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EXPERIÊNCIA DE CINEMA COM ESTUDANTES E PROFESSORES/AS DO ENSINO FUNDAMENTAL: “FORTE COMO UM MANDACARU” PACARRTE DESEMBARCA EM ITAPIPOCA José Alex Soares Santos Cineclube Cine Itinerante Faculdade de Educação de Itapipoca - FACEDI Como em todo desembarque feito pelo filme Pacarrete (2019), nas muitas de suas exibições pelo mundo, sua recepção pelo público se dá através da porta branca de uma casinha interiorana como parte de paredes cobertas por um amarelo opaco. Soma-se a essa poesia de cores a intensa luz do sol da microrregião do Baixo Jaguaribe e junto deste arranjo estético pede passagem o som da canção “Ay, Ay, Ay”, composição de Roman Pérez-Freire, interpretada pela Orquestra de Paul Muriat. A calçada é o palco da personagem vivida por Marcélia Cartaxo, que surge do interior da casa, agarrada com uma vassoura e nos passos delicados do ballet clássico, silenciosamente avisa que chegou para um diálogo sobre o amor à arte, conversa que envolve sonhos, resistência, carinho, delicadeza, amizade, drama geracional, ageísmo, preconceito, transtorno afetivo, solidão, temas que atravessam a narrativa consistente do filme Pacarrete. Um emaranhado de temáticas que compõem a sinfonia estética e política que possibilitou seu laureamento com trinta e sete prêmios depois de ter participado de quarenta festivais. A epopeia de premiação dessa obra de arte teve início com a sua estreia no 22º Festival Internacional de Cinema de Xangai (China) – o mais importante festival do campo cinematográfico chinês, em 2019. No mesmo ano foi premiado na sua estreia nacional, dessa vez, no 47º Festival de Cinema de Gramado (RS), ganhando oito “kikitos”, entre eles o de melhor filme, melhor atriz, melhor diretor, melhor roteiro, etc. Em 2021 foi vencedor do 20º Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. A fenda temporal que acompanha o filme, realizado pelo jovem cineasta, natural de Russas (CE), Allan Deberton, vem sendo preenchida tanto pelos prêmios como pela boa receptividade por parte da crítica cinematográfica, dentre as análises houve quem ousou anunciar que o “filme já nasce clássico” (VELLOSO, 2019)1. A ousadia nesse caso está fortemente ancorada nas águas do acerto. Depois de escorrer pela fenda do tempo, por várias salas de cinema comercial, pelos portais de streaming, o filme Pacarrete, inusitadamente emite seu brilho na tela do cineclube Cine Itinerante, na cidade de Itapipoca (CE). Alegoricamente, a chegada pode ser pensada como uma sequência de planos capturados pela “câmera subjetiva”, feito uma imagem refletida na íris dos/as estudantes e professores/as de escolas municipais, especificamente, do 8º ano da EEB Monsenhor Antônio Tabosa Braga, do 7º ano da EEB José Lins de Albuquerque e do 9º ano da EEB Geraldo Gomes de Azevedo. Em três sessões distribuídas nos dias 7, 9 e 10 de dezembro de 2021, no auditório do polo da Universidade Aberta do Brasil (UAB), nas manhãs ensolaradas da cidade, muito semelhante ao brilho do sol que alumia e aquece a calçada da casa em que vive Pacarrate, foi possível se ouvir uma diversidade de sorrisos leves, algumas caretas, um ou outro comentário sobre a “véia”, bocejos, cochilos, faces carrancudas e momentos marcados pela algazarra de vozes adolescentes e de mentes inquietas. Antes de apresentar os matizes que coloriram o tecido estético do encontro do público de ensino fundamental com a obra de arte em voga, uma ponderação se faz necessária para entendermos qual caminho percorrido para que Pacarrete desembarcasse em Itapipoca. Para tornar a chegada possível a partir de uma dinâmica de articulação política, dois passos foram fundamentais. O primeiro passo da jornada começa com os diálogos entre os Cineclubes Organizados do Ceará (CicloCE) e o realizador Allan Deberton. Na negociação entre as partes, das quais, envolvia a Produtora Deberton Filmes (empresa que cuida dos 1 VELLOSO, Marcelo. Pacarrete: um filme que já nasce clássico. In Vertentes do cinema – uma nova opinião sobre a 7ª arte. Disponível em <https://vertentesdocinema.com/pacarrete/> Acesso em 9 Dez. 2021. https://vertentesdocinema.com/pacarrete/ direitos autorias e da distribuição do filme Pacarrete), ficou acertado três exibições por cada um dos cineclubes que fazem parte da rede que compõe o CicloCE. Firmado o acordo por meio de um termo de compromisso, as três sessões poderiam ser organizadas dentro de um intervalo de um ano (26 de maio de 2021 a 25 de maio de 2022). Esse ponto merece uma observação, porque envolve duas temáticas complexas no campo da cinematografia brasileira, a distribuição e a circulação dos filmes nacionais. Temáticas que carecem de diretrizes democráticas, calcanhar de Aquiles do cinema nacional. Isso significa dizer que os produtos culturais do cinema no Brasil são de acesso auspicioso para o público que não frequenta festivais, não tem condições de ir a uma sala de cinema comercial, nem de pagar plataformas virtuais de streaming. Acrescente-se a esse conjunto de restrições o fato de que a grande maioria dos municípios brasileiros com menos de cem mil habitantes não possuem sala de cinema comercial. Por esses e outros motivos que impedem a democratização do acesso ao cinema, a inciativa aqui descrita é um convite aos/às demais realizadores/as de filmes e as suas respectivas produtoras; aos poderes públicos federal, estadual e municipal para que a distribuição e circulação de filmes no Brasil sejam repensadas e passem pelo crivo do debate público com ampla participação da sociedade civil organizada, principalmente, quando esses produtos culturais são financiados com recursos de editais públicos. No caso particular dos filmes, um percentual deles circula em festivais quando aceitos, poucos conseguem fazer parte do circuito das salas comerciais de cinema, outro tanto, em virtude das consequências da pandemia de Covid 19 é hospedado nas plataformas de streaming (formas privadas de acesso aos filmes, o que significa que só assiste quem tiver como pagar). Diante do aqui exposto, uma quantidade significativa de filmes fica no anonimato sem que o público tome conhecimento, contrariando o que está expresso na “Carta dos Direitos do Público”. Em primeiro lugar, a Carta ressalta a importância da livre circulação das ideias e produtos culturais e o pleno acesso do público “à arte, ao enriquecimento cultural, à capacidade de comunicação, como fonte de toda transformação cultural”. Sem a livre circulação não há evolução, transformação, emancipação. Isso não apenas inclui o direito “a receber todas as informações e comunicações audiovisuais” mas, em grau superior, o direito de “expressar-se e dar a conhecer seus juízos e opiniões” e o uso dos meios audiovisuais para produção e difusão da criação originária do próprio público. (MACEDO, 2018)2. Sendo assim, torna-se urgente pensar políticas de democratização do acesso ao cinema brasileiro e uma das vias para possibilitá-lo passa pela atividade dos cineclubes. Como organizações sem fins lucrativos, amplamente democráticas, com o objetivo de fazer o público se apropriar do cinema (MACEDO, 2021)3, os cineclubes são protagonistas quando se trata de democratizar a produção audiovisual. Nesse caso, tornam-se formas concretas de oposição ao cinema comercial e a ordem sociometabólica do capital. Por assumirem um papel político emancipador, os cineclubes são embriões potenciais de superação da apropriação privada da arte cinematográfica, permitindo assim, o acesso do público aos filmes. Por esse motivo a circulação do filme Pacarrete nos espaços de exibição dos cineclubes cearenses, representa uma fagulha emancipatória que precisa ser ampliada e fazer com que o audiovisual seja conhecido massivamente. Feito esse preâmbulo sobre as dificuldades da distribuição e circulação dos filmes no Brasil, retomaremos os passos queconduziram Pacarrete à “Terra das Pedras que Estalam”. O segundo passo, foi desenhado nas areias da parceria entre o cineclube Cine Itinerante e a Secretaria Municipal de Educação. Desta aliança tornou-se possível os encontros estéticos entre a produção cinematográfica realizada por Allan Deberton e o público das escolas municipais. 2 MACEDO, Felipe. O público audiovisual e os cineclubes: uma trajetória para o entendimento. Disponível em <http://felipemacedocineclubes.blogspot.com/search?updated-max=2018-11- 23T11:59:00-08:00&max-results=10&start=26&by-date=false> Acesso em 9 Dez. 2021. 3 MACEDO, Felipe. O conceito de cineclube. Disponível em <http://felipemacedocineclubes.blogspot.com/> Acesso em 11 Dez. 2021. http://felipemacedocineclubes.blogspot.com/search?updated-max=2018-11-23T11:59:00-08:00&max-results=10&start=26&by-date=false http://felipemacedocineclubes.blogspot.com/search?updated-max=2018-11-23T11:59:00-08:00&max-results=10&start=26&by-date=false http://felipemacedocineclubes.blogspot.com/ A formatação dos encontros começava com o deslocamento dos/as estudantes e professores/as das suas respectivas escolas para o polo da UAB, local da exibição. Na primeira exibição (7/12/21), a entrada do público no auditório foi acompanhada pela euforia e muita algazarra, afinal de contas, eram oitenta adolescentes tentando se acomodar no espaço de exibição. No momento das falas de abertura da atividade cineclubista há um choque reverberante da fala da representante da Secretaria Municipal de Educação, dos mediadores do debate sobre o filme com as dezenas de vozes que ecoavam dispersamente pelo auditório. Esse choque cacofônico foi um aviso prévio da dinâmica que o público iria adotar durante a recepção dos 98 minutos de imagem em movimento. O frisson que ecoava das cadeiras ocupadas por uma adolescência energizada e inquieta, tornava-se algo intrigante para quem nos últimos anos estava habituado ao silêncio quase sepulcral da sala de cinema do Estação Net Rio, um cinema inesquecível que lamentavelmente acabou fechando as portas em 2021; espaço que animou meus dias no bairro de Botafogo na cidade do Rio de Janeiro em 2018. Assim como é o silenciamento nas salas de cinema do Centro Cultural Dragão do Mar e do Cine-Teatro São Luiz, em Fortaleza, quando o filme tem seu início na telona, um comportamento que diz muito do idealismo estético do cinema como “culto moderno”, foco de análise de Xavier (2017)4, algo que Benjamin (2017)5 se contrapôs quando tratou do cinema e sua reprodutibilidade técnica como obra de arte que perdeu a aura. Longe de esgotar o debate de culto e perda da aura 4 XAVIER, Ismail. Sétima arte – um culto moderno: o idealismo estético e o cinema. 2. ed. rev. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2017. 5 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Organização e prefácio Márcio Seligmann-Silva; Trad. Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre: L&PM, 2017. relacionado ao cinema, voltemos ao relato sobre o desfecho final da primeira sessão de Pacarrete em Itapipoca. Encerrada a exibição, buscou-se uma mediação para fomentar o diálogo sobre o filme. Diante da pergunta “gostaram do filme?”, um coro solta a voz como resposta “sim”. Diálogo pouco revelador da experiência sensível com o cinema. Ao serem desafiados/as a pensar sobre os dispositivos do filme, houve a manifestação de alguns com a objetividade seca de opinar através de uma palavra. Nessas manifestações uma caracterização de viés psicologizante surgiu na definição afiada, proclamada no fundo do auditório, de que Pacarrete era “narcisista”. Atribuição que talvez não se sustente ao ser confrontada com uma abordagem que atravesse a percepção de superfície. Ao que parece os contornos estéticos da narrativa não informam que a personagem em destaque seja alguém que sofra de tal transtorno de personalidade. A escolha do realizador do filme, pauta-se mais na defesa da arte como necessidade para existir, do que no desejo obsessivo pelo reconhecimento subjetivo. Outra fala identificou, ao contrário de narcisista, a capacidade da personagem de resistir dentro de um contexto amplamente adverso, com o objetivo de defender aquilo que acreditava e amava, algo que estava intimamente ligado com sua própria existência. A arte expressa pela dança e pela música, substratos de vida para Pacarrete, andava de mãos dadas com o clássico e o erudito (dançar ballet, tocar piano, falar francês), a mesma arte que era vilipendiada pelo povo de sua terra natal e o poder político local, que apresentavam gostos artísticos associados à cultura de massas, por exemplo, o “forró eletrônico” ou “forró do piseiro”. Nesse ponto o filme dialoga com as ideias de Alceu Valença ao publicar nota em defesa de Chico César, quando o último à frente da Secretaria de Cultura do Estado da Paraíba (2011-2014), assumiu uma postura oposta à da secretária de cultura de Russas, Michele, personagem vivida por Samya de Lavor. Trata-se da polêmica do “forró de plástico”, na qual Chico César se negou a contratar as duplas sertanejas e as bandas de forró eletrônico, deixando de fora dos festejos juninos paraibanos de 2011. Vejamos o trecho da nota escrita por Alceu Valença: Sempre digo que precisamos valorizar os conceitos, para que a arte não se dilua em enganosas jogadas de marketing. No que se refere ao papel de uma secretaria ou qualquer órgão público, entendo que seu objetivo primordial seja o de fomentar, preservar e difundir a cultura de seu estado, muito mais do que simplesmente promover eventos de entretenimento fácil com recursos públicos. É preciso compreender esta diferença quando se fala de gestão de cultura em nosso país. (VALENÇA apud CARDOSO, 2011)6 Não podemos jogar no limbo que as concepções de resistência e amor que Pacarrete nutria pela arte, na visão da população de Russas, significava também, loucura por não se encaixarem no cotidiano da vida ordinária da cidade. Um dos únicos dispostos a reconhecer o valor artístico e cultural de Pacarrete era o comerciante Miguel (João Miguel). Um personagem que esbanja meiguice e doçura no trato com a bailarina. Doçura que se expressa na simbologia alegórica dos pirulitos de Chiquinha (Zezita Matos), no doce de Maria (Soia Lira) e no próprio bolo feito por Miguel e oferecido carinhosamente à professora aposentada. O bolo chega no momento em que Pacarrete está nitidamente deprimida por dois motivos, primeiro, por ter seu espetáculo de ballet rejeitado pela secretária de cultura e a convicção que seu presente para o povo da cidade estava cancelado. Segundo pela enorme solidão após a morte de Chiquinha. Parte desses sentimentos são compensados com a presença de He-Man, única companhia com quem interage e troca afetos. Para fechar o ato da primeira sessão foi feito uma abordagem centrada na temática geracional com foco no etarismo ou ageísmo, a qual está fortemente presente no filme e na reação ageísta de muitos/as que compunham o público. O dilema de Pacarrete, também, se assenta na sua 6 CARDOSO, Gutemberg. Músico pernambucano Alceu Valença apoia Chico César sobre a polêmica do “forró de plástico” In Polêmica da Paraíba. Disponível em <https://www.polemicaparaiba.com.br/polemicas/musico-pernambucano-alceu-valenca-apoia- chico-cesar-sobre-a-polemica-do-forro-de-plastico/> Acesso em 11 dez. 2021. https://www.polemicaparaiba.com.br/polemicas/musico-pernambucano-alceu-valenca-apoia-chico-cesar-sobre-a-polemica-do-forro-de-plastico/ https://www.polemicaparaiba.com.br/polemicas/musico-pernambucano-alceu-valenca-apoia-chico-cesar-sobre-a-polemica-do-forro-de-plastico/ idade, fato que fez o público nas manifestações durante a exibição fazer ecoar com ar de deboche a expressão “véia feia”. O que leva a refletir sobre a condição dos/as idosos/as na sociedade que cultua modelos juvenis e atléticos,definindo padrões hegemônicos e marginalizando os/as que não se encaixam em tais parâmetros. O que é um paradoxo para a contemporaneidade porque a cada dia os dados mostram que quanto mais o tempo avança, mais aumenta o percentual da população idosa. Na sessão do dia 9/12/21, com um público de setenta pessoas o frisson no interior do auditório foi menos intenso ao ser comparado com o primeiro dia. A exibição foi relativamente tranquila, entrecortada pelos sorrisos nos momentos em que o humor toma de conta das cenas cômicas, divinamente interpretadas por Marcélia Cartaxo, principalmente quando são acompanhadas de uma linguagem muito própria do cearense (“caralho”, “satanás”, “rapariga”, “bando de fela”, “santas do pau oco”). Risos eufóricos são ouvidos quando os olhares adolescentes se deparam com a cena de Zacarias (Rodger Rogério) no Bar de Miguel, principalmente no momento que o som da voz arrastada do ator (no melhor cearencês) faz o pedido de uma cachaça e na sequência surge na tela com insinuações machistas direcionadas à Pacarrete. A grosseria insensível de Zacarias forma um contraste com a delicadeza e doçura de Miguel. No meio desse embate está Pacarrete, sendo oprimida de um lado e admirada por outro. Encerrada a exibição na tentativa de conversa com o público, após um longo aplauso vibrante de muitas palmas, uma reação de traço muito espontâneo veio à baila com a caracterização da bailarina como “irritante”, conceito que possivelmente foi formulado em função da figura ranzinza de Pacarrete (“malcriada inusitada”), característica acentuada pela sua voz histriônica, seus palavrões e a insistência em presentear o povo de Russas com a apresentação do seu ballet no bicentenário da cidade. A pecha de irritante, atribuída a Pacarrete, demonstra o poder de interpretação de Marcélia Cartaxo, fazendo o público ter diferentes reações depois de ser conquistado pela poesia visual que Deberton consegue recitar em planos, cenas e sequências, numa interface com cores (vestuário de Pacarrete) e sons como “Douce France” de Charles Trenet, “We Don’t Need Another Hero” de Tina Turner, “Coração Selvagem” de Belquior, “Le Rythme de la Pluie”, interpretada por Sylvie Vartan, entre outras. O diálogo sobre o filme continua quando uma estudante se dispõe a fazer uma fala. Ao modo dela, descreveu os desejos de Pacarrete para com a cidade, completamente ignorada e, talvez inspirada na própria personagem, encerrou sua participação declarando que dormiu a partir da cena onde a bailarina encontra-se com He-Man e acordou com o som das palmas, resultante do final do filme. A fala honesta causou na plateia muitos risos e comentários de protestos pelos/as colegas. A garotada é implacável quando se trata de fazer um julgamento ou juízo de valor sobre o/a outro/a, comportamento que me fez pensar no roteiro do filme “Aos teus olhos” (2017), estrelado por Daniel de Oliveira e realizado por Carolina Jabor. Essa obra mostra como a cultura do julgamento rápido, individualizado pode se espalhar pelas plataformas digitais de “relacionamentos” e o que é capaz de causar na vida de uma pessoa, principalmente, por meio do escracho virtual coletivo que feito bola de neve pode se transformar em avalanche e alterar completamente a existência e o cotidiano de alguém. O diálogo foi finalizado com a participação de um professor. Seu posicionamento pautou em argumentar que o filme permite refletir sobre o respeito à cultura de cada um, algo que a escola muitas vezes acaba ignorando quando da realização de alguns eventos e/ou atividades pedagógicas. Observação que demonstra o quanto o cinema é inspirador e numa perspectiva freireana nos ensina a pensar sobre si mesmos, os/as outros/as e o próprio mundo em que estamos inseridos. Compreendendo que "ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo" (FREIRE, 1981, p. 79)7. É dia 10, uma sexta-feira dezembrina, chega ao fim a saga de Pacarrete nas terras onde residiu a arte de Cândido Teixeira, Maestro Frota e muitos/as outros/as. Tinha chegado a vez dos/as estudantes e dos/as professores/as do 9º ano – EEB Geraldo Gomes de Azevedo se encontrarem com a “mal-humorada sem limites”. Com o número de estudantes reduzido em relação aos dois primeiros dias, embora o número de professores/as fosse maior comparado à quantidade das duas escolas anteriores, o auditório se mantém em silencio, quebrado algumas vezes por sorrisos espontâneos, numa demonstração de conquista das subjetividades do público pelas imagens em movimento. Pacarrete, definitivamente seduziu esses adolescentes e capturou sua dedicada atenção. A deferência redobrada na tela, remeteu minha memória à crítica anônima que outorga ao filme a classificação de “jovem clássico do cinema nacional”, destacando, também, sua força sedutora: Pacarrete (Cartaxo) ganha o coração do espectador desde o instante em que abre a porta de sua casa e começa a dançar ao mesmo tempo em que tenta manter limpa a calçada, pela primeira de muitas vezes na narrativa. Desbocada, performática e bastante idiossincrática, estas características muitas vezes ganham contornos de grosseria dentro de casa e junto aos habitantes da cidade. Com exceção de Chiquinha (Matos), a irmã, e Miguel (err, Miguel?), o dono de um bar, Pacarrete não tem paciência com todos aqueles incapazes de apreciar o balé, inclusive a secretária de cultura, que inventa desculpas para rejeitar imediatamente sua oferta: “Já estou pensando no meu figurino. O cenário será minimalista. E se tiver uma banda, ficará atrás”, antecipa Pacarrete (CINEMA COM CRÍTICA, 2019)8. Os elementos que temperam a atuação cênica de Marcélia Cartaxo combinando equilibradamente humor e drama fazem da cinebiografia de Maria 7 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. 8 CINEMA COM CRÍTICA. Pacarrete. Disponível em <http://cinemacomcritica.com.br/2019/08/pacarrete/> Acesso em 12 dez. 2021. http://cinemacomcritica.com.br/2019/08/pacarrete/ Araújo Lima (1905-2012), um poema com estrofes em que a luz apaga as sombras, mas nos revela também momentos intensos em que o sombrio ofusca a luz. Como um embrião quebrando a casca do ovo para o nascimento, Pacarrete insiste em defender sua arte e nutre o desejo de apresentá-la para o povo. Atitude que deve mover todo/a artista no contexto neofascista em que estamos inseridos, o qual está marcado pelo negacionismo da ciência e da arte. Nos diálogos sobre o filme, nessa sessão em específico, o público participou com mais intensidade. Foram cinco falas uma após a outra, reivindicando atenção da recepção. O tema que atravessou a dialogia de estudantes e professores/as foi a memória histórica. Os utensílios do cenário, no interior da casa de Pacarrete, serviram de portal para reencontrar muitas lembranças, desde o móvel utilizado pela avó, até o som “três em um” (radiola, toca-fitas e rádio) como sonho de consumo dos anos de 1980, passando pelas tertúlias embaladas por disco de vinil (LP), ao som de Tina Turner. O videocassete, eterno companheiro dos finais de semana que alimentava a existência das locadoras de fitas cassetes, uma realidade que foi desaparecendo à medida que se ampliou a internet. Esses comentários demonstram o acerto da direção de arte do filme, conduzida por Rodrigo Frota, que faz do interior da casa da bailarina, um museu vivo de memórias e recordações. Por fim a alegoria feita por um estudante, comparando o filme e a protagonista principal com a dificuldade que as pessoas pertencentes à classe trabalhadora ou proletariado, como elaborou Karl Marx, encontra para realizar os sonhos almejados. Na sua opinião a trajetória de Pacarrete é bem conhecida da maioria dos/as cearenses, principalmente quem é idoso, bem como dos/as cuidadores/as de idosos/as.No caso do filme, Pacarrete era idosa e cuidadora ao mesmo tempo, já que a irmã era completamente dependente de seus cuidados. Aliás ela deixa a cidade de Fortaleza e retorna a Russas, justamente para cuidar de Chiquinha que é uma senhora cadeirante. Entre os sobressaltos da vida para seguir sonhando, a cena final é provocante e providencial, quando Pacarrete renasce das cinzas ou mais propriamente das sombras, após um período deprimida, da janela de sua casa com o figurino de “cisne branco”, por meio da magia da montagem, a bailarina ranzinza atravessa o portal dos sonhos e da fantasia e termina apresentando seu ballet, ao estilo de Anna Pavlova num palco só dela. Assim, metaforicamente joga o balde d’água com espuma de sabão que usa para lavar a calçada em cima do povo que lhe ignorou, do poder público que recusou seu espetáculo e do forró eletrônico, produto da indústria cultural de apelo fácil ao público, mas que consegue disseminar pela vulgaridade agressiva e tosca, formas de opressão além de representar padrões hegemônicos de dominação. Toda essa simbologia em torno de Pacarrete bailando, significa que a arte, apesar dos boicotes do governo Federal e da Secretaria Especial da Cultura, continua “forte como um mandacaru”, “avançando dois recuando um, mas seguindo sempre...”, por meio da capacidade criativa e da força para resistir às intempéries dos tempos sombrios.
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