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EXPERIÊNCIA DE CINEMA COM ESTUDANTES DO ENSINO FUNDAMENTAL

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EXPERIÊNCIA DE CINEMA COM ESTUDANTES E PROFESSORES/AS DO ENSINO 
FUNDAMENTAL: “FORTE COMO UM MANDACARU” PACARRTE DESEMBARCA EM 
ITAPIPOCA 
José Alex Soares Santos 
Cineclube Cine Itinerante 
Faculdade de Educação de Itapipoca - FACEDI 
 
Como em todo desembarque feito pelo filme Pacarrete (2019), nas muitas de 
suas exibições pelo mundo, sua 
recepção pelo público se dá através 
da porta branca de uma casinha 
interiorana como parte de paredes 
cobertas por um amarelo opaco. 
Soma-se a essa poesia de cores a 
intensa luz do sol da microrregião do 
Baixo Jaguaribe e junto deste arranjo 
estético pede passagem o som da 
canção “Ay, Ay, Ay”, composição de Roman Pérez-Freire, interpretada pela 
Orquestra de Paul Muriat. 
A calçada é o palco da personagem vivida por Marcélia Cartaxo, que surge 
do interior da casa, agarrada com uma vassoura e nos passos delicados do ballet 
clássico, silenciosamente avisa que chegou para um diálogo sobre o amor à arte, 
conversa que envolve sonhos, resistência, carinho, delicadeza, amizade, drama 
geracional, ageísmo, preconceito, transtorno afetivo, solidão, temas que atravessam 
a narrativa consistente do filme Pacarrete. Um emaranhado de temáticas que 
compõem a sinfonia estética e política que possibilitou seu laureamento com trinta 
e sete prêmios depois de ter participado de quarenta festivais. 
A epopeia de premiação dessa obra de arte teve início com a sua estreia no 
22º Festival Internacional de Cinema de Xangai (China) – o mais importante festival 
do campo cinematográfico chinês, em 2019. No mesmo ano foi premiado na sua 
estreia nacional, dessa vez, no 47º Festival de Cinema de Gramado (RS), ganhando 
oito “kikitos”, entre eles o de melhor filme, melhor atriz, melhor diretor, melhor 
roteiro, etc. Em 2021 foi vencedor do 20º Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. 
A fenda temporal que acompanha o filme, realizado pelo jovem cineasta, 
natural de Russas (CE), Allan Deberton, vem sendo preenchida tanto pelos prêmios 
como pela boa receptividade por parte da crítica cinematográfica, dentre as 
análises houve quem ousou anunciar que o “filme já nasce clássico” (VELLOSO, 
2019)1. A ousadia nesse caso está fortemente ancorada nas águas do acerto. 
Depois de escorrer pela fenda do tempo, por várias salas de cinema 
comercial, pelos portais de streaming, o filme Pacarrete, inusitadamente emite seu 
brilho na tela do cineclube Cine Itinerante, na cidade de Itapipoca (CE). 
Alegoricamente, a chegada pode ser pensada como uma sequência de planos 
capturados pela “câmera subjetiva”, feito uma imagem refletida na íris dos/as 
estudantes e professores/as de escolas municipais, especificamente, do 8º ano da 
EEB Monsenhor Antônio Tabosa Braga, do 7º ano da EEB José Lins de Albuquerque 
e do 9º ano da EEB Geraldo Gomes de Azevedo. 
Em três sessões distribuídas nos dias 7, 9 e 10 de dezembro de 2021, no 
auditório do polo da Universidade Aberta do Brasil (UAB), nas manhãs ensolaradas 
da cidade, muito semelhante ao brilho do sol que alumia e aquece a calçada da casa 
em que vive Pacarrate, foi possível se ouvir 
uma diversidade de sorrisos leves, algumas 
caretas, um ou outro comentário sobre a 
“véia”, bocejos, cochilos, faces carrancudas e 
momentos marcados pela algazarra de vozes 
adolescentes e de mentes inquietas. 
Antes de apresentar os matizes que coloriram o tecido estético do encontro 
do público de ensino fundamental com a obra de arte em voga, uma ponderação se 
faz necessária para entendermos qual caminho percorrido para que Pacarrete 
desembarcasse em Itapipoca. Para tornar a chegada possível a partir de uma 
dinâmica de articulação política, dois passos foram fundamentais. 
O primeiro passo da jornada começa com os diálogos entre os Cineclubes 
Organizados do Ceará (CicloCE) e o realizador Allan Deberton. Na negociação entre 
as partes, das quais, envolvia a Produtora Deberton Filmes (empresa que cuida dos 
 
1 VELLOSO, Marcelo. Pacarrete: um filme que já nasce clássico. In Vertentes do cinema – uma nova 
opinião sobre a 7ª arte. Disponível em <https://vertentesdocinema.com/pacarrete/> Acesso em 9 Dez. 
2021. 
https://vertentesdocinema.com/pacarrete/
direitos autorias e da distribuição do filme Pacarrete), ficou acertado três exibições 
por cada um dos cineclubes que fazem parte da rede que compõe o CicloCE. 
Firmado o acordo por meio de um termo de compromisso, as três sessões 
poderiam ser organizadas dentro de um intervalo de um ano (26 de maio de 2021 a 
25 de maio de 2022). 
Esse ponto merece uma observação, porque envolve duas temáticas 
complexas no campo da cinematografia brasileira, a distribuição e a circulação dos 
filmes nacionais. Temáticas que carecem de diretrizes democráticas, calcanhar de 
Aquiles do cinema nacional. Isso significa dizer que os produtos culturais do cinema 
no Brasil são de acesso auspicioso para o público que não frequenta festivais, não 
tem condições de ir a uma sala de cinema comercial, nem de pagar plataformas 
virtuais de streaming. Acrescente-se a esse conjunto de restrições o fato de que a 
grande maioria dos municípios brasileiros com menos de cem mil habitantes não 
possuem sala de cinema comercial. 
Por esses e outros motivos que impedem a democratização do acesso ao 
cinema, a inciativa aqui descrita é um convite aos/às demais realizadores/as de 
filmes e as suas respectivas produtoras; aos poderes públicos federal, estadual e 
municipal para que a distribuição e circulação de filmes no Brasil sejam repensadas 
e passem pelo crivo do debate público com ampla participação da sociedade civil 
organizada, principalmente, quando esses produtos culturais são financiados com 
recursos de editais públicos. 
No caso particular dos filmes, um percentual deles circula em festivais 
quando aceitos, poucos conseguem fazer parte do circuito das salas comerciais de 
cinema, outro tanto, em virtude das consequências da pandemia de Covid 19 é 
hospedado nas plataformas de streaming (formas privadas de acesso aos filmes, o 
que significa que só assiste quem tiver como pagar). Diante do aqui exposto, uma 
quantidade significativa de filmes fica no anonimato sem que o público tome 
conhecimento, contrariando o que está expresso na “Carta dos Direitos do Público”. 
 
 
 
 
Em primeiro lugar, a Carta ressalta a importância da livre circulação das 
ideias e produtos culturais e o pleno acesso do público “à arte, ao 
enriquecimento cultural, à capacidade de comunicação, como fonte de toda 
transformação cultural”. Sem a livre circulação não há evolução, 
transformação, emancipação. Isso não apenas inclui o direito “a receber 
todas as informações e comunicações audiovisuais” mas, em grau superior, 
o direito de “expressar-se e dar a conhecer seus juízos e opiniões” e o uso 
dos meios audiovisuais para produção e difusão da criação originária do 
próprio público. (MACEDO, 2018)2. 
Sendo assim, torna-se urgente pensar políticas de democratização do 
acesso ao cinema brasileiro e uma das vias para possibilitá-lo passa pela atividade 
dos cineclubes. Como organizações sem fins lucrativos, amplamente democráticas, 
com o objetivo de fazer o público se apropriar do cinema (MACEDO, 2021)3, os 
cineclubes são protagonistas quando se trata de democratizar a produção 
audiovisual. Nesse caso, tornam-se formas concretas de oposição ao cinema 
comercial e a ordem sociometabólica do capital. Por assumirem um papel político 
emancipador, os cineclubes são embriões potenciais de superação da apropriação 
privada da arte cinematográfica, permitindo assim, o acesso do público aos filmes. 
Por esse motivo a circulação do filme Pacarrete nos espaços de exibição dos 
cineclubes cearenses, representa uma fagulha emancipatória que precisa ser 
ampliada e fazer com que o audiovisual seja conhecido massivamente. 
Feito esse preâmbulo sobre as dificuldades da distribuição e circulação dos 
filmes no Brasil, retomaremos os passos queconduziram Pacarrete à “Terra das 
Pedras que Estalam”. O segundo passo, foi desenhado nas areias da parceria entre 
o cineclube Cine Itinerante e a Secretaria Municipal de Educação. Desta aliança 
tornou-se possível os encontros estéticos entre a produção cinematográfica 
realizada por Allan Deberton e o público das escolas municipais. 
 
2 MACEDO, Felipe. O público audiovisual e os cineclubes: uma trajetória para o entendimento. 
Disponível em <http://felipemacedocineclubes.blogspot.com/search?updated-max=2018-11-
23T11:59:00-08:00&max-results=10&start=26&by-date=false> Acesso em 9 Dez. 2021. 
 
3 MACEDO, Felipe. O conceito de cineclube. Disponível em 
<http://felipemacedocineclubes.blogspot.com/> Acesso em 11 Dez. 2021. 
http://felipemacedocineclubes.blogspot.com/search?updated-max=2018-11-23T11:59:00-08:00&max-results=10&start=26&by-date=false
http://felipemacedocineclubes.blogspot.com/search?updated-max=2018-11-23T11:59:00-08:00&max-results=10&start=26&by-date=false
http://felipemacedocineclubes.blogspot.com/
A formatação dos encontros começava com o deslocamento dos/as 
estudantes e professores/as das suas respectivas escolas para o polo da UAB, 
local da exibição. Na primeira exibição (7/12/21), a entrada do público no auditório foi 
acompanhada pela euforia e 
muita algazarra, afinal de 
contas, eram oitenta 
adolescentes tentando se 
acomodar no espaço de 
exibição. No momento das 
falas de abertura da 
atividade cineclubista há um 
choque reverberante da fala da representante da Secretaria Municipal de Educação, 
dos mediadores do debate sobre o filme com as dezenas de vozes que ecoavam 
dispersamente pelo auditório. Esse choque cacofônico foi um aviso prévio da 
dinâmica que o público iria adotar durante a recepção dos 98 minutos de imagem 
em movimento. 
O frisson que ecoava das cadeiras ocupadas por uma adolescência 
energizada e inquieta, tornava-se algo intrigante para quem nos últimos anos 
estava habituado ao silêncio quase sepulcral da sala de cinema do Estação Net Rio, 
um cinema inesquecível que lamentavelmente acabou fechando as portas em 2021; 
espaço que animou meus dias no bairro de Botafogo na cidade do Rio de Janeiro em 
2018. Assim como é o silenciamento nas salas de cinema do Centro Cultural Dragão 
do Mar e do Cine-Teatro São Luiz, em Fortaleza, quando o filme tem seu início na 
telona, um comportamento que diz muito do idealismo estético do cinema como 
“culto moderno”, foco de análise de Xavier (2017)4, algo que Benjamin (2017)5 se 
contrapôs quando tratou do cinema e sua reprodutibilidade técnica como obra de 
arte que perdeu a aura. Longe de esgotar o debate de culto e perda da aura 
 
4 XAVIER, Ismail. Sétima arte – um culto moderno: o idealismo estético e o cinema. 2. ed. rev. São 
Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2017. 
5 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Organização e prefácio 
Márcio Seligmann-Silva; Trad. Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre: L&PM, 2017. 
 
relacionado ao cinema, voltemos ao relato sobre o desfecho final da primeira 
sessão de Pacarrete em Itapipoca. 
Encerrada a exibição, buscou-se uma mediação para fomentar o diálogo 
sobre o filme. Diante da pergunta “gostaram do filme?”, um coro solta a voz como 
resposta “sim”. Diálogo pouco revelador da experiência sensível com o cinema. Ao 
serem desafiados/as a pensar sobre os dispositivos do filme, houve a manifestação 
de alguns com a objetividade seca de opinar através de uma palavra. Nessas 
manifestações uma caracterização de viés psicologizante surgiu na definição afiada, 
proclamada no fundo do auditório, de que Pacarrete era “narcisista”. Atribuição que 
talvez não se sustente ao ser confrontada com uma abordagem que atravesse a 
percepção de superfície. Ao que parece os contornos estéticos da narrativa não 
informam que a personagem em destaque seja alguém que sofra de tal transtorno 
de personalidade. A escolha do realizador do filme, pauta-se mais na defesa da arte 
como necessidade para existir, do que no desejo obsessivo pelo reconhecimento 
subjetivo. 
Outra fala identificou, ao contrário de narcisista, a capacidade da 
personagem de resistir dentro de um contexto amplamente adverso, com o objetivo 
de defender aquilo que acreditava e amava, algo que estava intimamente ligado com 
sua própria existência. A arte expressa pela dança e pela música, substratos de 
vida para Pacarrete, andava de mãos dadas com o clássico e o erudito (dançar 
ballet, tocar piano, falar francês), a mesma arte que era vilipendiada pelo povo de 
sua terra natal e o poder político local, que apresentavam gostos artísticos 
associados à cultura de massas, por exemplo, o “forró eletrônico” ou “forró do 
piseiro”. 
Nesse ponto o filme dialoga com as ideias de Alceu Valença ao publicar nota 
em defesa de Chico César, quando o último à frente da Secretaria de Cultura do 
Estado da Paraíba (2011-2014), assumiu uma postura oposta à da secretária de 
cultura de Russas, Michele, personagem vivida por Samya de Lavor. Trata-se da 
polêmica do “forró de plástico”, na qual Chico César se negou a contratar as duplas 
sertanejas e as bandas de forró eletrônico, deixando de fora dos festejos juninos 
paraibanos de 2011. Vejamos o trecho da nota escrita por Alceu Valença: 
 
Sempre digo que precisamos valorizar os conceitos, para que a arte não se 
dilua em enganosas jogadas de marketing. No que se refere ao papel de 
uma secretaria ou qualquer órgão público, entendo que seu objetivo 
primordial seja o de fomentar, preservar e difundir a cultura de seu estado, 
muito mais do que simplesmente promover eventos de entretenimento fácil 
com recursos públicos. É preciso compreender esta diferença quando se 
fala de gestão de cultura em nosso país. (VALENÇA apud CARDOSO, 2011)6 
Não podemos jogar no limbo que as concepções de resistência e amor que 
Pacarrete nutria pela arte, na visão da população de Russas, significava também, 
loucura por não se encaixarem no cotidiano 
da vida ordinária da cidade. Um dos únicos 
dispostos a reconhecer o valor artístico e 
cultural de Pacarrete era o comerciante 
Miguel (João Miguel). Um personagem que 
esbanja meiguice e doçura no trato com a 
bailarina. Doçura que se expressa na 
simbologia alegórica dos pirulitos de 
Chiquinha (Zezita Matos), no doce de Maria (Soia Lira) e no próprio bolo feito por 
Miguel e oferecido carinhosamente à professora aposentada. O bolo chega no 
momento em que Pacarrete está nitidamente deprimida por dois motivos, primeiro, 
por ter seu espetáculo de ballet rejeitado pela secretária de cultura e a convicção 
que seu presente para o povo da cidade estava cancelado. Segundo pela enorme 
solidão após a morte de Chiquinha. Parte desses sentimentos são compensados 
com a presença de He-Man, única companhia com quem interage e troca afetos. 
Para fechar o ato da primeira sessão foi feito uma abordagem centrada na 
temática geracional com foco no 
etarismo ou ageísmo, a qual está 
fortemente presente no filme e na 
reação ageísta de muitos/as que 
compunham o público. O dilema de 
Pacarrete, também, se assenta na sua 
 
6 CARDOSO, Gutemberg. Músico pernambucano Alceu Valença apoia Chico César sobre a polêmica 
do “forró de plástico” In Polêmica da Paraíba. Disponível em 
<https://www.polemicaparaiba.com.br/polemicas/musico-pernambucano-alceu-valenca-apoia-
chico-cesar-sobre-a-polemica-do-forro-de-plastico/> Acesso em 11 dez. 2021. 
https://www.polemicaparaiba.com.br/polemicas/musico-pernambucano-alceu-valenca-apoia-chico-cesar-sobre-a-polemica-do-forro-de-plastico/
https://www.polemicaparaiba.com.br/polemicas/musico-pernambucano-alceu-valenca-apoia-chico-cesar-sobre-a-polemica-do-forro-de-plastico/
idade, fato que fez o público nas manifestações durante a exibição fazer ecoar com 
ar de deboche a expressão “véia feia”. O que leva a refletir sobre a condição dos/as 
idosos/as na sociedade que cultua modelos juvenis e atléticos,definindo padrões 
hegemônicos e marginalizando os/as que não se encaixam em tais parâmetros. O 
que é um paradoxo para a contemporaneidade porque a cada dia os dados mostram 
que quanto mais o tempo avança, mais aumenta o percentual da população idosa. 
Na sessão do dia 9/12/21, com um público de setenta pessoas o frisson no 
interior do auditório foi menos intenso ao ser comparado com o primeiro dia. A 
exibição foi relativamente tranquila, entrecortada pelos sorrisos nos momentos em 
que o humor toma de conta das cenas cômicas, divinamente interpretadas por 
Marcélia Cartaxo, principalmente quando são acompanhadas de uma linguagem 
muito própria do cearense (“caralho”, “satanás”, “rapariga”, “bando de fela”, “santas 
do pau oco”). 
 
Risos eufóricos são ouvidos quando os olhares adolescentes se deparam 
com a cena de Zacarias (Rodger Rogério) no Bar de Miguel, principalmente no 
momento que o som da voz arrastada do ator (no melhor cearencês) faz o pedido de 
uma cachaça e na sequência surge na tela com insinuações machistas direcionadas 
à Pacarrete. A grosseria insensível de Zacarias forma um contraste com a 
delicadeza e doçura de Miguel. No meio desse embate está Pacarrete, sendo 
oprimida de um lado e admirada por outro. 
Encerrada a exibição na tentativa de conversa com o público, após um longo 
aplauso vibrante de muitas palmas, uma reação de traço muito espontâneo veio à 
baila com a caracterização da bailarina como “irritante”, conceito que possivelmente 
foi formulado em função da figura ranzinza de Pacarrete (“malcriada inusitada”), 
característica acentuada pela sua voz histriônica, seus palavrões e a insistência em 
presentear o povo de Russas com a apresentação do seu ballet no bicentenário da 
cidade. 
A pecha de irritante, atribuída a Pacarrete, demonstra o poder de 
interpretação de Marcélia Cartaxo, fazendo o público ter diferentes reações depois 
de ser conquistado pela poesia visual que Deberton consegue recitar em planos, 
cenas e sequências, numa interface com cores (vestuário de Pacarrete) e sons 
como “Douce France” de Charles Trenet, “We Don’t Need Another Hero” de Tina 
Turner, “Coração Selvagem” de Belquior, “Le Rythme de la Pluie”, interpretada por 
Sylvie Vartan, entre outras. 
O diálogo sobre o filme continua quando uma estudante se dispõe a fazer 
uma fala. Ao modo dela, 
descreveu os desejos de 
Pacarrete para com a cidade, 
completamente ignorada e, talvez 
inspirada na própria personagem, 
encerrou sua participação 
declarando que dormiu a partir da 
cena onde a bailarina encontra-se 
com He-Man e acordou com o 
som das palmas, resultante do 
final do filme. A fala honesta causou na plateia muitos risos e comentários de 
protestos pelos/as colegas. 
A garotada é implacável quando se trata de fazer um julgamento ou juízo de 
valor sobre o/a outro/a, comportamento que me fez pensar no roteiro do filme “Aos 
teus olhos” (2017), estrelado por Daniel de Oliveira e realizado por Carolina Jabor. 
Essa obra mostra como a cultura do julgamento rápido, individualizado pode se 
espalhar pelas plataformas digitais de “relacionamentos” e o que é capaz de causar 
na vida de uma pessoa, principalmente, por meio do escracho virtual coletivo que 
feito bola de neve pode se transformar em avalanche e alterar completamente a 
existência e o cotidiano de alguém. 
O diálogo foi finalizado com a participação de um professor. Seu 
posicionamento pautou em argumentar que o filme permite refletir sobre o respeito 
à cultura de cada um, algo que a escola muitas vezes acaba ignorando quando da 
realização de alguns eventos e/ou atividades pedagógicas. Observação que 
demonstra o quanto o cinema é inspirador e numa perspectiva freireana nos ensina 
a pensar sobre si mesmos, os/as outros/as e o próprio mundo em que estamos 
inseridos. Compreendendo que "ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si 
mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo" (FREIRE, 1981, p. 
79)7. 
É dia 10, uma sexta-feira dezembrina, chega ao fim a saga de Pacarrete nas 
terras onde residiu a arte de Cândido Teixeira, Maestro Frota e muitos/as outros/as. 
Tinha chegado a vez dos/as estudantes e dos/as professores/as do 9º ano – EEB 
Geraldo Gomes de Azevedo se encontrarem com a “mal-humorada sem limites”. 
Com o número de estudantes reduzido em relação aos dois primeiros dias, embora 
o número de professores/as fosse maior comparado à quantidade das duas escolas 
anteriores, o auditório se mantém em silencio, quebrado algumas vezes por 
sorrisos espontâneos, numa demonstração de conquista das subjetividades do 
público pelas imagens em movimento. Pacarrete, definitivamente seduziu esses 
adolescentes e capturou sua dedicada atenção. 
A deferência redobrada na tela, remeteu minha memória à crítica anônima 
que outorga ao filme a classificação de “jovem clássico do cinema nacional”, 
destacando, também, sua força sedutora: 
 
Pacarrete (Cartaxo) ganha o coração do espectador desde o instante em 
que abre a porta de sua casa e começa a dançar ao mesmo tempo em que 
tenta manter limpa a calçada, pela primeira de muitas vezes na narrativa. 
Desbocada, performática e bastante idiossincrática, estas características 
muitas vezes ganham contornos de grosseria dentro de casa e junto aos 
habitantes da cidade. Com exceção de Chiquinha (Matos), a irmã, e Miguel 
(err, Miguel?), o dono de um bar, Pacarrete não tem paciência com todos 
aqueles incapazes de apreciar o balé, inclusive a secretária de cultura, que 
inventa desculpas para rejeitar imediatamente sua oferta: “Já estou 
pensando no meu figurino. O cenário será minimalista. E se tiver uma 
banda, ficará atrás”, antecipa Pacarrete (CINEMA COM CRÍTICA, 2019)8. 
 
Os elementos que temperam a atuação cênica de Marcélia Cartaxo 
combinando equilibradamente humor e drama fazem da cinebiografia de Maria 
 
7 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. 
 
8 CINEMA COM CRÍTICA. Pacarrete. Disponível em 
<http://cinemacomcritica.com.br/2019/08/pacarrete/> Acesso em 12 dez. 2021. 
http://cinemacomcritica.com.br/2019/08/pacarrete/
Araújo Lima (1905-2012), um poema com estrofes em que a luz apaga as sombras, 
mas nos revela também momentos intensos em que o sombrio ofusca a luz. Como 
um embrião quebrando a casca do ovo para o nascimento, Pacarrete insiste em 
defender sua arte e nutre o desejo de apresentá-la para o povo. Atitude que deve 
mover todo/a artista no contexto neofascista em que estamos inseridos, o qual está 
marcado pelo negacionismo da ciência e da arte. 
Nos diálogos sobre o filme, nessa sessão em específico, o público 
participou com mais intensidade. Foram cinco falas uma após a outra, reivindicando 
atenção da recepção. O tema que atravessou a dialogia de estudantes e 
professores/as foi a memória histórica. 
Os utensílios do cenário, no interior da casa de Pacarrete, serviram de 
portal para reencontrar muitas lembranças, desde o móvel utilizado pela avó, até o 
som “três em um” (radiola, toca-fitas e rádio) como sonho de consumo dos anos de 
1980, passando pelas tertúlias embaladas por disco de vinil (LP), ao som de Tina 
Turner. O videocassete, eterno companheiro dos finais de semana que alimentava a 
existência das locadoras de fitas cassetes, uma realidade que foi desaparecendo à 
medida que se ampliou a internet. Esses comentários demonstram o acerto da 
direção de arte do filme, conduzida por Rodrigo Frota, que faz do interior da casa da 
bailarina, um museu vivo de memórias e recordações. 
Por fim a alegoria feita por um estudante, comparando o filme e a 
protagonista principal com a dificuldade que as pessoas pertencentes à classe 
trabalhadora ou proletariado, como elaborou Karl Marx, encontra para realizar os 
sonhos almejados. Na sua opinião a trajetória de Pacarrete é bem conhecida da 
maioria dos/as cearenses, principalmente quem é idoso, bem como dos/as 
cuidadores/as de idosos/as.No caso do filme, Pacarrete era idosa e cuidadora ao 
mesmo tempo, já que a irmã era completamente dependente de seus cuidados. 
Aliás ela deixa a cidade de Fortaleza e retorna a Russas, justamente para cuidar de 
Chiquinha que é uma senhora cadeirante. 
Entre os sobressaltos da vida para seguir sonhando, a cena final é 
provocante e providencial, quando Pacarrete renasce das cinzas ou mais 
propriamente das sombras, após um período deprimida, da janela de sua casa com 
o figurino de “cisne branco”, por meio da magia da montagem, a bailarina ranzinza 
atravessa o portal dos sonhos e da fantasia e termina apresentando seu ballet, ao 
estilo de Anna Pavlova num palco só dela. Assim, metaforicamente joga o balde 
d’água com espuma de sabão que usa para lavar a calçada em cima do povo que lhe 
ignorou, do poder público que recusou seu espetáculo e do forró eletrônico, produto 
da indústria cultural de apelo fácil ao público, mas que consegue disseminar pela 
vulgaridade agressiva e tosca, formas de opressão além de representar padrões 
hegemônicos de dominação. Toda essa simbologia em torno de Pacarrete bailando, 
significa que a arte, apesar dos boicotes do governo Federal e da Secretaria 
Especial da Cultura, continua “forte como um mandacaru”, “avançando dois 
recuando um, mas seguindo sempre...”, por meio da capacidade criativa e da força 
para resistir às intempéries dos tempos sombrios.

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