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Fundamentos da Literatura Ocidental

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Introdução aos Estudos Clássicos 
 
 
 
 
 
 
 
Milton Marques Júnior 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
João Pessoa, 2008 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Caros Alunos, 
Esta disciplina Introdução aos Estudos Clássicos vai apresentar-
lhes o mundo da poesia heróica e da poesia dramática, a partir da 
leitura de textos escolhidos de seus principais autores, como Homero e 
Virgílio, no gênero épico, e Ésquilo, Sófocles e Eurípides, no gênero 
dramático. Com a leitura dos autores escolhidos, teremos condições de 
compreender um conceito sobre o Clássico e a funcionalidade das 
literaturas grega e latina, conhecendo sua periodização e suas 
especificidades. O estudo da poesia épica, sobretudo, vai ajudá-los a 
perceber a obra de Homero e de Virgílio como textos deflagradores do 
fenômeno literário do Ocidente, importantes, portanto, para a nossa 
cultura. 
O objetivo desta disciplina é dar-lhes as condições necessárias 
para perceber na nossa época e na nossa cultura os elementos de um 
mundo antigo que muitos supõem morto e enterrado no passado. 
Apenas com o contato direto com os textos do passado é que teremos 
condições de entender o processo de evolução de nossa cultura e o 
modo como ela se apresenta na contemporaneidade. Assim, ao 
reconhecermos a sua permanência na cultura ocidental e, mais 
especificamente, na literatura brasileira, passaremos a compreendê-la 
melhor. 
A nossa disciplina está divida em quatro unidades. A primeira 
unidade mostrará uma introdução e contextualização do mundo 
clássico greco-latino; a segunda unidade visa ao estudo de Homero, 
com a leitura detalhada do Canto I da Ilíada; a terceira unidade 
pretende dar uma visão genérica dos autores do teatro trágico, e a 
quarta unidade se centrará no estudo de Virgílio e na leitura do Livro I 
da Eneida. 
No tocante ao processo de avaliação, ela deverá ser feita 
continuamente, através de exercícios e questionários periódicos; 
participação nos debates no fórum ou on-line e, evidentemente pela 
contribuição dada por cada um, a partir da reflexão sobre temas 
discutidos nas aulas. 
Passemos, pois, a conhecer um pouco desse mundo, a partir do 
material que preparamos. 
 
Professor Milton Marques Júnior 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
I – Primeira Unidade: Uma Introdução aos Estudos Clássicos 
 
1. Os Estudos Clássicos: uma tentativa de conceituação 
 
1.1. O Clássico no mundo de hoje 
Iniciamos grafando a palavra clássico com letra minúscula, 
diferentemente do que fazemos quando a ela nos referimos nos outros 
itens. Qual o sentido desta diferença? Acreditamos que o termo esteja 
tão banalizado – característica do mundo moderno, imediato e 
informatizado em que vivemos – que se torna difícil entender o que é 
o clássico. Num mundo em que tudo se torna clássico com a mesma 
velocidade com que aparece e desaparece, nada é clássico, 
obviamente. É isto mesmo: se tudo é clássico, nada é clássico. Não há 
mais distinção possível. Mundo da imagem, não da reflexão; mundo 
da concepção de que a aprendizagem é fácil e não dificultosa; mundo 
da atração que vem de fora e não da curiosidade que vem de dentro. É 
nesse mundo que o Clássico se viu misturado a qualquer coisa de 
somenos importância e foi diminuído de sua real importância. Não há, 
então, um lugar para o Clássico? Antes de respondermos a esta 
pergunta, passemos a verificar como o termo se constrói ao longo do 
tempo, para ser destruído pela modernidade em que vivemos. 
 
1.2. O Clássico na Grécia 
A referência primeira e maior que se tem sobre o Clássico – agora 
em maiúscula, para começarmos a distingui-lo, a separá-lo – está na 
Grécia e em Roma, durante o período que se convencionou chamar de 
Antiguidade Clássica. Período longo que abriga muitos fatos e muitas 
idéias, nem sempre ligadas, necessariamente, ao fenômeno que ele 
denomina. Que se trata de uma antiguidade é um fato inquestionável; 
que essa antiguidade é totalmente clássica, isso é plenamente 
discutível. Comecemos por determinar esse período. 
Os historiadores, como uma maneira didática de estudar a 
História, dividiram-na em períodos. Ao primeiro período da história 
ocidental, chamaram de Antiguidade Clássica, abrangendo um longo 
tempo entre os séculos VIII a. C. e o século V da Era Cristã. Assim, a 
Antiguidade Clássica vai da redescoberta da escrita pelos gregos 
(século VIII a. C) à queda do império romano no Ocidente, no ano 
476 (século V), resultado das invasões dos chamados povos bárbaros, 
provenientes do norte da Europa, a partir do século IV. Como 
podemos ver, trata-se de um longo período de treze séculos. Muitas 
pessoas, e não me refiro necessariamente aos historiadores, aludem a 
esses 1300 anos como se fossem um coisa só! Nada mais errôneo. As 
duas principais culturas da Antiguidade Clássica – a grega e a romana 
– se assemelham, mais esta àquela do que o contrário, mas são 
diferentes e, evidentemente, agem de modo diferente e com propósitos 
diferentes, na política, na guerra, na religião, na organização social, no 
comércio... 
Para o grego, então, o que é o Clássico? Diz-se Clássico o período 
cultural da Grécia entre o século V a. C. e o século IV a. C. Parece 
pouco, não? Posso-lhes afirmar, contudo, que se o conhecimento 
produzido, digamos, nesses cem anos tivesse sobrevivido na íntegra, 
os estudiosos teriam matéria para muitos e muitos séculos de estudo... 
Só de peças teatrais trágicas, há uma estimativa de que tenham sido 
produzidas mais de mil tragédias. Apenas trinta e duas sobreviveram... 
É nesse chamado Século de Ouro da Grécia, que se produz o maior 
nível artístico e intelectual do Ocidente, legando à humanidade futura 
um bem de valor incalculável. 
Não é por acaso que nesse momento a democracia toma o lugar da 
tirania; a filosofia questiona a verdade estabelecida; a palavra escrita 
ganha relevância jamais vista sobre a palavra oral; o teatro trágico 
mostra que a humanidade precisa de homens, não de heróis; cria-se o 
conceito de cidade (pólis) e de cidadão (polites), e o direito é comum a 
todos os que são iguais – os cidadãos. É a era de escritores como 
Ésquilo, Sófocles e Eurípides, a tríade do teatro trágico grego, e de 
filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles. E a cidade de Atenas, na 
Ática, é o palco de todas essas transformações. Veja o mapa abaixo. 
 
 
 
 
 
1.3. O Clássico em Roma 
Como estamos fazendo uma incursão pelo mundo clássico, é 
necessário que avancemos um pouco além e cheguemos a Roma. Esta 
cidade que dominaria o mundo, primeiro pelas armas, depois pela 
herança cultural, começou como uma simples vila de pastores, na 
metade do século VIII a. C., em 753. A Roma que nos interessa, mais 
especificamente, neste tópico, é a Roma compreendida entre o século I 
a. C. e o século I da Era Cristã, quando a famosa cidade, já centro do 
mundo conhecido, atinge seu melhor momento artístico-cultural, 
apesar de conturbado momento político que vai da transição da 
República ao início do Império (cerca de 60 a. C. a 29 a. C.), passando 
pelas guerras civis. A Grécia também viu seu momento especial ser 
marcado pelas guerras contra os persas (início do século V a. C., cerca 
499-479) e até contra Esparta, na famosa guerra do Peloponeso (431-
404 a.C.). 
Assim, podemos marcar o período Clássico em Roma do 
aparecimento da retórica com Cícero, por volta de 80 a. C., até o 
romance de costumes com Petrônio, cerca de 68 da nossa era. Nesse 
intervalo se produziu o melhor da literatura latina com o aparecimento 
de grandes poetas, protegidos por Mecenas, amigo do imperador 
Augusto: Catulo, Horácio e Virgílio estão entre eles. Nessa época 
também surgiria o maior dos poemas do mundo latino – a Eneida (17 
a. C.), poema quecelebra a glória de Roma, na figura de Enéias, o 
troiano incumbido da ingente tarefa de fundar uma nova Tróia, que 
daria origem à mais gloriosa das cidades. É o período que se costuma 
chamar de Século de Augusto. Veja no mapa abaixo a localização de 
Roma, na Península Itálica, numa situação privilegiada e estratégica 
no Mediterrâneo. 
 
 
 
1.4. O Classicismo 
Seguindo o raciocínio que vimos desenvolvendo sobre o Clássico, 
período que criou na Grécia e em Roma momentos de alta qualidade 
cultural e literária, é de se esperar que estas características sejam 
irradiadas ao longo da história da humanidade e recuperadas 
ciclicamente. Assim, vemos o século XV nos trazer o mundo moderno 
e, a reboque, a consolidação dos valores clássicos, já apregoados pelo 
humanismo, desde o século XI. O Renascimento, movimento 
filosófico, artístico, cultural e político, que nasce na Itália e se alastra 
pela Europa ocidental, tem como desdobramento natural o 
Classicismo. O Classicismo europeu se configura para nós brasileiros 
na obra do português Luís Vaz de Camões (1525-1580), 
principalmente em Os Lusíadas (1572), poema épico da glorificação 
da navegação portuguesa e da descoberta do caminho para as Índias, 
permitindo a expansão para o Oriente, através do Atlântico, oceano de 
navegação, até então, desconhecida. O poema retoma a tradição da 
épica clássica de Homero e Virgílio, na exaltação dos feitos heróicos 
de um povo, de uma nação ou de um herói, com a exaltação centrada 
na figura histórica do navegador Vasco da Gama (1469-1524), tomado 
metonímica e ficcionalmente como a nação lusitana. 
Assim, não se pode confundir o Clássico com o Classicismo. O 
Classicismo é por definição um movimento cultural que visa ao 
retorno do Clássico, em outra circunstância, com outros objetivos. A 
nova Europa que nascia das grandes navegações, a partir de 1453, 
com a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, era o campo 
propício para a volta dos grandes heróis épicos, navegadores, cujo 
símbolo maior eram Ulisses e Enéias. Os ideais filosóficos de busca 
da verdade são retomados e a verdade absoluta da Igreja Católica, de 
base medieval, é questionada. O cisma religioso com Martinho Lutero 
(1483-1546), a partir da publicação de suas teses contra a venda de 
indulgências, em 1517, fortalece ainda mais o Renascimento, pois o 
protestantismo significa perda da hegemonia da Igreja Católica. O 
mundo que se descortina com novas culturas leva a novas reflexões, e 
a própria configuração do universo se modifica com o heliocentrismo 
de Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-1642) e 
outros. Para o momento, nada melhor do que ter o homem como 
centro desse universo – antropocentrismo – em oposição ao 
teocentrismo medieval. É isso que faz o gênio de Leonardo da Vinci 
(1452-1519), quando imagina e desenha O Homem Vitruviano. Nada 
mais clássico do que o homem como medida de todas as coisas... 
 
 
 
 
 
1.5. O Neoclassicismo 
Como última representação do Clássico greco-latino toma força, 
no século XVIII, o Arcadismo ou Neoclassicismo, em plena era da 
racionalidade iluminista. Tratava-se de um movimento literário 
nascido na Itália, desde 1690, com a Arcádia Romana, e continuado 
em Portugal (Arcádia Lusitana, 1756), de onde chegaria ao Brasil e 
floresceria na Minas Gerais aurífera de 1768 em diante. O ideal do 
movimento era a volta ao estado natural dos tempos míticos da Idade 
de Ouro, tempos em que os homens desfrutavam da companhia dos 
deuses e não precisavam trabalhar ou acumular, pois a natureza farta e 
generosa se encarregava de prover todas as necessidades. Essa vida 
simples, em meio à natureza deleitosa, sem preocupações com o 
amanhã, que se perde diante da ganância do homem, tem sua origem 
no poema Os trabalhos e os dias, do poeta grego Hesíodo (século VIII 
a. C.). Constatamos, pois, que, pelo tema ou pelo nome do movimento 
– Arcadismo –, a ligação com o Clássico é inquestionável. Esse 
momento, porém, como um de seus nomes indica, trata de um Novo 
Classicismo. Não sendo o Classicismo do século XV, também não é o 
Clássico da Idade Antiga, mas vai buscar o alimento da sua doutrina 
em ambos. Podemos dizer que o Clássico greco-latino é 
contemporâneo de si mesmo, procurando o seu próprio mundo e seu 
próprio tempo. O Classicismo surge em um momento propício ao 
retorno do heroísmo passado por causa da expansão provocada pelas 
grandes navegações. Agora o Neoclassicismo prega a volta a um 
passado mítico, de homens moderados, em perfeito equilíbrio com a 
natureza acolhedora e os deuses que os criaram. Por que esta busca de 
um tempo mítico e idílico? Corrompidos por si mesmos, os homens 
brutalmente jogam-se uns contra os outros e a queda é fatal: na Idade 
de Ferro em que se encontram, não há mais espaço para Vergonha 
(Aidôs) e Justiça (Nêmesis), deusas que se retiram de seu convívio. 
Os homens já não vivem em harmonia consigo mesmos, muito menos 
com os deuses... 
Sem a contribuição do Clássico greco-latino, não teríamos, por 
exemplo a obra-prima de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) 
Marília de Dirceu. 
 
 
 
 
1.6. Há espaço para o Clássico? 
 
“Onde encontrar o tempo e a comodidade 
da mente para ler clássicos, esmagados que 
somos pela avalanche de papel impresso da 
atualidade?” 
 
Abro esta última seção com a pergunta inquietante de Ítalo 
Calvino (1993: 14), que deve ser a mesma de todos os que estudam e 
que pretendem conhecer mais os clássicos. Eu acrescentaria que 
somos ainda esmagados por uma avalancha muito maior de 
informações incorpóreas do mundo virtual da internet, que torna quase 
impossível uma reflexão sobre elas. A rapidez e a quantidade da 
informação produzida, em ambiente sedutor de alta tecnologia, 
contribuem para que se afaste o leitor do livro e, mais 
especificamente, do Clássico, na visão de muitos um mundo antigo, 
obsoleto, empoeirado, cuja ressonância no mundo dito moderno é 
inaudível ou quase. 
Constatamos, no entanto, que o Clássico aparece e, retomado 
como um ciclo, permanece, porque fundado em valores universais e 
entranhados no ser humano. O Clássico vive em permanente estado de 
movimentação, o que lhe garante a eternidade. Há dois mil e 
oitocentos anos, Homero é escutado, lido, comentado e analisado. 
Nenhum outro autor na história da humanidade ocidental é tão 
prestigiado quanto Homero. A Ilíada e a Odisséia continuam 
encantando gerações e gerações de leitores, filmes continuam sendo 
feitos, em cada página há ainda um mundo a se descobrir com relação 
a estes poemas, incansavelmente editados, para ficarmos apenas com 
Homero. 
E o que dizer dos tragediógrafos, cujas peças são modernas, 
inquientantemente modernas? A internet encanta e seduz pela resposta 
direta e on-line? Leiam o início do Agamêmnon de Ésquilo (Século V 
a. C.) e verão que o sistema de fogueiras acesas ao longo das ilhas do 
mar Egeu para dar a notícia a Clitemnestra do retorno do rei 
Agamêmnon à Grécia, acabada a guerra de Tróia, antecipa em, pelo 
menos, 2500 anos a internet... 
Há espaço, sim, para o Clássico. O que precisamos é de escolas, 
bibliotecas e uma melhor formação dos nossos professores – parece 
que para isto é que não há espaço, infelizmente –, pois para onde nos 
voltamos vemos a marca viva do passado em nossas vidas, nos nossos 
nomes, nos nossos costumes, na maneira como nos organizamos e até 
como escrevemos. Finalizando esta introdução, diríamos à maneira de 
Ítalo Calvino que “ler os clássicos é melhor do que não ler os 
clássicos” (1993: 16). 
 
 
 
 
 Busto de Homero (Museu do Louvre) e Fragmento da Ilíada 
 
 
De forma a fixar o exposto até aqui, propomos a leitura 
acompanhada de uma das Liras de Marília de Dirceu, de Tomás 
Antônio Gonzaga. Gonzaga, na sua erudição, passeia pela antiguidade 
greco-latina de Homero a Horácio, passando por Virgílio e pelos 
ciclos da mitologiagrega. Não há como ler o narcisismo de Dirceu, 
sem conhecer o mito de Narciso ou como entender as penas e 
dificuldades do amor de Dirceu e de Marília, sem conhecer os amores 
trágicos de Hero e Leandro ou Orfeu e Eurídice. Constatar o 
aproveitamento sadio da vida, na paz do campo, pelos pastores, sem 
preocupações com o amanhã, colhendo a ocasião que se apresenta, só 
é possível com o conhecimento do carpe diem horaciano. É preciso, 
pois, ler a Marília de Dirceu dentro de uma perspectiva de 
entrelaçamento textual como o Clássico, procurando trazer à tona essa 
relação existente nas diversas Liras, os seus temas recorrentes e 
reescrituras, como a beleza divina de Marília, os sofrimentos 
provocados por Amor e a exaltação do carpe diem horaciano. 
Marília de Dirceu é um longo poema lírico, com quase 5000 
versos, em louvor a Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, dividido e 
publicado em três partes, nos anos de 1792, 1799 e 1812. O texto que 
vamos abordar, a Lira VII, pertence à primeira parte do poema que 
trata do amor do pastor Dirceu por sua amada, a pastora Marília, cuja 
beleza é ressaltada e enaltecida. De beleza divinizada, Marília chega a 
ser louvada como mais bela do que as três deusas olímpicas, padrões 
da beleza clássica: Hera (Juno), Afrodite (Vênus) e Palas Atena 
(Minerva). Dirceu faz vários retratos de Marília, mas não deixa de 
fazer um retrato de si próprio, propagandeando a sua mocidade, sua 
força de mando e propriedades, além de sua destreza como poeta. É a 
parte mais árcade do poema, cuja ambientação, muito genérica, reflete 
a natureza equilibrada do mítico mundo clássico. É importante 
ressaltar a forte presença mitológica, imprescindível para a 
compreensão do poema. Vamos à Lira VII
1
. 
 
Lira VII 
 
Vou retratar a Marília, 
A Marília, meus amores; 
Porém como? se eu não vejo 
Quem me empreste as finas cores! 
Dar-mas a terra não pode; 
Não, que a sua cor mimosa 
Vence o lírio, vence a rosa, 
O jasmim e as outras flores. 
Ah! socorre, Amor, socorre 
Ao mais grato empenho meu! 
Voa sobre os Astros, voa, 
Traze-me as tintas do Céu. 
 
1
 GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu. In: A poesia dos inconfidentes: 
poesia completa de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e 
Alvarenga Peixoto; organização de Domício Proença Filho; artigos, ensaios e notas 
de Melânia Silva de Aguiar et alii. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1966, p. 583-584. 
 
Mas não se esmoreça logo; 
Busquemos um pouco mais; 
Nos mares talvez se encontrem 
Cores, que sejam iguais. 
Porém não, que em paralelo 
Da minha ninfa adorada 
Pérolas não valem nada, 
Não valem nada os corais. 
Ah! socorre, Amor, socorre 
Ao mais grato empenho meu! 
Voa sobre os Astros, voa, 
Traze-me as tintas do Céu. 
 
Só no céu achar-se podem 
Tais belezas como aquelas, 
Que Marília tem nos olhos, 
E que tem nas faces belas; 
Mas às faces graciosas, 
Aos negros olhos, que matam, 
Não imitam, não retratam 
Nem auroras nem Estrelas. 
Ah! socorre, Amor, socorre 
Ao mais grato empenho meu! 
Voa sobre os Astros, voa, 
Traze-me as tintas do Céu. 
 
Entremos, Amor, entremos, 
Entremos na mesma Esfera; 
Venha Palas, venha Juno, 
Venha a Deusa de Citera. 
Porém, não, que se Marília 
No certame antigo entrasse, 
Bem que a Páris não peitasse, 
A todas as três vencera. 
Vai-te, Amor, em vão socorres 
Ao mais grato empenho meu: 
Para formar-lhe o retrato 
Não bastam tintas do Céu. 
 
Trata-se de uma Lira constituída por quatro estrofes de doze 
versos heptassílabos, nitidamente dividida em um agrupamento inicial 
de oito versos (oitava) e um posterior de quatro versos (quadra ou 
quarteto), funcionando como refrão, em que se observa uma mudança 
apenas na última estrofe, tendo em vista a inutilidade do esforço de 
Amor para encontrar tintas que possam reproduzir a beleza de Marília. 
O esquema das rimas é misturado, do tipo ABCBDEEBFGHG, 
observando-se a existência de versos brancos. 
Marília é retratada como pura e recatada, pois “sua cor 
mimosa/Vence o lírio, vence a rosa,/ O jasmim e as outras flores”. Sua 
beleza é sem igual, superando as cores vivas dos corais e a brancura 
leitosa das pérolas. Prepara-se já nessa estrofe a divindade de Marília, 
com Dirceu chamando-a de “ninfa adorada”, numa referência às 
divindades protetoras dos bosques, e da natureza de modo geral, 
encarnadas por mulheres extremamente belas. 
A terceira estrofe reforça a beleza de Marília, fazendo-a mais 
brilhante que as estrelas, mais bela que a Aurora, deusa responsável 
pela abertura das portas do Oriente, com seus dedos cor de rosa, para a 
saída de Apolo cavalgando o carro do Sol. Com esta terceira estrofe, 
fecha-se o ciclo: Marília é constituída por algo superior aos quatro 
elementos básicos – terra, água, ar e fogo – vez que não existe nestes 
quatros elementos nada comparável à sua beleza. 
A última estrofe é a confirmação dessa beleza com a alusão à 
disputa do Monte Ida. Marília é confrontada com as três deusas 
olímpicas, consideradas padrão de beleza clássica – Hera (Juno), Palas 
Atena (Minerva) e Afrodite (Vênus), aqui chamada pelo epíteto de 
Deusa de Citera. Recuperemos a história mítica. 
Palas Atena, deusa da sabedoria participa de um concurso de 
beleza, envolvendo Hera e Afrodite, para saber qual a mulher mais 
bela presente na festa de casamento de Peleu e Thétis, os futuros pais 
de Aquiles. A deusa Discórdia ou Éris, furiosa por não lhe darem 
atenção durante o casamento de Peleu e Thétis, fez surgir entre os 
convidados um pomo de ouro, destinado "à mais bela". Prontamente 
as três deusas passaram a reivindicar o título e fruto. Zeus, não 
querendo decidir uma questão tão delicada, chamou Hermes e mandou 
que ele as levasse ao Monte Ida, onde o pastor Páris faria a escolha. 
Apresentando-se diante de Páris, cada uma das deusas tentou suborná-
lo. Hera ofereceu-lhe a realeza; Palas prometeu-lhe a invencibilidade 
na guerra; Afrodite, desnudando os seios, garantiu-lhe o amor da mais 
bela das mulheres, Helena da Lacedemônia. Após estas ofertas, Páris 
entregou o pomo a Afrodite, fazendo o ódio das outras duas se voltar 
contra si e contra os troianos. Esta inimizade se fará sentir durante a 
guerra de Tróia, desencadeada pelo rapto de Helena por Páris, ocasião 
em que Palas e Hera se colocarão ao lado dos gregos, portanto, 
contrárias a Páris e aos troianos, protegidos por Afrodite 
Afrodite aparece no texto da Lira através de um dos seus vários 
epítetos deusa de Citera. No tocante ao seu nascimento, pelo menos 
duas tradições são registradas: a primeira afirma que Afrodite seria a 
filha de Zeus e Dione, conforme vemos na Ilíada, de Homero (V, 370-
372; XIV, 224; XXIII, 185); a segunda, defendida por Hesíodo, 
apresenta a deusa como filha de Urano e das espumas do mar (versos 
134-210). De acordo com a versão da Teogonia de Hesíodo, Urano 
teve o órgão sexual cortado e atirado por seu filho Cronos ao mar. 
Assim, da mistura do esperma do deus com as espumas, teria nascido 
Afrodite. Tão logo nasceu, a deusa foi conduzida pelas ondas, ou por 
Zéfiro, o vento, para a Ilha de Citera, daí o seu epíteto de Citeréia. 
Páris, filho de Príamo e Hécuba, reis de Tróia, foi designado 
pelo pai para ser morto, devido a uma profecia que o apontava como 
futuro responsável pela destruição do reino. Por piedade, o pastor 
incumbido de tal tarefa o criou. Uma vez adulto, Páris é reconhecido 
por Cassandra, sua irmã, e reintegrado à família real. A quarta estrofe 
do poema, portanto, refere-se ao julgamento que Páris, teve de fazer, 
para escolher a mais bela das três deusas, cujas conseqüências serão o 
rapto de Helena, a guerra contra os gregos e a destruição de Tróia. Ao 
aludir ao fato, Dirceu quer não apenas mostrar a superioridade de 
Marília em relação à beleza clássica, mas também atualizar o mito. 
Páris a fariavencedora sem que Marília necessitasse suborná-lo. Se 
não há suborno, não há o rapto de Helena, sem o qual a guerra de 
Tróia não acontecerá. Em não acontecendo a guerra, Aquiles não 
morre. Vê-se, portanto, que Helena contraposta a Marília, marca a 
oposição entre a beleza ruinosa (Helena) e a beleza benfazeja 
(Marília), contribuindo para a harmonia do mundo. E há mais: como o 
poeta-pastor diz que para formar o retrato de Marília não bastam tintas 
do céu, o único meio de eternizá-la é pela memória, através do mito, o 
ideal. Daí o aproveitamento do mito do julgamento de Páris, para 
configurar a beleza divina e eterna de Marília. Só o mito torna 
possível a perenidade e a lembrança, pois se o rito comemora, o mito 
rememora. Tal leitura só é possível com o conhecimento do mito de 
Páris e Helena, constante do poema O rapto de Helena, de Colutos 
(século VI d. C.). 
TEXTO PARA EXERCÍCIO 
 
Leia o texto abaixo e procure compreendê-lo a partir dos 
elementos do mundo clássico nele existentes. Para a sua análise, 
recomendamos o conhecimento do mito de Apolo e Dafne. 
 
Soneto 122 
 
O filho de Latona, esclarecido, 
Que com seu raio alegra a humana gente, 
O hórrido Piton, brava serpente, 
Matou, sendo das gentes tão temido. 
 
Ferio com arco e de arco foi ferido, 
Com ponta aguda de ouro reluzente; 
Nas tessálicas praias, docemente, 
Pola Ninfa Penea andou perdido. 
 
Não lhe pôde valer, para seu dano, 
Ciência, diligências, nem respeito 
De ser alto, celeste e soberano. 
 
Se este nunca alcançou nem um engano 
De quem era tão pouco em seu respeito, 
Eu que espero de um ser que é mais que humano?
2
 
 
Luís Vaz de Camões 
 
 
TEXTOS DE APOIO 
 
1. MITO DE APOLO E DAPHNE 
MITO DE PYTHON (v. 416-451). A terra engendrou dela mesma os 
outros animais sob formas diversas, assim que a umidade que ela ainda 
retinha foi esquentada sob os fogos do sol, quando o calor inflou a lama e as 
 
2
 CAMÕES, Luís Vaz de. Sonetos de Camões (corpus dos sonetos camonianos); 
edição e notas por Cleonice Serôa da Motta Berardinelli. Paris: Centre Culturel 
Portugais Lisbonne; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980, p. 180. 
águas pantanosas, quando os germes fecundos das coisas, nutridos por um 
solo vivificante, se desenvolveram como no ventre de uma mãe e tomaram 
com o tempo aspectos diferentes. Assim, quando o Nilo das sete 
embocaduras deixou os campos inundados e levou de volta suas torrentes 
para seu antigo leito, quando do alto dos ares o astro do dia fez sentir sua 
chama no limo recente, os cultivadores, retornando à gleba, lá encontram um 
grande número de animais; eles vêem alguns que estão apenas esboçados, no 
momento mesmo de seu nascimento, outros imperfeitos e desprovidos de 
alguns de seus órgãos; muitas vezes no mesmo corpo uma parte está viva, a 
outra não é senão ainda terra informe. Com efeito, assim que a umidade e o 
calor se combinaram um com ou outro, eles concebem; é destes dois 
princípios que nascem todos os seres; ainda que o fogo seja inimigo da água, 
uma claridade úmida engendra todas as coisas e a concórdia na discórdia 
convém à reprodução. Portanto, tão logo a terra coberta de lama pelo dilúvio 
recente
3
, recomeça a receber do alto dos ares o calor dos raios do sol, ela deu 
à luz espécies inumeráveis; tanto ela devolveu aos animais sua figura 
primitiva, quanto ela criou monstros novos. Foi contra sua vontade que ela 
engendrou também nessa época a colossal Python; para os povos recém-
nascidos, serpente então desconhecida, tu era um objeto de terror, tanto tu 
ocupavas o espaço ao longo da montanha. O arqueiro divino, que jamais 
antes não havia se servido de suas armas senão contra os gamos e os cabritos 
prontos para a fuga, a abateu com mil setas; quase esvaziando sua aljava, ele 
a matou; por negras feridas se espalhou o veneno da fera. Para que o tempo 
não pudesse apagar a memória deste feito, ele instituiu, sob a forma de 
concursos solenes, os jogos sagrados que do nome da serpente vencida 
tomaram o nome de Pythicos. Nestes jogos, os jovens, que por seus punhos, 
suas pernas ou as rodas de seus carros tinham tido a vitória, recebiam como 
recompensa uma coroa de carvalho; o loureiro ainda não existia e, para 
cingir seus longos cabelos ao redor de sua bela fronte, Febo tomava 
emprestado seu ramo a árvores de toda sorte. 
MITO DE DAPHNE (v. 452-567). O primeiro amor de Febo foi Daphne, 
filha de Peneu; sua paixão nasceu, não de um desconhecido acaso, mas de 
uma violenta ira de Cupido. Recentemente, o deus de Delos, orgulhoso de 
sua vitória sobre a serpente, o vira curvar, puxando a corda para si, as duas 
 
3
 O dilúvio enviado por Zeus, para punir os homens (Les métamorphoses, I, v. 253-
312). 
extremidades de seu arco: “Que tens a fazer, louca criança, disse ele, destas 
armas poderosas? Cabe-me a mim suspendê-las em minhas espáduas; com 
elas eu posso desferir golpes inevitáveis em uma besta selvagem, em um 
inimigo; ainda há pouco, quando Python cobria grande superfície com seu 
ventre inchado de venenos, eu a abati sob minhas flechas inumeráveis. Para 
ti, que te seja suficiente iluminar com tua tocha não sei que fogos de amor; 
guarda-te de pretender meus sucessos”. O filho de Vênus lhe respondeu: 
“Teu arco, Febo, pode tudo furar; o meu vai te furar a ti mesmo; tanto todos 
os animais estão abaixo de ti, quanto tua glória é inferior à minha”. Ele disse, 
fende o ar com o batimento de suas asas e, sem perder um instante, se posta 
sobre o cimo umbroso do Parnaso; de sua aljava cheia de flechas, ele retira 
duas setas que têm efeitos diferentes: uma expulsa o amor, a outra o faz 
nascer. A que o faz nascer é dourada e armada com uma ponta aguda e 
brilhante; aquela que o expulsa é arredondada e sob a haste contém chumbo. 
O deus fere com a segunda a ninfa, filha de Peneu; com a primeira ele 
traspassa através dos ossos o corpo de Apolo até a medula. Este ama logo; a 
ninfa foge até ao nome do amante; os abrigos das florestas, os despojos dos 
animais selvagens que ela capturou fazem toda a sua alegria; ela é a êmula 
da casta Febe
4
; uma faixa retinha só seus cabelos caindo em desordem. 
Muitos pretendentes a pediram, mas ela desdenhando todos os pedidos, 
recusando-se ao jugo de um esposo, ela percorria a solidão dos bosques; o 
que é o canto do himeneu, o amor, o casamento? Ela não se inquietava de 
sabê-lo. Freqüentemente seu pai lhe disse: “Tu me deves um genro, minha 
filha”. Mas ela, como se se tratasse de um crime, ela tem horror às tochas 
conjugais; o rubor da vergonha se espalha sobre seu belo rosto e, com os 
braços carinhosos suspensos no pescoço de seu pai, ela lhe responde: 
“Permite-me, pai bem-amado, gozar eternamente minha virgindade; Diana 
bem que o obteve do seu
5
”. Ele consente, mas tu tens encantos demasiados, 
Daphne, para que seja como tu o desejas, e tua beleza faz obstáculos a teus 
votos. Febo ama, ele viu Daphne, ele quer se unir a ela; o que ele deseja, ele 
o espera e ele está enganado por seus próprios oráculos
6
. Como uma palha 
leve se abrasa, depois que se colheram as espigas, como uma sebe se 
consome ao fogo de uma tocha que um viajante por acaso dela aproximou 
demasiado ou que ele ali deixou quando o dia já nascia; assim o deus 
inflamou-se; assim ele queima até o fundo de seu coração e nutre de 
esperança um amor estéril. Ele contempla os cabelos da ninfa flutuando 
sobre seu pescoço sem ornamentos: “Que aconteceria, diz ele, se ela tomasse 
 
4
 A deusa Diana (Ártemis), a irmã de Apolo, de cujo séquito Daphne participava. 
5
 Referência a Júpiter (Zeus), pai de Diana (Ártemis). 
6
 Como deus da profecia, Apolo deveria saber que não teria sucesso no amor com 
Daphne, mas o amor engana até os profetas...cuidado com seu penteado?” Ele vê seus olhos brilhantes com os astros; ele 
vê sua pequena boca, que não lhe é suficiente apenas ver; ele admira seus 
dedos, suas mãos, seus punhos e seus braços mais que seminus; o que para 
ele está escondido, ele o imagina mais perfeito ainda. Ela, ela foge, mais 
rápido que a brisa ligeira; ele tenta lembrá-la, mas não pode retê-la por tais 
propósitos: 
“Ó ninfa, eu te imploro, filha de Peneu, pára; não é um inimigo quem te 
persegue; ó ninfa, pára. Como tu, a ovelha foge do lobo; a corça, do leão; as 
pombas com as asas trêmulas fogem da águia; cada uma tem seu inimigo; 
eu, é o amor que me joga sobre tuas pegadas. Qual não é minha infelicidade! 
Cuidado para não cair à frente! Que tuas pernas não sofram indignamente 
feridas, a marca das sarças, e que eu não seja para ti uma causa de dor! O 
terreno sobre o qual te lanças é rude; modera tua corrida, eu te suplico, 
diminui a tua fuga; eu mesmo, eu moderarei minha perseguição. Sabe, no 
entanto, que tu me encantaste; eu não sou um montanhês, nem um pastor, ou 
um desses homens incultos que vigiam os bois e os carneiros. Tu não sabes, 
imprudente, tu não sabes de quem tu foges e porque tu foges. É a mim que 
obedecem o país de Delfos
7
 e Claros
8
 e Tênedos
9
 e a residência real de 
Patara
10
; eu tenho por pai Júpiter; foi a mim que ele revelou o futuro, o 
passado e o presente; sou eu que caso o canto aos sons das cordas. Minha 
flecha acerta golpes certeiros; um outro, no entanto, acerta mas seguramente 
ainda, foi ele que feriu meu coração, até então isento deste mal. A medicina 
é uma das minhas invenções; em todo o universo me chamam o que socorre 
e o poder das plantas me é submisso. Ai de mim! não existem plantas 
capazes de curar o amor e minha arte, útil a todos, é inútil a seu mestre.” 
Ele ia dizer ainda mais, porém a filha de Peneu continuava sua corrida 
louca, fugiu e o deixou lá, ele e seu discurso inacabado, sempre tão bela a 
seus olhos; os ventos desvelavam sua nudez; seu sopro, vindo sobre ela em 
sentindo contrário, agitava suas vestes e a brisa ligeira jogava para trás seus 
cabelos levantados; sua fuga realça ainda mais sua beleza. Mas o jovem deus 
renuncia a lhe endereçar em vão ternos propósitos e, levado pelo próprio 
amor, ele segue os passos da ninfa redobrando a sua velocidade. Quando um 
cão gaulês percebia uma lebre na planície descoberta, ambos disparavam, 
um para pegar a presa, outro para salvar sua vida; um parece sobre o ponto 
de pegar o fugitivo, ele espera segurá-lo em um instante e, o focinho tenso, 
estreita de perto suas pegadas; o outro, incerto se ele o pegou, se livra das 
 
7
 Cidade na Grécia, onde Apolo tem seu templo mais famoso. 
8
 Cidade na Jônia, onde existe um templo de Apolo. 
9
 Ilha no mar Egeu, em frente a Tróia, onde existe o célebre templo de Apolo 
Esmintheu, o dos ratos. 
10
 Residência dos soberanos da Lícia, na Ásia Menor. Apolo é chamado também de 
Apolo Lício. 
mordidas e esquiva-se da boca que o tocava; assim o deus e a virgem são 
levados um pela esperança, outro pelo medo. Mas o perseguidor, levado 
pelas asas de Amor, é mais rápido e não tem necessidade de repouso; já ele 
se inclina sobre as espáduas da fugitiva, ele roça com o hálito os cabelos 
esparsos sobre seu pescoço. Ela, no fim das forças, empalideceu; quebrada 
pelo cansaço de uma fuga tão rápida, os olhares voltados para as águas do 
Peneu: “Vem, meu pai, diz ela, vem em meu socorro, se os rios como tu têm 
um poder divino, livra-me por uma metamorfose desta beleza demasiado 
sedutora”. 
Mal acabara sua prece e um pesado torpor se apossa de seus membros; 
uma fina casca cobre seu seio delicado; seus cabelos que se alongam se 
mudam em folhagem; seus braços, em ramos; seus pés, logo tão ágeis, 
aderem ao solo por raízes incapazes de se mover; o cimo de uma árvore 
coroa sua cabeça; de seus encantos não resta senão o brilho. Febo, no 
entanto, sempre a ama; sua mão posta sobre o tronco, ele sente ainda o 
coração palpitar sobre a casca recente; cercando com seus braços os ramos 
que substituem os membros da ninfa, ele cobre a madeira com seus beijos; 
mas a árvore recusa seus beijos. Então o deus: “Bem, diz ele, visto que não 
podes ser minha esposa, ao menos serás minha árvore; para todo o sempre tu 
ornarás, ó loureiro, minha cabeleira, minhas cítaras, minhas aljavas; tu 
acompanharás os condutores do Lácio, quando vozes alegres farão escutar 
cantos de triunfo e o Capitólio
11
 verá vir até ele longos cortejos. Tu 
crescerás, guardião fiel, diante da porta de Augusto
12
 e tu protegerás a coroa 
de carvalho suspensa no meio; igualmente, que minha cabeça, cuja cabeleira 
jamais conheceu tesoura, conserve sua juventude, igualmente a tua será 
sempre ornada com uma folhagem inalterável
13
”. Peã
14
 havia falado; o 
loureiro inclina seus galhos novos e o deus o viu agitar seu cimo como uma 
cabeça.
15
 
 
 
11
 Principal sítio de Roma. 
12
 Dois loureiros davam sombra ao palácio do imperador Augusto, no Palatino. 
13
 O loureiro não perde as folhas no inverno. 
14
 Um dos epítetos de Apolo e nome do hino em sua honra. 
15
 OVIDE. Les métamorphoses; texte traduit par Georges Lafaye. Paris: Les Belles 
Lettres, 1928. Tradução operacional de Milton Marques Júnior. 
2. O MITO DAS RAÇAS HUMANAS
16
 
 
De ouro foi a primeira raça de homens perecíveis, que os Imortais 
habitantes do Olimpo criaram. Eram os tempos de Cronos, quando ele 
reinava ainda no céu. Eles viviam como deuses, o coração livre de 
inquietações, longe e ao abrigo das penas e das misérias: a velhice miserável 
não pesava sobre suas cabeças; ao contrário, braços e pernas sempre jovens, 
eles se alegravam nos festins, longe de todos os males. Quando morriam, 
pareciam sucumbir ao sono. Todos os bens lhes pertenciam: o solo fecundo 
produzia espontaneamente uma abundante e generosa colheita, e eles, na 
alegria e na paz, viviam de seus campos, no meio de bens inumeráveis. 
Desde que o solo recobriu os desta raça, eles são, pela vontade de Zeus 
Todo-Poderoso, os bons gênios da terra, guardiães dos mortais, 
distribuidores da riqueza: é a honra real que lhes foi atribuída em partilha. 
Em seguida uma raça bem inferior, uma raça de prata, mais tarde foi 
criada ainda pelos habitantes do Olimpo. Estes não parecem nem pelo talhe 
nem pelo espírito aos da raça de ouro. A criança, durante cem anos, crescia 
brincando ao lado de sua digna mãe, a alma toda pueril, na sua casa. E 
quando, crescendo com a idade, eles atingiam o termo que marca a entrada 
na adolescência, viviam, então, pouco tempo, e, por sua falta de 
discernimento, sofriam mil penas. Eles não sabiam abster-se de um 
descomedimento louco. Recusavam o oferecimento de culto aos Imortais ou 
o sacrifício nos santos altares dos Bem-Aventurados, segundo a lei dos 
homens que se deram moradas fixas. Então Zeus, filho de Cronos, 
encolerizado, os sepultou, porque eles não rendiam homenagens aos deuses 
Bem-Aventurados que possuíam o Olimpo. E, quando o solo, por sua vez, os 
tinha recoberto, eles se transformaram naqueles que os mortais chamavam os 
Bem-Aventurados dos Infernos, gênios inferiores, ainda merecedores, 
contudo, de alguma honra. 
E Zeus, pai dos deuses, criou uma terceira raça de homens perecíveis, a 
raça de bronze, bem diferente da raça de prata, filha dos freixos, terrível e 
poderosa. Estes aqui não sonhavam senão com os trabalhos gemebundos de 
Ares e com as obras do descomedimento. Eles não comiam o pão; seu 
coração era como o aço rígido; eles causavam terror. Poderosa era a sua 
força, invencíveis os braços que se pregavam contra a espádua de seus 
corpos vigorosos. Suas armas eram de bronze, de bronze suas casas, com o 
bronze eles trabalhavam, pois o ferro não existia. Eles sucumbiram, sob os 
própriosbraços e partiram para a estada mofada do arrepiante Hades, sem 
 
16
 HÉSIODE. Les travaux et les jours. In: Thégonie, Les travaux et les jours, Le 
bouclier; texte établie et traduit par Paul Mazon. Paris: Les Belles Lettres, 1996, 
versos 90-201. Tradução operacional nossa, a partir do texto francês de Paul Mazon. 
deixar nome sobre a terra. A negra morte os pegou, por apavorantes que 
fossem, e eles deixaram a resplandecente luz do sol. 
E, quando o solo tinha novamente recoberto esta raça, Zeus, filho de 
Cronos, dele criou ainda uma quarta sobre a gleba nutriz, mais justa e mais 
brava, raça divina dos heróis que se nomeiam semi-deuses e cuja geração 
nos precedeu sobre a terra sem limites. Estes aqui pereceram na dura guerra 
e na batalha dolorosa, uns contra os muros de Tebas das Sete Portas, outros 
sob o solo cádmio, combatendo pelos filhos de Édipo; outros além do 
abismo marinho, em Tróia, aonde a guerra os conduzira em belonaves, por 
Helena dos belos cabelos, e onde a morte, que tudo acaba os sepultou. A 
outros, enfim, Zeus, filho de Cronos e pai dos deuses, deu uma existência e 
uma morada distante dos homens, estabelecendo-os nos confins da terra. É lá 
que habitam, o coração livre de inquietações, nas Ilhas dos Bem-
Aventurados, à borda dos turbilhões profundos do Oceano, heróis 
afortunados, para quem o solo fecundo produz três vezes por ano uma 
florescente e doce colheita. 
E prouvesse ao céu que eu não tivesse, por meu lado, de viver no meio 
dos da quinta raça, e que eu tivesse morrido mais cedo ou nascido mais 
tarde. Pois esta é agora a raça de ferro. Eles jamais cessarão de sofrer, 
durante o dia, cansaços e misérias; durante a noite, de ser consumidos pelas 
duras angústias que lhes enviarão os deuses. Ao menos, acharão eles ainda 
alguns poucos bens, misturados aos seus males. Mas chegará a hora em que 
Zeus aniquilará, por sua vez, toda esta raça de homens perecíveis: este será o 
momento em que eles nascerão com as têmporas brancas. O pai, então, não 
parecerá com o filho, nem o filho com o pai; o hóspede não será mais 
querido de seu anfitrião, o amigo pelo seu amigo, o irmão pelo seu irmão, 
assim como os dias passados. A seus pais, assim que eles envelhecerem, eles 
não mostrarão senão desprezo; para se queixarem deles, eles se exprimirão 
com palavras rudes, os malvados! e não conhecerão nem mesmo o temor ao 
Céu. Aos velhos que os nutriram, eles recusarão o alimento. Não haverá 
prêmio para a manutenção do juramento, para os justos ou os bons: para os 
artesãos do crime, para o homem só descomedimento é que irão os seus 
respeitos; o único direito será a força, a consciência não mais existirá. O 
covarde atacará o bravo com palavras tortuosas, que apoiará com um falso 
juramento. Ao passo de todos os miseráveis humanos atar-se-á o ciúme, à 
linguagem amarga, à fronte odiosa, que se compraz com o mal. Então, 
deixando pelo Olimpo a terra dos largos caminhos, escondendo seus belos 
corpos sob véus brancos, Honra (Aidós) e Justiça (Némésis), abandonarão os 
homens, subirão para os Eternos. Restarão aos mortais apenas tristes 
sofrimentos: contra o mal não mais existirão recursos. 
 
 
2. Contextualização do Clássico: os períodos históricos das 
Literaturas grega e latina 
2.1. Introdução à Literatura Grega 
A literatura grega compreende basicamente três momentos: o 
período Arcaico (século VIII – V a.C.), o período Clássico (século V – 
IV a. C.) e o período Alexandrino (século IV – III a. C.). A partir do 
século III a. C., com a dominação da Grécia por Roma, a literatura que 
se sobressai é a latina, iniciada pelas mãos de gregos tomados como 
cativos pelos romanos nas guerras de conquistas. 
O período Arcaico (VIII – V a. C.) marca o do princípio do fato 
literário, quando a escrita retorna à Grécia, depois de seu 
desaparecimento por quatrocentos anos, entre os séculos XII e VIII a. 
C. Ainda se trata de uma cultura oralizada, apesar da escrita, em que a 
literatura aparece cantada pelos aedos e rapsodos, os poetas e cantores 
da época. É nesse momento que são produzidos os poemas homéricos 
– Ilíada e Odisséia – e os poemas de Hesíodo – Teogonia e Os 
trabalhos e os dias –, iniciando-se, assim a literatura ocidental. É por 
isto que se chama a esse período de arcaico. Diferentemente do 
sentido que a palavra tem hoje, arcaico significa para o mundo grego 
algo que está no princípio, na origem dos fatos. Os poemas homéricos 
e hesiódicos são o princípio, a origem de toda a literatura que se faz 
no Ocidente greco-latino. Além do mais, esse período marca a 
reintrodução da escrita no mundo ocidental. Nesse momento, a 
literatura procura retratar o mundo mítico dos deuses e heróis, mundo 
mais próximo da natureza e tendo no mito a sua explicação. Se 
Homero trata de heróis em guerra ou retornando para casa após a 
guerra, Hesíodo trata da ordem do universo, de como os deuses 
nasceram e da necessidade da justiça entre os homens. 
O período Clássico (século V – IV a. C.) nos mostra o mundo da 
pólis, da cidade, que substitui o mundo anterior mais ligado à 
natureza. É um momento complexo em que a filosofia cria uma 
explicação lógica para o mundo, a partir de um discurso racional. 
Nesse mundo nasce o teatro trágico grego, procurando refletir sobre a 
condição e a fragilidade humana. Mesmo apoiado nos mitos antigos, o 
teatro revela o conflito do homem entre o passado e o presente da 
pólis com suas leis escritas, diferentes das leis divinas do mundo 
mítico do passado. Ésquilo, Sófocles e Eurípides serão os grandes 
autores desse período, legando-nos obras-primas como Orestéia, 
Édipo Rei e Hécuba, respectivamente. 
O período Alexandrino (século IV – III a. C.) é caracterizado pela 
expansão do mundo helênico com o império de Alexandre, o Grande 
(335-323 a. C.) e a criação da Biblioteca de Alexandria, por volta do 
século III a. C., reunindo um sem-número de obras importantes. O 
último grande poema do mundo grego, pertencente a esse período e 
que chegou até nós foi Argonáuticas de Apolônio de Rhodes, cerca de 
295 a. C. Após esse momento, se dá a dominação romana sobre a 
Grécia e começa a surgir a literatura latina. 
 
2.2. Introdução à Literatura Latina 
O caminho percorrido pela literatura latina de suas origens até 
Virgílio, no período Clássico, é longo e nem tudo pode ser chamado 
com propriedade de literatura. Da fundação de Roma (753 a. C.) à 
edição da Eneida (17 a. C.), distam quase oito séculos. Desse tempo, 
apenas o período compreendido entre o século III a. C. e o século III 
d. C., a partir do emprego literário do latim e que traduz um momento 
particular da glória romana, é que pode ser chamado realmente de 
literário. Trata-se de uma literatura como produto de uma 
convergência entre a cidade, que se faz senhora do mundo, e uma 
língua, que se faz literária. É o estado social e político poderoso 
criando as condições para a existência de uma língua de cultura. 
O fervilhamento cultural da Alexandria dos Ptolomeus, produto 
direto da helenização, a partir do século III a. C., a expansão romana 
pelo mar mediterrâneo, após a primeira vitória sobre Cartago, em 
meados desse mesmo século, e o domínio militar sobre os gregos 
favorecerão o florescimento da literatura latina. Dentre os nomes 
importantes desse momento, está o de Apolonius de Rhodes (295 a. 
C.), com um poema épico em quatro cantos, Argonáuticas, cuja 
influência, dois séculos mais tarde, sobre Virgílio será marcante. É, 
pois, a dominação cultural grega, apesar do domínio militar romano, 
que permite a afirmação de que a literatura latina é proveniente da 
literatura grega. 
Esse período – do século III a. C. ao século III d. C. – situa-se 
entre a fase primitiva ou pré-literária (século VIII – século III a. C.), 
em que predomina a oralidade, e a literatura cristã (a partir do século 
III-IV da nossaera), que já se distancia do espírito da Roma gloriosa. 
Nesse momento podem-se distinguir os períodos Arcaico (século III – 
I a. C.) e Clássico (século I a. C. – I d. C.). É no período Arcaico que 
passa a existir o fato literário, marcado a partir de Livius Andronicus, 
escravo originário de Tarento, cuja Odissia (cerca de 250 a. C.) é uma 
tradução e adaptação da Odisséia de Homero, por sua temática 
ocidental, pois as viagens de Ulisses o levam à costa italiana, antes de 
retornar em definitivo para Ítaca. Não menos importante é o Bellum 
Punicum ou Guerra Púnica, de Naevius, escrito por volta do ano 209 
a.C., tratando da primeira guerra entre Roma e Cartago. Os primeiros 
cantos são ocupados por um tema mítico, resgatando a tradição de 
Enéias como mito fundador e herói itálico, além dos seus amores com 
Dido, de onde se originaria a rivalidade entre Roma e Cartago. Deste 
modo, Naevius não só antecipa Virgílio e a Eneida, mas também abre 
espaço para a exaltação dos heróis nacionais. 
O período Clássico começa com Cícero (106-43 a. C.), por volta 
de 80 a. C., com a consolidação da língua literária, que tem na sua 
base a retórica. Os grandes autores da poesia estarão nas décadas 
seguintes, sobretudo, a partir de 43 a. C., no início da chamada era de 
Augusto, com a poesia atingindo o seu apogeu. É no período Clássico 
que surgem Catulo (87-54 a. C.), Lucrécio (98-55 a. C.), Virgílio (70-
19 a. C.), Horácio (65-8 a. C.), Tibulo (54-19 a. C.), Propércio (50-15 
a. C.) e Ovídio (43 a. C. – 17 d. C.), produzindo a excelência da 
literatura latina. 
 
 
 
GLOSSÁRIO 
 
Aedo: É o cantor dos poemas narrativos. A palavra é grega, significando 
cantor. Cabia ao aedo cantar os episódios mais conhecidos da poesia épica, 
quando solicitado pelo público. 
Antiguidade Clássica: Primeiro período da história ocidental, marcado 
pelo reaparecimento da escrita na civilização grega. Costuma-se marcar o 
seu início a partir do século VIII a. C. Seu limite se estenderia até o século V 
da Era Cristã, quando da queda do império romano do Ocidente, em 476. 
Arcadismo: Movimento literário, originada na Itália a partir da 
fundação da Arcádia Italiana, em 1690, tendo se expandido para Portugal, 
em 1756 com a Arcádia Lusitane, e chegado ao Brasil em 1768, fixando-se 
em Minas Gerais. Tinha como objetivo recuperar a harmonia da vida simples 
do pastor, em contraposição à vida desregrada e corrupta da cidade. O seu 
nome se liga a uma das regiões mais antigas da Grécia, a Arcádia, no 
Peloponeso. 
Carpe Diem: Expressão latina, proveniente da Ode XI, Livro I das 
Odes de Horácio (século I a. C.), significando colhe o dia. O sentido é o de 
que devemos aproveitar as ocasiões quando elas se apresentam. O ser 
humano não deve se inquietar com o amanhã, cujo saber pertence aos 
deuses. Enquanto nos preocupamos com o que não nos cabe saber, o tempo 
foge. Devemos, portanto, saber reconhecer quais as ocasiões favoráveis para 
aproveitá-las. 
Classicismo: Período cultural que se firma a partir do século XV, como 
um desdobramento natural do Renascimento, uma vez iniciada a difusão da 
cultura clássica. Na língua portuguesa, o grande humanista foi o poeta Luís 
Vaz de Camões, cuja obra-prima é Os Lusíadas (1572). 
Guerras Púnicas: O termo designa as guerras entre Roma e Cartago, 
nos séculos III e II a. C. Como os cartagineses eram originários de Tiro, na 
Fenícia (atual Líbano), o termo grego para designar fenício, acaba se 
transformando em púnico. Foram três guerras (264-241; 218-202 e 148-146 
a. C.) e aquela que determina a derrota de Cartago e o controle de Roma 
sobre o Norte da África é a segunda (218-202 a.C.). Nessa guerra, Cipião, o 
Africano, vence Aníbal, o Cartaginês, na batalha de Zama, em 202 a.C., no 
Norte da África. 
Heliocentrismo: Teoria astronômica em que o sol é o centro do 
universo e os planetas giram ao seu redor. Esta teoria formulada por Nicolau 
Copérnico contraria a anterior, a geocêntrica, em que a terra é que constituía 
o centro do universo e os demais planetas, inclusive o sol, giravam a seu 
redor. 
Humanismo: Base do Renascimento e do Classicismo, o Humanismo 
teria se iniciado desde o século XI com o estudo das obras dos filósofos 
gregos. 
Idade de Ferro: V. Idade de Ouro. 
Idade de Ouro: Idade mítica do homem, presente na obra do poeta 
grego Hesíodo (século VIII a. C.) Os trabalhos e os dias. Na concepção do 
poeta grego, o homem teria sido criado em meio a uma natureza harmônica e 
generosa. Não sabendo respeitar os deuses, o homem vai decaindo e 
perdendo as benesses que os deuses lhes deram. A última etapa da 
decadência humana é a Idade de Ferro, em que a corrupção e os males 
grassam sem poder ser contidos. Antes de chegar à Idade de Ferro, o homem 
ainda passaria por mais três etapas: a Idade de Prata, a Idade de Bronze, a 
Idade dos Heróis. A simbologia dos metais mostra como a degradação vai se 
processando: do metal mais nobre e incorruptível a um metal menos nobre e 
oxidável, o ferro. 
Iluminismo: Movimento filosófico-político nascido na França em 
meados do século XVIII, preconizando a liberdade do homem através da 
razão. O conhecimento é a luz que levará à razão. 
Julgamento de Páris: Julgamento operado por Páris, príncipe troiano, 
no Monte Ida, na Frígia, Ásia Menor. O julgamento consistia em decidir qual 
era a mais bela entre as deusas Hera, Palas Atena e Afrodite. Tendo 
escolhido Afrodite, seduzido pela promessa de casar-se com Helena, a 
mulher mais bela do mundo, Páris atrai a fúria das outras deusas contra si e 
contra os troianos. Seu ato terá como conseqüências o rapto de Helena, a 
guerra contra os gregos e a destruição de Tróia. 
Neoclassicismo: Movimento artístico-literário (final do século XVII até 
a segunda metade do século XVIII) que busca o retorno a uma vida simples 
na natureza equilibrada, fugindo da dissolução do mundo urbano. Inspirado 
no Clássico greco-latino, o movimento se volta para um tempo mítico e 
harmônico. 
Rapsodo: Poeta e cantor de poemas narrativos. Além de cantar, o 
rapsodo tecia a narrativa e compunha. 
Reforma Protestante: Cisma na Igreja Católica levado a cabo por 
Martinho Lutero, desde que ele se insurge, pregando as suas 95 teses contra 
a Igreja, na Alemanha, no início do século XVI. 
Renascimento: Movimento cultural filosófico de origem italiana, cujo 
centro foi a cidade de Florença. Estima-se que, desde o século XIV, o 
Renascimento tenha iniciado com a redescoberta e difusão da cultura greco-
latina. 
Século de Augusto: Período no século I a. C., em que o latim se firma 
como língua literária, iniciando com a retórica de Cícero e chegando ao seu 
apogeu com Catulo, Virgílio, Horácio e Ovídio. A referência é a Otávio 
Augusto César, primeiro imperador romano (29 a. C. – 14 d. C.). 
Século de Ouro: Diz-se do período entre o século V e o século IV a. C., 
vivido pelos gregos, em que se registra o apogeu artístico, com a tragédia; o 
filosófico com a tríade Sócrates, Platão e Aristóteles, e o político, com a 
democracia. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
II. Segunda Unidade: Estudo de Homero – O Canto I da Ilíada 
1. Estudo de Homero 
Produzidos no período Arcaico da Literatura Grega (VIII – V a. 
C.), a Ilíada e a Odisséia são os poemas fundadores de toda a 
literatura ocidental. A sua autoria foi atribuída a Homero, aedo cuja 
existência é sempre questionada17. Tendo sobrevivido na tradição oral 
por duzentos anos, estes dois poemas conheceram sua primeira forma 
em texto no século VI a. C., cerca de 560, quando o tirano Pisístratos, 
acreditando-se descendente de Nestor de Pilos, teria ordenado a 
escritura dos versos. 
A tradição oral, se por um lado garantiu a permanência do poema, 
por outro lado contribuiu para uma grande variante dos versos, tendo 
em vista queo aedo ou o rapsodo, os poetas-cantores de então, 
escolhiam os episódios para cantar ao seu público e, muitas vezes, 
introduziam versos de outros poemas. A depuração dos textos só 
aconteceu no século III a. C., trabalho desenvolvido pelos sábios do 
Museu de Alexandria. Esses eruditos, dentre eles Zenódoto de Éfeso, 
Aristófanes de Bizâncio e, principalmente, Aristarco, se preocuparam 
em estudar, corrigir e comentar os poemas, constituindo, assim, os 
primeiros estudos filológicos de que se tem notícia. É Aristarco, por 
exemplo, que determina, definitivamente, o número de versos dos 
poemas. Essa fixação, no entanto, não impediu que os poemas 
conhecessem várias fontes. 
Poemas recitados para um público nobre – veja-se, por exemplo, a 
existência de um poeta cego, Demódoco, no Canto VIII da Odisséia, 
cantando as façanhas dos gregos em Tróia, e em especial as de 
Odisseus (nome grego de Ulisses), no banquete oferecido por 
Alcínoos, rei Feácio, ao próprio Odisseus – a sua narrativa é de 
exaltação da nobreza guerreira. Embora se referindo a uma civilização 
arcaica, a Ilíada e a Odisséia se tornam poemas clássicos, pois lidos e 
comentados em classe, na sala de aula, tendo não só ajudado a formar 
o espírito grego, mas, principalmente, permanecido na cultura 
universal. 
 
17
 Nada menos do que sete cidades da atual Turquia, a antiga Ásia Menor, dentre 
elas Chios e Esmirna, disputam a primazia de ser o local de seu nascimento. O que 
suscita a disputa é o fato de que, na essência, o dialeto dos poemas homéricos é o 
jônio, com alguns empréstimos do eólio, língua da mesma região. 
Visto consensualmente como o poema da fúria de Aquiles ou uma 
Teomaquia, a Ilíada é a maior expressão da poesia épica em todos os 
tempos, enfocando um mundo das origens, em que heróis são 
comandados por um grande senhor, investido de um poder divino. 
Poema de estrutura oral, próprio para ser cantado pelo aedo ou 
rapsodo, ao ritmo dos versos hexâmetros dactílicos, fazendo a 
exaltação dessa aristocracia da civilização arcaica, que tinha em 
Micenas o seu apogeu e em Agamêmnon o seu grande senhor. 
Os limites da Ilíada, normalmente conhecido como tratando da 
guerra de Tróia, estão restritos, na realidade, a um momento 
específico no início do décimo ano do cerco dos Argivos (nome 
genérico para designar os gregos) a Tróia. A narração desse momento 
parte da querela entre Aquiles e Agamêmnon (Canto I) aos funerais de 
Heitor (Canto XXIV). Os gregos são comumente chamados de 
Aqueus ou Acaios, Argivos, Dânaos e Helenos; já os troianos são 
chamados de Teucros, Dardânios e Troádes. Como se trata de um 
tema presente na tradição oral há séculos antes de sua formulação 
como poema, no século VIII a. C., é normal que Homero e os aedos de 
forma geral não precisem explicar muita coisa que já é do 
conhecimento do público. Costumamos dizer que o poema épico não é 
poema para iniciantes, mas para iniciados, visto que supõe um 
conhecimento anterior. Assim é que muitos heróis ou são apresentados 
pelo seu epíteto ou pela sua genealogia, mesmo antes de se dizer o seu 
nome. Aquiles é o Pelida (filho de Peleu) ou o Eacida (neto de Éaco), 
mas pode ser “o de pés velozes”; Odisseus é o Laertida (filho de 
Laertes) e o “muito astucioso”; Zeus é o Cronida (filho de Cronos) e o 
“ajuntador de nuvens” ou “o que se compraz com o relâmpago”; 
Agamêmnon e Menelau são os Atridas (filhos de Atreu); aquele é o 
“Senhor dos Heróis” e este o “Pastor do Povo”; a geração de Príamo 
são os Priamidas, enquanto Heitor é “o do capacete ondulante”... 
Entre os principais heróis gregos, podemos encontrar: Ájax Oileu 
(o pequeno), comandante dos Lócridas; Ájax Telamida (o maior), 
comandante dos Salaminos; Diomedes, comandante dos argivos e dos 
tiríntios, ao lado de Estênelos e Euríalo; Agamêmnon, comandante de 
Micenas e Corinto, e comandante supremo dos gregos; Menelau, 
irmão de Agamêmnon, comandante da Lacedemônia, Esparta e 
Auriclas; Nestor, comandante de Pilos e Dorion; Odisseus, 
comandante de Ítaca, Jacinto e Samos; Idomeneu e Mérion, 
comandantes de Creta; Tlepôlemo, filho de Hércules, comandante de 
Rhodes; Aquiles, comandante dos Mirmidões, Helenos e Aqueus; 
Pátrocles, amigo dileto de Aquiles; Macâon e Podalírio, irmãos 
médicos, filhos de Asclépios, comandantes da Oicália. 
Entre os Troianos se destacam Heitor, comandante dos Troianos; 
Páris, irmão de Heitor, raptor de Helena e causador da guerra; Enéias, 
filho de Anquises e Afrodite, comandante dos Dardânios; Pândoro do 
arco de Apolo, filho de Licaon, comandante dos Zeleus; Sárpedon e 
Glaucos, comandantes dos Lícios. 
Dividida em vinte e quatro cantos, que correspondem às letras do 
alfabeto grego
18
, distribuídos ao longo de 14. 412 versos, a Ilíada tem 
como argumento a fúria funesta de Aquiles, que se explicará a partir 
dos muitos episódios do poema. Cada canto, no entanto, apresenta o 
seu argumento, os quais podem ser assim sintetizados: 
 
Canto I (Alfa) – A querela entre Aquiles e Agamêmnon (611 
versos). 
Canto II (Beta) – O sonho de Agamêmnon/ Catálogo das naus e 
dos heróis (878 versos). 
Canto III (Gama) – Combate singular Menelau e Páris (461 
versos). 
Canto IV (Delta) – Revista de Agamêmnon (544 versos). 
Canto V (Épsilon) – Heroísmo de Diomedes (909 versos). 
Canto VI (Dzeta) – Combate Glauco e Diomedes/Entrevista de 
Heitor e Andrômaca (529 versos). 
Canto VII (Eta) – Combate entre Heitor e Ájax (482 versos). 
Canto VIII (Theta) – Interrupção do combate/Neutralidade dos 
Deuses (565 versos). 
Canto IX (Iota) – Embaixada a Aquiles (713 versos). 
Canto X (Kappa) – A Dolonia (579 versos). 
Canto XI (Lambda) – Heroísmo de Agamêmnon (848 versos). 
Canto XII (Mu) – Assalto às muralhas gregas (471 versos). 
Canto XIII (Nu) – Combate perto das naus gregas (837 versos). 
Canto XIV (Ksi) – Zeus enganado por Hera (522 versos). 
Canto XV (Omicron) – Troianos repelidos com a ajuda de 
Posídon (764 versos). 
 
18
 A Ilíada se representa com o alfabeto maiúsculo e a Odisséia com o alfabeto 
minúsculo. 
Canto XVI (Pi) – A Patroclia (867 versos). 
Canto XVII (Rhô) – Heroísmo de Menelau/ Batalha Apolo 
contra Atena (761 versos). 
Canto XVIII (Sigma) – Fabricação das armas de Aquiles (617 
versos). 
Canto XIX (Tau) – Aquiles renuncia à cólera contra Agamêmnon 
(424 versos). 
Canto XX (Úpsilon) – O Combate dos Deuses/A fúria de Aquiles 
(503 versos). 
Canto XXI (Phi) – A Verdadeira Teomaquia/ Combate perto do 
rio (611). 
Canto XXII (Khi) – Morte de Heitor (515 versos). 
Canto XXIII (Psi) – Jogos fúnebres em honra a Pátrocles (897 
versos). 
Canto XXIV (Omega) – O resgate do corpo de Heitor (804 
versos). 
 
Tudo concorrerá para se mostrar a razão da fúria funesta de 
Aquiles, núcleo da Ilíada. Podemos observar, no entanto, no decorrer 
do poema, vários episódios embrionários, ligados ou não à guerra de 
Tróia. Como temos um poema in medias res – a narrativa abre com o 
início do décimo ano do cerco dos gregos a Tróia – e não há um flash-
back continuado para explicar os fatos anteriores a esse décimo ano da 
guerra contra Tróia, o recurso utilizado são referências fragmentadas e 
dispersas, aludindo ao motivo da guerra, como o rapto de Helena por 
Páris, que se encontra, por exemplo, no Canto III (versos 442-445). 
Outras referências se encontram na Ilíada como a alusão ao casamento 
de Peleu e Thétis (Canto XVIII, versos 433-434; Canto XXIV, versos 
59-63), e a alusão ao julgamento de Páris (Canto XXIV, versos 26-
30). 
Por ser uma narrativa envolvendo muitas lutas e muitos heróis, 
apesar de o seu personagem principal ser Aquiles, a leitura da Ilíada 
não suscita com facilidade uma estrutura para o leitor desavisado. A 
ausência de Aquiles por quase dois terços da narrativa, mesmo sendo 
o protagonista, torna aindamais complexa essa assimilação. Muitos 
heróis, muitas batalhas, muito mortos, muitas genealogias desfiadas... 
Numa tentativa de pôr um pouco de ordem no caos, sugerimos uma 
estruturação da Ilíada dividindo-a em três momentos: a Querela entre 
Aquiles e Agamêmnon (Canto I), a Embaixada a Aquiles (Canto 
IX), o Retorno de Aquiles à Guerra (Canto XVIII). 
A querela entre os dois maiores heróis gregos da guerra de Tróia 
leva à retirada de Aquiles do campo de batalha, porque ofendido pelo 
todo-poderoso Agamêmnon. A conseqüência é a perda de espaço para 
os troianos que conseguem acuar os gregos em seu próprio 
acampamento. Pela primeira vez, em dez anos de cerco, os troianos 
acampam fora e longe das muralhas. O recuo dos argivos conduz à 
embaixada despachada por Agamêmnon a Aquiles (Canto IX). Os 
esforços de Odisseus, Ájax maior e Fênix, bem como os presentes de 
Agamêmnon são inúteis, não têm força para demover Aquiles, afetado 
duramente em sua honra, porque o Atrida lhe tomara a sua presa de 
guerra, Briseida, o que distingue um herói da grande massa. O 
fracasso da embaixada e um relativo sucesso dos gregos (Canto X, 
Dolonia), em incursão noturna de Diomedes e Odisseus ao 
acampamento troiano, remetem gregos e troianos a novas lutas, cujo 
resultado é a ferimento dos heróis mais importantes – Odisseus, 
Agamêmnon, Diomedes, Macáon, Eurípilo (Canto XI), lutando contra 
as hostes de Heitor que conseguiu chegar ao acampamento grego 
(Canto XII-XVI) e ameaça queimar os navios, chegando ainda a 
queimar o de Protesilau (Canto XVI, 119-123). É com a ajuda de 
Pátrocles, que retorna à guerra com o consentimento e as armas de 
Aquiles, que se debela o fogo que poderia atingir todas as outras naus 
(XVI, 292-293). O ponto culminante do fracasso sistemático dos 
gregos é a morte de Pátrocles (Canto XVI) e a espoliação de suas 
armas por Heitor. Isto determina o retorno de Aquiles à guerra. 
Este último momento da Ilíada é importante, pois as desavenças 
entre Aquiles e Agamêmnon são postas de lado (veja-se o prêmio 
atribuído por Aquiles a Agamêmnon no Canto XXIII, sem que ele 
precise participar das competições dos jogos fúnebres em honra de 
Pátrocles), é feita uma desculpa formal pública a Aquiles, bem como a 
reparação material da sua honra ofendida, com a devolução de sua 
presa de guerra, Briseida. A conseqüência da paz entre os dois heróis é 
a carnificina levado a cabo por Aquiles, cujo ponto culminante é a 
morte de Heitor e o ultraje a seu cadáver (Canto XXII), levando ao 
belíssimo e tocante episódio do resgate do corpo do filho por Príamo, 
no Canto XXIV. 
Assim como a Odisséia é o poema do reconhecimento, a Ilíada é 
o livro das prolepses. Conforme já dissemos anteriormente, não 
veremos na Ilíada a morte de Aquiles ou a queda de Tróia. Limitada 
entre a desavença Aquiles-Agamêmnon e os funerais de Heitor, este 
poema frustra o leitor que for à busca de episódios conhecidos como o 
do cavalo de Tróia ou a luta de Aquiles contra a rainha das Amazonas, 
Pentesiléia, por exemplo. Mas isso não impede de o poema anunciar a 
cada passo tanto a destruição de Tróia, quanto a morte de Aquiles. 
Para melhor entendermos essas prolepses, faz-se necessário um breve 
estudo do Canto I, em que se dá a desavença entre Aquiles e 
Agamêmnon, provocando a retirada do Pelida dos combates. 
 
2. O Canto I da Ilíada 
O proêmio da Ilíada está circunscrito aos sete primeiros versos do 
Canto I. Ali, numa mescla de proposição e invocação, o poeta 
apresenta o argumento do poema – a fúria funesta de Aquiles que 
tantos heróis mandou para o Hades cumprindo o que havia 
estabelecido Zeus. A narração propriamente dita inicia-se a partir do 
verso 8, estendendo-se até o final do Canto XXIV, após os funerais de 
Heitor. O argumento do Canto I é o desentendimento entre Aquiles e 
Agamêmnon. Preocupado com a peste que grassa no acampamento 
grego, matando homens e animais, Aquiles convoca a ágora – a 
assembléia dos Aqueus –, para saber qual a origem de tantos males. 
Ele descobre, através do sacerdote Calcas que a culpa de tal desgraça 
cabe a Agamêmnon, autor de uma grave ofensa ao sacerdote de Apolo 
Crises. É para desagravar Crises que Apolo desencadeou a peste no 
acampamento Aqueu. 
Querendo resgatar a filha, Criseida, que havia sido feita 
prisioneira na tomada de Lyrnessos por Aquiles, Crises vai até 
Agamêmnon, a quem coube a presa de guerra, e oferece-lhe um alto 
resgate, em troca da liberdade da filha. Agamêmnon não só não aceita, 
mas também ofende e ameaça de morte o sacerdote de Apolo. A 
descoberta da causa da peste leva Aquiles ao confronto com 
Agamêmnon, sobretudo quando este ameaça tomar o quinhão de 
qualquer outro, mesmo o de Aquiles, caso entregue Criseida de volta 
ao pai, Crises. A discussão se instaura entre eles, com Aquiles se 
sentindo desonrado e Agamêmnon se sentindo privado do seu prêmio. 
Aquiles só cede ao ímpeto de matar Agamêmnon diante da 
intervenção de Palas, que, aparecendo só a ele, o detém, puxando-lhe 
a cabeleira loura e o aconselhando a ofender com palavras o quanto 
puder a Agamêmnon, mas evitando matá-lo. Privado de sua Briseida, 
tomada por Agamêmnon, Aquiles se retira da guerra, lamenta a sua 
desonra à mãe, queixa-se de Zeus que não está cumprindo a sua parte 
no acordo do destino breve, mas glorioso. Thétis, sua mãe, resolve 
interceder por ele junto a Zeus e obtém do pai dos deuses e dos 
homens a certeza de Aquiles voltar a ser honrado pelos Aqueus, após 
derrotas para os Troianos. O canto se fecha com o banquete dos 
deuses no Olimpo. 
O que norteia o Canto I da Ilíada é a discussão travada sobre a 
honra do herói. Como obter a glória que se busca sem a honra? Este é 
o drama de Aquiles. De um lado se põe o senhor dos heróis, 
Agamêmnon, comandante supremo do exército de coalizão dos 
Aqueus, que conta, aproximadamente, com cem mil homens. Do outro 
lado está o maior dos heróis, o melhor dos Aqueus, o mirmidão 
Aquiles, temido por todos os guerreiros Troianos, por ser, nas palavras 
de Nestor, “a grande muralha dos Aqueus contra a guerra cruel” 
(Canto I, versos 288-289). É a prepotência de um contra a força do 
outro. Ofendido na sua honra, Aquiles sente tomar-lhe o ímpeto 
desafiador que o leva ser irônico e mordaz com Agamêmnon, e a 
sentir ganas de matá-lo. Agamêmnon por sua vez, não abre mão de 
seu direito como chefe supremo, poder que emana de Zeus, 
concentrado no cetro que empunha, com uma honra, portanto superior 
à de Aquiles. É isto o que diz também Nestor (Canto I, versos 278-
279) 
Em favor de Aquiles, no entanto, registre-se que o herói deseja a 
contemporização, procurando compensar Agamêmnon de outras 
formas, uma vez entregue Criseida ao pai – caberia ao Atrida três ou 
quatro vezes mais que aos outros o butim partilhado, depois da ruína 
de Tróia (Canto I, versos 122-129). Agamêmnon é que parte para o 
confronto (Canto I, versos 130-147), o que desencadeia as ofensas de 
Aquiles (Canto I, versos 148-171; 225-245; 292-303). Dentre elas, 
destaca-se a alusão à cara de cão de Agamêmnon (Canto I, verso 159), 
numa referência a seu caráter impudente, cujo espírito só pensa no 
ganho (Canto I, verso 149). Em outro momento, a avidez do cão, se 
associa ao medo do gamo e ao prazer do vinho a que se entregaria 
Agamêmnon, vez que o grande senhor não participa dos combates na 
visão de Aquiles (Canto I, verso 225). Tal é cupidez de Agamêmnon 
que Aquiles o chama de devorador do povo, que precisa para exercer 
seu mando reinar sobre gente nula (Canto I, verso 231). Aquiles 
finaliza suas ofensas, não antes de jogar por terra o cetro do Atrida 
(Canto I, verso 245), dizendo que se aceitasse sem contestação a força 
de mando de Agamêmnon, não seria mais do que desprezível e 
nulidade (Canto I, verso 293). 
As réplicas de Agamêmnon (Canto I, versos 177-187; 285-291) 
não ficam atrás. Mandando Aquiles reinar sobre os Mirmidões(Canto 
I, verso 180), numa ironia cortante, cujo trocadilho se perde na 
tradução, Aquiles é para Agamêmnon nada mais do que o povo que 
ele comanda – formiga. Agamêmnon replica diante da ponderação que 
faz Nestor, na tentativa de sanar os ânimos: Aquiles pretende ser o 
mais poderoso e reinar sobre todos, o que é uma afronta a seu 
comando e a investidura divina de seu poder de senhor supremo 
(Canto I, versos 287-288). 
Com fortes ironias despachadas de ambos os lados, nem a 
contemporização de Nestor é capaz de apaziguar os dois que se 
ofendem mutuamente. Nestor e Palas Atena são a racionalidade em 
contraponto à fúria e ao descomedimento de ambos os heróis. Nessa 
arena está em jogo a honra ferida – Agamêmnon de vasto poder não 
só não honrou o melhor dos Aqueus como também não honrou a 
sacerdote de Apolo, Crises (Canto I, versos 10-11) –, o que 
desencadeia toda a querela. Aquiles se retira da guerra, pois desonrado 
não pode alcançar a glória. Será necessária a intervenção de Zeus, a 
pedido de Thétis, para que o herói volte à guerra. Se Zeus lhe deu uma 
vida breve, que pelo menos em troca lhe conceda a honra (Canto I, 
verso 353). Prêmio de guerra e honra/desonra com as variantes das 
formas e tempos verbais correspondentes são as palavras centrais 
desse capítulo. 
Assim é que as prolepses desse capítulo são importantes para o 
desencadeamento da narrativa: os versos 212-214 antecipam a 
embaixada a Aquiles, que ocorrerá no Canto IX, e os esplêndidos 
presentes (Canto I, verso 212) que o Pelida aceitará no Canto XIX, 
como pagamento da desmedida de Agamêmnon, pondo fim ao 
desentendimento entre ambos. É o que lhe promete Atena. Os versos 
240-244, proferidos pelo próprio Aquiles, antecipam as vitórias dos 
Troianos liderados por Heitor sobre os Aqueus; os versos 337-342 
revelam a necessidade que os Aqueus terão de ter Aquiles consigo 
para poderem combater perto das naus sem perigo. Isto se dará com o 
retorno efetivo de Aquiles à guerra, no Canto XX. Por fim, o destino 
de Aquiles, aludido tantas vezes neste Canto I (versos 352-356; 413-
428; 517-527), será retomado ao longo da Ilíada, principalmente no 
canto XVIII. 
 
 
GLOSSÁRIO 
 
Acaios: Nome genérico para designar os gregos. O termo é 
proveniente de Acaia, regiões gregas, uma situada no Peloponeso e a 
outra na Tessália, no continente. O mesmo que Aqueus ou Aquivos. 
Ágora: A praça onde se reuniam os senhores para tomada de 
decisão sobre alguma coisa. O termo, por metonímia acaba 
designando a própria assembléia. 
Aqueus: V. Acaios. 
Argivos: Nome genérico para designar os gregos. O termo é 
proveniente da região de Argos, uma das principais cidades do 
Peloponeso. 
Atrida: Epíteto para Agamêmnon e Menelau, ambos filhos de 
Atreu. 
Canto: Capítulo do poema épico, assim chamado porque o poema 
era para ser cantado, não declamado. 
Dânaos: Nome genérico para designar os gregos. O termo é 
proveniente de um dos ancestrais gregos, chamado Dânaos. 
Dardânios: Nome genérico para designar os troianos, proveniente 
de um dos ancestrais da raça troianos, chamado Dárdanos. 
Epílogo: Parte final do poema épico, quando se acaba a narração e 
encaminha-se o fim da narrativa. 
Epíteto: Aposto ao nome de pessoas, deuses, heróis e cidades. 
Muito usado no poema épico como recurso mnemônico, dando ritmo 
ao hexâmetro. 
Flash-Back: Retorno ao passado de modo linear e organizado, de 
modo a esclarecer fatos da narrativa. 
Helenos: Nome genérico dado aos gregos, termo proveniente de 
parte dos soldados tessálios comandados por Aquiles. O termo 
também se refere a Helena, filha de Deucalião, visto como pai dos 
gregos. 
Hexâmetro Dactílico: Verso característico do poema épico, 
construído com seis medidas ou seis pés, tendo como base o pé 
dáctilo, constituído de uma sílaba longa e duas breves. 
Honras Fúnebres: Todas as pessoas que morriam deveriam ter 
direito às honras fúnebres, sem as quais a sua alma não chegaria ao 
Hades, o mundo inferior. As honras fúnebres do herói, por exemplo, 
consistiam na queima de sua carne e no encerramento de seus ossos 
numa urna para posterior sepultamento num túmulo, erigido sobre 
uma colina. 
In Medias Res: Termo utilizado por Horácio (século I a. C.), para 
designar a ação do poema épico, já bem adiantada quando a narração 
se inicia. O termo significa “no meio das coisas”, sem preâmbulos, 
sem explicação anterior. 
Invocação: Uma das partes do poema épico, que consiste no 
pedido de auxílio às Musas, como deusas protetoras das artes e do 
conhecimento, para que elas comuniquem o seu saber ao poeta e ele 
possa cantar o que assinala na proposição do seu poema. 
Micenas: Cidade-estado ao nordeste do Peloponeso, reino 
florescente entre os séculos XVI e XII a. C. O grande senhor 
Agamêmnon reinava absoluto sobre a Micenas homérica, nos tempos 
míticos. 
Mirmidão: Um dos epítetos para designar Aquiles, por reinar 
sobre os soldados do mesmo nome. O nome é proveniente das 
formigas que habitavam a ilha de Egina, transformadas em homens 
por Zeus, para que Éaco, avô de Aquiles, pudesse reinar sobre eles. 
No plural, designa os soldados comandados por Aquiles. 
Narração: A parte mais longa do poema épico. Cerne do poema 
épico, quando o poeta desenvolve minuciosamente em episódios o 
argumento apresentado na proposição. 
Pelida: Um dos epítetos de Aquiles. O termo é proveniente de 
Peleu, pai do herói. Aquiles também pode ser chamado de Eacida, por 
causa do avô, Éaco. 
Período Arcaico: Primeiro período da literatura grega, situado 
entre os séculos VIII e V a. C. É o momento do início, quando surge a 
primeira forma literária, o poema épico. Nesse período ainda surgiria a 
poesia lírica, em sua forma de lírica amorosa, lírica exaltativa e 
bucólica. 
Presa de Guerra: Trata-se do butim, do espólio conseguido pelo 
guerreiro, depois de conquistada e destruída uma cidade. É assim que 
Briseida e Criseida são tratadas na Ilíada: presas ou prêmios de 
guerra. 
Proêmio: Versos iniciais e introdutórios do poema épico, 
reunindo a proposição e a invocação. É onde se encontra o argumento 
do poema, apresentado sinteticamente para ser desenvolvido 
posteriormente na narração. 
Prolepse: Adiantamento da narrativa. Ao leitor ou ao ouvinte é 
dado conhecer os fatos antes de eles acontecerem. Assim, não vemos a 
destruição de Tróia ou a morte de Aquiles na Ilíada, mas sabemos que 
ambos os fatos vão ocorrer, pois eles são adiantados, através de 
alusões as mais variadas. 
Proposição: Parte do poema épico em que se apresenta o 
argumento. De modo sintético, o poeta diz qual será o tema de seu 
canto. A Ilíada apresenta como argumento a fúria funesta de Aquiles; 
a Odisséia, a volta de Odisseus para Ítaca. 
Teomaquia: Significa, literalmente, batalha dos deuses. Termo 
cunhado para designar a Ilíada, sobretudo a partir do Canto XX, 
quando Zeus libera os deuses para tomar partido na guerra de Tróia e 
formam-se os grupos de deuses em defesa dos gregos ou dos troianos. 
Teucros: Nome genérico para designar os troianos. O termo é 
proveniente do nome de um dos ancestrais dos troianos, cujo nome era 
Teucro. 
Tróades: Nome genérico para designar os troianos. O termo é 
proveniente do nome de um dos ancestrais dos troianos, cujo nome era 
Tros. 
 
 
Observação: Para uma melhor assimilação dos conteúdos 
desta unidade, faz-se necessária a leitura do Canto I da Ilíada. 
 
EXERCÍCIOS 
 
1. “Nem a morte de Aquiles, predita desde o início, nem a tomada 
de Tróia graças à artimanha do famoso cavalo de madeira, astúcia 
concebida por Ulisses, figuram na Ilíada.” Explique esta afirmação de 
Claude Mossé (A Grécia arcaica de Homero a Ésquilo. Lisboa: 
Edições 70, 1989.). 
 
2. Explique por que na Proposição/Invocação da Ilíada, o poeta 
pede que se cante “a ira funesta de Aquiles”. 
 
3. Qual a origem da querela entre Aquiles e Agamêmnon? 
 
4. Quais as conseqüências imediatas

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