determinismo geográfico. Essa corrente de pensamento que norteou alguns pesquisadores apega-se ao fato de que as diferenças físicas do ambiente em que uma sociedade está inserida afetam a diversidade cultural. Porém, a partir da década de 1920, outros antropólogos refutaram essa ideia afirmando que o ambiente influencia até determinado ponto, pois existe uma limitação da influência da geografia sobre aspectos culturais. E eles justificam sua posição no fato de que é possível existirem várias culturas em um mesmo ambiente físico. Ademais, as tecnologias que o ser humano vem desenvolvendo ao longo de sua história também contribuem para que superemos dificuldades geográficas. As diferenças existentes entre os homens, portanto, não podem ser explicadas em termos das limitações que lhes são impostas pelo seu aparato biológico ou pelo seu meio ambiente. A grande qualidade da espécie humana foi a de romper com suas próprias limitações: um animal frágil, provido de insignificante força física, dominou toda a natureza e se transformou no mais temível dos predadores. Sem asas, dominou os ares; sem guelras ou membranas próprias, conquistou os mares. Tudo isto porque difere dos outros animais por ser o único que possui cultura (LARAIA, 2009, p. 16). Mas o que é essa tal cultura? E como surge sua conceituação? Para respondermos essas questões, é necessário entender os antecedentes do termo, pois foi a partir deles que o conceito foi cunhado. Segundo Laraia (2009), o termo culturafoi cunhado pela primeira vez, em inglês (culture), por Tylor, em meados do século XVIII. Ele abarcou nesse termo a significação da palavra alemã kultur, que designava os aspectos espirituais de uma sociedade, com o termo francês civilization, que se referia às realizações de um povo, mas no âmbito material. Assim, Tylor acoplava em uma única palavra os termos que designavam as possibilidades da realização humana – material e espiritual –, contrapondo a ideia de inatismo. Entretanto, vale ressaltar que Tylor não foi o inventor do termo, mas sim o sistematizador. O termo já estava presente, embora sem uma definição, desde os pensamentos de Locke, na transição dos séculos XVII para o XVIII, como também já poderia ser percebido em Turgot e Rousseau no século XVIII. No decorrer da história, principalmente no século XX, o termo foi ganhando outras definições. Com tantas variações, a confusão sobre os estudos da cultura aumentou. É por isso que Geertz (2013) chega a afirmar que era necessária uma definição mais específica para que os estudos possam evoluir. Assim, a definição de cultura que defende o autor é semiótica. O autor adota uma postura weberiana, acreditando que o ser humano é um “animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo cultura como sendo essas teias e a sua análise” (GEERTZ, 2013, p. 4). 33 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA Observação Semiótica é a ciência dos modos de produção, de funcionamento e de recepção dos diferentes sistemas de sinais de comunicação entre indivíduos ou coletividades. Nessa perspectiva, a cultura é uma ciência interpretativa que tem por meta procurar os significados das relações humanas, diferenciando de outros campos do saber que entendem a cultura como um objeto passível de ser analisado em leis. Ademais, na perspectiva da semiótica, analisar a cultura é uma forma de acessar o mundo conceitual, onde vivem os sujeitos culturais. Assim, seria uma forma de superar a dificuldade em acessar um universo de ação simbólica não familiar ao pesquisador, suavizando o dilema da vontade de aprender e a necessidade de analisar. Contudo, mesmo entre a definição de Taylor e as inquietações de Geertz (2013), temos algo em comum: a cultura é específica do ser humano. O que diferencia nós de outras espécies é a “capacidade de fabricação de instrumentos, capazes de tornar mais eficiente o seu aparato biológico” (LARAIA, 2009, p. 23). E essa capacidade fez com que nos tornássemos os únicos animais a possuir cultura. A primeira definição cunhada por Taylor no século XVIII trazia consigo uma relação de causa e efeito. Para ele, a cultura era um objeto que precisava ser estudado de forma sistemática, pois era um fenômeno natural que possuía causas – e, consequentemente, efeitos – e regularidade. Somente dessa forma seria possível um estudo objetivo capaz de formular leis sobre o processo de evolução e aculturação. Trata-se de um viés evolucionista. Note o uso dos termos fenômeno natural e evolução. É por isso que Taylor vai amplamente buscar subsídio também nas ciências naturais. Para esse autor, a desigualdade seria oriunda de estágios diferentes na evolução das sociedades, pois os seres humanos compõem uma mesma espécie. Já Kroeber, na transição do século XIX para o XX, faz uma interpretação interessante. Ele dimensiona o que seria uma espécie de equilíbrio entre o lado biológico e o lado cultural. Não é possível negar o fato de que o ser humano é da ordem dos primatas e que para sobreviver é necessário coisas vitais como se alimentar, respirar e dormir. Porém, a sacada do autor está no fato de perceber que, embora questões vitais sejam comuns nos seres humanos em todas as sociedades, cada uma faz de uma maneira, de acordo com a sua cultura. Assim, a grande variedade de formas em se fazer as coisas vitais é quantitativamente maior do que as próprias necessidades. É esta grande variedade na operação de um número tão pequeno de funções que faz com que o homem seja considerado um ser predominantemente cultural. Os seus comportamentos não são biologicamente determinados. 34 Unidade I A sua herança genética nada tem a ver com as suas ações e pensamentos, pois todos os seus atos dependem inteiramente de um processo de aprendizado (LARAIA, 2009, p. 28). Podemos perceber uma relação intrínseca entre cultura e questões biológicas. Assim como na antropologia, o conceito de cultura também está no centro de dilemas acadêmicos e também pode fazer parte de dilemas do cotidiano. Quer ver só? É muito comum, em nosso cotidiano, associarmos a destreza de uma pessoa a um talento inato. Imaginemos um grande violinista. Logo após a beleza da peça executada por ele é fácil dizermos “ele é muito talentoso”, por exemplo. Quando afirmamos isso, afirmamos quase que magicamente a ideia de que ele nasceu com algo que as outras pessoas não nasceram. Claro que nem todos tocam violino, mas será mesmo que essa pessoa nasceu com essa aptidão? O que temos de fazer é tomar cuidado com o outro lado que esse pensamento pode trazer. Ele pode se tornar, acima de tudo, uma explicação que remete à discriminação, tanto social como racial, no intuito de se justificar diferenças sociais. Pergunta: se esse gênio do violino tivesse nascido em uma cultura na qual o campo da música contasse somente com instrumentos rítmicos, ele seria o gênio do violino sem o contato com o instrumento? Pode parecer um exemplo até banal, mas esse pensamento que atribui os feitos sociais a uma “determinação genética” já justificou coisas como a escravidão e até mesmo a nomeação de pessoas de dinastias antigas ou de grandes empresas e companhias para cargos especiais. O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridas pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções. Estas não são, pois, o produto da ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de toda uma comunidade (LARAIA, 2009, p. 34). É por isso que, para Laraia (2009), não é suficiente que a natureza crie seres humanos muito inteligentes, mesmo porque ela já faz isso. Porém, é necessário que esses indivíduos tenham ao seu alcance material e possibilidade para que possam exercer sua criatividade. Além do mais, não precisamos nem dizer sobre o exemplo que, acima de tudo, é necessário muito estudo. Portanto, podemos pensar a cultura em diferentes aspectos. O primeiro deles se deve ao fato de que a cultura é determinante no comportamento do ser humano e justifica nossas ações, muito mais do que a genética. Assim, o ser humano age de acordo com determinados padrões culturais. 35 ANTROPOLOGIA E CULTURA BRASILEIRA A cultura também é responsável pela adaptabilidade do ser humano em diferentes ambientes. Vemos isso no fato de que somos capazes de nos adaptar a um ambiente sem que mudemos nosso aparato biológico. É por isso que os estudiosos da cultura afirmam que o ser humano foi o único animal capaz de superar as diferenças ambientais, sendo uma espécie presente em praticamente todos os ambientes do planeta. Isso contraria o determinismo geográfico. Enquanto o urso polar não pode mudar de seu ambiente, pois não suportaria um grande aumento de temperatura, um esquimó pode transferir-se de sua região gelada para um país tropical e em pouco tempo estaria adaptado ao mesmo, bastando apenas trocar o seu equipamento cultural pelo desenvolvido no novo hábitat. Ao invés de um iglu capaz de conservar as menores parcelas de calor, preferiria, então, ocupar um apartamento refrigerado, ao mesmo tempo em que trocaria suas pesadas vestimentas por roupas muito leves ou quase inexistentes (LARAIA, 2009, p. 33). Contudo, essa concepção da cultura admite que o ser humano depende, assim, muito mais do aprendizado que adquire do que de atitudes instintivas, sem negar as
Compartilhar