Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
A ORIGEM TRÁGICA DA LEI Wilson Madeira Filho 2 Editora Ficha catalográfica Capa: William Bouquereau, Orestes perseguido pelas Fúrias, 1862 3 SUMÁRIO Apresentação 04 Proscênio 05 Primeiro Ato - O legislador enquanto novo esteta na magna Grécia 11 Segundo Ato - Jó: o exegeta e o cânone 28 Terceiro Ato – Orestes e Electra e a razão após o paradoxo 46 Cai o pano 88 Bastidores 92 4 Apresentação Devo essa apresentação ao Ronaldo do Livramento Coutinho, pois ele insistiu muito comigo para que eu publicasse esse livro, fruto de minha tese para professor titular na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, em 2005. Na época o texto se chamava A origem dramática da lei e a versão atual fez alguns pequenos reparos de redação e acrescentei aqui e ali poucas linhas para tornar o texto mais didático e fluído. Coutinho fizera parte da banca avaliadora, juntamente com Maria Arair do Pinto Paiva, José Ribas Vieira e Leonel Severo Rocha. Não conhecia antes o Ronaldo Coutinho, mas ele foi um entusiasta da obra, lutou por minha aprovação e se aproximou de mim, e nos tornamos bons amigos. Descobri então que ele fora também um grande amigo de meu tio, Marcos Waldemar de Freitas Reis, que foi professor de História e diretor por duas vezes do Instituto de Ciências Humanas e Filosóficas e que hoje dá nome à Avenida Central do campus do Gragoatá da UFF. Participei de algumas bancas de mestrado e doutorado na pós-graduação em Direito das Cidades na Universidade Estadual do Rio de Janeiro a convite do Coutinho, assim como o convidei para bancas de mestrado e de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF, onde, além de professor, fui por três vezes o coordenador. Também quando assumi a direção da Faculdade de Direito o convidei mais de uma vez para realizar conferências e participar de mesas redondas. Acho que foi lá, num evento sobre os cem anos da revolução russa, em outubro de 2017, sua última participação acadêmica, antes de vir a falecer. Na ocasião estava feliz, havia superado forte doença e me fez prometer que estaria presente em sua festa de 80 anos, iria alugar um clube e prometia um grande evento. Pena, Coutinho, perdemos essa grande festa que não pode acontecer, mas segue esse presente atrasado. Vai brindando por nós aí encima que aqui embaixo estaremos precisando. Abraços, Wilson 5 PROSCÊNIO Forma e função nos edifícios teatrais clássicos gregos, cfe SOUZA (2006). Disponível em http://www.avaad.ufsc.br/moodle/mod/hiperbook/view.php?id=497&groupid=&target_navi gation_chapter=240 6 O Direito é uma construção cultural, resultado da percepção de cada povo sobre seus valores morais e seus modos de vida, estabelecendo regras de conduta coletivizadas. Todavia, a crença existente no Direito Ocidental de ser o Direito imanente à busca humana por verdade e justiça permite especular que essa trajetória é complexa e deriva da libertação do poético da esfera religiosa. A perspectiva ante ao inexplicável, à natureza e ao metafísico geraram a religião e a magia, a teogonia e a poesia. Talvez ambas as formas de encarar o lirismo existencial tenham se somado e misturado durante séculos e é possível que isso ainda ocorra. Mas a era clássica grega se caracteriza por ser uma era tecnológica, capaz de realizar, pelo instrumental da filosofia, a passagem do metafísico para o político e, portanto, de avançar da dimensão macroreligiosa para a microfísica cidadã. Essa alteração não se deu de forma binária, mas em várias etapas culturais sucessivas e ao mesmo tempo justapostas e reconfiguradas. Primeiro a poesia se despregou da religião e ganhou autonomia. Esse passo civilizatório é crucial para se entender a origem do Ocidente. Resultou, de um lado, na tecnologia da palavra, fogo prometeico a pautar a civilização documentalmente. Todavia, foi o teatro trágico, derivado da poesia homérica, emprestando verossimilhança ao épico e ao mitológico, o passo fundamental e intermediário para elaborar uma nova forma de poesia: o Direito. É essa passagem justamente que esse livro buscará demonstrar. A ideia é que o Direito surge como uma nova forma de poesia: poesia pública. A era clássica teria avançado da subjetividade para a criação de uma noção sui generis de gestão. A origem da lei se daria em paralelo com o amadurecimento do teatro, ambos com funções públicas que passam a ser muito bem definidas. O poeta se afasta do deslumbramento religioso e se consagra com o ideal de cidadão emergente. Junito de Souza Brandão já trabalhara uma hipótese correlata: Há muito que vimos estudando o Teatro Grego e sempre estranhamos as confusões reinantes, até em obras de responsabilidade, acerca das origens do teatro da Hélade. De modo geral, parte-se do teatro egípcio, hindu e cretense e desemboca-se tranquilamente na Grécia, fazendo-se do originalíssimo Teatro Grego apenas uma forma evoluída, quando não um mero apêndice dos teatros supracitados. Todos sabemos que Egito, Índia, China, Creta e a própria Grécia, para não citar outros, possuíam “teatro” bem antes do aparecimento do Teatro Grego, mas este, conforme procuraremos demonstrar, nada tem em comum com aqueles, a não ser no que tange à matéria prima, pois que todos tiveram como ponto de partida a religião. Os teatros 7 egípcio, hindu, chinês, cretense e “grego” (antes do Teatro Grego) porém, nasceram da religião e jamais conseguiram libertar-se dela, nem quanto aos significantes, nem quanto aos significados. O Teatro Grego, ao contrário, colocando a religião como sua infraestrutura, ergueu sobre ela um edifício voltado para os problemas do homem. 1 Este é um ponto importante, mas não encerra a questão. Pelo contrário, é um ponto distintivo para iniciar outro debate: o da separação entre teatro e legislação. Nossa hipótese pretende avançar no fato de que o teatro trágico não apenas encenava o direito nascente, como foi, em si mesmo, o momento de transubstanciação da poesia em fala pública, em política. As idéias que ajudaram a formatar o Ocidente reúnem pelo menos duas grandes correntes de contribuição: a era clássica grega, em especial o século dos trágicos, e o Cristianismo. Na vertente grega, a disjunção da religião com o teatro caracterizou uma evolução dos atos de representação, que terminaram por desembocar num modelo de maior expressão de cidadania. Entretanto, vivemos, no correr de nossos séculos de formação, ações gregas sob um céu cristão. Dante Alighieri vai ter como guia Virgílio, o poeta romano que transliterou o grego Homero, e irá encontrar, no Paraíso, com o imperador Justiniano, deixando, no Inferno, os heróis e os filósofos gregos, ainda que iluminados por luz imanente. Goethe irá cruzar a Grécia helênica no Fausto II para apresentar uma alma resgatada por um céu barroco. Esta junção é a do Ocidente se auto- inventando: a ação conjugada ao humanismo. Aristóteles destacava o fato de que uma mudança estilística se acentuava com o apogeu da tragédia: Na tragédia é a ação que é imitada, e essa ação é executada por agentes que necessariamente revelam certas qualidades distintas, tanto de caráter como de mentalidade, de acordo com as quais podemos definir a natureza das ações. A mentalidade e o caráter são, pois, as duas causas naturais de ações, e delas é que todos os homens dependem para o êxito ou o fracasso. A representação da ação constitui o enredo da tragédia; chamo de enredo a disposição bem ordenada dos incidentes. A personagem, por outro lado, é o que nos permite definir o caráter dos participantes, e sua mentalidade é revelada pelo que eles dizem, quando apresentam um argumento ou manifestam uma opinião, por suas idéias, enfim.1 BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: origem e evolução. Rio de Janeiro: Tarifa Aduaneira do Brasil Editora Ltda., 1980, p. 7. 8 Há necessariamente, portanto, na tragédia seis componentes que determinam sua qualidade. São o enredo, personagem, elocução, idéias, espetáculo e canto. 2 A era clássica sentira a necessidade de transpor para a realidade humana os valores esmagadores dos deuses. Tratara-se de mimetizar o sofrimento como forma sublime de compreensão. Raciocinar sobre o temor do abismo. A própria exploração sobre o divino, ao aproximarmo-nos dele pela via da poesia, teria sido a primeira odisséia a explorar um espaço até então insondável. Nesse sentido, dois poemas mesclaram-se em nossa pré-história mítica: a Teogonia e o Gênesis. Explicar a genealogia dos deuses e o surgimento da vida passa a representar a noção que temos de nós mesmos. Aproximar-se o homem, pelo fogo da escrita, da palavra irrevelável: o nome divino. Haroldo de Campos explicando tradução do fragmento inicial do Gênesis (Bere´shith), que prefere chamar de “trans-criação”, revela: No final do v. II, 4, conforme ficou dito, aparece pela primeira vez o nome impronunciável de Deus (segundo a tradição) e por isso não vocalizado no original, YHVH, conjugando-se ao de Elohim, que se vinha repetindo desde I, 1. Numa primeira versão, optei pela reprodução de ambas as expressões hebraicas, unidas pela referência comum à divindade, num composto (“Deus-Yavéh-Elohim”), qual um emblema onomástico do original. Na presente revisão, preferi atentar à convenção de leitura (qerê, “o que deve ser lido”), que leva a oralizar o tetragrama inefável com as vogais de ‘adonai (“Meu Senhor” ou, simplesmente, “Senhor”) e, em especial, àquela outra que o substitui por hashshém (“o Nome”), segundo uma tradição que remonta ao Levítico, XXIV, 11 (Dicionário Oxford). Esta última forma apelativa, que fiz preceder do pronome “Ele” (“Ele-O Nome”), pareceu-me a mais expressiva para efeito de tradução, por anunciar o nome divino sem enunciá-lo sob uma pronúncia discutível, preservando-lhe, assim, a indizibilidade. 3 Esse nome, não dito, que se torna a palavra cerne, a afirmação fundamental no seio da metafísica, reverbera nas pausas da pronúncia, no ato da fala e, aos poucos, se destaca. É necessário notar a alteração causada por essa tecnologia da palavra: eis que esse debate elabora as condições para o surgimento dos livros (biblios) e, portanto, da palavra transmitida enquanto ensinamento, e do próprio livro enquanto objeto cultural, 2 ARISTÓTELES. Da arte poética. In: ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINUS. Crítica e teoria literária na Antiguidade. Tradução de David Jardim Júnior. Introdução de Assis Brasil. (Coleção Universidade de Bolso). Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1989, p. 21. 3 CAMPOS, Haroldo de. Bere’Shith: a cena de origem. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 34. 9 de fascínio e de fé. A palavra escrita será campo de disputa – entre religião e poesia, entre teologia e filosofia, entre religião e ciência, entre ciência e poesia. Mas uma modalidade poética ousada estava em curso, a junção de poesia e fala comum, criando uma arte que mimetizava aquele cenário canônico nos padrões da compreensão da fala do vulgo: surgia o teatro trágico. [...] o teatro, mesmo quando recorre à literatura dramática como seu substrato fundamental, não pode ser reduzido à literatura, visto ser uma arte de expressão peculiar. No espetáculo já não é a palavra que constitui e medeia o mundo imaginário. É agora, em essência, o ator que, como condição real da personagem fictícia, constitui através dela o mundo imaginário e, como parte deste mundo, a palavra. 4 Por sua vez, em Hesíodo, os deuses irão se revelar em uma árvore genealógica que desvenda, na depauperação alquímica das eras, o surgimento de um novo tipo, que carrega toda a herança da diversidade em sua simplicidade: o trabalhador rural. A tecnologia da escrita precisa estar aliada à tecnologia mundana, do homem que ara a terra e dela retira sua sobrevivência. Assim como o homem simples arremata a obra conjunta dos tempos, a inversão parece ser a característica do antigo aedo, como salienta Torrano: Se o Cantar é e coincide com o próprio Ser, e se o Cantar é que tem as moradas olímpicas como tem também a Tudo o que será e é e já foi, - como é possível que não haja uma coincidência temporal entre o mo(vi)mento do Cantar (i.e., das Musas) e o mo(vi)mento do que o Cantar a-presenta (i.e., presentifica)? Ou, em outras palavras: como podem as Musas terem nascido na Piéria geradas por Zeus e serem a força ontofântica pela qual não só Zeus mas também a Totalidade Cósmica se dão como Zeus e como Totalidade Cósmica?5 O poeta passa por uma metamorfose. Antes atuou de forma iconoclasta, separando-se do rito religioso. Agora laiciza a palavra, aproximando-se do cotidiano da pólis. O Direito surge no bojo de uma articulação lingüística mais refinada. O Direito teria sido uma espécie de inovação linguística que ocorreu em torno do século V a.C. Sem a elevação da lei ao plano da representação, e a conseqüente realização de seu conceito, juntamente com a formação da personalidade individual pensante, não era possível a objetivação do 4 ROSENFELD, Anatol. O fenômeno teatral. In: Texto/contexto. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 28. 5 TORRANO, Jaa. O mundo como função de Musas. In: HESÌODO. Teogonia: a origem dos deuses.. Estudo e tradução de Jaa Torrano. 5ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 84. 10 direito, articulado no sistema jurídico, nem do pensamento que o tematiza: filosofia e direito emergem juntos e configuram-se a partir de uma mesma experiência. Tal experiência será amplamente favorecida pela introdução da escrita e conseqüente alfabetização da Grécia. [...] Podemos dizer que a construção da lei como categoria autônoma segue de perto o desenvolvimento da linguagem como veículo conceitual e a transformação do seu padrão sintático imposta pela transição da oralidade à escritura. 6 Nesse sentido, quando afirmo que houve uma origem trágica da lei, não estou me valendo de uma figura de estilo ou de uma metáfora, tampouco utilizando da literatura como uma espécie de perfumaria para ilustrar a história do Direito. Estou a afirmar que, de fato, enquanto tecnologia e modelo cultural e político, o Direito foi um derivado do teatro trágico grego. Entender um pouco mais essa mudança crucial, essa revolução cultural que marcou tão profundamente nossa formação intelectual e política, implica em retomar a leitura desses clássicos, especular em torno da passagem do teatro para o surgimento da lei, em seus momentos mais agônicos: o Livro de Jó e a Oréstia, de Ésquilo. Não para deslindar o passado, mas para inventar o presente, fazê-lo surgir como obra do nosso labor, pulsante, ardente, impressionante. 6 TOLEDO, Plínio Fernandes. Uma interpretação filosófica do direito a partir da análise de sua forma objetiva na transição da oralidade para a escritura. In: BOUCAULT, Carlos E. de Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo (orgs.) Hermenêutica plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 26. 11 PRIMEIRO ATO O LEGISLADOR ENQUANTO NOVO ESTETA NA MAGNA GRÉCIA Sólon (638 a.C- 558 a.C.) Imagem disponível em https://el.wikipedia.org/wiki/Σόλων_ο_Αθηναίος 12 A palavra como valor fundamental para a constituição da ordem social. Em torno dessa idéia parece terem se construído alguns dos principais monumentos da humanidade na era clássica, a saber, a poesia e a ordem jurídica. Entender essa transição, onde a figura do aedo, enaltecida no século VIII a.C. pela figura de Homero, se transmuda, no séculodos trágicos, na bifurcação entre o rito religioso e a ação dramática e daí incorpora um novo personagem na cena pública, o legislador, é a tarefa árdua aqui proposta, perseguindo pistas e fragmentos. Nesse sentido, nos socorremos de Garcia-Roza, que comenta: Muito tempo antes do homem ocidental inventar o conhecimento, de opor o verdadeiro e o falso no interior do discurso, a cultura grega já era atravessada pela noção de alétheia: a verdade, para o poeta da Grécia arcaica. À pré-história da verdade filosófica corresponde uma verdade poética que foi o solo a partir do qual ou contra o qual se organizou o pensamento filosófico grego. 7 Não se alude aqui apenas ao tracejado técnico e à evolução das ferramentas que tornaram possíveis a escrita. Alude-se, sobretudo, à distinção da linguagem constituída de uma dupla face, a forma da expressão e o conteúdo expresso, enfim, a argila linguística e a forma a ela atribuída pelo artista do discurso. Compreender como a fala do poeta passa a constituir um campo semântico original e como essa elaboração estética – e não a dos sacerdotes – é absorvida e transmudada pela invenção do legislador, obriga-nos a acompanhar alguns passos nos aedos clássicos – Homero e Hesíodo – e nos arautos de outra era – Platão e Aristóteles. 1.1. As primeiras navegações: a odisséia do signo A Ilíada, primeiro dos poemas épicos de Homero, narra o nono ano da Guerra de Tróia. Somos de imediato atirados às praias de Ílion, a cidadela troiana, onde a guerra perdura e a crise se instala entre os invasores gregos. A primeira grande narrativa da história da literatura faz emergir o ouvinte/leitor em plena e súbita ação, já iniciado os tempos, imprevisto o futuro. O conflito dos primeiros versos alude à fúria do herói Aquiles contra o basileu Agamêmnon. Este, general dos gregos, partilhando as presas de 7 GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Palavra e verdade – na filosofia antiga e na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 25. 13 batalha recente, escolhera ter como escrava a bela Criseida, sendo sua irmã Briseida escolhida como parte dos troféus de Aquiles, o mais completo dos heróis. Ocorre, porém, que o sacerdote Crises, pai de ambas, dirige-se ao líder grego e invoca a proteção de Apolo à sua filha mais velha, Criseida, na realidade uma sacerdotisa de Apolo, que não poderia, portanto, ser partilhada. Agamêmnon, temendo a reação do deus, mesmo diante de seguidas baixas e face a guerra que se prolonga mais do que o esperado, resolve ceder, devolvendo Criseida. Todavia, orgulhoso, valendo-se de sua hierarquia, reclama o segundo prêmio, a bela Briseida, já possuída por Aquiles. O herói, colérico, impedido pela ética de guerra de atingir o basileu, retira-se da luta, o que complica sobremaneira a situação dos gregos. O rapto de Briseida logo se revelará como versão microfísica da causa mítica da guerra, o rapto de Helena, esposa de Menelau, irmão de Agamêmnon, pelo príncipe troiano Páris, irmão do grande herói Heitor, e filho de Príamo, rei de Ílion. Essa Guerra mítica nos permite aproximar de uma complexa elaboração social, ao tomar a epopeia enquanto material arqueológico. Desse modo, Ciro Flamarion Cardoso comenta: Quais eram as características comuns a todas as cidades-Estados clássicas? Talvez possamos distinguir as seguintes como sendo as mais importantes: 1) do ponto de vista formal, a tripartição do governo em uma ou mais assembleias, um ou mais conselhos, e certo número de magistrados escolhidos – quase sempre anualmente – entre os homens elegíveis; 2) a participação direta entre os cidadãos no processo político: a noção de cidade-Estado implica a existência de decisões coletivas, votadas depois de discussão (nos conselhos e/ou nas assembleias), que eram obrigatórias para toda a comunidade, o que quer dizer que os cidadãos com plenos direitos eram soberanos; 3) a inexistência de uma separação absoluta entre órgãos de governo e justiça, e o fato de que a religião e os sacerdócios integravam o aparelho de Estado.8 Ocorre que entre os motivos míticos da Guerra avultam a vaidade e a fraqueza femininas. A conquista da mulher enquanto troféu de guerra é, no círculo da existência, uma reação dos hoplitas à vaidade das deusas. Tudo se iniciara por uma disputa entre as deusas olímpicas Atena, Hera e Afrodite. Estas, desejosas de saber qual delas seria a mais bela, oferecendo uma maça como prêmio – o “pomo da discórdia” - indagam aos deuses, que, por serem deuses, se esquivam, e fogem à resposta. Resolvem, então, as 8 CARDOSO, Ciro Flamarion S. A Cidade-Estado antiga. São Paulo: Ática, 1987, p. 7. 14 três deusas, aparecerem de forma hierofântica a um humano - um mortal não suportaria a visão real da beleza divina. O escolhido, um príncipe a pastorear rebanhos, é Paris, de Ílion. Cada deusa faz uma oferta ao jovem caso seja a escolhida: Atenas, deusa da sabedoria, faria dele o mais sábio homem de todos os tempos; Hera, esposa de Zeus, oferece torná-lo o homem mais poderoso, senhor de exércitos invencíveis; Afrodite, deusa do amor, oferece ao jovem um simples, mas eficiente dom, o de seduzir qualquer mulher. Escolhida Afrodite, o pomo da discórdia fará com que as deusas “derrotadas” venham a se posicionar contra os troianos. Entrementes, a bela Helena, a mulher mais linda do mundo, e também a mais disputada, escolhera finalmente como noivo Menelau. Para evitar que o escolhido fosse morto pelos demais pretendentes, a partir de uma proposta de Tíndaro, pai de Helena, um pacto fora firmado: todos se comprometeriam a velar pela felicidade do casal, reagindo a quem quer que atentasse contra a união. Tempos após, hóspedes no palácio de Menelau os filhos de Príamo, Paris seduz Helena, raptando-a. Assim todos os pretendentes, que constituem a nata dos reis e heróis míticos, atendendo ao pactuado, dirigem-se à cidadela troiana, para recuperar o maior de todos os troféus, a bela Helena. Entre estes, destaque-se o solerte Ulisses, que sobressairá, com Aquiles, entre os protagonistas, chamando a atenção para outro tipo de herói que possui como principal valor não mais a força hoplita, mas a sagacidade. Werner W. Jaeguer9, em contexto correlato, observa o fato de que, após a obra dos aedos do século VII a.C. – Homero e Hesíodo –, um verdadeiro hiato produtivo na poesia política levaria a indagações sobre possíveis mudanças na noção de heroísmo (arete), já presentes na figura de Ulisses e, em especial, na completa mudança de cenários entre as epopéias homéricas. Iniciando pela constatação de que, diferentemente de Esparta e de Atenas, que melhor produziram uma poesia política que encontraria no Estado sua definição última, a poesia jônica teria cumprido o papel de despertar as forças individuais. Deste modo, em leitura retrospectiva, a partir de estágios posteriores e acontecimentos análogos, seria possível vislumbrar, nos poemas homéricos, os primeiros reflexos da pólis jônica. Sob esse original viés, Jaeguer se vale da imagem do reflexo para citar a passagem na Ilíada onde Aquiles – retornando para a guerra após a morte de Pátroclo – 9 JAEGUER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução de Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995. 15 se valeu de seu escudo brilhante para, pendurando-o no alto, perscrutar o interior da cidadela troiana. E nos informa: Na única passagem em que a Ilíada nos apresenta uma cidade em paz, a descrição do escudo de Aquiles, coloca-nos no centro da cidade, na praça do mercado, onde se executa um julgamento: os anciãos, sentados em pedras polidas e dispostos no círculo sagrado, discutem uma sentença. As famílias nobres tomam parte importante naadministração da justiça, anteriormente reservada ao rei. As famosas palavras contra a divisão do governo testemunham que o rei ainda existia, embora a sua posição frequentemente já fosse precária. A descrição do escudo fala-nos também dos bens da coroa e da complacência do rei, ao contemplar o cultivo dos campos. Mas trata- se provavelmente de um proprietário nobre, uma vez que a epopeia também dá aos senhores o título de basileus.10 Vale dizer, Tróia representava um tipo de estrutura produtiva rural, sob a égide de um modelo de propriedade centralizado na figura de um basileu, entendido tal por Homero como um reinado, o qual, por sua vez, com a morte próxima de Príamo e a crise provocada pelo sítio dos gregos, assumia novas formas políticas, dando margem ao surgimento de uma aristocracia. Esta aristocracia simbólica, por seu turno, estaria a demonstrar o surgimento próximo futuro de uma burguesia mercantil, visto estar o sistema agrário ameaçado constantemente por invasores diversos. Desse modo, a guerra de Tróia estaria exemplificando, com um cerco glorioso, o final de uma era, e de um modelo político: o fim da estrutura rural baseada em grandes propriedades. Nesse mesmo sentido, baseando-se em estudos da arqueologia contemporânea, Marcos Alvito de Souza nos chama a atenção: O aparecimento dos soldados de infantaria pesadamente armados a lutarem de forma coesa, em grupo e não mais individualmente como nos Tempos Homéricos, teria sido, segundo alguns, o principal fator a explicar a ampliação da participação política. Isto é, se a segurança da comunidade deixava de repousar exclusivamente nas mãos de uma minoria de aristocratas, conseqüentemente, o monopólio político dos nobres também era ameaçado por uma participação crescente nos assuntos da cidade por parte dos que lutavam como hoplitas.11 Vale dizer, a epopeia homérica estaria aqui a representar dois valores tecnológicos: a palavra enquanto tecnologia, expressa na forma erudita sofisticada de 10 JAEGUER, W. Op. cit., pp. 131-132. 11 SOUZA, Marcos Alvito Pereira de. A guerra na Grécia clássica. São Paulo: Ática, 1888, p.27. 16 versos alexandrinos e o contexto histórico-político-sociológico, demonstrando outras facetas tecnológicas implícitas no mito, como a vitória da tecnologia de construção das naus gregas vencedoras em face da cidadela agrícola e arcaica dos troianos, mimetizando a expansão comercial e a nova fase civilizatória territorial. Por sua vez, a Odisséia representaria a nova era, mercantilista, onde o mar se torna o palco do desconhecido, com variadas aventuras. “Com a mudança das formas de vida deve ter nascido também um novo espírito”12, menciona Jaeguer. Sai de cena o herói hoplita, cuja arete se baseia na força física e na luta colérica contra o inimigo, assumindo como protagonista o herói estrategista, o astuto Ulisses, modelo da iniciativa individual a propor uma nova ordem. Com Odisseu os inimigos deixam de ser o estrangeiro próximo, a disputar, sob a força do aço e entre o cheiro do sangue, os despojos do mais fraco. Entram em cena ciclopes, fadas, bruxas, monstros marinhos, redemoinhos. É todo um mundo fabuloso a ser desvendado. Trata-se de um mundo inteiro a ser desvendado, narrado na forma do fabuloso. O imaginário ganha em liberdade e um pré-teatro se anuncia. Citemos a clássica passagem da evocação aos mortos Ulisses prosseguiu: “Preclaro amigo, Horas há de falar e horas de sono; Mas, se o levas em gosto, não recuso Dos meus contar-te os lutos e infortúnios, E dos que, livres da cruenta guerra, Na pátria sucumbiram pela infâmia De um falsa mulher. – Disperso tendo Prosérpina os femínios simulacros, O de Agamêmnon surge, e os do que Egisto Com ele assassinou. Bebido o sangue, Braços me estende, em lacrimas a pares; O alento lhe falece, que era d’antes Em seus membros flexíveis, e eu carpindo Lhe brado condoído: “Ó glorioso Rei dos reis, como houveste o fatal golpe? Domou-te o azul tirano em tempestade? Ou mãos hostis em terra, ao depredares Armentio e rebanho? Ou defendendo O pátrio muro e a honra das famílias?” “Divo e sábio Laércio, respondeu-me, Não me domou Netuno em tempestade, Nem mãos hostis em terra: Egisto à casa, Com minha atroz consorte conluiado, Atraiu-me, e no meio de um banquete, Como a rês no presepe, derribou-me; 12 Id., ibid., p. 133. 17 E estes sócios comigo estrangularam, Quais porcos de um ricaço destinados A função por escote ou bródio ou núpcias. Estiveste em conflito e carnagens, Mas por tão feio horror nunca choraste: Crateras e mesas e comer e sangue Mistos rolam; no chão pungentes gritos Soam-me de Cassandra Priameia, Que ante mim trucidava Clitemnestra; Soergo-me, e ainda busco moribundo Pegar do alfanje; aparta-me a imprudente, Nem quis, no instante em que baixava a Dite, Cerrar-me os olhos e compor-me os lábios. Nada há mais sevo que a mulher indigna, Capaz de conceber tamanhos crimes. A que esposa donzela assim tratou-me: Crua morte me urdiu, quando eu pensava Prazer vir a dar a fâmulos e a filhos. Torpemente manchou-se, e tanta infâmia Tem as mais virtuosas deslustrado. 13 Homero na Odisséia canta para um novo tempo que busca no passado heróico o guia que irá ajudá-lo a trilhar o caminho para o fim do exílio. Não foi por menos que Dante encontra Ulisses no canto XXVI do Inferno14, pois reconheceu que ali estava o sinal para todo exilado político em todas as eras e que a libação aos mortos era o apelo inelutável a ser tributado aos antepassados para que se tornasse possível o retorno ao lar. Essa busca pela paz do lar é a busca alegórica pela harmonia cívica, construindo, na diversidade, uma leitura até então inédita, alterando a ordem reinante. Desse modo, Jaeguer opõe ainda a justiça (themis), conforme descrita por Homero, à justiça (dike), descrita por Hesíodo. Themis seria a justiça imposta, vindo de cima para baixo, tendo como referência o antigo estado de coisas, sobre o qual reinava Zeus, absoluto. O ideal cavalheiresco, dos tempos patriarcais, julgaria de forma análoga, buscando mimetizar Zeus e dando themis aos homens. Já, o conceito de dike, reclamado por Hesíodo contra o senhores venais, possibilitaria outro entendimento: O conceito de dike não é etimologicamente claro. Vem da linguagem processual e é tão velho quanto themis. Dizia-se das partes contenciosas que “dão e recebem dike”. Assim se compendiava numa palavra só a decisão e o cumprimento da pena. O culpado “dá dike”, o 13 Homero. Odisséia. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004, pp. 214-216, vs.296-340. A tradução e a editoração dos textos clássicos é em si um tema saboroso, que valeria um trabalho à parte. Citamos aqui a polêmica tradução de Odorico Mendes, repudiada pela crítica literária nacional do início do século XX pelo excesso de arabescos e romanismos e resgatada pela crítica literária do final do mesmo século XX como criativa e inovadora.. 14 Cf. ALIGHIERI, Dante. Inferno. Tradução de Jorge Wanderley. Rio de Janeiro: Record, 2004. 18 que equivale originariamente a uma indenização, ou compensação. O lesado, cujo direito é reconduzido pelo julgamento, “recebe dike”. O juiz reparte “dike”. Assim, o significado fundamental de dike equivale aproximadamente a dar a cada um o que lhe é devido. Significa, ao mesmo tempo, concretamente, o processo, a decisão e a pena. 15 Dike irá simbolizar, portanto, o direito positivo nascente, um direito igualitário, equivalente político à invenção da moeda no plano econômico, que garante a justa medida no intercâmbio das mercadorias. Com a luta política por garantir a dike, que se aplicava inclusive aos basileus, descortinava-se um horizonteidealizado desde os tempos antigos. Antes, porém de atingir a democracia existiram vários graus intermediários. O que importa é determinar que uma mudança paradigmática se dera. E, alterado o conceito de justiça, alterava-se, em paralelo, o conceito de virtude heróica (arete), passando esta a se fazer presente não necessariamente através da força física, mas, sobretudo, pela aptidão por um ideal de cidadão, que, ao defender os valores cívicos, traria o modelo de um novo homem. E vaticina Jaeguer: As posteriores críticas da lei, como as que no tempo da democracia corrompida foram movidas contra um legalismo do Estado, opressor e despótico, não afetam o que acabamos de afirmar. Em oposição a esse cepticismo, todos os pensadores antigos são concordes no elogio da lei. Ela é, para eles, a alma da pólis. O povo deve lutar pela sua lei como pelas suas muralhas, diz Heráclito. Surge aqui, por trás da imagem da cidade visível, defendida pela sua cinta de muralhas, a cidade invisível que tem na lei um firme baluarte.16 Vimos, portanto, que Jaeguer descreve os épicos homéricos como se estivera a descrever um longo passo histórico subsequente, o Renascimento. No fundo, sob a imagem relatada ressalta a dimensão das navegações a romper com um passado feudal e a emprestar aos horizontes do olhar um admirável mundo novo. 1.2. Um novo herói: o trabalhador A obra do camponês Hesíodo, poeta do séc. VIII a.C., demonstra a importância que a obra homérica havia alcançado, chegando a influenciar a educação e os concursos populares. Afinal, sabe-se que Hesíodo foi o vencedor de um concurso em honra de 15 JAEGUER, W. W. Op. cit., pp. 134-135. 16 Id., ibid., p. 143. 19 certo Afidamos, havendo viajado para Cálcis, na ilha de Eubéia, com o objetivo de participar dos jogos funerários. Hesíodo teria vivido por volta de 800 a.C. na Beócia, região situada no centro da Grécia, passando a maior parte da vida em Ascra, sua aldeia natal. Foi autor de pelo menos duas obras consagradas, a Teogonia e Os trabalhos e os dias. A Teogonia narra a cosmogonia, o surgimento da vida, relatando a agônica história dos deuses da mitologia pré-homérica. No início existiam as divindades originárias: Caos, Tártaro (Abismo), Gaia (Terra) e Eros17. Numa primeira era panteística, Caos – o vazio primordial -, dotado de energia prolífica, dá origem à Érebo (Trevas) e à Noite. Noite gera Éter e Hemera (Dia). De Gaia nascem Montes, Pontos (Mar) e Urano (Céu), feito de igual proporção a ela, que a recobre toda, e que a desposou, assumindo o reinado dos deuses. Entre os filhos de Gaia e Urano encontra-se o titã Cronos, que, incentivado pela mãe, se rebelou contra a tirania do pai e, depois de castrá-lo, governou o universo. Cronos, por sua vez, consolida a segunda geração divina, o Tempo primordial (as priscas eras), que acaba por representar uma nova ordem tirânica e, para evitar novo destronamento, devora os próprios filhos ao nascer. Foi, todavia, destronado pelo filho Zeus, que, por um estratagema de Réia, sua mãe, escapou ao banquete fatídico. Zeus, então, representando a terceira e definitiva geração olímpica, fundou o panteão clássico. Em seguida, da união dos deuses com os mortais, teriam nascidos os heróis. Os trabalhos e os dias, um poema didático, tem como foco o homem e exaltação da virtude e da justiça e, em especial, a narrativa pessoal dos dissabores de Hesíodo, depois da morte do pai, quando seu irmão, Perses, corrompeu os juízes locais e apoderou-se da maior parte da herança que correspondia a ambos. A primeira parte da obra (o Erga) é dedicada aos mitos de Prometeu e Pandora, ressaltando a necessidade do trabalho duro e honesto. Exalta a Justiça (Dike), filha predileta de Zeus e única esperança dos homens e descreve o mito das Cinco Idades. A segunda parte do poema tem propósitos pontuais: estabelece normas para a agricultura, seus ciclos, utensílios, conselhos técnicos e precauções relativas à semeadura e ao plantio, servindo, no fundo, como admoestação ao irmão Perses, leviano, demonstrando como uma riqueza modesta pode sobrevir do suor cotidiano. Uma terceira parte apresenta conselhos morais e religiosos, estabelecendo como primeira providência para a prosperidade a escolha de 17 Existem controvérsias sobre a legitimidade dos versos 118-119 da Teogonia, o que leva alguns doutrinadores a distinguir apenas três divindades primordiais: Caos, Gaia e Eros. 20 uma boa esposa. Faz, ainda, admoestações sobre bem criar os filhos e encerra com um calendário sobre os dias fastos e nefastos para o trabalho. Emerson Luiz de Farias, resenhando a bibliografia do aedo, comenta: Diferentemente de Homero, Hesíodo não se ocupou das esplêndidas façanhas dos heróis gregos. Seus temas são os deuses, regentes do destino do homem, e o próprio ser humano, com suas fadigas e misérias. Dividiu a história da humanidade em cinco períodos, da idade do ouro à do ferro, das quais o último correspondia ao difícil período histórico em que ele próprio viveu. Para Hesíodo, só o trabalho e o exercício das virtudes morais permitem aos seres humanos chegar a uma existência discretamente feliz na infausta idade do ferro. Hesíodo morreu, ao que tudo indica, em Ascra. 18 Considerado o pai do Direito por dispor o tema de O trabalho e os dias como se fosse uma petição aos juízes que se deixaram vender ao irmão, Hesíodo inaugura a ética como princípio da justiça. Desse modo, Hesíodo representa a denúncia do povo contra os poderosos. Embora não raro se encontrem críticas a seu estilo, menos rebuscado que o de Homero, seus poemas certamente auxiliaram a despertar o espírito democrático nascente. Permeando idas e vindas na narrativa, nem sempre completando a argumentação de forma harmoniosa, intercalando-a com narrativas independentes, talvez, por isso mesmo, tenha representado a poética de um estrato mais simples da população, o que dá testemunho da popularidade dos aedos. A obra hesíodica nos aproxima ainda mais de um relato pormenorizado, revelando que ainda não havia a cisão entre campo e pólis, que ambos, de certa forma, se integralizavam. Jean-Jacques Maffre trabalha nessa esteira: Para os gregos da época clássica, ao menos tão importante quanto o meio natural é o ambiente humano, isto é, o contexto político, cultural e religioso, que devemos precisar, embora sumariamente, já que terá, evidentemente, consequências sobre a vida concreta dos indivíduos. Qualifica-se usualmente a Grécia clássica como Grécia das cidades. Realmente, do ponto de vista político, salvo alguns reinos como a Macedônia, ou algumas regiões longínquas, como o Epiro, que vive, em aldeias, obedecendo a uma organização tribal, o mundo grego clássico está dividido em póleis, isto é, em cidades, que são entidades independentes; esses verdadeiros pequenos Estados, juridicamente soberanos e autônomos, compõem-se não apenas de uma cidade, que é o centro político, social, administrativo e religioso, mas também de um território mais ou menos vasto, a khôra, essencialmente rural, 18 FARIAS, E. L. Hesíodo. In: http://www.nomismatike.hpg.ig.com.br/Mitologia/Hesiodo.html, acesso em 22/07/2004. 21 onde estão instalados algumas aldeias e pequenos burgos, algumas fortalezas perto das fronteiras e até alguma aglomeração importante, como o porto, especificamente, se a cidade principal não está à beira- mar, como o Pireu, ao lado de Atenas; além disso há santuários, alguns dos quais têm fama pan-helênica, como o de Olímpia, no território de Elis. A pólis constitui o ambiente do qual muitos habitantes só saem de quando em quando. 19 Para melhor compreender a dimensão da obra hesíodica, retomemos um ponto centralem sua poética: o mito de Prometeu e Pandora. Hesíodo narra o conto predileto do deus decaído, daquele que, roubando a chama olímpica, presenteia os homens com a inteligência. A imagem é reveladora: trata-se a um tempo da humanização dos deuses e da resposta à tirania, que impede que a consciência iluminadora se espalhe, libertando o mundo. Em Pandora, a desgraça feminina a retirar dos homens a paz, inventando a necessidade do trabalho, traduz, por sua vez, o novo (o único?) heroísmo possível. 1.3. Platão e o legislador Penetrar nesse debate é sondar um diálogo entre épocas, patrocinado, em especial, por Platão, que chama para a tribuna da escrita um auditório variado, na medida em que traz argumentos de antanho e elabora circunvoluções de teoria antigas. Vejamos, no autor ateniense, passagens relatando a importância da estratégia da linguagem para a construção da idéia platônica, através de breve exame do dialógo Crátilo, que nos permitirá apreciar de forma intertextual a República. Assim é que, no Crátilo, o personagem Sócrates intermedia a oposição entre Crátilo e Hermógenes.20 O primeiro pretende que os nomes são exclusivos e conformam-se às coisas as quais nomeiam; o outro considera as palavras mera convenção, podendo-se trocar umas pelas outras sem afetar-se o poder de designação. Hermógenes - Sócrates, o nosso Crátilo sustenta que cada coisa tem por natureza um nome apropriado e que não se trata da denominação que alguns homens convencionaram dar-lhes, como designá-las por 19 MAFFRE, Jean-Jacques. A vida na Grécia clássica. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989, pp. 35-36. 20 Em momento correlato, trabalhamos as interseções desse diálogo platônico com as revisões do próprio autor em As leis, tendo como perspectiva a constituição de um campo próprio para a semiologia, frente a recuperação das idéias estóicas por Saussure. Ver nosso: O hermeneuta e o demiurgo: presença da alquimia no histórico da interpretação jurídica, in: BOUCAULT, C. E. de A.; RODRIGUEZ, J. R. (orgs.). Hermenêutica plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 45-100. 22 determinadas vozes de sua língua, mas que, por natureza, têm sentido certo, sempre o mesmo, tanto entre os Helenos como entre os bárbaros em geral. Perguntei-lhe, então, se, em verdade, Crátilo era ou não o seu nome, ao que ele respondeu afirmativamente, que assim, de fato, se chamava. E Sócrates? perguntei. É Sócrates mesmo, respondeu. E para todos os outros homens, o nome que aplicamos a cada um é o seu verdadeiro nome? E ele: Não; pelo menos o teu, replicou, não é Hermógenes, ainda que todo mundo te chame deste modo. 21 A exceção à regra de Crátilo, o próprio nome de Hermógenes (mentiroso, enganador) dará vez à exposição de Sócrates, diferenciando os discursos entre falsos e verdadeiros, uma vez que é possível mentir, ou seja, usar as mesmas palavras para designar numa coisa aquilo que ela não é. Debatendo em separado com os opositores, demonstrará, junto a Hermógenes, a conformação ideal dos nomes às coisas e, junto a Crátilo, a impossibilidade absoluta dessa conformação. Para tanto, com Hermógenes, conceituará a linguagem como técnica. Assim como se utiliza um furador para perfurar, uma lançadeira para tecer, para nomear utiliza-se o nome. A imagem socrático-platônica parece ter como intenção desviar a oposição entre phýsis (natureza) e thesei (convenção), defendidas respectivamente, por Crátilo e Hermógenes, objetivando uma terceira categoria, mediadora, a da mimésis - onde o nome-instrumento, realizando a ação de nomear - criaria uma "outra natureza", imagem do protótipo. Sócrates - E a respeito do nome, poderias dar resposta idêntica? Se dizemos que o nome é instrumento, que fazemos quando designamos alguma coisa? Hermógenes - Não sei como responder. Sócrates - Não damos informações uns aos outros, e não distinguimos as coisas, conforme sejam constituídas? Hermógenes - Perfeitamente. Sócrates - O nome, por conseguinte, é instrumento para informar a respeito das coisas e para separá-las, tal como a lançadeira separa os fios da teia.22 Junto a Crátilo, e já havendo determinado anteriormente ser o legislador ou nomoteta o artífice que, na origem, determina o nome para cada coisa, questiona dois itens centrais: 1) pode o mesmo nome existir sem variantes em culturas diferentes?; 2) 21 PLATÃO, Crátilo/ Teeteto. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Universidade Federal do Pará, 1973,, p. 119. 22 Id., ibid., pp. 125-126. 23 quem criou os primeiros nomes, nomeando o legislador, visto só ser possível conhecer as coisas através dos nomes? Crátilo - Sou de parecer, Sócrates, que a mais justa explicação será dizer que foi um poder sobre-humano que deu às coisas os primeiros nomes e que por isso mesmo eles têm de estar certos. Sócrates - Julgas, então, que quem instituiu os nomes o fez em contradição consigo mesmo, ou tenha sido um demônio ou uma divindade? Ou consideras como não dito tudo o que conversamos há pouco?23 Concluem, a partir daí, ser possível conhecer as coisas também sem o auxílio dos nomes. Entre a imitação, o nome e a verdade, estariam as próprias coisas; a busca dessa definição original devendo, portanto, ser exercida junto a estas. A novidade da proposta socrática não só antecipa a cisão entre racionalismo e irracionalismo como o estudo propriamente técnico da linguagem. Divorciando as coisas e os nomes, está sugerida a imagem da junção de forma e conteúdo na criação dos signos. Como, de resto, salienta Benedito Nunes: Platão nos transporta a essa questão-limite que aglutinou a Semiologia, depois que Saussure estabeleceu, aliás redescobrindo certos veios da cultura estóica e da tradição escolástica, o caráter arbitrário do signo lingüístico e a sua estrutura diferencial, como unidade entre significante e significado.24 Contudo, para Platão, naquele momento, fora capital desviar do nome o poder de preposto das próprias coisas, evitando o perigo inerente a essa representação: o discurso pretende-se como substituto da verdade. Sua preocupação referia-se primordialmente à ameaça representada pelos sofistas, mestres da persuasão (peithó) em detrimento do conhecimento (epistéme). Ao final do diálogo, explanando sobre a questão inicial, o nome de Hermógenes, Platão/Sócrates vale-se de extrema sutileza e ironia, em certa parceria mal disfarçada com a posição de Crátilo, o que também se revela pela assimetria do texto, que leva o nome deste quando cerca de 70% do debate é travado com o discípulo sofista. Assim, explorados morfológica e semanticamente os nomes mitológicos a partir de citações de Homero, e após Sócrates definir, por exemplo, uma dupla etimologia para Zeus como Diá (através de) e Zên (vida) e ainda conceituar os demônios como uma raça anterior a 23 Id., ibid., p.191 24 NUNES, Benedito. Introdução. In: PLATÃO, op. cit, p. 14. 24 dos homens e de maior valia por sua sensatez, chega-se quase inevitavelmente ao nome de Hermes. Sócrates procura esquivar-se, dando novo rumo ao debate, mas Hermógenes insiste. Hermógenes - É o que farei; antes, porém desejo perguntar-te a respeito de Hermes, por haver dito Crátilo que eu não sou Hermógenes. Investiguemos, portanto, o verdadeiro significado do nome Hermes, para ver se ele tinha razão no que disse. Sócrates - De todo jeito, quer parecer-me que o nome Hermes se relaciona com discurso: é interprete, ou mensageiro, e também trapaceiro, fértil em discursos e comerciante labioso, qualidades essas que assentam exclusivamente no poder da palavra. Ora, como dissemos antes, falar (eirein) é fazer uso do discurso, além de haver uma expressão muitoempregada por Homero (emêsato) que significa inventar. Da reunião dessas duas expressões - falar e inventar - formou o legislador o nome do deus, como se nos advertisse expressamente: Homens, o deus que inventou o discurso deve ser chamado, com toda a justiça, Eiremes. Mas hoje, segundo penso, embelezamos-lhe o nome, e lhe chamamos Hermes. Íris, também, parece provir do mesmo vocábulo, eirein, por ser ela mensageira. Hermógenes - Então, parece que Crátilo tem mesmo razão de dizer que não me chamo Hermógenes, pois sou jejuno em matéria de discursos.25 Etimologicamente, Hermógenes significando descendente de Hermes, implica, considerada a tese de Crátilo, em ser Hermógenes descendente do discurso, no caso, o discurso sofista. A ironia do Crátilo está no fato de, tomada a palavra como verdade, Hermógenes, que defendia a tese oposta, não poderia ser considerado verdadeiro, logo seria a exceção à regra (demonstrando que, organicamente, na feitura da obra, já encontrava-se antecipado o prognóstico socrático sobre o discurso falso). Dessa forma, Sócrates, ao definir o nome de Hermes, complementa-lhe o sentido, ou melhor, cria um neologismo - reunindo o sentido de "falar" ao de "inventar", resultando na conjunção também o sentido de "trapaceiro, fértil em discursos e comerciante labioso", ou seja, define o deus como um sofista autêntico, interessado na persuasão, imaginativo e cobrando caro pela transmissão de sua técnica aos discípulos ambiciosos. Hermógenes faz que não percebe e retruca estar correta a observação inicial de Crátilo posto não ser ele um orador. Sócrates não diz nem que sim nem que não, fazendo da definição do nome Hermes uma paródia resumida do próprio diálogo como um todo, concentrando nesta as explanações quanto à natureza e quanto ao consenso como determinantes dos nomes. Entretanto, sua queda à posição de Crátilo, revela-se na crueza irônica da 25 Id., ibid., p. 151. 25 continuidade do golpe, ao persistir, disfarçadamente, no assunto, partindo então para a definição do nome do filho mitológico de Hermes, ou seja, de forma velada, o próprio Hermógenes. Sócrates - Quanto a Pan, camarada, filho de Hermes, é fácil compreender que é de natureza híbrida. Hermógenes - Como assim? Sócrates - Como sabes, o discurso indica todas as coisas (pan), e circula e se movimenta sem parar, além de ser de natureza híbrida, verdadeira e falsa ao mesmo tempo. (...) É justo, portanto que seja denominado Pan Aipólos o que tudo (pan) exprime e é o movimentador constante (aei polôn) das coisas, o filho híbrido de Hermes, macio em cima e áspero e hircino, ou trágico, em sua porção inferior. É evidente que Pan é discurso ou irmão de discurso, a ser, de fato, filho de Hermes, pois é muito natural que haja parecença entre irmãos.26 Pan/Hermógenes, o filho de Hermes, produto híbrido de verdade e falsidade, simbolizando o próprio discurso em suas potencialidades divinas e mundanas, acaba por representar o próprio gênero humano em sua franqueza, vale dizer, no forma que lhe é atribuído pela escola de Heráclito. Ao promover, através de Hermógenes, a possibilidade de conversão do sofista, trazendo-o para o mundo das verdades e das essências, Platão faz dessa conversão tabula rasa dos signos que apenas capacitar-se-ão à justiça por via da busca do conhecimento e da adoração à verdade, essência das coisas. Quando, portanto, na República, Sócrates expulsa os poetas, o faz em nome de uma nova ordem estilística. É ao gênero do imitativo, ameaçadoramente próximo do sofisma, que se endereça o golpe. Resta a poesia como sublimação, ou seja, a própria filosofia, que não apenas estará presente como mesmo no comando da nova era. Sócrates – E se afirmo que a nossa cidade foi fundada da maneira mais correta possível, é, sobretudo, pensando no nosso regulamento sobre a poesia que o digo. Glauco – Que regulamento? Sócrates – O de não admitir em nenhum caso a poesia imitativa. Parece-me mais que evidente que seja absolutamente necessário recusar admiti-lo, agora que estabelecemos uma distinção clara entre os diversos elementos da alma. Glauco – Não compreendi bem. Sócrates – Digo, sabendo que não ireis denunciar-me aos poetas trágicos e aos outros imitadores, que, segundo creio, todas as obras deste gênero arruínam o espírito dos que as escutam, quando não têm o antídoto, isto é, o conhecimento do que elas são realmente. 26 Id., ibid, pp 151-152 26 Glauco – Por que falas assim? Sócrates – É preciso dizê-lo, embora uma certa ternura e um certo respeito que desde a infância tenho por Homero me impeçam de falar. Na verdade parece ter sido ele o mestre e o chefe de todos esses belos poetas trágicos. Mas não se deve testemunhar a um homem mais consideração do que à verdade e, como acabei de dizer, é um dever falar. 27 Muitos comentadores, a começar por Aristóteles, têm assinalado como paradoxal a expulsão dos poetas, seja como ato tirânico, seja como contradição, uma vez internalizada a República também como obra poética. Chamamos, todavia, a atenção para a exploração distintiva que Platão trouxera à mostra: tratava-se da emergência de um novo tipo de poesia enquanto literatura empírica, abandonando o ritual trágico- religioso e penetrando no espaço da elaboração filosófico-política da verdade. 1.4. A gestão de legislador No segundo livro da Política, Aristóteles não apenas revela sua ácida crítica à República de Platão como nos adianta ser esta, em suma, uma obra poética. Ironicamente, portanto, como na obra platônica Sócrates expulsa os poetas, o próprio Platão estaria, em última análise, expulsando a si mesmo. Contudo, o primordial da crítica de Aristóteles encontra-se no próprio conjunto de análise, mais complexo e original. Note-se que, buscando explorar as contribuições existentes para se pensar uma República ideal, Aristóteles elabora um método analítico inovador: a junção de teoria e prática. Assim, nos oferece a seguinte hipótese: trabalhar as principais contribuições poéticas em correlação com os principais exemplos empíricos. Tal estudo estaria justificado pela necessidade de um diagnóstico preciso: Empreendemos a tarefa de procurar, entre as sociedades políticas, a melhor para os homens, os quais têm, aliás, todos os meios de viver segundo sua vontade. Devemos, pois, examinar não só as diversas formas de governo em vigor nos Estados que passam por ser regidos por boas leis, mas ainda as que foram imaginadas pelos filósofos, e que parecem sabiamente combinadas. Faremos ver o que elas têm de bom e de útil, e mostraremos ao mesmo tempo que, procurando uma combinação diferente de todas elas, não pretendemos mostrar 27 PLATÃO. A república. Tradução de Enrico Corvisieri. 15ª ed. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2004, p. 321. 27 sabedoria, mas que o vício das constituições existentes a isso nos compele.28 Desse modo, na primeira clivagem, analisando os autores que apontaram ideias originais sobre uma república ideal, comenta aspectos em Platão, em Faleias de Calcedônia e em Hipodamos de Mileto. Na obra platônica, lê com acento crítico o fim da propriedade privada, onde a própria família fora vista por Platão enquanto modelo de propriedade, portanto socializável. Da análise dos prós e contras, Aristóteles resgata uma idéia mediana: controle do acúmulo de riquezas. Em Faleias, ressalta a partilha das fortunas, equilibrando a sociedade em momentos de desnível. E, em Hipodamos, chama a atenção para o planejamento original das cidades e para a economia processual. No segundo bloco de abordagens, Aristóteles observa o governo de cidades em sua época, em especial as cidades de Esparta, Creta e Cartago. Em Esparta, exemplopor extensão da Lacedemônia, o autor ressalta a organização militar, a ordem, a hierarquia, infelizmente ameaçados de decaírem por não existir uma previsão da função das mulheres, as quais, herdeiras dos homens, devido ao risco de vida permanente, acabam por dilapidar o patrimônio reunido. Em Creta chama a atenção, em especial, para o sofisticado modelo representativo. E em Cartago anuncia uma novidade audaciosa: o plebiscito, onde o povo reunido em assembleia pode obstaculizar a atuação soberana. Todavia, a grande originalidade da análise está em identificar, para além da crítica ao caráter meramente poético-discursivo da República de Platão, o surgimento de um novo personagem no cenário político: o legislador: Entre os homens que divulgaram sistemas de governo, muitos há que jamais tiveram parte nos negócios públicos, que jamais saíram da vida privada. Temos dito sobre a maior parte deles tudo o que merece alguma atenção. Vários legisladores têm ditado leis a seus concidadãos ou a outros povos estrangeiros, e eles próprios têm-se ocupado do governo. Desses legisladores, alguns só elaboram leis, outros fundam estados, como Licurgo ou Sólon, que foram simultaneamente legisladores e fundadores de governo. 29 Aristóteles faz do legislador o aedo dos novos tempos, aquele capaz de recolher a contribuição poética e o exemplo prático, capaz de escrever a obra fundamental do Gênio e de fundar cidades, consubstanciando na ação o ideal imaginado. 28 ARISTÓTELES. A política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 1988, p. 28. 29 Id., ibid., p. 48. 28 SEGUNDO ATO JÓ: O EXEGETA E O CÂNONE William Blake, gravura 15 do Livro de Jó. Disponível em https://br.pinterest.com/pin/405605510174200983/?lp=true 29 No Livro de Jó encontra-se talvez a mais importante das antigas referências a Satanás, o opositor, então um mero ministro de Deus, uma espécie de Promotor Público junto à Justiça Divina; sendo, na realidade, denominado “o Satan”, objetivando o artigo tratar-se antes de um substantivo comum - um cargo - do que um substantivo próprio - o nome do Mal. Trata-se a obra de um longo poema relatando diálogos sucessivos numa estrutura dramática introduzida e concluída por breves trechos em prosa. Nela, Jó vive em torno do século V a.C. e é afortunado, piedoso e justo, tem um imenso rebanho, uma grande família e adora o Senhor. Deus, por sua vez, também está muito satisfeito com tal servo, a ponto de comentar com o Satan, quando este retorna de suas andanças pelo mundo, de que não há ninguém igual a Jó na terra. É quando o Satan, que está entre os filhos de Deus (cf. Jó 1,6), retruca que é fácil adorar a Deus quando se possui felicidade e fortuna. Deus então responde: “Pois bem! Tudo o que ele tem está em teu poder” (Jó 1,11)30. E a completa desgraça vem a recair sobre Jó: os Sabeus roubam seu gado e jumentos, um raio incendeia-lhe ovelhas e escravos, os Caldeus em três bandos roubam- lhe os camelos e assassinam-lhe os servos e um furacão abala sua casa matando-lhe todos os filhos. Jó rasga as roupas, arranca os cabelos e caindo prosternado diz: “O Senhor deu, o Senhor tirou, bendito seja o nome do Senhor!” (Jó 1,21). Retornando o Satan à presença de Deus, Este torna a citar a integridade de Jó, alegando ter sido em vão ter-se incitado a perdê-lo. “Pele por pele!”, respondeu o Satan, “O homem dá tudo o que tem para salvar a própria vida. Mas, estende a tua mão, toca- lhe nos ossos, na carne; juro que te renegará em tua face” (Jó 2,4s). O Senhor decide dispor Jó ainda uma vez ao poder do opositor, recomendando: “poupa-lhe apenas a vida” (Jó 2,6). Ferido com uma lepra, Jó vê seu próprio corpo consumir-se. Sua mulher incita-o a amaldiçoar a Deus. Mas Jó insiste: “Aceitamos a felicidade da mão de Deus; não devemos também aceitar a infelicidade?” (Jó 2,10). E, sentado sobre cinzas, valendo-se de um caco de telha para coçar-se, Jó é visitado por três patriarcas que, sabedores da sua desgraça, procuram consolá-lo. Os patriarcas choram frente ao estado lastimável de Jó e o cercam em silêncio por sete dias e sete noites, tão grande é a dor em que o encontram 30 Cf. BÍBLIA SAGRADA. Tradução dos originais mediante a versão dos monges de Maredsous (Bélgica) pelo Centro Bíblico Católico, revista por Frei João José Pedreira de Castro. São Paulo: Editora Ave Maria, 1989. Todas as demais citações diretas do Livro de Jó seguem essa mesma referência. 30 mergulhado. Após esse prazo, Jó inicia um profundo lamento, onde amaldiçoa o dia em que nasceu, em profunda mágoa para com o desatino divino. O longo poema que se segue tem como tema o sofrimento. Interessante notar que as falas virão todas em versos, diferente do prólogo, relatado em prosa. Desse modo, o texto em prosa funciona como marcação teatral para enquadrar o extenso diálogo entre os atores. Haroldo de Campos chama a atenção para os aspectos dialéticos presentes na própria elaboração do personagem Jó: [...] o Livro de Jó (Sêfer Há-Íyov), atribuído a Moisés pela tradição hebraica, tem parecido a alguns estudiosos modernos “desarmonioso” ao extremo na construção de seu principal protagonista – a personagem-título, Jó. Por essa razão se justificaria a hipótese de que esse Jó paradoxal teria resultado da “fusão de duas (outras) personagens: ‘Jó, o paciente’, herói do relato em prosa (moldura do livro); ‘Jó, o impaciente’, figura central do diálogo poético que no livro transcorre”; desse segundo Jó, aquele que na verdade mais nos fascina, já foi dito que era movido pela “hybris da virtude”. 31 Em seu lamento, Jó, aniquilado, aspira tão-somente a que Deus traga-lhe a morte, inconformado com o fato de sofrer incessantemente apesar de haver sido sempre justo. Os patriarcas, Elifaz de Temã, Bildad de Chua e Sofar de Naama obtemperam, caracterizando o sofrimento como castigo e instando com Jó para que peça perdão por seus pecados. O drama vai, paulatinamente, desenvolvendo os contornos de uma lide jurídica. Nota-se que há, no procedimento das falas e das réplicas, um fundo ritualístico, invocando o Direito Judaico. Os patriarcas representam o pensamento corrente em Jerusalém. Mas para defender-se dessas idéias comuns, ou melhor, para afirmar a impropriedade de um justo ser castigado, Jó questiona a aplicabilidade de pressupostos sobre justiça, uma vez que para Deus, ao que tudo indica, tanto se Lhe faz. Ao contrapor argumentos aos companheiros, o que Jó pretende é fazer, pelo paradoxal da questão, com que o próprio Deus suba à Tribuna para replicar com sua voz o porquê dele estar sendo condenado. É quando declara: Mas é com o Todo-Poderoso que eu desejaria falar, é com Deus que eu desejaria discutir. 31 CAMPOS. Haroldo de. Bere’shith: a cena de origem. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000, pp. 57-58. A citação faz referência interna a GREENBER, Moshe. Job. In: ALTER, Robert; KERMONDE, F. The literary guide to the Bible. Cambridge: The Belknap Press of University Press, 1987; e a TERRIEN, Samuel. Job (Comentaire de l’Ancien Testament, XIII). Neuchátel, Suisse: Delachaux/Niestlé, 1963. 31 Pois vós não sois mais que impostores, não sois senão médicos que não prestam para nada (...) Escutai, pois, minha defesa, atendei aos quesitos que vou anunciar. Para defender a Deus, ireis dizer mentiras, será preciso enganardes em seu favor? Tereis, para com Ele, juízos preconcebidos, e vos arvorais em ser seus advogados? (Jó 13, 3-4. 6-8) Jó tem plena consciência de que litiga contra Deus. Está a ser, por assim dizer, um opositor. E é de certa forma contra esse absurdo que Elifaz, Bildad e Sofar reagem. O tema é ainda elaborado e discutido sob váriospontos de vista sem que se chegue a alguma conclusão satisfatória. Os três patriarcas refutam a argumentação de Jó por vê-la como um disparate, pois incorreria na admissibilidade de um erro divino, restando tão só e certamente a possibilidade do pecado humano, agora sublinhado pela disposição herética do condenado. Jó, todavia, sabedor de que a fonte de seus males provém de Deus, questiona qual será a vantagem de ser puro, quando o ímpio rouba o gado e enriquece impune, pouco ligando em crer ou não em Deus. Na tradição onde se encontra inscrito, Jó não faz mais do que pedir a conformação da lei divina à correção humana, mesmo porque podemos supô-lo como um exegeta. O contexto dessa peça jurídica que origina os autos teatrais, se configura justamente como uma lide jurídica, com argumentos e contraditórios, seguidos de réplicas e tréplicas. Quanto ao deutoronomista em particular, deve-se observar, contrariando Frost, que, como Jó não é israelita, seus sofrimentos não constituem nenhuma violação da aliança deutoronômica. Jó nunca ouviu falar de Moisés. Não há tampouco nada na estrutura do Livro de Jó que possa sugerir que deva ser visto como uma alegoria dos sofrimentos de Israel durante ou depois do exílio babilônico. Nem Jó, nem Deus, nem Satã, nem nenhum dos acusadores de Jó chega sequer a insinuar a história de Israel. A única aliança conhecida por Jó é a aliança do Éden, por assim dizer, e ele não a conhece por conhecer o mito da criação israelita enquanto tal. Ele simplesmente acredita que Deus é criador e bom e que um Deus bom não criaria um mundo em que um homem inocente como ele acabe sofrendo sem nenhuma boa razão. Sua cosmologia é, com efeito, a do recém-concluído Livro dos Provérbios, menos a cláusula liberatória judaica ou derivada da Tora.32 32 MILES, Jack. Deus: uma biografia. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 343. O tradutor adverte, em nota e rodapé, nessa passagem: “A expressão ‘cláusula liberatória’, que voltará a aparecer no texto, é jurídica. Indica ‘cláusula em que se convenciona que uma das partes (de um contrato) ficará exonerada de responsabilidades ou encargos quando ocorram certas e determinadas circunstâncias’’’ 32 Vale dizer, para que serve Deus senão para impor uma ordem, um modelo de justiça? Repare-se que seu lamento apenas se inicia depois da comparação com seus congêneres. Após a maturação das semelhanças e diferenças elencadas no silêncio daqueles sete dias e sete noites, mesmo período que o Senhor utilizara para a Criação, Jó emerge, engrandecido por um saber até então inédito: o da necessidade imperiosa de estabelecer-se, entre os homens, um simulacro da justiça divina. Nesse sentido, o lamento de Jó pode ser compreendido como uma proto-história do compromisso social e mesmo das noções de direitos e deveres individuais. Se por vezes se compara sua lida com a de Abraão ao subir o monte disposto a sacrificar o filho de sua velhice, vale lembrar que para o Pai da fé um anjo permite o deus ex machina e tudo resta explicado. Jó não vai contra o desígnio divino, quer apenas entender a função do seu sofrimento na orquestração maior, a qual, sob seu ponto de vista, resta desprovida de lógica. Em outras palavras, aspira a um deus ex machina em prol da Virtude. Retornando ao contexto, nesse momento entra em cena um quinto personagem, Eliú, filho de Baraquel, de Buz, um jovem que aguardara pacientemente que aos mais velhos a sabedoria se fizesse conhecer. Entretanto, ao notar que os argumentos cessavam sem, contudo, desvendar-se uma explicação razoável, encoleriza-se e toma a palavra. E ao Direito reclamado por Jó, frente ao qual este é um justo, opõe o inescrutável, o desígnio divino às vezes incompreensível “pois Deus é maior do que o homem” (Jó 33,12). E de nada adiantaria acusar Deus de não responder de viva voz, pois o discurso de Deus é de outra natureza, comunica-se através do sonho e através do sofrimento. E arremata: Imaginas ter razão em pretender justificar-te contra Deus? Quando dizes: “Para que me serve isto, qual a minha vantagem em não pecar?”. Pois vou responder-te, a ti e a teus amigos. Considera os céus e olha: vê como são mais altas que tu as nuvens! Se pecas, que danos lhe causas? Se multiplica tuas faltas, que mal lhe fazes? Se és justo, que vantagem lhe dás? ou que recebe ele de tua mão? Tua maldade só prejudica o homem, teu semelhante, tua justiça só diz respeito a um humano. (Jó 35, 2-8) 33 E Eliú termina glorificando as maravilhas de Deus que é a própria Natureza, seu poder fenomenal e sua voz tonitruante que se faz ouvir como uma lei aos elementos. O aparte de Eliú - cujo nome é uma variante de El-Iah (El/Deus-Iahweh/Jeová) - funciona como uma introdução ao último e magnífico personagem: o próprio Deus que, do seio de uma tempestade, no meio de um redemunho, responde a Jó: Quem é aquele que obscurece assim a Providência com discursos sem inteligência? (...) Onde estavas quando lancei os fundamentos da terra? (...) Algum dia na vida deste ordens à manhã? (...) Qual é o caminho da morada luminosa? Onde é a residência das trevas? Poderias alcançá-la em seu domínio, e reconhecer as veredas de sua morada. (Jó 38, 2.4.12.19-20) Cabe ao homem aceitar o modo divino de proceder e não questionar a Sabedoria e a Bondade. Jó retrata-se e arrepende-se. O Senhor, então, dirigindo-se aos patriarcas, dá conta de sua irritação pela argumentação travada contra seu servo Jó e exige o holocausto de sete touros e sete carneiros. E a Jó é restituída a saúde, a posição social, as posses anteriores vêm em dobro e todos os amigos e parentes ofertam-lhe riquezas. Torna a ter tantos filhos e filhas quantos os que havia perdido e ainda mais belos. E vive por mais 140 anos para conhecer a quarta geração dos filhos de seus filhos. “Depois, velho e cheio de dias, morreu” (Jó 42,17). A obra do poeta desconhecido, autor do Livro de Jó, elaborada provavelmente entre os séculos VI e V a.C., é produto de um douto na ciência jurídica. Temos na atualidade a noção vulgarizada de que o Direito ocidental é exclusivamente uma evolução histórica do Direito Romano com laivos socrático-platônicos. Destarte, levando-se em conta o concurso do judaísmo na formatação cultural da moral católica apostólica romana, vale salientar que dentre os povos do antigo Oriente próximo, o Estado de Israel constituía uma exceção por sua estrutura jurídica caracteristicamente democrática, com acesso de todos os indivíduos à lei. Ainda que o povo não exercesse propriamente o poder, dava-se proteção aos desamparados, mesmo se escravos. E inclusive Jó dá testemunho disso: 34 Nunca violei o direito de meus escravos, ou de minha serva, em suas discussões comigo. Que farei eu quando Deus se levantar, quando me interrogar, que lhe responderei? Aquele que me criou no ventre, não o criou também a ele? Um mesmo criador não nos formou no seio da nossa mãe? Não recusei aos pobres aquilo que desejavam, não fiz desfalecer os olhos da viúva, não comi sozinho meu pedaço de pão, sem que o órfão tivesse a sua parte; desde a minha infância cuidei deste como um pai, desde o ventre de minha mãe, fui o guia da viúva. (Jó 31,13-18) O Direito é aqui de vocação exclusivamente holística. Por funcionar como imanência de uma lei maior, cosmológica, a lei sagrada enfrenta no drama uma lide paradoxal, extremada por dois posicionamentos que ameaçam tornarem-se leituras subversoras. São eles, o direito individual por parte de Jó e, da outra parte, a concorrência do mal no desígnio sagrado. Onde a Lei, ao tipificar um crime, de certa forma, carrega-o consigo, ao enquadrá-lo fá-lo parte da Criação. Se praticamente todos os códigos penais do futuro,em diferentes civilizações, concordarão com o pressuposto de que não haverá crime sem lei anterior que o defina, para aquele momento, onde a palavra era revelação, a Lei tornava-se, concomitantemente, o lugar onde surgia o crime. Na opinião de Jack Miles, o confronto que se inaugura revela um problema incisivo: Pela posição adotada nos Provérbios, o mundo é justo no geral, mas, quando não o é, presume-se que o Senhor teve boas razões para isso. O autor de Jó aceita essa posição como ponto de partida, mas depois especula: “Muito bem, e que razões são essas?”. Ele responde à própria questão contando uma história profundamente blasfema sobre o Senhor Deus. A originalidade subversiva do Livro de Jó pode ser encontrada tanto nessa blasfêmia como na angustiada eloqüência dos discursos do personagem-título.33 Fica em questão dessa maneira não só a explicação poético-teológica para o erro jurídico, mas a própria fundamentação da interpretação legal, onde se consorcia a exegese do texto não escrito. Pois que Jó tenta demonstrar em sua argumentação que o 33 MILES, Jack, op. cit., p. 345. 35 seu sofrimento é exemplar, e, por assim ser, atenta contra a representatividade que ele possuía entre os homens e, consequentemente, é eivado de ilações políticas. Se fora um patriarca justo, proprietário de um número vasto de animais e escravos, fiel, reprodutor, ordeiro, trabalhador e ainda louvara ao Senhor na benesse e na desgraça, Jó deveria representar a ordem de Deus na terra, recebendo em harmonia o proporcional ao suor e à dedicação. Quando cai em desgraça, por motivos inescrutáveis, o que figura em perigo é o status da própria Representação, em suma, a segurança de Ser. Os três patriarcas, que aparentemente defendem Deus das invectivas de Jó, não conseguem esconder essa preocupação. Ainda que incompreensível a culpa de Jó, para os outros patriarcas este tinha que ser culpado, mesmo que de uma culpa invisível aos olhos, em vista de uma lógica argumentativa do tipo ad maiorus ad minus. Está em risco o estatuto social, a Lei não poderá decair junto com Jó, o que poria em perigo a posição deles mesmos e dos demais patriarcas, para não falar na idéia de patriarcalismo. É importante que se assinale que naquele momento histórico era prática comum o holocausto de animais a Deus, mormente cordeiros, estabelecendo-se, através do sangue das vítimas, um conduíte para com o sobrenatural34. Essa prática, comum a várias religiões, seja no antigo Oriente próximo, no Egito ou na Grécia, aquilatava o pedido ou o castigo conforme a quantidade e qualidade do sacrifício oferecido. Assim, para um ritual meramente simbólico - um batizado, o agradecimento a uma hospedagem - uma pequena ave seria o suficiente; porém, na medida em que o que estivesse em questão fosse mais difícil de alcançar, o sacrifício exigido poderia ser bem maior. Para Abraão exigiu-se a disposição de sacrificar o próprio filho centenariamente aguardado; para Jó, à sua revelia, sacrificou-se toda a família e todas suas posses; para a humanidade, sacrificar-se-ia o próprio filho de Deus. Portanto, não é de se estranhar totalmente que, na visão de Elifaz, Bildad e Sofar, para a preservação da ordem patriarcal, parecesse necessário que o antigo esplendor de Jó e ele mesmo fossem sacrificados naquele holocausto involuntário. Robert Alter, por outro lado, chama a atenção para a clarividência de Jó: Jó nunca duvida da existência de Deus, mas, exatamente porque supõe, à maneira bíblica, que Deus deve ser responsável por tudo o que acontece no mundo, ele reiteradas vezes quer saber por que Deus 34 Conforme, no imaginário grego, a cena da invocação aos mortos na Odisséia, que examinamos. 36 agora permanece escondido, por que Ele não se mostra e enfrenta o indivíduo a quem infligiu sofrimento tão agudo. 35 Ao exigir um reexame da matéria, ao pretender uma nova instância que lhe explicite a culpa, Jó não está negando o castigo - este, ele o sabe, é de origem divina -, está afirmando seu direito à revelação, ao princípio da publicidade da justiça, ao tempo em que nega a legitimidade da instância aparente, subvertida pela inexplicabilidade do caso. O que Jó tenta demonstrar com todas as forças é justamente a validade de uma teoria da justificação da decisão diante mesmo das leis não escritas, que refletiria na validade do exemplo atemporal dos patriarcas: o principium que precede a norma, trazendo a perfeita adequação do direito humano à justiça divina. Essa, justamente, a revolução de sua postura: ao exigir uma resposta, ao pretender conformar vida e texto sagrado, exige o surgimento de uma exegese jurídica que contemple a tradição enquanto referendum, podendo, dessa forma, auxiliar-se da jurisprudência da fé. O que Jó tece no silêncio dos sete dias e noites que antecederam ao debate, é a profunda interpretação dos pressupostos civilizatórios do povo eleito. Trata-se, retrospectivamente falando, do primórdio de um discurso hermenêutico sobre os Princípios Fundamentais do acesso à justiça do Estado nascente. O líder tribal, em seu sofrimento, reconhece que sua dilacerante travessia pela perda e pela dor não se faz em vão, mas coincide com a maturidade da própria humanidade. Esta, havendo já muito sofrido, imersa no cotidiano do trabalho duro, teria passado simbolicamente por um holocausto íntimo, por uma verdadeira catábase, que faria ressurgir o homem definitivo, aquele capaz de basilar sua posição e defender a primazia de sua honestidade como pressuposta, mesmo frente à Instância Maior.36 Não é por menos que parte de seu discurso se dá sob a rubrica da sabedoria, buscando sua definição. Se a sabedoria coincide forçosamente com os desígnios de Deus e, consequentemente, com a justiça administrada pelo povo eleito, e se Jó, o modelo patriarcal desse povo, é justo e fiel, é de se esperar a conclusão óbvia de ser ele um sábio, ou seja, de ter ele razão ao exigir razão de Deus. Seu argumento ab auctoritate procura demonstrar a si mesmo como essa autoridade de onde desvenda-se a exegese da lei judaica. 35 ALTER, Robert. Em espelho crítico. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 24. 36 Nesse sentido, Jó e Hesíodo em Os trabalhos e os dias convergem, do mesmo modo que o Gênesis convergira com a Teogonia. 37 Dessa maneira, na esfera humana, Jó investe-se dos atributos de um Opositor. Não se trata de um reflexo do Satan, mas, juridicamente, ele é um opositor ao Opositor (vez que o Satan enforma a esfera divina); age, por assim dizer, não pelo Princípio do Contraditório, então carente de elaboração, mas em Legítima Defesa da Fé. Todavia, Jó não sabe do Satan, sabe que Deus é único, e, portanto, é à justiça divina que Jó se opõe, ou melhor, é a Deus que Jó opõe a sua fé. E é como opositor que Elifaz de Temã, Bildad de Chua e Sofar de Naama o percebem. Estão condoídos por seu sofrimento, mas sua solidariedade não chega ao ponto de questionar as intenções sagradas, ainda mais quando esse questionamento implicaria numa revisão de seus próprios pressupostos enquanto patriarcas. Consideram as réplicas intermitentes de Jó como uma argumentação ab absurdum. O que anteviam em Jó era justamente o desvincular da exegese em relação ao cânone religioso. A argumentação que se abre, todavia, é muito mais do que um jogo ou um arrazoado retórico. O discurso se plasma de características poéticas, as quais, no invólucro de cada fraseado, sustentam uma coloração estilística que arremata o próprio cerne discursivo. É Robert Alter quem assinala: O que se precisa enfatizar, no entanto, muitíssimo mais do que foi feito até agora, é o papel essencial que a poesia desempenha na realização imaginativa da revelação. Se a poesia de Jó –
Compartilhar