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XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS Praz er e Moral no Mundo A nt igo 0 6 a 0 8 d e o u t u b r o d e 2 0 0 8 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Reitor: Roberto de Souza Salles INSTITUTO DE LETRAS Diretora: Livia Maria de Freitas Reis DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS Chefe: Ida Maria Santos Ferreira Alves COMISSÃO ORGANIZADORA Ana Lúcia Silveira Cerqueira Edna Ribeiro de Paiva Eduardo Tuffani Monteiro Jandyra Gonçalves Figueiredo Katia Teonia Costa de Azevedo Maria Bernadete Carvalho da Rocha REALIZAÇÃO Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas – UFF APOIO CEIA – UFF Instituto de Letras da UFF PROPP Revista Eletrônica Antiguidade Clássica Secretaria Municipal de Educação de Niterói SUMÁRIO →Apresentação................................................................................................................5 →Programação................................................................................................................6 →Conferências -Uma comparação de concepções egípcias e gregas: a questão da ética eudemônica - Ciro Flamarion Cardoso..................................................................................................13 -Labor improbus et Orpheus nas Geórgicas de Vergílio - Elaine Cristina Prado dos Santos..............................................................................................................................22 →Mesas Redondas -A atuação de Afrodite no ‘paidikòs éro–s’ – Glória Braga Onelley............................38 -O deleite musical em Pítica 1 – Shirley Fátima Gomes de Almeida Peçanha...............44 →Comunicações -A arte como instrumento moralizante da Hélade – Adriana Clementino de Medeiros..51 -Ressonâncias do trágico na elocução de Enéias - Alice da Silva Cunha....................59 -A sátira como educação em Roma - Amós Coêlho da Silva..........................................65 -A tríade em Mimnermo: amor – juventude – velhice – Bárbara Shênia Cartes Lopes Borges Jorge....................................................................................................................71 -A personagem secundária em Eurípides: um estudo sobre Taltíbio, em As Troianas. – Carlos Junior Gontijo Rosa e Marília Vieira Soares.......................................................75 -A questão da morte no poema Latino De Rerum Natura – Carolina Barroso do Couto...............................................................................................................................84 -Medéia – uma deusa humanizada – Daniele Rodrigues Ramos Kazan.........................89 -Os phármaka gregos: instrumentos de propagação do prazer – Dulcileide Virgínio do Nascimento....................................................................................................................100 --As Lamentações de Ariadne nas Núpcias de Peleu e Tétis – Edna Ribeiro de Paiva.110 -Desejo e tabu no romance grego Dáfnis e Cloé – Elisa Costa Brandão de Carvalho..118 -O palavrão em dicionários latinos escolares – Fábio Frohwein de Salles...................126 -Eufemismos bíblicos relativos ao sexo e à moral – Francisco de Assis Florêncio.....132 -Considerações sobre o vocabulário acerca da mão-de-obra em Varrão – José Ernesto Moura Knust..................................................................................................................138 -O uso do phármaka na Grécia Antiga: o limite moral entre a magia e a medicina - Josilene Campanati de Oliveira.....................................................................................146 -Um vitupério a Cupido: a retórica do romance 11 de Padre Antônio da Fonseca (ms. 2998 BGUC) – Luís Fernando Campos D’Arcadia......................................................154 -Copa (A taberneira), um convite ao prazer – Marco Antonio Abrantes de Barros Godoi.............................................................................................................................162 -Os recursos não verbais na cena de reconhecimento de Helena e Menelau na peça Helena de Eurípides – Pedro da Silva Barbosa.............................................................171 -A Visão como fonte de prazer em "Ceruus ad Fontem": Uma Análise Semiótica e estudo da progressão referencial na fábula de Fedro – Rachel Maria Campos Menezes de Moraes e Vanda Maria Cardozo de Menezes (UFF)...............................................176 -O delinear da loucura na tragédia Os Persas de Ésquilo – Ricardo de Souza Nogueira .......................................................................................................................................183 -O fogo: a intervenção moralizante do Olimpo nos contos de fada - Sonia Maria Branco de Freitas Maia..............................................................................................................196 -Moral socrática e prazer nos discursos de Diotima de Mantinéia e Alcibíades, n’O Banquete de Platão Tatiana Maria Gandelman de Freitas.............................................203 -Electra, Elektra - a permanência de um mito – Thomaz Pereira de Amorim Neto......210 -O prólogo senequiano e a antecipação da catástrofe – Vanda Santos .........................221 -A elegia 1.3 de tibulo: um mosaico de epigramas – Ana Lúcia Silveira Cerqueira .......................................................................................................................................227 →Caderno de Resumos...............................................................................................232 ANAIS Apresentação É com grande satisfação que apresentamos os Anais do XX Seminário de Estudos Clássicos, evento realizado nos dias 06, 07 e 08 de outubro de 2008, sediado no Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense. O Seminário de Estudos Clássicos é um evento anual, que objetiva promover a interdisciplinidade e a divulgação de pesquisas nas áreas da Antiguidade Greco-romana e oriental sempre com a colaboração de estudiosos e pesquisadores de diversas áreas voltadas para o Mundo Antigo. Ao longo dos três dias, com o tema – A sociedade na Antiguidade: Religião, desejo e poder, o seminário fomentou o debate, sob diferentes aspectos, tais como lingüístico, literário, mítico, histórico, geográfico, etc, questões como religião, moral, família, escravidão, classes sociais. Além das conferências, mesas- redondas, debates de pesquisas e comunicações, foram oferecidos aos participantes dois mini-cursos com ênfase na temática do evento. Seguem, portanto, algumas das comunicações e conferências apresentadas no Seminário. Ana Lúcia Silveira Cerqueira Katia Teonia Costa de Azevedo PROGRAMAÇÃO Segunda-feira, 06 de outubro de 2008 14h00 ABERTURA OFICIAL Local: Auditório Macunaíma, UFF, Campus Gragoatá, Bloco B, sala 405 Apresentação do coral Audite Noua Adelheid Mason (Profª Regente - UFF) 16h00 Conferência I (sala 405B) Labor improbus et Orpheus nas Geórgicas de Vergílio Elaine Cristina Prado dos Santos (Profª Drª – Universidade Presbiteriana Mackenzie) 18h00 Minicurso I (sala 405B) Erotismo ou Religião ? Numismática, Iconografia e o Império Romano Claudio Umpierre Carlan (Prof. Dr. - UNIRIO) Minicurso II (sala 218C) Entre desejo e moral... múltiplas práticas do prazer e suas traduções em versos da Grécia Antiga Fernanda Lemos de Lima (Profª Drª - UERJ/FGV) Terça-feira, 07 de outubro de 2008 8h00 Minicurso III (sala 207C) O sistema flexional do verbo latino Edna Ribeiro Paiva (Profª Drª - UFF) Minicurso IV (sala 218C) Amor e festas no Egito Antigo Júlio Gralha (Prof. Doutorando - UERJ) 6 U F F X X S E M I N Á R I O D E E S T U D O S C L Á S S I C O S 10h00 Sessões decomunicação I Sala 205B Coordenação: Ana Lúcia Silveira Cerqueira (Profª Drª- UFF) Ressonâncias do trágico na elocução de Enéias Alice da Siva Cunha (Profª Drª - UFRJ) Aquemênides e Polifemo no contexto literário idealizado por Vergílio na Eneida Carlos Eduardo Costa Scherer (Prof. Ms. – UFRJ) O prólogo senequiano e a antecipação da catástrofe Vanda Santos Falseth (Profª Drª - UFRJ) Sala 207B Sessão coordenada: Leituras da tragédia grega Coordenação: Thomaz Pereira de Amorim Neto (UERJ/FAPERJ) Electra, Elektra – a permanência de um mito Thomaz Pereira de Amorim Neto (UERJ/FAPERJ) Medéia – uma deusa humanizada Daniele Rodrigues Ramos Kazan (Mestranda – UFF) Entre a fala e o silêncio: uma leitura dos discursos em Hipólito de Eurípides Pedro Ivo Zaccur Leal (Mestrando – UFF) Sala 214B Sessão coordenada: Moral e prazer da Grécia Antiga aos contos de fadas Coordenação: Dulcileide Virginio do Nascimento (Profª Drª - UERJ) A arte como instrumento moralizante da Hélade Adriana Clementino de Medeiros (Profª – UCAM) Os phármaka gregos: instrumentos de propagação do prazer Dulcileide Virginio do Nascimento (Profª Drª – UERJ/FGV) O Fogo: a intervenção moralizante do Olimpo nos contos de fada Sonia Maria Branco de Freitas Maia (Profª – UCAM) Sala 216B Coordenação: Lívia Lindóia Paes Barreto (Profª Drª- UFF) O modelo da dor laocoontiana na Cleópatra de Guido Reni Evelyne Azevedo (Profª Mestranda – UERJ) A religio, a fides e o ius no Amphitruo de Plauto Nathália Esteves da Silva (Profª - UFF) A concepção do prazer e da moral em Satyricon Nilciléia da Silva Rosário (Graduanda – UFF) w w w. s em i n a r i o e s t ud os c l a s s i c o s . o rg 7 U F F X X S E M I N Á R I O D E E S T U D O S C L Á S S I C O S Sala 401B Sessão coordenada: Desejar é poder? Coordenação: Amós Coêlho da Silva (Prof. Dr. - UERJ) A sátira como educação em Roma Amós Coêlho da Silva (Prof. Dr. - UERJ) Desejo e tabu no romance grego Dáfnis e Cloé Elisa Costa Brandão de Carvalho (Profª Doutoranda - UERJ) Eufemismos bíblicos relativos ao sexo e à moral Francisco de Assis Florencio (Prof. Dr.- UERJ) Copa (A Taberneira), um convite ao prazer Marco Antonio Abrantes de Barros (Mestrando - UERJ) Sala 403B Coordenação: Thaíse Pereira Bastos de Almeida Silva (Profª - UFF) O palavrão em dicionários Latino-Portugueses escolares Fábio Frohwein de Salles Moniz (Doutorando – UFRJ) Prisciano de Cesaréia e Apolônio Díscolo: mos maiorum e tradição gramatical antiga Fábio da Silva Fortes (Doutorando – UNICAMP) Considerações sobre o vocabulário acerca da mão-de-obra na De Re Rustica de Varrão José Ernesto Moura Knust (Graduando – UFF) Sala 407C Coordenação: Pedro da Silva Barbosa (Prof. Mestrando - UFRJ) Um vitupério a Cupido: a retórica do romance 11 de Padre Antonio da Fonseca (ms. 2998 BGUC) Luís Fernando Campos D'Arcadia (Graduando - UNESP) A visão como fonte de prazer em Ceruus ad fontem: uma análise semiótica e estudo da progressão referencial na fábula de Fedro Rachel Maria Campos Menezes de Moraes (Graduanda - UFF) Os recursos não verbais na cena de reconhecimento de Helena e Menelau na peça Helena de Eurípides Pedro da Silva Barbosa (Prof. Mestrando - UFRJ) Sala 411C Coordenação: Maria Bernadete de Carvalho (Profª Drª - UFF) O uso de phármaka na Grécia Antiga: o limite moral entre magia e medicina Josilene Campanati de Oliveira (Graduanda – UERJ) Naturalismo ou Covencionalimo - a escolha socrática Luciano Ferreira de Souza (Mestrando – USP) Moral socrática e prazer nos discursos de Diotima de Mantinéia e Alcibíades, no Banquete de Platão Tatiana Maria Gandelman de Freitas (Mestranda UFRJ) w w w. s em i n a r i o e s t ud os c l a s s i c o s . o rg 8 U F F X X S E M I N Á R I O D E E S T U D O S C L Á S S I C O S 11h30 Mesa redonda I (sala 218C) Moral e Prazer na Literatura Grega Coordenação: Silvia Damasceno (Profª Drª - UFF/CEIA) A atuação de Afrodite no paidikòs érōs Glória Braga Onelley (Profª Drª - UFF/CEIA) O deleite musical em Pítica 1 Shirley Fátima G. de A.Peçanha (Profª Drª - UFRJ) Intervenção: A aventura cômica entre a moral e o prazer Silvia Damasceno (Profª Drª - UFF/CEIA) O prazer: uma das manifestações de Eros Tânia Martins Santos (Profª Drª - UFRJ) 14h00 Pesquisas em Debate I (sala 218C) Corpo e sexualidade no sympósion e no kômos Alexandre Carneiro Cerqueira Lima (Prof. Dr. – UFF/CEIA) Corpo e sexualidade no ginásio grego Fábio de Souza Lessa (Prof. Dr. – UFRJ/LHIA) Sexualidade e erotismo entre quatro paredes: análise da decoração musiva de um T cubiculum T da T Domus Sollertiana T Regina Maria da Cunha Bustamante (Profª Drª - UFRJ/LHIA) 16h00 Conferência II (sala 218C) Uma comparação de concepções egípcias e gregas: a questão da ética eudemônica Ciro Flamarion Santana Cardoso (Prof. Titular - UFF/CEIA) 18h00 Minicurso I (sala 405B) Erotismo ou Religião ? Numismática, Iconografia e o Império Romano Claudio Umpierre Carlan (Prof. Dr. – UNIRIO/CEIA) Minicurso II (sala 218C) Entre desejo e moral... múltiplas práticas do prazer e suas traduções em versos da Grécia Antiga Fernanda Lemos de Lima (Profª Drª - UERJ/FGV) w w w. s em i n a r i o e s t ud os c l a s s i c o s . o rg 9 U F F X X S E M I N Á R I O D E E S T U D O S C L Á S S I C O S Quarta-feira, 08 de outubro de 2008 8h00 Minicurso III (sala 207C) O sistema flexional do verbo latino Edna Ribeiro Paiva (Profª Drª - UFF) Minicurso IV (sala 218C) Amor e festas no Egito Antigo Júlio Gralha (Prof. Dr. – UERJ/NEA) 10h00 Sessões de comunicação II Sala 203C Coordenação: Glória Braga Onelley (Profª Drª - UFF) A areté do herói Odisseu Alexandre dos Santos Rosa (Prof. Mestrando - UFRJ) A tríade em Mimnermo: amor, juventude e velhice Bárbara Shênia Cartes Lopes Borges Jorge (Graduanda - UFF) Lascívia e impiedade no oikos de Odisseu: a infidelidade das servas e a punição de Telêmaco (XXII, 465-73) Marcelo Sussumu Takahashi (Mestrando - USP) Sala 205C Coordenação: Luis Eduardo Lobianco (Prof. Dr. CEIA/UFF) O erotismo e a sexualidade dos egípcios no outro mundo Moacir Elias Santos (Doutorando - UFF) Prazer e sexualidade no Papiro Médico de Kahun Liliane Cristina Coelho (Mestranda - UFF) Safo de Lesbos no teatro antigo José Roberto de Paiva Gomes (Prof.Ms - NEA/UERJ) Sala 207C Coordenação: Nathália Esteves da Silva (Profª - UFF) As representações dos heróis na tragédia Ájax de Sófocles Carmen Lucia Martins Sabino (Mestranda - UFRJ) A personagem secundária em Eurípides: um estudo sobre Taltíbio, em As Troianas Carlos Junior Gontijo Rosa (Graduando - UNICAMP) w w w. s em i n a r i o e s t ud os c l a s s i c o s . o rg 10 U F F X X S E M I N Á R I O D E E S T U D O S C L Á S S I C O S O delinear da loucura na tragédia Os Persas de Ésquilo Ricardo de Souza Nogueira (Prof. Doutorando - UFRJ) Sala 210C Sessão coordenada: Reminiscências, no século I d.C., da poesia pastoril de Vergílio, nas Bucólicas de Calpurnius Siculus Coordenação: Lívia Lindóia Paes Barreto (Profª Drª - UFF) Calpurnius Siculus : um novo poeta bucólico Leonardo Ferreira (Graduando - UFF) Amor e/ou prazer? Uma análise do canto III das Geórgicas de Vergílio Thaíse Pereira Bastos de Almeida Silva (Profª - UFF) A Bucolica X de Vergílio e a interação homem/natureza/prazer Thiago da Silva Pinheiro (Graduando - UFF) Sala 212C Sessão coordenada: Algumas doutrinas de Epicuro a Lucrécio Coordenação: Ana Lúcia Silveira Cerqueira (Profª Drª - UFF) A fonte lucreciana: a teoria atomista de Epicuro Nilciléia da Silva Rosário (Graduanda - UFF) A religião em Lucrécio Raphael de Siqueira David (Graduando - UFRJ) A questão da morte no poema latino De Rerum Natura Carolina Barroso Coutos (Graduanda - UFF) Sala 411C Sessão coordenada: As múltiplas facetas da poesia de Catulo Coordenação:Edna Paiva Ribeiro (Profª Drª- UFF) O Ciclo de Juvêncio Bruna Prudêncio da Silva (Especialização – UFF) As lamentações de Ariadne nas Núpcias de Peleu e Tétis Edna Ribeiro de Paiva (Profª Drª - UFF) A poesia erótica de Catulo Maria Lúcia Malheiros Cardoso (Mestranda - UFRJ) A expressão do amor nas poesias do Ciclo de Lésbia Maria Nazaré Achão Assunção (Especialização - UFF) A poesia satírica de Catulo Vera Lúcia Caetano da Silva (Graduanda - UFF) w w w. s em i n a r i o e s t ud os c l a s s i c o s . o rg 11 U F F X X S E M I N Á R I O D E E S T U D O S C L Á S S I C O S 11h30 Mesa redonda II (sala 218C) Poesia lírica e satírica em Roma Coordenação: Ana Lúcia Silveira Cerqueira (Profª Drª - UFF) As elegias ovidianas e sua recusa ao moralismo e à tradição romanos Ana Thereza Basílio Vieira (Profª Drª - UFRJ) A elegia: um mosaico de epigramas Ana Lúcia Silveira Cerqueira (Profª Drª - UFF) Sátiras de Horácio: Riso , Denúncia, Moral Arlete José Mota (Profª Drª - UFRJ) 14h00 Pesquisas em Debate II (sala 218C) O significado da pesquisa na área de estudos de língua e literatura latina Lívia Lindóia Paes Barreto (Profª Drª - UFF) A propaganda imperial romana à luz da iconografia numismática politeísta de Alexandria no século dos Antoninos Luis Eduardo Lobianco (Prof. Dr. - UFF/CEIA) Entre a história e a literatura: uma nova proposta para o lugar das Metamorphoses de Ovídio no Século de Augusto Rolph de Viveiros Cabeceiras (Prof. Ms.UFF/CEIA) 16h00 Conferência III (sala 218C) Ócio e fruição do prazer – a herança antiga e as interdições cristãs Vânia Leite Fróes (Profª Titular - UFF) 18h00 Encerramento (sala 218C) Lançamento CADERNOS DO CEIA - N°2-2008 Leituras Contemporâneas do Teatro Antigo w w w. s em i n a r i o e s t ud os c l a s s i c o s . o rg 12 CONFERÊNCIAS Uma comparação de concepções egípcias e gregas: a questão da ética eudemônica Ciro Flamarion Cardoso (CEIA/UFF) Introdução: pode uma ética eudemônica estender-se, para além da Antiguidade clássica, também ao mundo dos antigos egípcios? A noção de eudemonia – uma ética eudemônica podendo definir-se como a busca do que seria uma “boa vida”, ou uma “vida adequada” para os seres humanos – costuma ser discutida como algo característico do mundo grego da pólis clássica e da Época Helenística, bem como no relativo à Antiguidade romana. Já no que diz respeito ao Egito faraônico, onde se supõe ter existido, nos textos sapienciais em que é possível estudá-la, uma ética prescritiva de base religiosa, é costume supor algo bem diferente. Entretanto, mediante um exame cuidadoso dos conteúdos e das condições de emissão dos textos conhecidos como ensinamentos e discursos (ou literatura pessimista), gêneros de escritos sapienciais existentes segundo os próprios egípcios desde o Reino Antigo, em pleno terceiro milênio a.C., e atestados com segurança desde o milênio seguinte, verificaremos que uma ética eudemônica foi a que se expôs nesses escritos, dirigida em primeiro lugar à elite que governava o país, mais tarde a setores mais vastos da população. Obviamente, além de algumas semelhanças que, justamente, permitem falar-se de eudemonia, havia diferenças entre os casos egípcio e grego: tentaremos estabelecer, nesta palestra, em que as características básicas de ambas as sociedades se aproximavam ou se afastavam, no tocante ao tema de que tratamos. As concepções sobre a eudemonia na Grécia clássica O primeiro ponto a ser esclarecido é o da relação entre o Estado e os cidadãos – ou seja, a minoria da população que, uma vez excluídos os jovens, as mulheres, os escravos, os estrangeiros residentes e em certos casos, por exemplo com base em critérios de propriedade ou renda, também os que poderíamos denominar “cidadãos não ativos”, detinha a totalidade dos direitos políticos. Para os gregos da Época Clássica, ser cidadão numa pólis não implicava só, nem principalmente, pagar impostos e poder votar e ser votado: significava também, e sobretudo, um envolvimento direto e ativo nos assuntos e funções tanto da vida civil quanto da militar. Um cidadão era normalmente um soldado, podia vir a ser um juiz e devia ser 14 membro regular de um corpo coletivo de governo, assembléia ou conselho. Tais obrigações cívicas eram cumpridas em pessoa, não mediante a eleição de representantes (embora houvesse certo número de magistraturas eletivas). O cidadão, mesmo se vivesse no campo, devia ser capaz de dirigir-se com freqüência ao núcleo urbano de sua pólis para, ali, pessoalmente falar, votar e eventualmente julgar. Dentro de uma tal concepção, um cidadão cuja preocupação principal residisse em suas atividades profissionais pareceria inadequado, por mais que lutasse quando chamado à guerra e cumprisse suas diversas obrigações quando solicitado. Em graus diversos segundo os tipos de cidades-Estado – bastando estabelecer o contraste entre Esparta e Atenas para que isso fique claro –, tal concepção de cidadania exigia uma subordinação dos indivíduos e famílias à comunidade (koinonía), definindo a relação entre o público e o privado de forma muito diferente da que ocorre hoje em dia. Seria inadequado, no entanto, falar de um “sacrifício” do indivíduo ou da família à coletividade, já que um cidadão grego não veria a situação em termos de uma oposição. Nas concepções éticas vigentes, o homem bom e o bom cidadão eram noções equivalentes; por conseguinte, “viver uma boa vida” e “ser um bom cidadão” eram coisas idênticas. Para Aristóteles, o Estado é uma associação de pessoas similares, estabelecida para que possam atingir a melhor das vidas possíveis: uma definição que torna claro o que dissemos. O Estado é o fim mesmo da vida humana, ou, pelo menos, uma parte predominante de tal finalidade. O indivíduo só pode realizar-se como parte integrante da comunidade. É partindo desses pressupostos que se torna possível examinar a ética grega clássica, que se caracterizava por um marcante fundo estético. Tanto o corpo quanto o espírito deveriam ser excelentes, esteticamente agradáveis. Do ponto de vista religioso, não existia a noção de pecado; e também inexistia a idéia de obrigação: a virtude moral era concebida, não como uma obediência a alguma lei externa, um sacrifício do homem natural a um poder externo a si mesmo em nome do bem comum, mas sim, como conduzir às devidas proporções, marcadas pela temperança, os elementos que compõem a natureza humana. O homem bom é o possuidor de um belo espírito. Segundo Platão (República, 444), “a virtude é uma espécie de saúde, beleza e bom hábito do espírito; e o vício vem a ser a doença, a deformidade e a má disposição de tal espírito”. É tão natural buscar a virtude e evitar o vício quanto evitar a doença e buscar a saúde. Não se trata de uma luta entre princípios opostos: trata-se de diferenciar a ordem da confusão, no relativo a elementos que, em si mesmos, não são intrinsecamente bons nem ruins. 15 Uma tal concepção de virtude tem como pressuposto a noção de “ponto mediano”, aquele ponto exato – variável de um indivíduo a outro – de equilíbrio entre extremos a serem evitados. “Nada em excesso” era uma das inscrições que se achavam na fachada do templo de Apolo em Delfos. Aristóteles construiu, a partir desta idéia de ponto mediano, uma filosofia completa da ética. Em sua concepção, a virtude é o ponto mediano; o vício, o excesso situado em qualquer dos dois extremos. A coragem, por exemplo, uma virtude, é o ponto mediano entre a temeridade e a covardia; outra virtude, a temperança, é o ponto mediano entre o descontrole e a insensibilidade; a generosidade, uma terceira virtude, é o ponto mediano entre a extravagância e o egoísmo. Não são as paixões ou os desejos que, em si mesmos, devem ser vistos como maus: somente o são a sua desproporção, ou a indulgência descuidadapara com eles. Tomemos como exemplo o assunto dos prazeres dos sentidos. Para Aristóteles, não se trata de renunciar a eles de uma forma absoluta, independentemente das considerações do tempo e do lugar. O que é desejável não é a renúncia mas, sim, a temperança: [o homem que age com temperança] assume uma posição mediana com respeito aos prazeres. Ele não se compraz naquelas coisas em que o homem licencioso busca o maior prazer, ele tende a não gostar delas; nem se compraz em todas as coisas errôneas, nem procura o prazer excessivo em qualquer coisa que seja agradável, nem sofre por sua ausência, nem o deseja, a não ser moderadamente; nem o deseja em maior proporção do que é correto, nem no momento errado, e assim por diante. Mas, com um espírito moderado e correto, ele esperará obter todas as coisas agradáveis que, ao mesmo tempo, conduzam à saúde ou a uma condição adequada do corpo, desde que não sejam prejudiciais nesse sentido, nem conduzam a violar a conduta nobre ou a agir extravagantemente e além dos seus meios. Pois, a não ser que uma pessoa se limite, do modo indicado, ela estará se entregando a tais prazeres mais do que é correto, enquanto o homem que age com temperança segue como guia a razão (Ética, III, 14, 1119 e seguintes). Tomemos outro exemplo, aquele da ira. O cristianismo tem como injunção não ressentir uma injúria, voltar a outra face quando agredido. Aristóteles, de seu lado, se censura o homem excessivamente inflamado por suas paixões, entre elas a ira, também censura aquele que é insensível: é correto irar-se nas ocasiões adequadas, contra as pessoas adequadas, de uma maneira adequada e durante um espaço de tempo adequado. Nisto, como em outras coisas, a definição do que é adequado depende do bom-senso humano, conducente à moderação. Em lugar de uma lista de regras absolutas, de uma divisão das coisas e condutas em boas e más, o que aparece é um problema sutil e movediço, cuja solução depende das 16 circunstâncias, das características de cada indivíduo em cada caso visto em si mesmo. O Bem é a proporção adequada, a maneira e a ocasião corretas; o Mal é o contrário. Mas os elementos da natureza humana, em si, não são bons nem ruins: são unicamente a matéria-prima a partir da qual o Bem ou o Mal tomarão forma nos diferentes casos. Com um estilo diferente, as mesmas noções, eminentemente gregas, são a base da ética de Platão, que costuma encarar a virtude como uma espécie de “ordem”: A virtude de cada coisa, seja do corpo ou do espírito, do instrumento ou da criatura, quando lhe é dada da melhor maneira, não lhe vem por acaso, mas como resultado da ordem, da verdade e da arte com que é impartida (Górgias, 506, d). Na República, tal noção é trabalhada em detalhe. Distinguem-se no espírito três princípios ou poderes – a razão, a paixão e o desejo –, aparecendo a justiça como a manutenção, entre eles, da relação apropriada: O homem justo não permitirá aos diversos princípios que existem em seu interior fazerem qualquer trabalho que não seja o adequado, nem deixará que as diferentes classes de princípios em seu espírito interfiram cada uma nas demais: ele tratará de pôr a sua casa em ordem. E, tendo ganho o domínio sobre si mesmo, regulará o seu próprio caráter de modo a estar em boas relações consigo mesmo, afinando em conjunto aqueles três princípios, como se fossem as três notas de um acorde perfeito (...); e, após ter unido tais coisas e reduzido os diversos elementos de sua natureza a uma unidade real, ele, como um homem marcado pela temperança e devidamente harmonizado, procederá a fazer o que precisar fazer (República, IV, 443). Sendo dessa ordem a concepção de virtude característica dos gregos, o motivo para aspirar a ela não lhes aparecia na forma do que chamaríamos um “sentido do dever”, já que “dever” enfatiza a auto-repressão. Os gregos enfatizavam o auto-desenvolvimento do espírito. Daí se infere que o ideal grego nada tinha a ver com o ascetismo. Também não valorizava a licenciosidade. Já vimos que as palavras que melhor sintetizam o ideal dos gregos são “temperança”, “posição mediana”, “ordem” e “harmonia”. A auto-realização a que aspiravam não era anárquica, mas sim, uma evolução ordenada das faculdades naturais sob a condução de uma mente equilibrada. Isto pode ser ilustrado pelo tratamento do prazer na filosofia de Platão e de Aristóteles. O libertino tende a identificar o prazer com o bem, de tal modo que, a todo momento, perseguirá quaisquer prazeres que se apresentem, deixando de lado a reflexão que tenderia a interromper o fluxo contínuo das sensações prazerosas postulado como a finalidade da vida. Pelo contrário, o ideal dos gregos se opõe tanto ao ascetismo – já que o prazer é considerado 17 um complemento necessário do bem – quanto a identificar o bem com o prazer: existe uma escala ordenada dos prazeres, sendo preciso rejeitar os prazeres inferiores e admitir os demais; não que, em si, eles constituam o bem, mas porque são o acompanhamento necessário de sua prática. Na República, Platão distingue entre prazeres necessários e desnecessários. Os primeiros são os que derivam da gratificação de desejos “de que não nos podemos livrar e cuja satisfação nos faz bem”, como por exemplo o apetite por um alimento sadio. Os demais são os prazeres derivados de desejos que podemos deixar de lado mediante o treinamento, cuja presença não nos faz bem e, às vezes, nos prejudica: por exemplo, o apetite por pratos delicados e luxuosos. Os prazeres necessários devem admitir-se; os demais, excluir-se do ideal de felicidade (República, VIII, 558). No Filebo, indo mais longe, o filósofo exclui da vida perfeita todos os prazeres, com exceção daqueles que denominou “puros”, isto é, os que estivessem ligados à contemplação de formas, cores e sons, ou que acompanhassem a atividade intelectual. Mas, neste ponto, ele estava claramente ultrapassando o ideal grego. Aristóteles, de seu lado, estaria de acordo com aquela primeira distinção, entre prazeres necessários e desnecessários, embora só condenando os prazeres que causassem dano. Mesmo os prazeres desnecessários podem ser desejáveis em si mesmos, desde que não sejam daninhos. Ainda assim, há prazeres que não devem ser perseguidos, bem como ocasiões e métodos de persegui-los que são impróprios e perversos. A razão deve invocar-se sempre para intervir e controlar; e o teste supremo do que é válido em matéria de prazeres, como em quaquer outra coisa, deve ser o juízo bem treinado do homem sensível e bom. Menos elevada em seus critérios do que Platão e Aristóteles, provavelmente mais próxima do ideal grego, temos a definição, por Xenofonte, do que seria um “cavalheiro”, ao reproduzir para nós a autodefinição de seu personagem Iscômaco: Em primeiro lugar, eu adoro os deuses. Em seguida, trato, da melhor maneira possível, assistido pela oração, de obter a saúde e a força do corpo, boa reputação na cidade, boa vontade entre meus amigos, uma conduta honrosa na batalha e um incremento honroso de minha fortuna. Intervindo então, Sócrates pergunta se de fato deseja a fortuna, com todos os problemas que acarreta. Responde-lhe Iscômaco: Sim, certamente, pois ela me permite honrar adequadamente os deuses, ajudar os meus amigos quando o necessitem e contribuir para os recursos de minha cidade. (Xenofonte, Simpósio) Temos aqui um ideal mais terra-a-terra, mais típico do cavalheiro ateniense: um belo corpo albergando um belo espírito, a ajuda externa da fortuna e dos amigos, e a realização 18 pessoal, nos limites do que é considerado honroso, nas atividades públicas da guerra e da paz. O próprio Iscômaco resume o modo como passa o seu dia, incluindo exercício físico, treinamento militar e atividades na direção de suas terras, sendo então aprovado por Sócrates. O caso do Egito faraônico: também aqui era possível uma ética eudemônica, sendo as condições sociais e o imagináriotão diferentes daqueles da Grécia clássica? Nem todos aceitam a hipótese de ter sido possível, para os antigos egípcios, uma ética eudemônica. Eis aqui, por exemplo, o que tem a dizer a respeito Jean Leclant: Não poderíamos reduzir a literatura sapiencial egípcia a um aspecto puramente utilitário ou “eudemônico”. Com razão, parece-me, H. Gese reagiu contra uma tal tendência. Ele mostrou que os textos sapienciais egípcios têm um fundamento essencialmente religioso, cujo alicerce repousa no princípio de Maat, a Verdade-Justiça, esta espécie de lei do cosmo que rege a ordem inteira do mundo egípcio, seja ela física, política, social ou moral.TPF1FPT Não tenho dificuldade alguma em concordar com o autor em que a noção de Maat informava centralmente os textos sapienciais egípcios. Entretanto, discordo de que, por tal razão, seja preciso negar um caráter eudemônico à ética que eles expressam. A meu ver, a religião egípcia, sobretudo mediante a noção de Maat – um conceito abstrato deificado como filha do deus solar Ra –, estabelecia o contexto e os limites no interior dos quais se pode constatar uma ética eudemônica egípcia, analogamente a como a noção de cidadania na pólis circunscrevia as possibilidades eudemônicas de numerosas éticas gregas clássicas. O fato de que uma ética tenha fundamento religioso não é, em si, razão para que seja rigorosamente prescritiva, à maneira das regras morais cristãs, e não, eudemônica. A moral cristã tomou a forma de um conjunto de prescrições autoritárias cuja finalidade é atingir uma “felicidade diferida”, transportada para outra vida, não por ser religiosa, mas devido a certas características específicas na religião cristã, tais como a noção de pecado ligada à de uma humanidade decaída, em contraste com a Divindade, totalmente boa e justa – uma noção, a teodicéia, que nunca esteve no centro das preocupações dos antigos egípcios. A religião cristã apresenta-se como uma revelação que se expressa num conjunto de livros sagrados dotados, segundo se afirma, de autoridade intrínseca, garantida pela própria Divindade; e conta com um corpo de pessoas treinadas às quais se confere autoridade para interpretar tais textos. Pelo contrário, no Egito faraônico, exatamente como na Grécia antiga, as respectivas religiões não TP 1 PT Jean Leclant. “Documents nouveauxs et points de vue récents sur les sagesses de l’Égypte ancienne”. In: Jean Leclant et alii. Les sagesses du Proche-Orient ancien. Paris: Presses Universitaires de France, 1963, pp. 12-13. 19 eram reveladas, não se baseavam em escritos dotados de autoridade especial ou incontestável, seus templos não eram congregações ou “igrejas” chefiadas por um clero especificamente treinado durante anos: havia templos, mas não igrejas, servidos por um pessoal de funcionários do Estado (da monarquia divina no caso do Egito, da pólis no caso da Grécia) que não pode considerar-se adequadamente um “clero”. Eis aí condições nada favoráveis ao surgimento de éticas religiosas autoritárias baseadas nas noções opostas de santidade/pecado! É preciso, de início, tratar de entender o que, exatamente, significava a noção de Maat: Maat, literalmente “verdade”, “justiça”, “aquilo que é correto”, era um conceito muito geral da “ordem” existente no mundo e nas relações sociais vigentes, comportando implicações morais diretas para cada indivíduo. Ela poderia ser descrita como um contrato social obrigatório para todas as partes, que a ela aderiam na crença de que isso lhes seria benéfico.TPF2FPT As “partes” de que fala a passagem acima compreendiam os homens, sem dúvida, mas também o rei, os mortos, os deuses e o universo inteiro. A frase final mostra que o respeito a Maat era considerado como uma atitude que abria caminho para vantagens, benefícios: por esta razão, precisamente, é que a noção de Maat é perfeitamente compatível com uma ética eudemônica, de que permite estabelecer os contornos. Sainte Fare Garnot lembrou em certa ocasião que o sentido primeiro de Maat é a “ordem” em si, o que é reto; outrossim, a palavra pode ser escrita com o signo da unidade egípcia de extensão, o côvado, o que mostra, nela embutida, a idéia de medida; elemento que, por sua vez, conduz à moderação e a que se condenem os excessos. A ordem e o equilíbrio do mundo, do mundo da sociedade, seriam unicamente extensões ou, mais exatamente, manifestações particulares do princípio geral.TPF3FPT Maat era, sem dúvida, um conceito conservador, destinado a preservar a ordem das coisas e o ideal monárquico no antigo Egito. Daí que, quando os sábios ensinam a “dobrar a espinha” diante de um superior e a não o contrariar, os egiptólogos que considerem “oportunistas” tais injunções estão a meu ver errados.TPF4FPT O poder e a hierarquia, as desigualdades de status – inclusive no interior do pequeno grupo dominante – decorrem do rei e dos deuses; são, portanto, segundo aquele pensamento conservador, legítimos e é normal a expectativa de que sejam respeitados. TP 2 PT Jaromír Málek. In the shadow of the pyramids. London: Verso, 1986, p. 88. TP 3 PT J. Sainte Fare Garnot, intervenção no debate após a comunicação de A. Volten: Jean Leclant et alii, Op. cit., p. 100. TP 4 PT Georges Posener. “Literature”. In: J. R. Harris (org.). The legacy of Egypt. Oxford: Clarendon Press, 1971, p. 227. 20 Pascal Vernus, confirmando as noções que acabamos de resumir, define assim a concepção ética tradicional dos antigos egípcios: 1. O criador mantém-se retirado de sua criação, à qual concede alguma autonomia. 2. Assim, sendo, a ordem social − um dos elementos da criação − possui princípios imanentes de auto-regulação que asseguram a retribuição das ações humanas neste mundo ou no outro: o castigo para quem a transgride e a recompensa para quem a respeita. 3. Abrigado, por assim dizer, por trás desta ordem que dele emana, o criador só em última instância age sobre o destino humano, seja entregando, seja recusando ao indivíduo a capacidade de dela conhecer as leis, seja mediante intervenções diretas mas esporádicas e excepcionais. 4. Por conseguinte, o êxito social pode ser considerado como a justa retribuição de quem respeita as leis da ordem estabelecida e obedece à instituição por meio da qual ela se manifesta.TPF5FPT No interior desta concepção, a atuação correta segundo os princípios de Maat, isto é, da ética tradicional, transforma o egípcio – em especial quando membro dos grupos dominantes – em colaborador do rei, já que a este último cabia em última instância, como descendente em linha direta e sucessor do demiurgo criador, a preservação de Maat. Tal é a grande diferença em comparação com a ética grega da cidadania: segundo esta última, os cidadãos de uma pólis eram, como comunidade ou koinonía, co-responsáveis coletivamente pela boa marcha de sua cidade, do que decorriam os diferentes elementos de sua responsabilidade moral. À parte os deuses, não existia instância alguma acima dessa comunidade cidadã. No Egito, que era uma monarquia considerada sagrada, o faraó, um deus encarnado que se sentava no trono, era o responsável primeiro pela ordem, tanto cósmica quanto social. Não havia a noção de cidadania, mas os súditos – em especial os da pequena elite que governava o país, em teoria pessoas escolhidas pelo rei –, num nível menor, deviam colaborar com o monarca na tarefa social e cósmica de assegurar a ordem do mundo. Eles o fariam aceitando três princípios básicos da conduta correta: (1) a noção de Maat, de que já tratamos; (2) a idéia de que homo proposuit, sed deus disponit; e (3) a afirmação e a vivência das virtudes decorrentes da aceitação dos dois pontos precedentes: moderação, justiça, discrição, generosidade, respeito pelos superiores (já que, como já vimos, a ordem social, sendo de criação divina, é legítima),tanto nas atividades públicas quanto nas ações privadas. O nosso termo “pecado”, no sentido exato que lhe dá a teodicéia cristã, é de impossível tradução em egípcio antigo. Podemos achar muitos textos traduzidos do egípcio em que aparece a palavra “pecado”, mas trata-se em todos os casos de uma tradução errônea TP 5 PT Pascal Vernus. Affaires et scandales sous les Ramsès. Paris: Pygmalion, 1993, p. 162. 21 de termos egípcios. As palavras assim erroneamente traduzidas, betá ou isefet, conduzem a um campo semântico bem diferente: crime, falta, transgressão, ofensa, erro, etc. Palavras etimologicamente próximas significam malfeitor, prejudicar, ferir, desobedecer, desafiar, ser insolente, ser rebelde, transgredir.TPF6FPT A verdade é que também nosso termo “religião” se aplica mal a um conjunto pouco unificado de crenças e práticas como as do antigo Egito. Durante muito tempo, a identificação do mal à desordem que, mesmo sendo externa ao cosmo criado e organizado, ameaçava-o de fora, foi uma concepção central egípcia: concepção cósmica, que não deixava lugar a uma teodicéia que tornasse os seres humanos responsáveis pelo mal. Assim, as noções de uma humanidade decaída e do “pecado” à maneira cristã nunca foram típicas do pensamento egípcio antigo no tocante a seus aspectos mais centrais. Se levarmos em conta tudo que foi visto até aqui, não é surpreendente encontrar, num dos mais antigos escritos sapienciais egípcios, um dos mais influentes e mais copiados ao longo dos séculos igualmente, uma injunção que vai claramente no sentido do Carpe diem: Segue teu desejo enquanto viveres! Não faças mais do que for ordenado. Não diminuas o tempo de seguir o desejo: aquilo que se opõe a este tempo é uma abominação para o espírito. Não desvies o tempo do dia mais do que o que for necessário para abastecer a casa. Uma vez adquirida a riqueza, segue o desejo; pois, a riqueza de nada serve quando se é apático. (Os ensinamentos de Ptahhotep, máxima 11) Como se pode notar, temos aí uma injunção hedonista. Claro está que tal hedonismo precisa ser entendido em seu contexto e em seus limites, que são a noção de Maat e os costumes considerados convenientes pelos antigos egípcios. TP 6 PT Cf. R. O. Faulkner. A concise dictionary of Middle Egyptian. Oxford: Clarendon Press, 1976, pp. 85-86. Labor improbus et Orpheus nas Geórgicas de Vergílio Profa. Dra. Elaine Cristina Prado dos Santos Universidade Presbiteriana Mackenzie Resumo: O poeta Vergílio (Ia.C.), nas Geórgicas, ao cantar os diversos aspectos da vida do campo como labor improbus, (Geo.I, 145-146), não por ser uma punição ou prova dos deuses, mas por ser um estimulante à luta obstinada do homem com a terra, convida-nos a retornar à simplicidade da vida rural, por meio da famosa apóstrofe dirigida aos agricultores: O fortunatos nimium (Geo. II, 458). O objetivo desta conferência é apresentar a visão do labor, segundo o poeta latino, nas Geórgicas, bem como o IV canto, marcado pelo mito de Orfeu e pelo reino das abelhas, que, com suas coletivas virtudes, omnibus una quies operum, labor omnibus unus (Geo.IV, 184), lembram o antigo modo italiano de vida e um mundo social e político que o poeta levou em consideração. Vergílio, provavelmente, levou oito anos para escrever as Geórgicas, tendo começado em 37 a. C., e tendo terminado em 29 a.C. Pode-se dizer que a elaboração da obra foi lenta e teve lugar em um período particularmente repleto de eventos, convivendo, no poema, tópicos contrastantes, como no final do livro I, o horror pelo assassinato de César e a angústia das guerras civis; e, no proêmio do livro III, a presença forte do espírito augustano. A idéia de escrever as Geórgicas, conforme Gentili (1977: 295), surgiu no momento das devastações das guerras civis e dos confiscos que tanto perturbaram a economia agrária da Itália. Entretanto, o poema vergiliano não tem a aridez dos tratados de agricultura, pois o que domina, na obra, é uma visão do trabalho nos campos e da vida plenamente em contato com a natureza. A exaltação do trabalho e da prece, In primis uenerare deos (Geo.I, 338), é um dos pilares filosóficos das Geórgicas. As fontes utilizadas por Vergílio são, sobretudo, gregas, porém há também as latinas. Entre as obras gregas, podem-se citar: os Trabalhos e os dias de Hesíodo, a Economia de Xenofonte, as Geórgicas de Nicandro de Colofon, os Fenômenos de Arato, o Hermes de Eratóstenes, como também se verifica uma influência de Aristóteles, de Demócrito e de Tucídides. Entre as obras latinas, citam-se: De Agricultura de Catão, Res rusticae de Varrão e De Rerum natura de Lucrécio. Os comentadores dizem que Vergílio consultou a enciclopédia agrícola do cartaginês Magão, obra famosa da Antigüidade, escrita em língua púnica, que depois foi traduzida em grego e vertida para o latim por ordem do Senado. Segundo a tradição, Mecenas foi quem sugeriu o poema das Geórgicas, cujo ideal responderia a um dos pontos do programa político instaurado por Augusto: o retorno à agricultura, pois Vergílio fala dos haud mollia iussa (Geo.III, 41), ou seja, das ordens não fáceis de Mecenas, que foram interpretadas por alguns como uma ordem expressa para que o poeta cumprisse o programa augustano. No entanto alguns críticos, como, Heyne, Genthe, Benoist julgaram esta explicação inverossímil. Segundo eles, o príncipe e seu ministro teriam sido muito ingênuos em acreditar que versos, mesmo belos, pudessem converter à agricultura uma sociedade que há muito tempo a tinha como enfado. Convém relatar o comentário feito por La Penna (1988: 71 - 72), ou seja, não era culpa nem erro pensar que houvesse alguma verdade na afirmação de Vergílio sobre as solicitações 22 23 de Mecenas para que o poeta tratasse da agricultura e que essas solicitações teriam se originado dos problemas da crise agrária e social na Itália, mas seria um erro pensar que a solicitação fosse sobre um poema didático que servisse de guia para os agricultores da Itália. Para Grimal (1992: 150), se houvesse duas Geórgicas, a primeira falaria das plantas e das árvores e a segunda tal qual a conhecemos, em quatro livros, seria uma sugestão de Mecenas, ou melhor, haud mollia iussa, para que Vergílio continuasse seu projeto, acrescentando a criação dos animais e o quarto canto com as abelhas, um exemplo de disciplina e de concórdia. Caso tenha dado Mecenas um conselho, isto é, uma sugestão, o poeta aceitou o convite, pois descobriu que amplificava seu poema com o II e IV cantos. Ao amplificar o poema, conseguiria conferir-lhe uma unidade maior; permitindo, desta forma, uma gradação dos diferentes níveis hierarquizados de vida em uma escala dos seres. Dos 2188 versos, nas Geórgicas, 700 são destinados à tarefa científica, enquanto os demais tratam dos argumentos, das invocações, das digressões, das reflexões filosóficas, ou seja, Vergílio apresenta muitas digressões, com a preocupação de envolvê-las profundamente na obra, a fim de que elas dêem uma expressão mais ampla e mais explícita dos motivos ideais. As Geórgicas representam, por excelência, o poema didático, e a arte vergiliana alcança perfeição. Pode-se observar uma rica arquitetura harmônica de esquematização da obra, por meio dos cantos: LIVRO I : UCereaisU 1 a 42: Proêmio. 42 a 203: Trabalhos para o cultivo dos cereais. 118 a 159: Digressão: a teodicéia do trabalho. 204 a 350: Tempos dos trabalhos e Calendário. 231 a 258: Digressão: a origem do Calendário. 351 a 514: Prognósticos do tempo. 424 a 514: Digressão: os prodígios seguintes ao assassinato de César. LIVRO II : UPlantasU 1 a 8: Proêmio. 9 a258: Cultivo das plantas em geral: variedade das plantas, dos trabalhos, dos terrenos. 136 a 176: Digressão: os elogios à Itália. 259 a 419: Cultivo das Videiras. 315 a 345: Digressão: os elogios à primavera. 420 a 540: Cultivo de outras plantas de particular interesse: oliveira, macieira ... 458 a 540: Digressão: os elogios à vida agreste. LIVRO III: UAnimaisU 1 a 48: Proêmio. 49 a 283: Criação do Gado de Grande Porte. 205 a 283: Digressão: o Amor. 284 a 566: Criação do Gado de Pequeno Porte: cabras e ovelhas. 470 a 566: Digressão: a peste no Nórico. LIVRO IV: UAbelhasU 1 a 7: Proêmio 24 8 a 280: Criação de Abelhas e sua Natureza. 116 a 148: Digressão: o velho de Córico. 281 a 558: Reprodução das abelhas destruídas pela peste. 315 a 558: Digressão: o mito de Aristeu e de Orfeu. 559 a 566: Final. Percebe-se que os dois primeiros livros apresentam três digressões: no livro I, a teodicéia do trabalho, a origem do calendário e os prodígios seguintes ao assassinato de César e, no livro II, os elogios à Itália, os elogios à primavera e os elogios à vida agreste. Quanto aos dois últimos, apresentam uma estrutura de duas digressões: no livro III, o Amor e a peste no Nórico e no IV livro, o velho de Córico e o mito de Aristeu e de Orfeu. A extensão e o caráter dos proêmios unem claramente o livro I, versos 1 a 42, e o livro III, os versos 1 a 48. No proêmio do livro I, Vergílio invoca os deuses, faz referência aos deuses helênicos e a Otávio como a décima terceira divindade. Os versos de 1 a 48 fazem o proêmio do livro III, onde Vergílio também honra divindades com o propósito de indicar o escopo desse livro: tratar das raças dos animais, das artes de criação do gado. Os livros II e IV são iniciados por breves proêmios. As digressões que terminam os livros são as mais extensas e as mais significativas: no livro I, há os prodígios seguintes ao assassinato de César; no livro II, os elogios à vida agreste; no livro III, a peste dos animais no Nórico e, no livro IV, o mito de Aristeu e de Orfeu. Lucrécio influenciou o pensamento de Vergílio e sua concepção de mundo, propondo uma linguagem, ao mesmo tempo didática e épica, pois Vergílio aplica a si mesmo uma das mais orgulhosas e célebres declarações de Ênio, o Pai da epopéia romana: “É necessárioTPF1FPT tentar uma via pela qual eu também possa elevar-me do chão e, vencedor, voar de boca em boca”.TPF2FPT O poema vergiliano apresenta o pequeno camponês que cultiva a propriedade com suas próprias mãos. Literariamente, entretanto, alcança não a classe dos pequenos lavradores, mas toda a elite culta, pois esta sim era capaz de ler a obra, compreendê-la e contribuir com uma provável renovação ideal e moral. Segundo Saint - Denis (1968: XIV), o elogio da vida campestre (Geo.II, 513ss) é um programa resumido de reparação econômica e moral, pois o campo era o refúgio das virtudes tradicionais: frugalidade, pureza, piedade. No entanto, a obra não tem um fim técnico e prático a ponto de abranger todos os tópicos da agricultura, uma vez que a poesia não reflete a realidade crua e áspera, mas a interpreta de acordo com sua verdade e não com a veracidade do mundo real e concreto. Assim, o poeta dirá: “Eu não desejo abraçar todas as coisas com os meus versos; não, mesmo se eu tivesse cem línguas e cem bocas, uma voz de ferroTPF3FPT”. TP 1 Todas as traduções do latim foram feitas por mim. PT TP 2 PT(Geo. III, 8-9) .....Temptanda uia est, qua me quoque possim tollere humo uictorque uirum uolitare per ora. TP 3 PT(Geo. II, 42-44) Non ego cuncta meis amplecti uersibus opto; non, mihi si linguae centum sint oraque centum, ferrea uox. 25 No prólogo do I canto, Otávio é invocado como a décima terceira divindade que um dia chegará a unir-se à série dos doze deuses. O poeta mostra um Otávio já divinizado ou quase para sê-lo: Tuque adeo, quem mox quae sint habitura deorum/ concilia (Geo.I, 24-25) “E tu,César, que em breve deves habitar as assembléias dos deuses”. No entanto, o canto I, que se inicia com um Otávio divinizado, termina com uma súplica a um Otávio que ainda não havia pacificado o mundo. Quanto à agricultura, esta representava o setor dominante da produção, ao longo da história romana. No século II antes de Cristo, segundo Catão, em De agricultura, os homens do campo eram mais fortes e mais aptos para defender a pátria, porque estavam acostumados a suportar os rigores da vida rústica. Na obra, o escritor pretende resumir sua própria experiência de bonus agricola bonusque colonus. É notável como Vergílio faz eco às palavras de Catão, ao dizer que os homens do campo são mais firmes e que podem defender a pátria, pois a força se concentra exatamente na terra. "Outrora os velhos Sabinos cultivaram esta vida, assim cultivaram Remo e seu irmão; assim cresceu a brava Etrúria evidentemente e Roma se tornou a maravilha do mundo, e somente para si cercou com um muro sete cidadelasTPF4FPT”. Percebe-se que Vergílio faz eco tanto à obra de Catão quanto a Res rusticae de Varrão, quando diz ser a Itália a terra mais fecunda e melhor cultivada. Varrão apresenta uma descrição da Itália como o país mais fértil e mais bem cultivado do mundo, graças a uma agricultura científica praticada pelos nobres romanos. Ao enaltecer os campos, Vergílio proclama que a Itália é a terra, que a natureza fez mais fértil e mais bela do mundo, gloriosa por sua história. “Salve, grande mãe dos frutos, terra Satúrnia, grande mãe dos homensTPF5FPT”. Ao saudar a magna parens, considerada terra Saturnia, o poeta revive a época da idade de ouro, quando Saturno reinava e os homens desconheciam as penas, as misérias, as velhices, todos os males, pois viviam alegres, sustentados pela abundância da terra. As Geórgicas confirmam o prestígio da Itália, segundo as reflexões de La Penna (1988: 74), como centro e guia do Império, como Saturnia tellus. Vergílio encerra o livro II com mais uma digressão: os elogios à vida agreste, versos 458 a 540. “Ó muito afortunados agricultores, se eles conhecessem os seus bens! Para eles, longe das armas discordantes, a justíssima terra, dela mesma derrama uma alimentação fácilTPF6FPT”. TP 4 PT(Geo. II, 532-535) Hanc olim ueteres uitam coluere Sabini, hanc Remus et frater; sic fortis Etruria creuit scilicet et rerum facta est pulcherrima Roma septemque una sibi muro circumdedit arces. TP 5 PT(Geo. II, 173-174) Salue, magna parens frugum, Saturnia tellus, magna uirum: TP 6 PT(Geo. II, 458-460) O fortunatos nimium, sua si bona norint, agricolas! quibus ipsa, procul discordibus armis, 26 A Iustissima tellus dá frutos ao homem em troca do esforço que ele investe, uma vez que a terra se revela grandiosa e justa. Assim, Vergílio reconhece que a natureza é severa, porém justa, pois o campo é contraposto à cidade de duas formas: a sede mais apta à Tranquillitas animi e o último reino da inocência e da justiça. Tanto Catão quanto Varrão escrevem, sob um ponto de vista utilitário, sem se preocuparem que a agricultura possa conter uma parcela de beleza. Tanto um quanto outro se dirigem, em seus tratados, ao proprietário opulento; Vergílio, porém, dirige-se ao agricultor que explorava ele próprio o seu domínio, mostrando que o trabalho rude dos campos é compensado pela natureza, pela felicidade tranqüila da família, pelo repouso do espírito. Enquanto Varrão, em Res rusticae, refere-se, brevemente, aos campesinos, qui segetes non tam latas habent (R.R.I,29, 2), estes são exatamente os lavradores em quem pensa Vergílio ao escrever as Geórgicas. O poeta se dirige aos pequenos proprietários, tanto aos veteranos instalados recentemente em suas terras, quanto aos campesinos que sobreviveram às guerras civis. Fica explicitamente sintetizado o pensamento do poeta latino no famoso conselho: Laudato ingentia rura: exiguum colito (Geo.II,412-413), isto é, “Louvem os domínios imensos, cultivem um pequeno”. Exemplifica-se, nas Geórgicas, um lavrador cuidando de sua própria propriedade rústica: o ancião de Tarento que põe suas mãos na lida e leva à cidade, em seu burrico, os produtos de seu trabalho: o senex Corycius, que tem orgulho por ter subjugado um solo ingrato; que se sente feliz por ter, à sua volta, a paisagem serena da Itália; contente por ser independente e ter alcançado a paz. Provavelmente, o poeta apresenta uma concepção de economia agrícola completamente primitiva, ou melhor, anterior a Varrão e a Catão. Pode-se fazer uma aproximação com conteúdo das Geórgicas a uma frase de Cícero, ao fazer um elogio da agricultura, conforme Saint - Denis (1968: XX): “Não só as campinas, os prados, as vinhas e suas árvores são a alegria do campo, mas os jardins e os pomares e ainda os rebanhos que pastam, os enxames de abelhas e a variedade de todas as floresTPF7FPT”. Embora para Cícero, as coisas do campo sejam fonte de alegria (res rusticae laetae sunt), e para Vergílio, sejam objeto de glória, marcado, graças à poesia, constata-se evidente analogia entre as palavras atribuídas a Catão e o sentimento que anima as Geórgicas. Nessa definição de Cato Maior, já se encontram as quatro divisões da agricultura, seguidas na mesma ordem apresentada por Vergílio: segetes et prata (Geo.I), uinea, arbusta, horti et pomaria (Geo. II), pecudum pastus (Geo. III ), apium examina et flores (Geo. IV). Evidencia- se que Vergílio, nos cinco primeiros versos, anuncia a ordenação do plano de seu poema em quatro livros, apresentando o tema de cada um deles: a terra, as árvores, os animais e as abelhas. Como se constata a seguir: “Agora vou cantar o que faz as colheitas férteis, com que astro convém arar a terra, Mecenas, e unir as videiras aos olmeiros; que fundit humo facilem uictum iustissima tellus. TP 7 PT(Cato Maior, XV, 54) nec uero segetibus solum et pratis et uineis et arbustis res rusticae laetae sunt, sed hortis etiam et pomariis , tum pecudum pastu, apium examinibus, florum omnium uarietate . 27 cuidados exigem os bois, que conduta (seguir) para se manter um rebanho, que grande experiência para as parcas abelhasTPF8FPT”. No canto I, Vergílio já apresenta uma visão do trabalho, continuando uma tradição que remontava aos tempos longínquos de Roma. A imagem da vida rústica demonstrada por ele recai no labor improbus que vence as dificuldades impostas por Júpiter na natureza. Somente o trabalho é capaz de vencer todos os obstáculos, por ser um estimulante à luta obstinada com a terra: Labor omnia uicit improbus (Geo.I, 145-146). Na décima Bucólica, Galo exclama Omnia uincit amor; agora, nas Geórgicas, Vergílio irá responder: Labor omnia uicit, pois para o poeta, o trabalho é o enriquecimento contínuo da alma humana. Dos versos 43 a 49 do canto I, o poeta apresenta, em um quadro da vida rural, a primeira cena com o tema do trabalho, quando nasce a primavera, uere nouo (Geo. I, 43). O trabalho é intenso, pois o degelo começou, gelidus canis cum montibus umor liquitur. Essa lavoura, que foi descrita por Vergílio, apresenta um trabalho pesado: a charrua tinha de cravar profundamente, aratro depresso (Geo.I, 45); os bois gemiam, pois aplicavam todo o seu esforço, taurus aratro ingemere (Geo. I, 45); e a relha, ao roçar com força na terra, tornava-se polida e reluzente, et sulco adtritus splendescere uomer (Geo. I, 46). "Na nova primavera, quando a gélida umidade se derrete pelas montanhas brancas e a gleba desagregada se amolece com o Zéfiro, já para mim que o touro comece a gemer com o arado afundado, e a relha polida pelo sulco comece a brilharTPF9FPT". Nos versos 118 a 159 do livro I, o poeta, por meio de uma digressão, apresenta uma teodicéia do trabalho, ao proclamar que, antes do reinado de Júpiter, ante Iouem (Geo. I, 125) e durante o domínio de Saturno, os homens se contentavam com o que o sol e as chuvas lhes davam, com o que a terra espontaneamente produzia (Geo.I, 125-127). Segundo Ruy Mayer (1948: 199), Vergílio ocupa-se da sorte do homem quando ruiu o império de Saturno, e Júpiter instituiu uma ordem nova. Ninguém, antes de Júpiter, desbravara um campo: ante Iouem nulli subigebant arua coloni (Geo. I, 125), agora a lei os mede cravando-lhes marcos, horrorizando- os: ne signare quidem aut partiri limite campum / fas erat (Geo. I, 126-127). A terra sem violência dava tudo por si, no império de Saturno, sem nada lhes pedir: in medium quaerebant; ipsaque tellus / omnia liberius, nullo poscente, ferebat (Geo.I, 127-128). Vergílio expressa a vida do campo como labor improbus, uma luta áspera e obstinada contra as dificuldades da natureza - labor omnia uicit improbus. O poeta das Geórgicas acredita, como Hesíodo e Arato, em uma providência que governa a natureza e a história. TP 8 PT(Geo. I, 1-5) Quid faciat laetas segetes, quo sidere terram uertere, Maecenas, ulmisque adiungere uitis conueniat, quae cura boum, qui cultus habendo sit pecori, apibus quanta experientia parcis, hinc canere incipiam. TP 9 PT(Geo. I, 43-46) Vere nouo , gelidus canis cum montibus umor liquitur et Zephyro putris se glaeba resoluit , depresso incipiat iam tum mihi taurus aratro ingemere, et sulco adtritus splendescere uomer. 28 Segundo La Penna (1988: 77), Vergílio vai buscar, em Demócrito e em Epicuro, a teoria de uma história primitiva: o homem vivia antes na idade áurea graças aos frutos espontâneos da terra, sem fadiga; no entanto, nesse estágio as qualidades do homem são abafadas. Assim, Vergílio mostra que Júpiter aguça-as semeando as dificuldades na natureza. O homem da era de Saturno, conforme La Penna (1988: 77), está submerso em um torpor, em uma espécie de pesado Veternus de tal forma que essa felicidade da idade áurea não pode ser concebida como um bem supremo, mas como um grave entorpecimento. “O próprio pai não quis que fosse fácil o caminho de cultivar, e por primeiro moveu os campos pela arte, aguçando os corações mortais pelos cuidados, nem tolerou que seu reino se entorpecesse em pesado marasmoTPF10FPT”. O próprio Júpiter criou tantas dificuldades para a agricultura que o homem foi obrigado a trabalhar para prover-se dos bens necessários e sobreviver. Conforme Vergílio, no começo houve uma idade de ouro, um período de inocência, porém o homem, sob o domínio de Júpiter, foi atirado a um mundo tão hostil que o único caminho foi o trabalho obstinado, capaz de vencer todas as coisas: Labor omnia uicit improbus. Assim, o deus Júpiter, sacudindo as folhas, fez cair delas o mel e foi quem retirou dos homens o fogo: mellaque decussit follis ignemque remouit (Geo.I, 131). Os antigos supunham que o mel caísse do céu como um orvalho e ficasse preso às folhas das árvores, donde as abelhas o recolhiam. Nesse passo, como relata Mayer (1948: 199), dá-se a entender que, durante o reinado de Saturno, o mel era tão abundante que podia ser colhido pelos homens. Segundo o mito grego, o fogo foi roubado por Prometeu; para Vergílio, nas Geórgicas, o fogo foi retirado - abstrusum, Geo.I, 135 - dos homens eescondido por Júpiter, para que o homem se esforçasse, por meio do trabalho, e redescobrisse, por sua conquista, o fogo. No primeiro livro, a visão do trabalho, assim diz La Penna (1988: 76), vai além da Arcádia, por meio de Hesíodo, em os Trabalhos e os dias, em que se revela o valor do trabalho, pois ele é, de fato, uma necessidade dura para o homem. Aquele que trabalha recebe sempre bênçãos maiores, pois o homem deve ganhar o pão com seu suor. O poema de Hesíodo tem como finalidade mostrar a necessidade do trabalho e da justiça; ensinar os trabalhos da terra, apontando as épocas em que é conveniente realizá-los. O trabalho, para Hesíodo, é penoso, todavia é o único caminho para fugir da miséria. Pode-se apreciar esse sentido, por meio da tradução feita por Mary de Camargo Neves Lafer, dos Trabalhos e os dias: "Adquirir a miséria, mesmo que seja em abundância é fácil; plana é a rota e perto ela reside. Mas diante da excelência, suor puseram os deuses imortais, longa e íngreme é a via até ela" (v. 286 - 290). TP 10 PT(Geo. I, 121-124) ........................................ Pater ipse colendi haud facilem esse uiam uoluit primusque per artem mouit agros, curis acuens mortalia corda, nec torpere graui passus sua regna ueterno. 29 "Mas tu, lembrando sempre do nosso conselho UtrabalhaU, ó Perses, divina progênie para que a fome te deteste e te queira a bem coroada e veneranda Deméter, enchendo-te de alimentos o celeiro" (v. 298-301). Hesíodo acredita no trabalho e na justiça; para ele, o trabalho tem um papel apaziguador e moralizador, capaz de dar a cada um o suficiente, a felicidade. Em outros mitos como em Hesíodo, a perda da felicidade originária constitui a punição de uma culpa provocada pelo homem; em Vergílio, o próprio Pai (Pater ipse) deseja eliminar o Torpor, que parece ser um mal (Geo.I, 124). Na verdade, ele não quer punir uma culpa, pois instiga o homem a trabalhar para sobreviver, para ter suas próprias coisas. Para Hesíodo, a perda da idade áurea é punição por culpa do homem. Os homens, nessa idade, viviam como deuses, nem a velhice lhes pesava, todos os bens eram para eles, pois a terra dava o fruto abundante. "Primeiro de ouro a raça dos homens mortais criaram os imortais, que mantêm olímpicas moradas. Eram do tempo de Cronos, quando no céu este reinava; como deuses viviam, tendo despreocupado coração, apartados, longe de penas e misérias; nem temível velhice lhes pesava, sempre iguais nos pés e nas mãos, alegravam-se em festins, os males todos afastados, morriam como por sono tomados; todos os bens eram para eles; espontânea a terra nutriz fruto trazia abundante e generoso e eles, contentes, tranquilos nutriam-se de seus pródigos bens" (v. 109-119). O trabalho, para Hesíodo, é a base para a justiça entre os homens; e tanto a defesa quanto a reiteração da necessidade do trabalho se fazem por motivos ligados à sobrevivência material. Zeus escondia o que era vital para os homens, porém quando o filho de Jápeto roubou-lhe o fogo, uma praga foi, a ele e a todos os homens, lançada por Zeus, dando aos homens a mulher como presente, ou melhor, como castigo. "......................................................................Fala o arauto dos deuses aí pôs e a esta mulher chamou Pandora, porque todos os que têm olímpia morada deram-lhe um dom, um mal aos homens que comem pão" (v. 79-82 ). Até então, os homens não precisavam trabalhar para viver, apenas viviam harmoniosamente com os deuses; com esse presente divino, porém, surgiu a necessidade do trabalho. Pandora é, ao mesmo tempo, bem e causa da desgraça para os homens. É com o mito de Prometeu e Pandora que Hesíodo justifica a necessidade do trabalho, segundo Lafer (1991: 64), como uma das contingências humanas, surgida devido à resposta dada por Zeus a Prometeu, pois este o enganara. Ao esconder o fogo, o homem precisa trabalhar para subsistir. Assim, para Hesíodo, é preciso honrar os deuses: "Mas tu, disto afasta inteiramente teu ânimo insensato, 30 se podes, oferece sacrifícios aos deuses imortais sacra e imaculadamente e queima pernis luzidios” (v. 335-337). Vergílio faz uma recomendação similar a de Hesíodo - In primis uenerare deos (Geo.I, 338). Afirma-se, deste modo, que para Hesíodo, o trabalho é o caminho para o homem (v.381-382); para Vergílio, o homem, na era de Saturno, vivia sem fadiga em um estágio em que suas qualidades eram sufocadas, não conseguindo demonstrá-las, por isso Júpiter tira o homem desse torpor, aguçando-o por meio de dificuldades na natureza. La Penna (1988: 76) lembra que, segundo a visão epicurista lucreciana, o homem vem ao mundo em meio de uma natureza hostil, não moldada segundo a providência divina. O homem assim luta sozinho, inventa as artes, organiza-se com seus semelhantes na sociedade. Vergílio não aceitou completamente a interpretação epicurista sobre o mundo, porém acreditava, como Hesíodo, em uma providência que governava a natureza e a história humana. Como Júpiter semeou as dificuldades na natureza, o homem foi obrigado a prover seus bens necessários, trabalhando. Conseqüentemente as artes nasceram e floresceram. “A fim de que a necessidade, experimentando, produzisse pouco a pouco as várias artesTPF11FPT”. Desta forma, a imagem da vida rústica apresentada por Vergílio recai sobre seus trabalhos e suas dores. Por meio do trabalho, o homem é capaz de superar todas as causas de dificuldades impostas pelos deuses e pelo destino. Vergílio representa a condição real da humanidade de uma forma análoga a de Lucrécio, pois o homem é atirado a um mundo hostil; todavia, caso ele descanse por um só momento, ele é vencido. No entanto, Vergílio não diz que o trabalho é uma punição ou uma prova dos deuses, mas orienta seus leitores que levem a vida a sério, aceitem as misérias necessárias, esforcem-se por melhorar o que há à sua volta. “O trabalho obstinado vence todas as coisas, e a necessidade que pressiona nas dificuldadesTPF12FPT”. Conforme o poeta, labor improbus vence todas as coisas; da mesma forma, a necessidade urgente, as coisas duras. Para Vergílio, tanto o trabalho – labor - quanto a necessidade – egestas - são um estimulante à luta obstinada do homem com a natureza, com a terra. O poeta das Geórgicas sabe que é possível conceber uma felicidade como a dos animais, oferecida pela ordem do mundo, sem esforço de sua parte, pois houve no tempo da idade de ouro, sob o reinado de Saturno, um momento em que os agricultores não subjugavam os campos com a lavoura (Geo.I,125). Entretanto, veio Júpiter, com trabalhos indispensáveis, não permitindo que seu império adormecesse em denso torpor (Geo. I, 124); por isso deu ao espírito dos mortais muitas preocupações. No IV canto, Vergílio apresenta, em um quadro agrícola, a apicultura, a qual já figurava no livro III de Res rusticae de Varrão. Assim o duro trabalho dos campos é suavizado TP 11 PT(Geo. I, 133) ut uarias usus meditando extunderet artis. TP 12 PT (Geo.I, 145-146) .....................................labor omnia uicit improbus, et duris urgens in rebus egestas.( Geo . I , 145 - 146 ) 31 pelo reino das abelhas, revelando que, ao poema do labor improbus, está subjacente o antigo sonho do Éden satúrnio. Vergílio inicia o quarto canto com uma invocação a Mecenas, o grande cultor das Letras, com um propósito delineado, ou seja, tratar dos dons celestiais do aéreo mel (Geo . IV, 1 - 2). As abelhas dão exemplo de disciplina e de concórdia que pode servir de modelo aos contemporâneos do poeta, pois praticam todas as virtudes, tais como: ardor no trabalho, heroísmo para defender seu rei e conhecem o valor da glória. Metadedo IV livro é consagrada às abelhas, a outra pertence à história de Aristeu e ao mito de Orfeu. Este relato ocupa, no canto IV das Geórgicas, 241 versos dos 565 do canto inteiro, ou seja, cerca de 43 % . A abelha se torna, no IV livro, a personagem principal do trabalho que transforma a natureza. Pode-se vislumbrar sua sociedade como um modelo utópico daquela que Augusto almejava construir, pois a sociedade delas parece a Vergílio uma classe de cidadãos perfeitos, que procura coincidir com a realidade do regime augustano. Essa sociedade, apresentada pelo poeta, é fundada sobre princípios fundamentais: a concórdia, o trabalho e o sacrifício. Princípios que deveriam ser prezados por um verdadeiro cidadão romano. Filhas prediletas de Júpiter, as abelhas, provavelmente por motivos de arte e de vida, despertam admiração: Admiranda tibi leuium spectacula rerum (Geo. IV, 3), pois suas grandezas, seus costumes, suas inclinações e suas lutas possuem o mais vivo interesse para a vida interior e para a história do homem. Para os ideais do poeta, nesse estágio mais elevado e hierarquizado de vida, as abelhas representam a perfeição de uma sociedade tão disciplinada que oferece um exemplo de monarquia que pode ter sido inspirado pelo deus Júpiter. É notável um perfeito senso de disciplina e seriedade do trabalho, pois cada qual tem sua própria função: “O repouso dos trabalhos é o mesmo para todas. O trabalho é o mesmo para todas. De manhã se precipitam das portas; não há, em parte alguma demora; novamente, quando o entardecer as concita a saírem, enfim, do pasto para os campos; então, retornam a casa e restauram as forçasTPF13FPT”. Os antigos tinham noções errôneas acerca das abelhas, pensavam que elas nasciam espontaneamente ou, como narram Vergílio e Varrão, das entranhas dos touros imolados em honra dos deuses. No poema vergiliano, elas servem ao rei e aos pequenos cidadãos de tal forma que a sociedade romana é revelada pelo termo Quirites empregado pelo poeta (Geo. IV, 200 - 201). Na Antigüidade, as abelhas conheciam que havia, na colméia, um indivíduo único, maior que outros, a que chamavam rei, pois não conheciam a função da abelha rainha. O rei imperava sobre todos os seus alados súditos: Rege incolumi mens omnibus una est (Geo. IV, 212) – “enquanto o rei está incólume, todas têm uma só vontade”. Há exemplos de heroísmo e de sacrifício por seu rei, em torno do qual elas se aglomeram (Geo. IV, 216 - 218). Entretanto, segundo o poeta, podem existir a discórdia, a violência bélica, barulho e confusão, gerando tristeza que só pode ser aplacada na descrição de duas variedades de reis das abelhas. Quando esses dois chefes são chamados ao combate, conforme o poeta, apenas um poderá reinar, tem TP 13 PT(Geo.IV, 184-187) Omnibus una quies operum , labor omnibus unus ; mane ruont portis; nusquam mora; rursus easdem uesper ubi e pastu tandem decedere campis admonuit, tum tecta petunt, tum corpora curant; 32 de ser o melhor. Esse quadro da luta entre os dois enxames de abelhas, envolvendo dois reis rivais, simboliza a batalha travada em Ácio, no I a.C., entre Otávio e António (Geo. IV, 88 - 94). Não existe, no mundo das abelhas, a força destruidora do Amor, todavia o mesmo não se pode dizer da Morte, as abelhas têm uma vida breve, mas sua raça é imortal como a dos deuses. A peste pode destruir as colméias, mas as abelhas podem ser reproduzidas por um processo que Aristeu aprendera, a Bugonia - at genus immortale manet (Geo. IV, 208), “mas a raça permanece imortal”, ou seja, um conceito de geração espontânea, pois elas podem nascer da carcaça de um animal imolado. O mel era, entre os antigos, o sustento celeste, a pura alimentação dos deuses. Desta forma, Vergílio o tratou de aéreo mel: aerii mellis caelestia dona (Geo. I, 1), pois segundo antiga tradição, o mel caía do céu com o orvalho sobre as flores e as plantas, e as abelhas o recolhiam dali (Arist., Hist. Anim . V , 22 , 4 ; Plínio, N.H., XI , 12 , 30 ; Verg. Buc. 4 , 30 ; Georg. I, 131), (apud Riccomagno, Leone. Georgiche, Libro Quarto, Firenze, Vallecchi Editore, 1953: 21). Afirma-se que a organização das abelhas foi um modelo utópico, ou melhor, uma tendência para fazer coincidir a utopia com a realidade do regime de Augusto. Verifica-se a intenção, segundo Gentili (1977: 296), de fazer do mundo das abelhas uma alegoria de perfeita sociedade romana, por meio do termo com que Vergílio designava os filhotes paruos Quirites (Geo. IV, 200 - 202). A abelha, na Grécia, era considerada um animal sacerdotal de tal forma que as próprias sacerdotisas de Elêusis e de Éfeso se chamavam abelhas. Por parecer que morriam no inverno e ressurgiam na primavera, as abelhas se apresentam diversas vezes como símbolo de morte e de ressurreição (Deméter, Perséfone). Na verdade, apenas desapareciam no inverno, pois não saíam de suas colméias. Os gregos representaram a abelha por Melissa, que, segundo Brandão (1991: 102), é um derivado de (méli), mel, abelha. Assim, o vocábulo designa igualmente certas sacerdotisas e, em sentido figurado, poeta. Por vezes, a abelha foi identificada com Deméter na religião grega, em que podia simbolizar a alma descida aos infernos; da mesma forma, pode simbolizar ainda a eloquência, a poesia e a inteligência. A vida, a organização do trabalho, a vitória sobre o amor e sobre o destino, sua elevação moral, a realização dos ideais arcaicos, enfim, não pode ser humano, porém divino, segundo Vergílio, pois as abelhas têm uma parcela da divina inteligência, das emanações celestes: esse apibus partem diuinae mentis (Geo. IV, 220). A cidade das abelhas oferece um exemplo de monarquia inspirado pelo próprio Júpiter, pois o motivo, que anima esses pequenos animais, é a glória de gerar o mel: generandi gloria mellis! (Geo. IV, 205). Segundo Grimal (1992: 106), essa glória lembra o sentimento de dignitas, o motor da vida política para Mecenas. Elas são virtuosas e disciplinadas, servindo de modelo aos contemporâneos de Vergílio. Elas são infatigáveis, pois trabalham constantemente, transformando a natureza (Geo. IV, 158-159) e (Geo.IV, 184-188), de tal forma que suas virtudes lembram os velhos costumes romanos, mores antiqui. Assim, as abelhas vergilianas, com suas coletivas virtudes, omnibus una quies operum, labor omnibus unos (Geo. IV, 184 ), seu patriotismo, abnegação e devoção a seu rei, provavelmente, se referem ao caráter do velho romano. O poeta ilustra a apicultura com o mito de Orfeu e Eurídice emoldurado pelo de Aristeu. Inserida na história de Aristeu, está a tragédia de Orfeu, nos versos 453 a 527. Pelo mito, observa-se a desventura do amor, demonstrando a impotência do homem diante do destino. O apicultor Aristeu é apontado como a causa da morte da esposa de Orfeu (Geo. IV 33 458-459), que, ao tentar violentá-la, foi picada, em sua fuga, por uma serpente. E como castigo, Aristeu perdeu suas abelhas. O músico e cantor, Orfeu, desesperado, desceu aos Infernos para trazer a esposa de volta. O episódio da descida de Orfeu ao mundo dos mortos revela, em um sentido clássico, uma reflexão sobre a morte e a continuidade da tradição multissecular, que atribuía à música e ao canto poderes mágicos que transcendiam a vontade dos próprios deuses. Orfeu, no epílio, não é o portador e o revelador de mistérios. Em sua história trágica (Geo. IV, 453 - 527), ele é o homem sem sorte e doente de amor. Reina, em sua tragédia, uma situação lírica, projetando o próprio inferno. Ao relatar sua história de amor e morte, ele luta em vão contra o destino. Para Orfeu, o amor é a razão essencial de sua vida como a fidelidade à sua amada, tornando-o um herói humano. A própria natureza ressoa um eco dominado por um canto triste e insistente: “Ele te cantava, doce esposa, sozinho consigo mesmo na
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