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Subversão dos estereótipos de gênero em Herland

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Trabalho apresentado à professora
Maria da Conceição Monteiro.
na disciplina O tema da vingança na literatura.
Programa de Pós-Graduação em Letras.
Por Julia Vieira Tulher.
A quebra de paradigmas do gênero feminino em Herland
She walketh veiled and sleeping,
For she knoweth not her power;
She obeyeth but the pleading
Of her heart, and the high leading
Of her soul, unto this hour.
Slow advancing, halting, creeping,
Comes the Woman to the hour! —
She walketh veiled and sleeping,
For she knoweth not her power.
Charlote Perkins Gilman
INTRODUÇÃO 
Ao longo dos séculos, construiu-se a partir de culturas distintas, estereótipos comuns relacionados aos padrões de gênero na sociedade. Deixando de lado algumas comunidades matriarcais por serem consideradas minorias em quantidade, o que constituímos como a sociedade contemporânea, atribuiu características físicas e comportamentais a cada sexo. 
De acordo com as expectativas atuais - reflexos de argumentos filosóficos clássicos, como a Tabela Pitagórica da Oposição constituída por Aristóteles (2002) - comportamentos racionais, força, virilidade, ciência e poder são posições atribuídas aos indivíduos masculinos; em contrapartida, a submissão, o descontrole, a natureza, a vaidade e a sensibilidade são características do sexo feminino. Instituindo, assim, tais padrões de gênero, o senso comum da cultura patriarcal pré-estabeleceu que o corpo masculino faz parte do topo da pirâmide social, enquanto o feminino se encontra inferiorizado sendo utilizado, desse modo, não apenas para servir, mas como degrau para que os homens consigam status e relevância a fim de manter o sistema falocêntrico contemporâneo. Como afirma Braidotti (1994):
[...] a misoginia do discurso não é uma exceção irracional, mas sim um sistema rigidamente construído que requer a diferença como prerrogativa para estabelecer a positividade da norma. Nesse sentido, a misoginia não é um perigo, mas sim a necessidade estrutural de um sistema que só pode representar a "alteridade" como negatividade. (BRAIDOTTI, 1994, p. 80)[endnoteRef:1] [1: No original: “the misogyny of discourse is not an irrational exception but rather a tighly constructed system that requires difference as pejoration in order to erect the positivity of the norm. In this respect, misogyny is not a hazard but rather the structural necessity of a system that can only represent "otherness" as negativity.” In: BRAIDOTTI, Rosi. Nomadic Subjects. New York: Columbia University Press, 1994. p. 80] 
O corpo feminino é de extrema importância em sociedades androcêntricas pois é sinônimo de posse, troféu e orgulho; quando fora dos padrões vigentes, chacota. Levando em consideração as expectativas sociais, o sexo masculino depende do feminino para alcançar prestígio: o homem merecedor deve ter uma esposa dentro dos padrões - Irigaray (1993, p. 71) declara que nossa tradição coloca a mulher na posição de elo que mantém um casal unido, é papel da mulher amar o homem sem que se receba amor em troca. Ou seja, é responsabilidade da esposa manter as aparências a fim de construir o prestígio do marido; o sucesso está atrelado não apenas ao poder aquisitivo, mas também à relação sexual com grande quantidade de mulheres; o homem no topo da carreira vem acompanhado de uma subalterna para humilhar ou se relacionar sexualmente. Contudo, ao passo em que a sociedade contemporânea exalta o corpo feminino, a personificação do que é constituído como feminilidade é inferiorizada. Sendo assim, Monteiro (2020, p. 154) afirma que o feminino não deve ser negado, mas repensado a fim de transcender as noções de gênero impostas pelo sistema patriarcal, com objetivo de tornar a performance de feminilidade algo opcional.
Uma vez que durante séculos os homens impediram as mulheres de ter uma participação mais ostensiva na vida social constrangendo-as às questões domésticas, e como apenas eles costumavam ter acesso à uma educação mais completa, a consequência foi que o sexo masculino fosse visto como o polo ativo e racional, enquanto o feminino fosse interpretado como “naturalmente” passivo e passional. Segundo Keller (1985, p. 39), tomando como objetivo da ciência o controle da natureza, filósofos como Bacon e Platão contribuíram com a ideia de que é papel do homem controlar as mulheres, excluindo-as, assim, da área científica. Do mesmo modo, o que era aceito ou não como racional era definido exclusivamente por homens e a serviço de seus próprios interesses. Ou seja, “[...] os ideais de Razão vêm historicamente incorporados à exclusão do feminino e a feminilidade, e a própria noção de feminino vem sendo parcialmente construída através desse processo de exclusão.” (LLOYD: 1989, p. x). [endnoteRef:2] [2: No original:“our ideals of Reason have historically incorporated an exclusion of the feminine, and that femininity itself has been partly constituted through such processes of exclusion.” LLOYD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. In: LLOYD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. 3. ed. Minnesota: University of Minnesota Press, 1989. cap. Introduction, p. x.] 
Mulheres são estereotipicamente emotivas, pouco inteligentes, descontroladas e traiçoeiras. A mulher ou é fraca ou é falsa, nunca forte. Os arquétipos constituídos das mulheres são comparados às bruxas, ao pecado original de Eva, às paixões e à manipulação. São inúmeras as literaturas que retratam personagens femininas ambíguas como vilãs, é o caso de Medeia de Eurípides, da Medusa na mitologia grega, Lilith e Maria Madalena no cristianismo, de Lady Macbeth em Shakespeare, e, de Capitu em Machado de Assis, por exemplo. Ou seja, não se pode confiar na imprevisibilidade de uma mulher. Isso se dá pois ao longo dos séculos a emoção foi posta em oposição ao saber, isto é, não se pode ser racional e emotivo uma vez que, de acordo com Solomon (2018), as emoções são consideradas erros que levam os homens à infelicidade. 
Sendo assim, o sexo masculino as coloca sob controle podando seus instintos e subjugando suas capacidades intelectuais e físicas, afastando-as de posições de influência com o intuito de manter o poder (FOUCAULT, 1978. p. 232 - 234). Por esse motivo, a quantidade de mulheres em circunstância de autoridade na contemporaneidade é inferior à dos homens e quando há um corpo feminino em liderança, ele é masculinizado ou dessexualizado a fim de atender às exigências sociais que não demandam feminilidade. O machismo vigente - talvez não propositadamente, mas progressivamente - concedeu características distintas aos homens e às mulheres que colocam cada gênero em seu devido papel na cultura androcêntrica, ignorando a percepção de que o sujeito não é homogêneo, mas sim multifacetado (LAURETIS, 1987). Ou seja, o homem se mantém no comando e a mulher é a base da sociedade.[endnoteRef:3] [3: René Descartes no início da Era Moderna afirma que tanto o sexo masculino, quanto o feminino são importantes para o funcionamento da sociedade. Isso pois, cabe ao homem ocupar-se com a reflexão, restando à mulher, preservar a esfera das atividades não relacionadas ao pensamento, uma vez que o sexo masculino precisa descansar e descontrair: “If he is to exercise the most exalted form of Reason, he must leave soft emotions and sensuousness behind; woman will keep them intact for him.” LLOYD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. In: LLOYD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. 3. ed. Minnesota: University of Minnesota Press, 1989. cap. Reason as attainment: Descartes method, p. 50.] 
Em The Man-Made World (2002), Gilman defende a construção dos papéis sociais de gênero na sociedade como forma de constranger as mulheres ao âmbito privado. Ela advoga que as crianças nascem e são criadas em um ambiente androcêntrico que as influenciam na misoginia, pois os homens têm acesso à educação enquanto as mulheres são influenciadas apenas pelas suas mães no campo doméstico. Isto posto, a autora, anosdepois, publica Herland (2018), uma utopia que introduz a ideia de uma sociedade constituída somente por mulheres em que o ambiente por elas construído, diferentemente da sociedade ocidental, não priva, mas cria oportunidades para que as meninas possam aflorar seus atributos físicos e intelectuais. 
HERLAND 
Charlotte Perkins Gilman foi uma autora que tinha como primazia os assuntos de gênero em suas obras - não somente de gênero ficcional, mas também em seus ensaios teóricos. Em um de seus mais influentes livros, 	Women and Economics (2018), argumenta acerca da falta de confiança masculina no que tange às mulheres na esfera pública da sociedade. Segundo a autora, o corpo feminino é relevante somente no que diz respeito à área doméstica:
Marido e mulher são verdadeiramente parceiros em suas obrigações mútuas para com os filhos, - seu amor comum, dever e serviço. Mas um fabricante que se casa, ou um médico, ou um advogado, não tem um sócio em seus negócios, quando ele assume uma parceria na paternidade, a menos que sua esposa também seja fabricante, médica ou advogada. Nos negócios dele, ela não pode nem aconselhar sabiamente sem treinamento e experiência. [...] Ela não é, de forma alguma, uma parceira de negócios, a menos que ela contribua com capital ou experiência ou trabalho, como um homem faria em relação semelhante. A maioria dos homens hesitaria seriamente antes de entrar em uma parceria comercial com qualquer mulher, esposa ou não. (Gilman: 1998, p.8)[endnoteRef:4] [4: No original: “Man and wife are partners truly in their mutual obligation to their children,—their common love, duty, and service. But a manufacturer who marries, or a doctor, or a lawyer, does not take a partner in his business, when he takes a partner in parenthood, unless his wife is also a manufacturer, a doctor, or a lawyer. In his business, she cannot even advise wisely without training and experience. [...] She is in no sense a business partner, unless she contributes capital or experience or labor, as a man would in like relation. Most men would hesitate very seriously before entering a business partnership with any woman, wife or not.” In: GILMAN, Charlotte P. Women and Economics. Project Gutenberg, 2018, p. 8] 
Tomando como conclusão a necessidade do sexo feminino para o funcionamento da sociedade, podemos compará-las às pilastras de uma casa, enquanto os homens são seu teto. Sem pilastras não é possível que o teto se mantenha, também não há possibilidade de os itens inverterem seus papéis - a não ser que os materiais sejam destruídos e reconstruídos. Sendo assim, nota-se que a inversão de papéis na sociedade só é alternativa a partir da reestruturação dos gêneros, isto é, mulher não pode performar seu papel culturalmente instituído a fim de obter créditos, alcançar seus objetivos e se libertar das amarras da sociedade: o corpo feminino liberto deve ser não feminino.
 Irigaray (1993) afirma que para que a mulher ame e valorize a si mesma é necessário que haja um "distanciamento do que ela é, da situação em que as mulheres vêm sendo tradicionalmente colocadas" (Irigaray, 1993. P. 69)[endnoteRef:5] Assim, Gilman (1915) procurou estabelecer personagens do sexo feminino livres das amarras de gênero em sua obra utópica. Somente através de mulheres subvertendo as imagens sociais a elas impostas, foi possível constituir um cenário em que elas pudessem se mostrar em grau de equidade no que tange os personagens do sexo oposto. Para alcançar tal objetivo, Gilman idealiza as nativas da Terra das Mulheres como seres independentes, inteligentes, lúcidos e racionais. Além, dos mencionados atributos intelectuais, a autora também transforma as características físicas das nativas, concebendo-as como seres desgendrados, neutros no que tange sua sexualidade, andróginos:[...] “tinham eliminado não apenas determinadas características masculinas, pelas quais é claro que nem procuramos, mas tanto do que sempre havíamos pensado como essencialmente feminino.” [...] (Gilman: 2015, p. 68-69). [5: No original: "detachment from what is, from the situation in which woman has traditionally been placed;" In:IRIGARAY, Luce. Love of self. In: IRIGARAY, Luce. An ethics of sexual difference. Nova Iorque: Cornell University Press, 1993. P. 59-71] 
De acordo com Moi (1999, p. 120) a dessexualização tem por interesse “nos libertar de figuras metafísicas que nos mantêm cativos”.[endnoteRef:6] A noção do corpo dessexualizado na obra deve ser tomada como sinônimo de liberdade feminina na narrativa uma vez que deixa de lado a visão falocêntrica do mundo. Gilman entende que, somente a partir do distanciamento do que constituímos como características de gênero a liberdade do corpo pode ser alcançada. [6: No original: “Such theory would aim to release us from the meta-physical pictures that hold us captive” In: MOI, Toril. What’s a woman? and other essays. Oxford: OUP, 1999, p. 120] 
Segundo Nogueira (2001), ninguém pode ser considerado muito, pouco ou nada feminino ou masculino. O gênero é performativo, ou seja, depende do ambiente em que o indivíduo está inserido e das expectativas relacionadas a eles. [...] “o género não é um traço inerente aos indivíduos, mas sim que qualidades usualmente vistas como relacionadas com o sexo dos actores são de facto determinadas pelos contextos.” [...] (ibid, p. 57). Dessa forma, o vocábulo deve, assim, ser visionado como algo plural e fluído, ou até mesmo, inexistente já que é uma construção e não um atributo biológico. 
Para Gilman, em uma sociedade sem polarização sexual, não há atributos sexuais socialmente impostos, dessa forma, os indivíduos assumem características andróginas, ou seja, não assumem papéis de gênero como observamos na contemporaneidade. Valoriza-se, assim, o indivíduo.
[...] a androginia sugere a combinação de atributos femininos e masculinos, eliminando a suposição do dualismo de género. Não assume nenhuma ligação entre sexo biológico e género psicológico e pretende essencialmente que as mulheres se libertem das orientações comportamentais adequadas ao seu sexo (ibid, p. 184)
Na passagem acima, Nogueira afirma - embasando a tese de Gilman - que a androginia elimina a submissão entre os sexos, uma vez que não existe essa divisão. Ou seja, em Herland, a obtenção de igualdade se dá através do da desgeneralização, da quebra de estereótipos. Assim, as nativas da Terra das Mulheres são definidas como uma mistura de traços femininos e masculinos de maneira que, à primeira vista, causa estranheza aos exploradores, uma vez que as moças não performam os estereótipos de feminilidade conhecidos pela cultura ocidental: “É claro que eram meninas. Meninos nunca teriam aquela beleza resplandecente, mas nenhum de nós tivera certeza a princípio.” (Gilman: 2018, p. 24).
Herland é um habitat em sua totalidade constituído pelo sexo feminino. As nativas da terra em questão são livres das amarras misóginas da sociedade ocidental e, como consequência, construíram uma cultura que as permite aflorar suas verdadeiras características. Por essa razão, seus atributos físicos evoluíram ao longo dos séculos a fim de atender às demandas de sua comunidade. Com a falta do porte masculino em seu corpo social, o físico das mulheres se adaptou a fim de que elas pudessem fazer trabalhos braçais e que demandassem esforço hercúleo, assim, elas se tornaram guerreiras hábeis: 
“A solidez daquelas mulheres era impressionante. Terry logo se deu conta de que era inútil insistir [...] Elas o pegaram [...] Imediatamente cada um de nós foi segurado por cinco mulheres, cada uma pegando um braço, uma perna ou a cabeça; fomos levantados como crianças. Crianças indefesas tentando se soltar, brigando de fato, mas sem sucesso. Fomos conduzidos para dentro, lutando com garra, porém segurados com firmeza, apesar de nossos esforços.” (ibid, p. 33)
Sua constante relação com a mão de obra as libertou da utilização de trajes desconfortáveis, como vestidos e acessórios que não têm utilidade, e da vaidade: “-Se usassem cabelos compridos seriam muito maisfemininas [...]também senti falta do cabelo longo.” (ibid, p. 41). Todo e qualquer traço culturalmente atribuído ao corpo feminino é excluído na obra da autora, como forma de crítica e tentativa de solução para uma sociedade igualitária e livre. 
Vale salientar que não somente a desgeneralização faz parte do mundo utópico de Gilman, mas também o conceito de dessexualização - o que revolta Terry, o personagem masculino mais estereotipado da obra: “-Bando de aleijadas [...] -Assexuadas, hermafroditas, seres primitivos e sem gênero!” (ibid, p. 155-156) Isso também se dá devido ao processo evolutivo das personagens. Com a falta de progenitores, as nativas da Terra das Mulheres desenvolveram a partenogênese - processo presente em algumas espécies de insetos e bastante difundido na Ficção Científica que, segundo Lúcia de La Rocque (2010), possibilita a libertação do corpo da mulher no que concerne a reprodução da espécie e reafirma o processo emancipatório do ato - para a perpetuação de sua espécie. Desse modo, como a reprodução sexuada deixou de ser necessária no país em questão, o ato sexual também o fez: “o sentimento sexual que havia entre nós na mente delas se expressava em termos de amizade, o único amor puramente sexual que conheciam e de familiaridade.” (GILMAN, p. 109)
A exclusão do ato sexual em si da obra pode ser observada, em uma leitura contemporânea, como um ultraje às reivindicações do feminismo moderno - que visa a liberdade feminina em todos e quaisquer âmbitos. De La Roque (2010) utiliza Hausmsn (1998) para manifestar o olhar crítico da obra a esse respeito. Contudo, também explicita que se faz necessário ter em mente que Herland foi escrito durante a primeira onda do movimento feminista, que tinha reivindicações distintas da modernidade. Butler (2004) afirma que, não existe uma definição incontestável do termo feminismo assim como não há uma visão global do mesmo, i.e. o movimento possui agendas diferentes em cada época e grupo. 
Também é importante salientar que, a dessexualização na obra não tem como objetivo proibir o sexo feminino de performar feminilidade e cometer atos libidinosos, mas sim, como afirma Monteiro (2020, p. 159), indicar que as mulheres dessexualizadas se contrapõem ao padrão estabelecido para o feminino ou masculino; elas são a mistura de tudo e consequentemente a solução para a oposição dos gêneros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diferentemente do que se espera de mulheres em posições de poder na sociedade contemporânea, as "super mulheres" de Herland não são masculinizadas, mas sim deserotizadas, já que não há homens em seu meio social que as erotizem (no sentido pejorativo do termo); desgeneralizadas já que não existem estereótipos masculino e femininos a serem seguidos, muito menos dualidade entre gêneros; e, por fim, dessexualizadas, já que a reprodução sexual não é necessária a fim de que se difunda sua espécie. Dessa forma, pode-se concluir que a liberdade feminina só é possível a partir da ruptura da binarização entre os gêneros, se faz necessário que vejamos a sexualidade como um objeto fluido e os gêneros como não opostos, mas complementares.
A solução apresentada por Gilman para exibir a adequação entre os sexos utilizando a neutralidade entre os gêneros é, principalmente levando em consideração as atuais discussões no que tange à androginia, de relevância imensurável. Embora tenha sido publicada há mais de 100 anos, a obra permanece atualizada uma vez que abre um leque de discussões a respeito dos papéis de gênero impostos na sociedade androcêntrica em que vivemos. Desconsiderar o conjunto da obra como relevante no que tange ao feminismo devido a não menção à sexualidade feminina, que nos leva a creditar as nativas como assexuadas, é desvalorizar a reivindicação da liberdade do corpo feminino na narrativa. 
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Metafísica: Livro A. In: ARISTÓTELES. Metafisica. São Paulo: Edições Loyola, 2002
BRAIDOTTI, Rosi. Nomadic Subjects. New York: Columbia University Press, 1994.
BUTLER, Judith. The End of sexual difference? In: BUTLER, Judith. Undoing Gender. Nova Iorque: Routledge, 2004. p. 174-203
DE LA ROCQUE, Lucia. O gênero da reprodução e a reprodução do gênero: Herland, de Charlotte Perkins Gilman e When It Changed, de Joanna Russ. In: SALGUEIRO, Maria Aparecida de Andrade (org). Feminismos, Identidades, Comparativismos: vertentes nas literaturas de língua inglesa. Vol. VIII. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2010
FOUCAULT, Michel. Não ao sexo rei. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979
GILMAN, Charlotte Perkins. The Man-made World; or our Adrocentric Culture. Project Gutenberg, 2002
GILMAN, Charlotte Perkins. Herland: Terra das Mulheres. São Paulo: Via Leitura, 2018.
GILMAN, Charlotte Perkins. Women and Economics. Project Gutenberg, 2018.
IRIGARAY, Luce. Love of self. In: IRIGARAY, Luce. An ethics of sexual difference. Nova Iorque: Cornell University Press, 1993. P. 59-71
KELLER, Evelyn Fox. Reflections on Gender and Science. New Haven: Yale University Press, 1985
LAURETIS, Teresa de. The technology of gender. Bloomington e Indianopolis: Indiana University Press, 1987
LLOYD, Genevieve. The Man of Reason: "Male" and "Female" in Western Philosophy. 3. ed. Minnesota: University of Minnesota Press, 1989. 
MOI, Toril. What’s a woman? and other essays. Oxford: OUP, 1999.
MONTEIRO, Maria Conceição. Unsex-me, ou um gênero limitado demais para mim. Juiz de Fora: Ipotesi, v. 24, n. 2, p. 152-164
NOGUEIA, Conceição. Um Novo Olhar sobre as Relações Sociais de Género: Feminismo e Perspectivas Críticas na Psicologia Social. Braga: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
SOLOMON, Robert C. Interdisciplinary Foundations: The Philosophy of Emotions In: LEWIS, Michael; HAVILAND-JONES, Jeannette; BARRETT, Lisa. Handbook of emotions. 3. ed. Nova Iorque: The Guilford Press, 2018.
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