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História e Historiografia da Educação no Brasil Organizadoras Cynthia Greive Veiga Thais Nivia de Lima e Fonseca História e Historiografia da Educação no Brasil 1 ª edição 1“ reimpressão Copyright © 2003 by os autores CAPA Jairo Alvarenga Fonseca (Sobre Uma senhora brasileira em seu lar. Ilustração: Jean-Baptiste Debret) EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Waldênia Alvarenga Santos Ataíde REVISÃO Rosemara Dias Vera Lúcia DeSimoni Castro Fonseca, Thais Nívia de Lima e F676h História e Historiografia da Educação no Brasil /Thais Nivia de Lima e Fonseca, Cynthia Greive Veiga . — 1. ed. 1. reimp. — Belo Horizonte: Autêntica, 2008. 288 p. ISBN 978-85-7526-108-8 l.História-estudo e ensino. 2.Educação-História- Brasil. I.Título. CDU 930.1 37(81X091) 2008 Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica sem a autorização prévia da editora. Autêntica Editora Rua Aimorés, 981, 8° andar - Funcionários - 30140-071 Belo Horizonte - MG - Tel: (55 31) 3222 6819 www.autenticaeditora.com.br http://www.autenticaeditora.com.br Sumário Apresentação....................................................................................... 7 1 • parte - Abordagens, conceitos, metodologias.............................. 11 História Política e História da Educação Cyntftia Greive Veiga...................................................................... 13 História da Educação e História Cultural Tte N ivia de Lima e Fonseca......................................................... 49 O processo de escolarização em Minas Gerais: questões teórico-metodológicas e perspectivas de análise Luciíino Memtes de Farw Filho...................................................... 77 2* parte - Diálogos e interfaces.............................................................. 99 Imaginário científico e a História da Educação Bernardo lefferson de Oliveira........................................................101 História da Psicologia e História da Educação - conexões RfíjiMO HdfHO de Freitas Campos................................................ 129 3* parte - Campos de investigação: A História da Educaçào no Brasil...........................159 Manuais escolares e pesquisa em História Amo Mario de Oliveira Galvão Antônio Augusto Gomes Batista.....................................................161 A escolarização da "meninice" nas Minas oitocentistas: a individualização do aluno Maria Cristina Soares de Gouvêa.................................................. 189 História da alfabetização: perspectivas de análise Francisco Izabel Pereira Maciel....................................................227 Última década do oitocentos, primeira década da Cymnastica na formação do professorado mineiro Eustáquia Salvadora de Sousa Tarcísio Mauro Vago.......................................................................253 S AUTORES....................................................................................285 Apresentação Leopoldo Pereira, em artigo da Revista do Ensino, de Minas Ge rais, por ocasião da comemoração do primeiro centenário do ensino primário no Brasil (outubro de 1927), narra suas memórias da época da "escola de antigamente"e vai dizendo, o aprender era então um trabalho áspero, que as animadas gerações modernas não conhecem, e a escola o terror da meninada, porque o símbolo da autoridade do mestre era a palmatória. Na sala da esco la, bem a vista, pendurada de um prego na parede, lá estava ela todo ano desaparecendo só no período de férias, como vou contar: Não se compreendia então a escola sem o castigo corporal: a féru- la era para o mestre como o cetro para o rei ou o cajado para o pastor. Até nas aulas de latim e francês, que nossas principais ci dades possuíram durante muitos anos, corria bem aceito o axio ma que o latim, quando não entra pelos olhos e ouvidos, devia entrar pelas unhas. Na escola primária a palmatória chamava-se santa luzia. Por que este nome? Como se sabe, a crença popular venera Santa Luzia como a advogada da vista, e nossos pais entendiam que a férula é que devia dar aos cegos. No dia do exame, a que compareciam as pessoas gradas do lugar, depois do café com biscoitos, em que a mestra se esmerava, a me ninada alegre e radiante se apoderava da palmatória e levava-a pelas ruas entre vaias e canções para solenemente a enterrar. Este enterro era uma das festas da aldeia, e toda a gente acudia às portas e janelas para ver passar o ruidoso préstito na satisfação de uma justa vingança. Mas, como a alegria é precária e enganadora na vida, não estava longe o primeiro dia de aula do ano seguinte e o desenterro também solene, mas já sem manifestações de pra zer, do amaldiçoado instrumento de suplício? 1 Revista do Ensino. Belo Horizonte: Estado de Minas Gerais, ano III, n.23, out. 1927, p. 525. 7 História e Historiografia da Educação no Brasil Sabemos que a educação não se resume na experiência escolar e que também a escola é algo recente na história da sociedade brasileira. Entretanto, uma coisa é certa, sob as mais diferenciadas formas, na re lação entre os mais diferenciados sujeitos, em tempos e lugares distin tos, como dizia Carlos Rodrigues Brandão: "da educação ninguém es capa". Dessa maneira, podemos dizer que também ninguém escapa de uma história da educação, uma vez que somos todos sujeitos dela, de uma maneira ou de outra, freqüentando ou não a escola, nos cultos, nas igrejas, nas festas, na família, nas ruas, na roça, na cidade, com ami gos... Para nós, historiadores da educação, uma constatação evidente é a de que investigar os processos do aprender é fundamental para am pliarmos a compreensão das formas de como em tempos e espaços dis tintos, homens e mulheres organizaram sua vida, seus fazeres e suas idéias, enfim, seu modo de ser e estar no mundo. Entretanto, sendo a educação um objeto da História de tão largo alcance, como estabelecer as inteligibilidades de suas especificidades e diferenças no tempo?Ou melhor, como produzir a educação como um objeto da História? Contribuir para essa discussão é o objetivo deste li vro que reúne pesquisadores do Centro de Alfabetização, Leitura e Es crita (CE ALE) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educa ção (GEPHE) da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.2 O GEPHE, em funcionamento desde 1998, coordenado pelo professor Luciano Mendes de Faria Filho e composto por bolsistas de iniciação científica, mestrandos, doutorandos e professores de áreas distintas, vem possibilitando a ampliação dos debates sobre o fazer his- toriográfico no campo da história da educação. Por meio dessa produ ção, tem sido possível problematizar a educação em diferentes tempos históricos, em espaços escolares ou não, baseando-se em diferentes te mas (o corpo, o aluno, a leitura, as disciplinas escolares, a cidade, insti tuições, métodos de ensino, estatística, ofícios, materiais escolares, sabe- res...), em diferentes sujeitos (a criança, a mulher, o negro, o indígena, o aluno, o professor, os dirigentes escolares...), de diferentes fontes docu mentais (imprensa, periódicos, relatórios oficiais, correspondências, manuais escolares, inventários, livros de leitura, imagens...) e em dife rentes abordagens teórico-conceituais. Neste livro, apresentamos um pou co do que temos discutido e também produzido individualmente e como grupo. Para isso, organizamos os capítulos em três agrupamentos. 2 As pesquisas desses grupos contam com financiamento da FAPEM1G, do CNPq e da CAPES. 8 Apresentação No primeiro, estão presentes os estudos que centram suas análises nas abordagens teórico-metodológicas da historiografia contemporâ nea e em discussões conceituais mais gerais da historiografia da educa ção. É dessa maneira que Cynthia Greive Veiga, no texto "História Po lítica e História da Educação",problematiza as dinâmicas políticas componentes do processo de escolarização da sociedade brasileira, seja através das discussões presentes na chamada "nova história política", seja através de estudos de campos conceituais possíveis de análise, com destaque para Norbert Elias. Thais Nivia de Lima e Fonseca, em "His tória da Educação e História Cultural", apresenta uma reflexão sobre o lugar da História da Educação no conjunto da historiografia e suas re lações com as possibilidades de abordagens apresentadas pela Histó ria Cultural. Luciano Mendes de Faria Filho aborda um dos campos mais férteis da historiografia contemporânea da Educação, o dos pro cessos de escolarização, por meio da análise conceituai da cultura esco lar, no texto "O processo de escolarização em Minas Gerais: questões teórico-metodológicas e perspectivas de análise". O segundo conjunto de textos analisa as interfaces de outros co nhecimentos com a história da educação, demonstrando as possibili dades da abertura do diálogo com outros saberes. Bernardo Jefferson de Oliveira, em "Imaginário científico e a História da Educação", ex plora o entrecruzamento entre a historiografia das ciências e a historio grafia da educação, mediado pelas discussões sobre modelos de co nhecimento científico. No capítulo, "História da Psicologia e História da Educação - conexões", Regina Helena de Freitas Campos examina, valendo-se da história da psicologia, a interferência desse saber na or ganização do campo pedagógico. Finalmente, o terceiro conjunto de textos analisa os procedimen tos metodológicos possíveis no estudo de diferentes temas da educa ção como objetos da história: manuais escolares, alfabetização, infância e a educação física. São textos que descortinam parte da vasta docu mentação existente em nossos arquivos, priorizando pesquisas realizadas no âmbito de Minas Gerais. Ana Maria de Oliveira Galvão e Antônio Au gusto Gomes Batista, em "Manuais escolares e pesquisa em História" ressaltam a importância da discussão sobre as fontes de investigação, sua natureza, as possibilidades de problematização e de abordagem, com base na análise dos manuais escolares. A percepção da infância como construção histórica c cultural, seu aparecimento como objeto de investigação na historiografia contemporânea e alguns indicativos para a pesquisa no Brasil fundamentam o texto "A escolarização da meninice 9 História t Historiografia da EducaçAo no Brasil nas Minas Geais oitocentistas: a individualização do aluno", de Maria Cristina Soares de Gouvêa. No texto "História da Alfabetização: pers pectivas de análise", Francisca Izabel Pereira Maciel procura, por meio de estudos sobre a história da alfabetização, analisar as características fundamentais desse campo de investigação, bem como apontar algu mas de suas principais tendências. Por fim, Eustáquia Salvadora de Sousa e Tardsio Mauro Vago, no texto "Última década do oitocentos, primeira década da Gymnastica na formação do professorado mineiro", mergulham na história escolar da Educação Física, explorando rica documentação que permite vislumbrar parte do processo de escolari- zação dessa disciplina em Minas Gerais. Este livro, além de representar o esforço de reunião de trabalhos que resultam do amplo debate que viemos realizando como grupo de pesquisa nos últimos anos, pretende ser também um instrumento de retlexão para a comunidade de historiadores que, tendo ou não a edu cação como seu principal objeto de investigação, se interessem pela multiplicidade de suas faces, possíveis de serem percebidas não so mente no universo escolar, mas também para além dele. É, pois, com satisfação, que o apresentamos. As organizadoras 10 História Política e História da Educação Cynthia Greive Veiga Os historiadores, na permanente busca de como produzir os "pro tocolos de verdade"1, há décadas vêm indicando para novos procedi mentos da escrita da História ao se desfazerem dos esquemas explicati vos, das certezas e racionalidades que predominaram na historiografia do século XIX e parte do século XX. O tema deste capítulo compartilha com este movimento, tendo como objetivo principal discutir os refe renciais teórico-metodológicos da chamada "nova história política" na perspectiva de contribuir para a ampliação das problematizações da educação como objeto histórico e, mais particularmente, da escola como um problema também do campo político. O que se pretende é, a partir de um diálogo com as formulações teórico-conceituais de história polí tica, precisar melhor o lugar do político e da política no momento do desenvolvimento da escolarização, em específico, no século XIX. 1 FALCON, 2002. 2 BURKE, 1992, p. 8. Não se está compreendendo aqui a história política como uma com- partimentação a mais da história, mas como uma modalidade da práti ca social que demanda referencial teórico para dar intelegibilidade às relações de forças presentes nas sociedades em diferentes tempos e lu gares. Por outro lado, também não se está compreendendo a política como a última instância, ou instância única de explicação da socieda de. É preciso aceitar a provocação de Burke (1992), ao se referir à crise de identidade presente na historiografia: "se a política está em toda parte, será que há necessidade da história política?".1 2 Também não se pretende inaugurar uma nova modalidade de fron teiras, história da educação e história política, cabe, entretanto, pergun tar qual a natureza destas relações, entre temas/objetos e procedimento 13 História e Historiografia da Educação no Brasil teórico-metodológico ou entre campos de conhecimento e formulações conceituais metodológicas? Ainda para precisar melhor as questões conceituais e metodológi cas da nova história política, será necessário interrogar sobre as relações entre esta e a história cultural, tendo-se em vista, principalmente, a uti lização de seus referenciais teóricos pelos historiadores da educação. Para as discussões das questões aqui propostas, tomo como referen cial principal as reflexões de Peter Burke (2002) relativas às relações entre história, teorias, modelos e conceitos. Segundo este autor, "poucos histo riadores utilizam teoria no sentido estrito do termo, mas um número bem maior emprega modelos, enquanto os conceitos são praticamente indispensáveis."' Burke salienta ainda a necessidade do uso e explicita ção destes instrumentos de análise, mas também a especificidade da His tória em relação a eles. Destaca, por exemplo, a inaplicabilidade das teo rias sociais ao passado, pois os historiadores se utilizam delas mais para sugerir novas questões ou novas respostas a perguntas já bastante co nhecidas. Também observa que conceitos como cultura e poder, entre vários outros, devem ser tratados como problema e não como premissa. Finalmente, como questão fundamental, o historiador não pode perder de vista o seu objeto principal: as diferenças e mudanças ocorridas nas sociedades em lugares e tempos diversos. Apresentadas as considerações iniciais, este capítulo pretende in dicar possíveis percursos teórico-conceituais do campo político que permitam problematizar a escola como inserida em relações de forças que objetivaram algo inusitado a partir do século XIX: a extensão do saber ler e escrever à grande parte da população livre brasileira.3 4 Antes de mais nada, é importante esclarecer como estão sendo entendidas aqui as relações entre história da educação e história política. 3 BURKE, 2002, p. 11. 4 De acordo com a Constituição de 1824, a interdição da escola elementar referia-se à condi ção jurídica (ser escravo). A ainda problemática definição da história da educação O debate aberto pelos historiadores dos Annales a respeito de no vos problemas, novas abordagens e novos objetos, indicou para uma abrangência de formulações e uma polifonia alargada nas formas de 14 História Política e História da Educação pensar e fazer história. Qual o lugar da históriada educação neste de bate? Na ordem dos problemas relativos a especificações, poderiamos pensar como Burke em relação a história política, se tudo é educação ou se a educação está em toda parte, será que há necessidade de uma história da educação? De imediato, afirmo serem profundas as diferen ças entre histórias e histórias de, em especial quando se trata da educa ção. Para essa discussão, seria interessante observar a maneira como vem sendo compreendido um diálogo mais consolidado, entre a histó ria da educação e a história cultural, mais no sentido de apresentar alguns problemas do que desenvolver questões mais aprofundadas.5 5 Veja neste livro o capítulo de Thais Nivia de Lima e Fonseca. 6 LYNNHUNT, 1992, p. 9. 7 NUNES e CARVALHO, 1992, p. 2. 8 LYNN HUNT, 1992, p. 12. 9 FRAGO, 1995, p. 64 (grifos meus). 10 LYNN HUNT, 1992, p. 13. A chamada nova história cultural, de maneira bastante genérica, se distingue de outras abordagens por considerar "as relações econô micas e sociais como campos da prática cultural e produção cultural".6 Segundo Hunt (1992), não é uma especialização da história e nem pro põem apenas um novo conjunto de temas para investigação, mas se apresenta como uma formulação téorico-metodológica. Nunes e Car valho (1992) observam que a produção do diálogo entre a história cul tural e a história da educação se deve em muito pelo fato da história cultural investigar "temas e objetos até então muito recentemente, prin cipalmente entre nós, como exclusivos de história da educação".7 Hunt (1992), por sua vez, afirma que Furet e Damton alertaram para o pro blema de desenvolvimento de uma história cultural definida apenas em termos de temas de pesquisa.8 9 Outro autor, Frago (1995), na explicitação de seu estudo sobre as relações entre história da educação e história cultural, afirma que o seu trabalho "... pretende explorar algumas das possibilidades da história cultural em relação com a história da educação, outro fragmento a mais desta história parcelada”!9 Lynn Hunt (1992) apresenta uma questão, que para os propósitos deste texto é fundamental: Onde estaremos quando todas as práticas sejam elas econômicas, intelectuais, políticas ou sociais, revelarem ser culturalmente con dicionadas?10 15 História e Historiografia da Educação no Brasil O autor salienta que não há como fazer história cultural sem dis cussão teórica sobre as relações entre cultura e sociedade. É este apro fundamento teórico, em diálogo com outros campos de conhecimento, que nos permite produzir, como historiadores, a visibilidade das dife renças das várias formas de manifestações humanas e dar-lhes inteligi bilidade no tempo e espaço. Atentos a essas observações, entendemos que as relações entre his tória da educação e história cultural não se estabelecem como partes de fragmentos de uma história parcelada, como quer Frago (1995), pois ambas são de naturezas distintas. A história cultural é um método, uma concepção de abordagem, ao passo que a história da educação tem sido compreendida como uma '"especialização" da história. Entretanto ob serva-se que não há um consenso sobre os procedimentos de adjetiva- ções da História, tendo em vista o desenvolvimento de instrumentos cada vez mais refinados para analisar os problemas humanos do passado e do presente. Por outro lado, tais procedimentos possuem uma historicida- de, além de identificarem lugares e competências acadêmicas. De forma bastante sumária, pretende-se resgatar o movimento definidor das "especializações" da História, no sentido de organizar o entendimento das distinções entre problemas, abordagens e objetos da História. A história da educação, cuja origem e designação já fo ram amplamente desenvolvidas por alguns autores11, se estabeleceu no campo acadêmico com o estatuto de especialização da História. José Honório Rodrigues (1978), em Teoria da história do Brasil, cuja pri meira edição data de 1948, afirma, em sintonia com as discussões da época, que "O historiador de certos gêneros... não só mutila a unida de global da vida, como a vida histórica é ferida na unilateralidade de visão"11 12. Segundo este autor, a organização dos diversos gêneros ou especializações da História é herança das práticas classificatórias da botânica desenvolvidas por Lineu, revelando-se de forma infinita. Rodrigues (1978) afirma também que, no Brasil, esta prática foi regis trada primeiramente no "Catálogo de Exposição da História do Bra sil", de 1883, abarcando algumas especializações, que o autor amplia, levando em consideração as produções históricas de seu tempo. Na proposição de Rodrigues (1978), a história da educação é componente de um "ramo" da História por ele denominado de "História cultural, 11 LOPES e GALVÀO (2001), NUNES e CARVALHO (1997), entre outros. 12 RODRIGUES, 1978, p. 145. 16 História Política e História da Educação intelectual e das idéias"13 Observa-se que a classificação de Rodrigues se faz pelos diferentes temas e objetos em coerência com a sua concepção da existência de um método único de investigação histórica, cuja especi ficidade se reporta na análise documental. Por outro lado localiza a his tória da educação a partir dos estudos sobre a organização escolar e idéias pedagógicas, como objetos privilegiados de análise. Em um outro lugar, Le Goff e Pierre Nora organizaram em 1974 a obra Novos problemas, novas abordagens e novos objetos, com o objetivo de sistematizar o desenvolvimento da historiografia. Esta obra não trata de "especializações" da História, no sentido classificatório de Lineu, mas trata de problemas, propondo questões teórico-metodológicas, de novas abordagens, indicando os diálogos conceituais com campos de conhecimento distintos, e de novos objetos de investigação. Observa- se que a educação não está presente em nenhum item; isto talvez por que sua identidade ainda estivesse colada à sua origem como discipli na escolar ou como "especialização" da História, relacionada às "velhas abordagens" da história das idéias pedagógicas. Por outro lado, Philli- pe Ariès investigou os colégios do Antigo Regime, a partir de um "novo objeto": as mentalidades.* 13 14 13 Além de história da educação compõem este "ramo": história literária e científica, a artísti ca, a da música, a da imprensa e opinião pública, a história da História e as histórias das idéias econômicas, sociais e políticas (RODRIGUES, 1978, p. 149). 14 LE GOFF e NORA, Novos Objetos, tradução brasileira, 1976. Ainda como exemplo dos movimentos de explicitação de proble mas, abordagens e objetos da história, podemos analisar a estrutura do livro "Domínios da História", organizado por Cardoso e Vainfas (1997). Esta obra também se organiza em três itens, (evidentemente incorpo rando os avanços da historiografia desde a publicação de Le Goff e Nora), quais sejam: Territórios do Historiador: Áreas, Fronteiras e Dile mas (História das Mentalidades e História Cultural); Campos de inves tigação e linhas de pesquisa (História Agrária, História Urbana, Histó ria das Paisagens, História Empresarial, História da Família e Demografia Histórica, História do Cotidiano e da Vida Privada, História das Mulhe res, História e Sexualidade, História e Etnia, História das Religiões e Re ligiosidade); Modelos teóricos e novos instrumentos metodológicos: al guns exemplos (História e modelos, História e análise de textos, História e imagens, História e informática). Também, nesta obra, a educação não está presente, considerando-se, principalmente, o amplo desenvolvimento das pesquisas desta área nas décadas de 80 e 90. Nossa hipótese é que o problema não reside apenas na questão das disputas acadêmicas, mas 17 História e Historiografia da EducaçAo no Brasil talvez na maneira como os historiadores da educação continuam se auto-referindo: são historiadores de uma "especialização". Isso se confirma na análise da estrutura de uma outra obra Historio grafia brasileira em perspectiva, organizadapor Freitas (1998). Para o mapea mento do campo da historiografia, o livro se organiza em duas partes: "Historiografia brasileira: os olhares sobre as fontes" (Aspectos da Histo riografia da Cultura sobre o Brasil Colonial; A sociedade brasileira e a his toriografia colonial; Sociabilidade sem história: votantes pobres do Impé rio; O Império da Revolução: matrizes interpretativas dos conflitos da sociedade monárquica; Escravidão negra em debate, o diálogo conver gente: políticos e historiadores no início da República; A historiografia da classe operária no Brasil: trajetórias e tendências; Anos 30 e política: histo riografia e história; Estado Novo: novas histórias) e a outra parte, "Histo riografia brasileira: novas fontes para novos olhares" (História das mulhe res: as vozes do silêncio; História e historiografia das cidades, um percurso; Sobre História, Braudel e os vaga-lumes; História que os livros didáticos contam, depois que acabou a ditadura no Brasil; Regionalismo e História da Literatura; A configuração da historiografia educacional brasileira, História dos intelectuais nos anos 50, a pintura e o olhar sobre si: Victor Meireles e a invenção de uma história visual no século XIX brasileiro; Iracema ou a fundação do Brasil). Para o organizador do livro, a historiografia da edu cação se localiza na segunda parte no objetivo de "trazer ao debate os processos de aquisição de novas fontes para a produção de novos olhares sobre o passado"15. Esta parte do livro apresenta dois desdobramentos: discussões relativas à configuração de "campos singulares na historiogra fia, como o de gênero, das artes e cidades"16, e "análises sobre a presença do conhecimento histórico na arquitetura teórica e metodológica de ou tros campos epistemológicos e disciplinares"17 , localizando aí a historio grafia da educação, com a seguinte questão: 15 FREITAS, 1998, p. 12. 16 Idem, p. 12. 17 Ibdem, p. 12. 18 Ibdem, p. 13 que configuração historiográfica confere (ou não) autonomia à história da educação em relação à história. É aquela um subcam- po desta?18 Observa-se que Marcus César Freitas, com este questionamento, apre senta-nos a confirmação de uma grande problemática no entendimento 18 História Política e História da Educação desta "especialização" da História. Pode-se discutir ainda que, apesar da consolidação recente da história da educação como campo de inves tigação científico, no Brasil, é pouco o diálogo entre historiadores e his toriadores da educação. Penso, como disse, que os problemas dessa ausência não se reduzem apenas a questões institucionais, mas ao pró prio entendimento da educação como objeto de investigação histórica. Sendo a educação um campo extremamente vasto de temáticas, não é possível tomá-la a partir de metodologias e conceituações únicas e muito menos como um subcampo ou especialização da História. Retomando a questão da natureza das relações que estamos tratan do, a história da educação e a história política, afirmo serem estas rela ções caracterizadas como a relação entre um objeto, a educação e uma abordagem. Situo, portanto, a educação como objeto da História, aban donando definitivamente a possibilidade de uma história da educação como "especialização" da História, mesmo porque este tipo de classifi cação já foi renunciado pelos historiadores na medida em que rompeu- se com a idéia de um método único para a História. Por outro lado, a história da educação não se constitui enquanto abordagem por não pos suir referências teórico-conceituais próprias, se tomarmos o sentido da abordagem presente na obra de Le Goff e Nora (1976). A história da edu cação está sendo entendida aqui enquanto um campo de investigações em que se toma cada vez mais necessário dar visibilidade aos seus dife rentes objetos: a escola, o professor, os alunos, materiais escolares; proces sos e formas de aprendizagem, entre tantos outros. Nesse sentido, tam bém se toma cada vez mais necessário dar visibilidade aos procedimentos metodológicos e referenciais teóricos que produzem tais objetos como ob jetos da história cultural, política, econômica e social. Finalizando esta ordem de questões, é preciso refletir, particular mente no Brasil, sobre o futuro de uma história que se escreve descon siderando-se as maneiras como as pessoas se educaram, bem como o futuro de uma história da educação, que se entende como apêndice ou reflexo da História. Portanto, não estamos indicando para uma relação entre história da educação e história política como relações entre "frag mentos da história", mas para a problematização de um tema da edu cação, a escola, a partir do referencial da nova história política. E a história política? Diferentes autores vêm ampliando as discussões relativas a uma "nova história política", mesmo que esta abordagem não tenha se 19 História t Historiografia da EducaçAo no Brasil consolidado como uma proposta metodológica clara, tal qual a "nova his tória cultural". Aliás, a tendência que se observa é mesmo a do entendi mento da história política a partir dos referenciais teóricos da história cul tural. Para escaparmos da armadilha da compreensão da história política como fragmento, nos valemos da afirmação de Burke (1992), relativo à impossibilidade de presumir que "as discussões econômicas, políticas e culturais em uma determinada sociedade necessariamente coincidam"19. Embora as manifestações e criações humanas possuam especificidades na produção de sua inteligibilidade, por não se coincidirem e por possuírem total autonomia, não podem ser tomadas como fragmentos. Le Goff (1984) e Burke (2002), entre vários outros autores, observam que a historiografia que se consolidou no século XIX foi aquela caracteri zada pela narrativa dos eventos políticos, tendo como referência central o historiador alemão Leopoldo Van Rank. Burke (2002) e Furet (s.d.) afir mam que esta característica esteve relacionada ao contexto de formação dos Estados-nação, à organização da História como disciplina escolar na perspectiva pragmática da formação do cidadão, bem como na utilização dos registros oficiais para a escrita da História, como critério de cientifici- dade. Segundo Burke (2002), apesar da existência de estudos históricos que contemplavam outros objetos, "a história política era considerada (ao menos, no âmbito da profissão) mais real ou mais séria que o estudo da sociedade ou cultura"* 20. Ainda, de acordo com este autor, as divergências se localizavam essencialmente nas discussões relativas às dificuldades de estabelecimento de diálogos com teorias produzidas em outras áreas de conhecimento, bem como no entendimento do critério de cientificidade pelo uso de documentos oficiais. E foram exatamente as críticas a esse fazer historiográfico que possibilitaram lentamente a quebra do monopó lio da história política, produzindo um movimento em direção a uma nova história interessada nas mais diferenciadas atividades e manifestações humanas, desenvolvida principalmente a partir do diálogo com a antro pologia, a economia, a psicologia e a sociologia. 19 BURKE, 1992, p. 21. 20 BURKE, 2002, p. 18. Jacques Julliard (1976) observa que, apesar do grande avanço da historiografia desde então, duas considerações merecem ser feitas. Em primeiro lugar, lembra que a tradição factualista não deixou de existir, pois é ainda nessa tradição que se constitui a base da forma mais aceita de estabelecimento dos períodos históricos. Outra questão importante re- fere-se à observação de Braudel de que a história política não é necessaria mente uma história factual. Assim Julliard problematiza: 20 História Política e História da EducaçAo Ou bem existe com efeito, uma natureza própria dos fenômenos políticos [...] ou bem, ao contrário, o político, como o econômico, o social, o cultural, o religioso, acomoda-se aos métodos os mais diversos, inclusive os mais modernos, e, nesse caso, é tempo de aplicá-los ao político.21 21 JULLIARD,1976, p. 182. 22 FALCON, 1997, p. 76. 23 RICOEUR citado por JULLIARD, 1976, p. 183. 24 JULLIARD, 1976, p. 186. Para Julliard (1976), não é possível fazer desaparecer um objeto pela insuficiência de seu método, tomando-se necessário a sua discussão. Neste sentido, a retomada de abordagem política refere-se à superação, tanto da tradição factualista como da abordagem marxista, de que os fenôme nos políticos são um reflexo das forças econômicas e sociais. Em relação ao lugar do político, há formulações diferenciadas. Fran cisco Falcon (1997) identifica quatro orientações: aquela que se refere a interpretações onde a política está subsumida na esfera do poder; outra é a tendência que toma o poder como determinação social, subs tituindo a história política por história das formas de dominação (no caso, matrizes marxistas e weberianas); ainda, outra refere-se ao en tendimento da pulverização do poder e "sua redução a efeitos de sen tido produzidos em função de práticas discursivas específicas"* 22; fi nalmente, o autor apresenta uma outra orientação como um conjunto de tendências que vem organizando o campo da nova história políti ca, o que passaremos a desenvolver adiante. Os historiadores deste novo campo compartilham com a idéia da existência de uma certa autonomia do político em relação, por exemplo, às questões econômi cas e culturais da sociedade, podendo ele permanecer e resistir às mu danças nessas esferas. Julliard (1976), citando Paul Ricoeur, reafirma com este autor que o político "torna real uma relação humana irredu tível aos conflitos de classe e às tensões econômicas e sociais da so ciedade"23. O que Julliard (1976) quer enfatizar é que não há aconteci mentos políticos por natureza, mas se torna político pela repercussão que alcança na sociedade, ou melhor, pela sua repercussão pública, que precisa ser investigada no longo prazo, e também enfatiza a ne cessidade de renunciar a idéia de "continuidade histórica que se de senvolve ao longo de um tempo homogêneo"24, rompendo com as cau- salidades lineares e com a idéia de acontecimento político como produto de determinadas estruturas. 21 História e Historiografia da Educação no Brasil Como qualquer outra abordagem, qual é a problemática central da história política? Segundo Julliard (1976), é o poder, não no sentido reducionista de sua relação com o Estado. Tomando como referência os estudos da antropologia política, este autor afirma não ser mais possí vel reduzir o fenômeno político à teoria do Estado, mas buscar compre ender a natureza social do poder político e as mudanças das próprias relações de poder e nào apenas dos sistemas políticos, de forma a via bilizar a captação das mais diferenciadas contradições presentes na sociedade. Nas palavras de Balandier, "...umas das tarefas da antro pologia política é a de mostrar as formas particulares assumidas pelo poder e as desigualdades sobre as quais ele se apóia..."25 25 BALANDIER. Antropologia política. In: A nova História, 1978, p. 63. 26 REMÓND, 1996, p. 24. Outro autor que discute as inovações na abordagem política da História é René Remónd (1996). Para ele, as alterações presentes refe rem-se às próprias mudanças ocorridas no âmbito político da organi zação do Estado e da sociedade nas últimas décadas. Entre elas, cita, por exemplo, o desenvolvimento das políticas públicas e a ampliação dos domínios da ação política demandando, inclusive, aumento das atribuições do Estado. Assim afirma: À medida que os poderes públicos eram levados a legislar, regu lamentar, subvencionar, controlar a produção, a construção de moradias, a assistência social, a saúde pública, a difusão da cultu ra, esses setores passaram, uns após outros, para os domínios da história política.26 Como poderíamos sintetizar as orientações que vêm definindo o campo da nova história política? Tais indicações se fazem pelo distancia mento do método da história política tradicional, o que já apresenta pos sibilidades de desdobramento em um outro método, cujas característi cas estão, evidentemente, bastante coladas ao movimento da nova história de maneira geral e, em particular, com a nova história cultural. Podemos portanto, apresentar as seguintes formulações: 1- Adoção de pluralidades dos tempos históricos (curta, média, longa) na compreensão das dinâmicas políticas presentes na sociedade. Segundo Remónd (1996), a história política se desenvolve simulta neamente em registros desiguais, articulando o contínuo e descontí nuo, combinando o instantâneo e o lento. Há fatos que ocorrem em um ritmo rápido (golpes, eleição, medidas governamentais, etc..), 22 História Política e História da Educação outros numa duração média (por exemplo, regimes e partidos políticos) e ainda há aqueles de longa duração (cultura política). 2- Abertura para o diálogo com outras áreas de conhecimento e seus referenciais teóricos seja do ponto de vista da utilização de seus conceitos, seja para o trato das fontes documentais. Em re lação a este último, destaca-se a utilização de procedimentos estatísticos e principalmente do campo da lingüística para a aná lise do discurso (Prost, 1996). Sobre os primeiros, diferentes aproximações vêm sendo feitas com a antropologia, a psicanáli se, a sociologia, a economia política, ocorrendo, portanto, des dobramentos nos campos conceituais de referência. 3- A incorporação de novos conceitos: representações, imaginário, simbólico, micropoderes e cultura. 4- A produção de novos objetos: poderes, saberes enquanto pode res, práticas discursivas, instituições, partidos, eleições, mani festações, opinião pública, a guerra, a mídia, associações (Re mónd, 1996; Falcon, 1997). Ainda neste breve itinerário bibliográfico, destacam-se as idéias de Pierre Rosanvallon (1995). Sua discussão refere-se a uma história conceitual do político, entendendo ser esta uma estratégia para demar car as diferenças de uma história das idéias/mentalidades políticas, aproximando a história política da filosofia política. O objeto da histó ria conceitual do político é, na definição do autor, "a compreensão da formação e evolução das racionalidades políticas, ou seja, dos sistemas de representações que comandam a maneira pela qual uma época, um país ou grupo sociais conduzem sua ação, encaram seu futuro"27. 27 ROSANVALLON, 1995, p. 16. 28 ROSANVALLON, 1995, p. 12. 29 REMÓND, 1996, p. 35. Para finalizar este item, é importante reafirmar os principais as pectos inovadores da história política e que são de ordem teórico-con- ceitual. Um primeiro diz respeito ao entendimento de que o político não é uma instância ou domínio, entre outros, da realidade, mas "o lugar onde se articulam o social e sua representação, a matriz simbólica onde a experiência coletiva se enraiza e se reflete ao mesmo tempo"28. Para Remónd (1996), o "político não constitui um setor separado: é uma modalidade da prática social"29. 23 História t Historiografia da EducaçAo no Brasil Outro aspecto relaciona-se ao desenvolvimento da noção de cul tura política quando associado aos estudos de longa duração, e, em especial, às formas conceituais do político, sua representação e apro priação pelos diferentes setores da sociedade (Rosanvallon, 1995). Ou ainda nas reflexões de Burke (2002), trata-se "do conhecimento, das idéias e dos sentimentos políticos vigentes em determinado lugar e época. Engloba a socialização política, isto é, os meios pelos quais o co nhecimento, as idéias e os sentimentos são transmitidos de uma gera ção para outra"30. Ainda explorando essa noção, Pesavento (2003) en tende a cultura política como "conjunto de representações que nutrem um grupo no plano político"31. 30 BURKE, 2002, p. 111. 31 PESAVENTO, 2003, p. 76. 32 PESAVENTO, 2003, p. 75. 33 PESAVENTO, 2003, p. 75. 34 BURKE, 2002, p. 171. Finalmente, o outro aspecto diz respeito, especificamente, aos con ceitos incorporados pela história política. Pesavento (2003) refere-se ao "endosso,pelos historiadores do político, dos pressupostos epistemo- lógicos que presidem a análise da História Cultural. Imaginário, repre sentação, a produção e recepção do discurso historiográfico reformula ram a compreensão do político"32. A autora compreende a história política como uma corrente da história cultural, denominando-a como uma história cultural do político, cujo objeto central reside na investi gação sobre os mecanismos de construção de identidades providas de "poder simbólico de coesão social"33. Burke (2002), ao refletir sobre os caminhos da história cultural, interroga sobre os problemas da utiliza ção do conceito de cultura, entendida de forma muito alargada como um sistema de significados compartilhados. Dessa maneira, enfatiza o cuidado de não se tomar os conceitos como premissas e indica dois procedimentos básicos: a importância de não se perder de vista uma análise dialética das relações cultura e sociedade e, principalmente, que a "construção cultural deve ser tratada como um problema"34. História política: indicadores de conceitos e teorias de análise O que se pretende neste item é apresentar de forma breve alguns conceitos importantes na problematização do político como uma das 24 História Política e História da EducaçAo manifestações das práticas sociais, restringindo a alguns autores e con ceitos que estão mais consolidados nas discussões. Pierre Bourdieu (1989) elabora o que denomina de uma teoria do campo político, compreendido simultaneamente como campo de for ças e como campo de lutas que tem em vista transformar/conservar as relações de forças presentes na estrutura política em um dado momen to. O campo político é o lugar em que se produzem, na concorrência entre os agentes nele envolvidos, problemas, programas, conceitos e acontecimentos políticos. A relação e distância entre cidadãos comuns e os profissionais da política se estabelecem a partir dos graus de dife renciação de acesso aos instrumentos da produção política. Bourdieu (1989) destaca ainda que o tempo livre e o capital cultural são condi ções essenciais para a definição dos graus de acesso à participação po lítica; mesmo porque a legitimidade das formas políticas de gestão do consenso ou da discordância depende "do estado dos instrumentos de percepção e de expressão disponíveis e do acesso que os diferentes gru pos têm a esses instrumentos"35. Atento à potencialidade multifacetá- ria das relações de força e, portanto, de poder, Bourdieu formulou o conceito de poder simbólico, pois, se o poder está em toda parte é preciso descobri-lo "onde ele se deixa ver menos"36 37, e por ser ignorado é reco nhecido. Assim, afirma: "o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem"37. 35 BOURDIEU, 1989, p. 165. 36 BOURDIEU, 1989, p. 7 37 BOURDIEU, 1989, p. 8 Segundo Falcon (1997), a possibilidade teórica da formulação de poder de Bourdieu está exatamente em superar o entendimento das relações de poder como aquelas somente visíveis na ação do Estado. Lefort, citado por Capelato e Dutra (2000), afirma que o estatuto sim bólico do poder é conferido pela indissociabilidade entre a posição do poder e sua representação. É neste sentido que o conceito de represen tação favorece o distanciamento da racionalidade presente nas análises da ciência política de uma maneira geral. A compreensão do processo de estabelecimento das relações de força na sociedade implica no desvendamento das formas de sua re presentação e sua relação com a vida social. A especificidade do políti co está, pois, no entendimento de ser este o campo de forças e lutas, 25 História e Historiografia da Educação no Brasil que articula o social e a sua representação. Capelato e Dutra (2000), analisando as reflexões do Louis Marin, observam que as relações entre o poder e sua representação se fazem numa dupla e recíproca subordina ção "de um lado, a instituição do poder se apropria da representação do poder como sua, ou seja, o poder se dá representações, produz represen tações de linguagem e imagens"; de outro, "a representação, o dispositi vo da representação, produz seu próprio poder, produz-se como poder"38. 38 CAPELATO e DUTRA, 2000, p. 229. 39 Citado por CAPELATO e DUTRA, 2000, p. 228-9. 40 CAPELATO e DUTRA, 2000, p. 229. 41 CASTORIADIS, 1992, p. 88. 42 CASTORIADIS, 1992, p. 92. Ainda como conceito fundamental para as interrogações do polí tico, tem-se o conceito de imaginário, por ser o instrumento conceitual que exprime as representações. Como observa Marin39, os significantes (símbolos) afirmados por imagens, palavras, figuras de linguagem ou objetos e os significados (representações), figurações que dão a ver uma presença, se articulam em uma rede de significações que produz o ima ginário social. Dessa maneira, a "análise dos imaginários sociais ganha novos possíveis quando se começa a cotejá-los com os interesses sociais, com as estratégias de grupo, a autoridade do discurso, a sua eficácia em termos de uma dominação simbólica, enfim, com as relações entre poder e representação"40. Para avançar na compreensão destes conceitos, é importante des tacarmos o pensamento de Castoriadis e os pressupostos de organiza ção do conceito de imaginário social. Sua premissa é a de que o ser humano possui sua especificidade na capacidade e possibilidade de ativamente "fazer ser formas outras de existência social e individual"41. Esta especificidade é a criação e corresponde a imaginação e o imaginário ou à capacidade de criar uma nova forma, de por em imagem. Dessa maneira, o imaginário social é a "capacidade criadora do anônimo co letivo que se põe em funcionamento cada vez que os humanos se reú nem e se dão, cada vez, uma figura singular instituída para existir"42. As instituições, os costumes, a linguagem expressam o imaginário so cial constituído historicamente. Para Castoriadis, o político é uma sig nificação imaginária que faz funcionar o político como uma relação de forças e não como outra coisa. Neste sentido, o autor apresenta uma diferenciação bastante pertinente sobre o político e a política, cuja raiz está nas tensões entre o sodal-histórico instituinte e as formas histórico-sociais 26 História Política e História da Educação instituídas (Castoriadis, 1992). Para este autor, o lugar do político é o lugar da instituição do poder explícito, ou seja, da necessidade de toda sociedade instituída controlar o seu processo de auto-instituição. Por sua vez, a política é o lugar de se resolver as questões do político (embora nem sempre aconteça dessa maneira), é a "atividade que se interroga sobre as instituições e, segundo o caso, as transforma. Isso significa que ela cria também novas significações"43. No rastro dessas reflexões de Castoriadis, podemos dizer que as lutas políticas, as interrogações so bre os mecanismos de poder e a própria estrutura de poder na socie dade precisam ser pensadas no âmbito das relações entre o poder e suas representações, sendo necessário, para isto, que o historiador res gate e decodifique a linguagem das representações, compreendendo- as como uma construção histórica. Nestas discussões sobre o poder e o político, é preciso ainda trazer as contribuições de Foucault, um dos autores que mais provocaram os historiadores em suas "certezas". Foucault (1984) enfatiza as relações entre as diferentes práticas sociais e a pluralidade e onipresença dos poderes. A questão central do autor não é o poder/poderes, mas os mecanismos de poder, os seus efeitos e suas relações. Para desenvol ver sua questão, Foucault (1984) constrói uma crítica tanto ao deter minismo econômico (marxismo) como à teoria política do direito, afir mando a existência de outros dispositivos de poderes que se exercem em níveis diferentes na sociedade, em domínios e extensões variados. Patrícia O'Brien (1992), analisando a importânciadas questões de Fou cault para a história cultural, afirma que, neste autor, a cultura é in vestigada através das tecnologias de poder, das estratégias e táticas produzidas para a sua legitimação. Fica para os historiadores a tarefa de identificar não somente o poder como produtor de verdade, mas a produção da verdade como uma função do poder. Relações de poder na escola: Max Weber e Norbert Elias Nos estudos afeitos aos campos de investigação da história e da sociologia da educação e que problematizam o campo político, desta cam-se os autores Vincent, Lahire e Thin (2001). Uma das proposições des tes autores está na elaboração do conceito de forma escolar e no entendi mento de sua relação com as formas sodais e formas políticas, compreendendo 43 CASTORIADIS, 1992, p. 98. 27 História e Historiografia da Educação no Brasil que na articulação entre tais formas se engendram formas de dominação e exercício de poder. Assim afirmam: Como modo de socialização específico, isto é, como espaço onde se estabelecem formas específicas de relações sociais, ao mesmo tempo que transmite saberes e conhecimentos, a escola está fun damentalmente ligada a formas de exercício de poder.44 44 VINCENT, LAHIRE, THIN, 2001, p. 17. 45 VINCENT, LAHIRE, TI IIN, 2001, p. 10 - A forma escolar é definida como sendo uma configu ração histórica singular desenvolvida a partir dos séculos XVI e XVII, cuja particularidade reside na autonomização da relação pedagógica em comparação à outras relações sociais, no estabelecimento de um lugar específico de desenvolvimento destas relações (a escola), nos destinatários específicos (todas as crianças) e na produção de disciplinas/saberes escolares. O que se quer problematizar em relação a proposições destes au tores não é a existência ou não de tais articulações, mas a maneira como elaboram o entendimento das formas de exercício de poder. Enfim, pre tende-se interrogar as premissas dos autores e refletir sobre os seus possíveis usos e apropriações para as análises que contemplam as rela ções entre escola e poder em sua historicidade. De início, destaca-se a afirmação dos autores de que "das escolas dos Irmãos à escola mútua e à escola da República houve muitas mu danças que não chegaram a interferir naquilo que definimos como for ma escolar".45 Para estes autores, as mudanças que ocorrem nos tipos escolares que se desenvolvem desde o século XVI, não interferem na for ma escolar devido, especialmente, ao entendimento do exercício do po der como estabelecido a partir de regras impessoais ou suprapessoais. Ou melhor, o que muda essencialmente são as relações com essas regras, mas entretanto mantém-se "o poder impessoal". Há uma forte identificação dos autores não somente com o pensa mento weberiano mas também com o que move a preocupação deste, ou seja, basicamente querer entender porque as pessoas se sujeitam à dominação, fazer uma sociologia da dominação. Para Weber (1979), o poder se manifesta concretamente na forma de relações de dominação entre os que mandam e os que obedecem. A obediência significa que os membros de um grupo reconhecem a necessidade da existência da do minação e acatam a autoridade. O poder impessoal é característica de uma sociedade nacional ideal (em contraposição à dominação carismá tica e dominação tradicional) e fundamenta a dominação legal. Assim afirma em relação à legitimidade desta dominação: 28 História Política e História da Educação Ordena-se, não em nome de uma autoridade pessoal, senão em nome de uma norma impessoal, e inclusive a promulgação de uma ordem é também, por sua parte, obediência a uma norma e não livre arbítrio, graça ou privilegio. O f uncionário é o sujeito do poder de mando e nunca o exerce por direito próprio, senão que sempre o ostenta em representação de uma instituição impessoal, específica da vida coletiva, dominada normativamente mediante regras escritas, de homens determinados e indeterminados, po rém determinados por características reguladas.46 46 WEBER, 1987, p. 261. 47 VINCENT, LAHIRE, THIN, 2001, p. 14. 48 VINCENT, LAHIRE, THIN, 2001, p. 33-34. Para Vincent, Lahire e Thin (2001), o caráter do empreendimento de introduzir as crianças na escola é de ordem pública; trata-se de "obter a submissão, a obediência ou uma nova forma de sujeição"47 48. A forma escolar se caracteriza por uma relação pedagógica de submissão de mestres e alu nos a regras e poderes impessoais, que, por sua vez, estão objetivados no escrito, no livro, na linguagem de sinais, enfim, em um "outro" codificado. Entretanto, advertem que a relação com essas regras se altera com a "pedagogia das luzes", ou no que Weber denomina como "processo de racionalização ocidental", a partir das transformações nas ativida des econômicas, políticas, científicas. As relações de submissão e obe diência deveriam se fazer não mais por temor ou por imposição ex terior, mas como uma manifestação da razão, uma imposição interior. A sujeição precisa ser compreendida e aceita. A mudança em relação às regras impessoais a partir de fins do século XIX assim se define para Vincent, Lahire e Thin (2001). a disciplina não deve ser suportada, mas compreendida e aceita. Trata-se sempre de agir conforme as regras impessoais, indepen dente da vontade dos indivíduos... mas sem as impor, passando por cima do consentimento dos alunos... Se a relação com regras impessoais parece ter mudado, estas últimas continuam onipresen tes na organização das práticas escolares. 48 Para além das conseqüências de se levar ao extremo as apropria ções weberianas de entendimento das formas de dominação, o que im plicaria em também acatar que as margens de liberdade dos homens interferirem conscientemente em sua história são bastante reduzidas, é preciso problematizar a própria conseqüência da apropriação desta 29 História e Historiografia da EducaçAo no Brasil concepção para □ estudo da história da escola. Entendo que o limite da abordagem de Vincent, Lahire, Thin (2001) está na apreensão, como pre missa, do conceito de poder impessoal que se apresenta exterior às rela ções entre sujeitos, na medida em que, novamente retomando Weber, estaria coisificado e codificado em última instância no mercado e na burocratização da dominação política. A elaboração de conceitos para explicar aquilo que aparentemente escapa à apreensão concreta e imediata pelos sentidos humanos, sabe- se, vem de longuíssima data. O próprio conceito de forma, eidos, elabo rado por Platão (1979) nos séculos V-VI a.C, foi um esforço neste senti do, pretendia com este conceito dar intelegibilidade a tipos-ideais que transcendem o plano mutável dos objetos físicos, portanto indica para permanências (no sentido geométrico/pitagórico de figuras/formato). A utilização do conceito de forma está presente, inclusive, em vários autores, entretanto, a diferenciação da maneira de sua apropriação pa rece estar relacionada fundamentalmente ao entendimento das relações entre indivíduo e sociedade. Em Weber (1971)49, o entendimento é atomizado, pois as possibili dades de estudo da sociedade estão no estudo das ações individuais ou de um número maior ou menor de indivíduos. Para Weber, o ponto de partida para o estudo da sociedade não é o coletivo, mas só pode ser dado pela ação dos indivíduos, pois o agente individual é a única enti dade capaz de dar sentido às ações. Dada a impossibilidade de apreen der as diferentes ações e os diferentes sujeitos é que Weber formula o conceito de tipo ideal e para a apreensão do fenômeno coletivo, o con ceito de relações sociais, na qual as ações dos sujeitos orientam-se por uma rede de significados, reciproca mente compartilhados. Em sua acep ção, o Estado designa uma categoria de determinada interação huma na e que somente é viabilizada pelo monopólio de violência física, por conseguinte, o Estado é a única fonte de direito legítimo à violência. 49 GERTH, Hans e WRIGT MILLS, C. Ensaios de sociologia,Rio de Janeiro, Zahar, 1971. Dessa maneira, segundo Weber (1979), a atividade política é, princi palmente, atividade de exercício de dominação, e o poder é a manifesta ção das relações de dominação entre os quem mandam e os que obede cem, cujo êxito está na aceitação subjetiva de cada indivíduo e/ou grupo de indivíduos. Observa-se ser esta uma tarefa extremamente complexa, na medida em que demanda o controle social de consciências indivi duais e a produção e reprodução da violência simbólica. Este exercício é 30 História Política e História da EducaçAo possibilitado pela racionalização burocrática, através da racionalização jurídica e consequente especialização dos poderes legislativo e judiciá rio, da institucionalização da política de ordem pública, força militar, entre outros. Weber (1987), denomina a racionalização burocrática como tipo legal de dominação, enquanto condição para a manutenção do Esta do, perpassada pelo "poder impessoal”, ou seja, a vinculação impessoal dos indivíduos a um dever oficial, cuja competência está fixada nas nor mas (leis, decretos, regulamentos), racionalmente articuladas, de forma que a legitimação da dominação se concretiza na legalidade da regra estabelecida em caráter geral. Enfim, a dominação pode ser outorgada. Penso que o entendimento das relações entre forma escolar e forma política, explicado pelo conceito de poder impessoal e tomado como pre missa, limita a compreensão da história das formas escolares como uma prática política porque não permite apreender as dinâmicas diferenciadas de poder presentes entre os sujeitos e os grupos sociais. No caso específico da constituição histórica da forma escolar, na maneira como desenvolvem Vincent, Lahire e Thin (2001), escapa-nos, por exemplo, a possibilidade de compreensão das diferentes formas de poder que se instalam entre os in divíduos nelas envolvidos (crianças, professores e famílias), como mem bros de um grupo, uma sociedade. Ou ainda, ao indicarem para a codifica ção das normas sociais/escolares como algo exterior aos coletivos escolares e sociais não nos permitem problematizar as tensões presentes no estabe lecimento dos procedimentos de coesão social. Para avançarmos nestes entendimentos, apresentamos, mesmo que de forma muito breve, alguns conceitos desenvolvidos por Norbert Elias. Este autor, em suas diferentes obras, apresenta-nos instrumentos conceituais importantes para a história política e aqui mais especifica mente para a problematização de educação escolar como prática políti ca. Isso se deve, principalmente, à articulação que o autor realiza entre macro e microrrelações de poderes na sociedade, sendo sua questão principal a transformação das relações de poderes para o entendimen to do que ele denominou como processo civilizador. O desenvolvimento de suas idéias está centrado na perspectiva de compreensão das relações entre indivíduo e sociedade e difere, por exemplo, de Karl Marx e Max Weber. Embora o autor assuma integral mente a grande contribuição de Weber para a produção de suas proble ma tizações e a relevância de seus estudos para compreensão da exis tência do Estado, através da monopolização de violência física, como condição que permite a imposição de normas e leis aos cidadãos, diverge 31 História t Historiografia da EducaçAo no Brasil radicalmente em relação à proposição de Weber de um poder outorga do ou poder impessoal. Segundo Elias (1994 2001), a problemática cen tral do pensamento de Weber está na sua percepção de que os indiví duos são anteriores à sociedade (de acordo com o pensamento liberal) e se estabelecem nela de maneira autônoma e independente. Já sua crí tica ao pensamento de Marx refere-se, principalmente, ao fato deste autor ter tomado o monopólio dos meios de produção como fonte cen tral de poder, mesmo que outros poderes decorram deste monopólio. Para Elias (2001), os limites dessa teoria estão em não levar em conta todas as estruturas monopolistas da sociedade que também se apresen tam como instrumentos de poder, tais como os monopólios de violência física, da tributação e da informação, bem como pelo fato de supor que a supressão do monopólio privado dos meios de produção fosse suficien te para eliminar ou mesmo atenuar as desigualdades sociais. O entendimento de Elias sobre as relações entre indivíduo e socie dade e a produção das relações de poder pretende superar tanto a visão autonomista de Weber como a determinação econômica das relações de poder em Marx. Elias (1994) parte da premissa de que a história é sempre história de uma sociedade, mas, sem a menor dúvida, de uma sociedade de indivíduos50, ou seja, não é possível pensar o indivíduo, "eu", desti tuído de um "nós". O estudo da sociedade não é nem o estudo de um acumulado de indivíduos, nem um objeto que existe exterior aos indiví duos; por sua vez, as distintas formações sociais também não são uma criação racional deliberada por pessoas individuais. As formações so ciais se estabeleceram historicamente pela existência de redes de depen dência e interdependência humanas, individuais e/ou grupais e/ou socie tárias. Estas redes se desenvolveram a partir da interdependência de funções (por exemplo: trabalho, propriedade, instintos, afetos), que não são exteriores aos indivíduos e nem uma soma de vontades, mas uma dependência funcional. Para Elias, a condição da existência humana é uma condição relacional, o que ele conceitua como configuração. A complexidade do avanço das relações de interdependência refe re-se às diferenciações das divisões das funções entre as pessoas e gru pos, onde são produzidas pressões e tensões entre indivíduos e/ou gru pos e/ou sociedades. Os monopólios estão na origem destas relações, e, de acordo com a intensidade destas tensões, geram-se mudanças estru turais na sociedade, o que Elias denomina como força reticular que no 32 50 ELIAS. A sociedade dos indivíduos, 1994, p. 45. História Política e História da Educação curso da história "alterou a forma e qualidade do comportamento hu mano, bem como toda a regulação psíquica do comportamento, impe lindo os homens em direção à civilização"51. Dessa maneira, o estudo das relações de poder numa sociedade é problematizado a partir das relações de interdependência, uma vez que as coerções sociais são co- erções que muitos homens, conforme sua dependência recíproca, exer cem uns sobre os outros. É a partir dessa premissa básica que Elias se propõe a fazer uma teoria do processo civilizador. Ele compreende o processo civilizador de maneira diferente como Weber desenvolveu o entendimento da proble mática das relações de poder, ou seja, como racionalização da sociedade. Para Elias (1993), a civilização não é produto da razão humana, se enten dida como um projeto deliberado e articulado; mas, também, isto não pressupõem uma desordenação. Ao conceito de "poder impessoal" de Weber, na perspectiva de um poder outorgado e codificado, Elias (1993) opõe o conceito de "dinâmica social" ou "mecanismos de integração" como identificador do processo civilizador e alterações nas relações de poder. Ou seja, tal processo é entendido fundamentalmente pelo desen volvimento e consolidação dos processos de auto-regulação/autocon- trole humano em função de mudanças nas configurações sociais e rela ções de interdependência dos indivíduos e grupos sociais. A alteração das relações de poder são indissociadas das alterações nas relações de interdependência de indivíduos e/ou grupos e/ou so ciedades, sendo que o desenvolvimento dos processos de autocontrole, como habitus humano civilizado, guarda uma relação estreita com a monopolização de força física e estabilização aos órgãos centrais da sociedade - o Estado e suas instituições. Cabe perguntar, então, qual a dinâmica da configuração humana que determina o poder da autori dade central. Segundo Elias (1993), é preciso compreender as regulari- dades elementares presentes na dinâmica das configurações,ou me lhor, os dois processos constitutivos da configuração humana: o externo, caracterizado pelas lutas de poder entre facções e domínios territoriais (por exemplo: feudalismo ou guerras entre nações), e o interno, confi guração em que há uma autoridade central, por exemplo, o Estado, sendo que ambas as configurações se entrelaçam permanentemente. No caso deste último processo constitutivo da configuração hu mana, a regularidade interna, Elias (1993) observa que a força do 51 Idem. 33 História e Historiografia da Educação no Brasil governante depende, de um lado, "da preservação de um certo equilí brio de tensões entre os diferentes grupos e de um certo grau de coope ração e coesão entre os diferentes interesses da sociedade, mas tam bém, por outro lado, da persistência entre eles de tensões e conflitos nítidos e permanentes de interesses"52. Dessa maneira, "o governante central e sua máquina formam na sociedade um centro de interesses próprios... e seus interesses exigem tanto uma certa cooperação quanto uma certa tensão entre as partes da sociedade"53. A estabilidade do po der está relacionada às condições de manutenção das relações funcio nais da interdependência dos indivíduos e grupos e destes com o Esta do e as instituições. Desse modo, as normas e os processos codificados das relações sociais possuem funções integradoras, mas também divi soras e separadoras, principalmente no momento do desenvolvimento dos Estados-Nações, onde a referência é a nacionalidade. Destaca-se ainda que, no momento de consolidação das nações e a partir do de senvolvimento das diferentes configurações sociais, as práticas de po der passaram a ser adotadas em nome de uma coletividade soberana. Isso demandou a produção de novos vínculos simbólicos que traduzis sem os vínculos emocionais dos indivíduos com a coletividade, num contexto em que aprofundou-se a interdependência das classes sociais e foi necessário o apelo às lealdades nacionais. 52 ELIAS, 1993, p. 149. 53 ELIAS, 1993, p. 149. Segundo Elias (1997), as nações-estado formam a figuração de equi líbrio de poder através de um código de normas, dual e extremamente contraditório. São eles um código de normas morais, fundado na huma nidade e nos princípios igualitários, e um outro nacionalista, fundado no Estado e nos princípios da preservação da integridade dos indivíduos. Neste contexto, as pessoas passaram a ser educadas no sentido de assi milar ambos os códigos como parte do habitus de cada pessoa, onde a sua violação se apresenta como questão de consciência e/ou questão legal, interferindo nos processos de autocoersão e mecanismos de pres são social. Tais códigos podem ser ativados em diferentes situações, em diferentes épocas ou ao mesmo tempo, sendo que o tensionamento des ses códigos entre pessoas e/ou grupos e/ou nações foi produzido, a partir do século XIV, como um problema da política e das relações de poder. Portanto, é extremamente importante ater-se às características desinte- gradoras das formas de normalização social não somente devido ao seu 34 História Política e História da Educação potencial de interferência nos processos de configuração social, mas porque nestas relações de forças reticulares, estabelecem-se formas de poder, mecanismos de coerção e autocoerção. Para finalizar estas reflexões, gostaria de destacar, a partir do campo conceitual de Elias (1993), a abordagem relativa à produção dos instru mentos de interdependência (tais como o tempo e o dinheiro) e proble matizar a escola como um desses instrumentos e não meramente como espaço de produção de sujeições. Poderiamos pensar a escola como uma produção cultural que se fez pela necessidade de se estabelecerem uni dades de referência civilizatória - ler, escrever, contar... - e não somente como questão de obediência, mas como algo compartilhado, não sem tensões, entre os diferentes sujeitos envolvidos no processo de escolari zação. Nesse sentido, vale interrogar-nos sobre as múltiplas tensões e conflitos presentes na produção de novas configurações sociais que demandaram a escola como fator de coesão social/nacional. No caso do Brasil, tais tensionamentos estiveram presentes tanto no processo de constituição do Estado e das elites políticas e intelectu ais, nacionais e locais, bem como na relação entre estas e a população. Mas também, evidentemente, é possível capturá-los no interior da es cola, através das múltiplas práticas que buscaram representá-la como espaço legítimo de educação. A educação escolar como prática política No Brasil do século XIX, desenvolveram-se os debates e as ações relativas à monopolização da instrução elementar pelo Estado e a ex tensão da escola a todos os cidadãos livres das províncias. Mesmo que na província do Rio de Janeiro houvesse a proibição legal da freqüência na escola dos pretos africanos e, no Rio Grande do Sul, dos pretos, a intenção de disponibilizar a instrução pública para meninas, pobres e os negros nas outras províncias apresentou-se como uma estratégia po lítica de produção do ideário de coesão social/nacional. Destaca-se que o empreendimento de organização e extensão dos saberes elementares às populações esteve em sintonia com as ações ocor ridas em diferentes países das sociedades ocidentais e possuiu especifi cidade ímpar nos acontecimentos históricos deste tempo. Diferentemen te de quaisquer outras discussões relativas aos limites de interferência do Estado na gestão da sociedade, a questão de necessidade de sua ação para o gerenciamento da difusão da escolarização elementar unificou, 35 História t Historiografia da EducaçAo no Brasil em maior ou menor proporção, intelectuais e elites econômicas das mais diferenciadas matizes políticas. Também diferentemente de outras ações políticas ao longo do século XIX, a extensão da escolarização se caracte rizou como uma ação de inclusão social ampla para as diferentes classes sociais, gêneros e etnias na intenção de produzir o cidadão. É evidente que este processo não se fez sem tensões e conflitos, as sociados ainda aos problemas próprios das diferentes culturas, impli cando em diferenciações nos debates relativos aos processos de como estabelecer a difusão da instrução. Queremos afirmar, com isso, que se predominou a hegemonia de idéia de que todos deveriam ter acesso à escola; houve diferenças nas formas de controle da produção da hege monia cultural, seja pela estrutura curricular das escolas, pela definição dos conteúdos dos livros e as formas de sua circulação, pelos debates rela tivos à co-educação e diferenciação étnico-radal das escolas, à definição de métodos, formação de professores, entre muitas outras temáticas. Nas ob servações de Pierre Villar (1990), entre os vários acontecimentos que possi bilitaram o desenvolvimento do complexo processo de produção da cons ciência de pertencimento a uma nação, estiveram presentes aqueles em que o cidadão tomou-se um soldado e a escola um templo da pátria54. A questão que se apresenta aqui para análise não é o entendimento da história da escola como um capítulo da história dos regimes políticos brasileiros. Pretende-se discutir a possibilidade de analisá-la sob o en foque macropolítico, na perspectiva de monopolização dos saberes e na perspectiva micro, de discutir as formas discursivas e simbólicas pelas quais os diferentes sujeitos representaram o lugar da escolarização e tam bém as formas como o poder se manifestou nas práticas políticas de or denamento da vida escolar. Tratar a escola como um capítulo da história dos regimes políticos foi o que dominou a historiografia da educação por um bom tempo, numa perspectiva de entendimento da educação como reflexo ou con- seqüência da ação deste ou daquele governante, ou regime político, excluindo-se as possibilidades de entendimento da educação como prá tica social e cultural que se articula a outras diferentes práticas. Ou ainda, nas tradições das periodizações políticas,esteve presente a pro dução de periodização de história da educação em que se postula uma derivação dos acontecimentos políticos de determinado regime, toman do a situação política como um dado a priori. 54 VILLAR, 1990, p. 500. 36 História Política e História da EducaçAo Embora a monopolização da instrução elementar para a maioria dos países tenha se concretizado ao longo do século XIX e, no Brasil, estivesse indissociada do regime político imperial, é preciso tomar este problema cuidando-se de duas premissas básicas. Em primeiro lugar, que o discurseo do caráter público da educação escolar não foi uma in venção do Império, e, em segundo, a organização escolar não é conse- qüência de uma forma política instituída, mas é produtora/componente desta forma que se instituiu. Em relação à primeira questão, sabemos que as discussões sobre a implementação de uma educação "pública" no Brasil se fizeram desde o século XVIII55, como também em outros países europeus. Em relação ao Brasil, o marco tem sido as reformas pombalinas empreendidas a partir de 1759, mas podemos encontrar registros dessa discussão até anteriores a esse período, como se pode ver na Carta Régia de 1721 para o governador D. Lourenço de Almeida, em que D. João V orienta para serem "obrigados em cada vila a ter um mestre que ensine a ler e escrever, contar, que ensine latim, e os pais mandem seus filhos a estas escolas..."56. É muito importante destacar que a produção de um ideário relativo a uma educação nacional não esteve descolada das discussões políticas do século XVIII, no momento em que parte da aristocracia e da burguesia da corte na França questionavam as práticas de civilidades como farsa e postulavam a necessidade de tomar toda uma sociedade civilizada57; ou ainda, no contexto do movimento fisiocrata, onde seus representantes advogaram pela necessidade do desenvolvimento da ins trução do povo, bem como dos acontecimentos dos movimentos popu lares na França e na Inglaterra (Rudé, 1991) e da difusão das ciências. 55 FACHADA, 1998. 56 Carta régia de 22/03/1721, citado por CARVALHO (1933). 57 VEIGA, 2002, p. 96. 58 FERNANDES, 1994, p. 71. Também na sociedade portuguesa estiveram em curso as dúvidas com relação ao "prolongamento da ignorância", o que pode ser obser vado através da criação da Real Mesa Censória, em 1768. Segundo Fer nandes (1994), a ampliação das atribuições deste órgão paras assuntos da educação e, portanto, para além da censura prévia de produtos cul turais, esteve relacionada à "necessidade imperativa de reforçar a in tervenção estatal no controlo de todo o sistema educativo existente e também das extensões que este viesse a receber"58. 37 HISTÓria e Historiografia da EducaçAo no Brasil Para o estudo do desenvolvimento da escolarização no Brasil, ob serva-se que as normas políticas de sua regulamentação também não foram uma fundação do Império. Se tomarmos as legislações portugue sas aplicadas à colônia desde o século XVIII, observamos que é neste contexto que desenvolveu-se uma cultura política de vigilância em rela ção aos modos de se estabelecer a escola. Das instruções do Alvará de 1759 aos decretos que regulavam a educação no Brasil, antes da Consti tuição de 182459, estiveram presentes os indicadores de uma rotina admi nistrativa que irá perdurar em uma longa duração histórica e que dizem respeito aos métodos de ensino, à distribuição dos saberes, ao controle sobre os mestres, à normatização dos salários, à utilização de materiais escolares e à disciplina dos alunos. Apesar da longa duração histórica da forma escolar, é preciso problematizar as relações de poderes que se esta beleceram para sua legitimação, levando-se em consideração as tensões e conflitos desencadeados entre alunos, professores e famílias e o poder instituído pelo Estado. Lembrando a advertência de Burke (2002), é pre ciso investigar as mudanças nas permanências como estratégia de dar inteligibilidade às singularidades dos acontecimentos na história. 59 FACHADA, 1998 (anexos). 60 O texto refere-se a uma conferência apresentada no curso do Collège de France em 1 /02/1978. Por outro lado, há que se destacar que a discussão relativa à extensão da escolarização, na maneira como se processou na Europa, não pode ser dissociada da organização do Estado. Através da monopolização da tribu tação como uma de suas funções, produziram-se as condições econômicas de desenvolvimento da instrução, como é o caso do estabelecimento do subsídio literário de 1773. Já que a monopolização da violência física criou as condições para o desenvolvimento da "economia das pulsões" e um lento e gradual caminho para a conscientização do autocontrole como for ma de se estabelecer na sociedade, com desdobramentos para o entendi mento da escolarização como portadora de uma função civilizadora. Neste aspecto, é preciso problematizar, no caso da organização do Estado brasileiro, como desenvolveram-se as práticas políticas de ins titucionalização dos saberes elementares, no sentido de observar em que medida rompem ou continuam as práticas anteriores; ou ainda, de que maneira é possível compreender a organização escolar no período como componente da organização do Estado e das novas configura ções das relações de poder. Um conceito fundamental desenvolvido por Foucault (1984)60, pode nos indicar pistas para a análise do problema, que é o conceito 38 História Política e História da Educação de govemamentalidade. Sua questão para o desenvolvimento deste con ceito refere-se à relação histórica entre o problema de governar, o apare cimento da população como um campo de intervenção e o aparecimento da economia política como técnica de intervenção do governo. Ou seja, Foucault (1984) se refere ao contexto em que um Estado de governo é definido não somente pela sua territorialidade, mas pela sua população, ou melhor, no momento em que a população se apresenta como proble ma de governo. Podemos problematizar o desenvolvimento de mono- polização dos saberes elementares como uma entre tantas outras estraté gias e táticas de govemamentalidade, das formas de gerir as populações. A garantia da instrução primária gratuita a todos os cidadãos, a partir da constituição de 1824, indica para desdobramentos nas formas de governar as populações, num contexto em que disseminaram-se as idéias do autogoverno como fundamentos para formação da nação. Esta questão no Brasil é perpassada, entre outros, pelos problemas relativos à produção de uma identidade nacional e pelos mecanismos e estraté gias de legitimação de um governo constitucional, no qual a organiza ção escolar, a produção de um corpo de funcionários públicos (profes sores, inspetores, diretores de instrução) e as táticas de convencimento da população quanto à eficácia da escolarização se produzem como parte das tensões políticas expressas nas novas configurações das rela ções de poder. Dessa maneira, pode-se interrogar as tensões presen tes entre o processo de construção das representações de uma identi dade nacional e a institucionalização da escola como unidade de referência civilizatória. A idéia de ser cidadão de direitos e deveres e de formar uma nação livre e independente foi algo que, no discurso da modernidade, deveria ser inerente à condição de identidade de qualquer sujeito indi vidual, algo como uma segunda natureza. Entretanto, como observa Stuart Hall (1977), "as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da repre sentação".61 Enfim, somente é possível saber o que significa ser brasilei ro devido à forma como a brasilidade veio a ser representada "como um conjunto de significados" pela cultura nacional brasileira. Segue-se que a nação não é apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos - um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos legais de uma nação; elas 61 HALL, 1997, p. 53 39 História e
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