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(Encontro 2) A origem trágica da lei

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Prévia do material em texto

A ORIGEM TRÁGICA DA LEI 
 
 
Wilson Madeira Filho 
 
 
 2 
Editora 
 
 
Ficha catalográfica 
 
Capa: William Bouquereau, Orestes perseguido pelas Fúrias, 1862 
 3 
 
 
SUMÁRIO 
 
 
Apresentação 04 
Proscênio 05 
Primeiro Ato - O legislador enquanto novo esteta na magna Grécia 11 
Segundo Ato - Jó: o exegeta e o cânone 28 
Terceiro Ato – Orestes e Electra e a razão após o paradoxo 46 
Cai o pano 88 
Bastidores 92 
 4 
Apresentação 
 
Devo essa apresentação ao Ronaldo do Livramento Coutinho, pois ele insistiu 
muito comigo para que eu publicasse esse livro, fruto de minha tese para professor 
titular na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, em 2005. Na 
época o texto se chamava A origem dramática da lei e a versão atual fez alguns 
pequenos reparos de redação e acrescentei aqui e ali poucas linhas para tornar o texto 
mais didático e fluído. Coutinho fizera parte da banca avaliadora, juntamente com 
Maria Arair do Pinto Paiva, José Ribas Vieira e Leonel Severo Rocha. 
Não conhecia antes o Ronaldo Coutinho, mas ele foi um entusiasta da obra, 
lutou por minha aprovação e se aproximou de mim, e nos tornamos bons amigos. 
Descobri então que ele fora também um grande amigo de meu tio, Marcos Waldemar 
de Freitas Reis, que foi professor de História e diretor por duas vezes do Instituto de 
Ciências Humanas e Filosóficas e que hoje dá nome à Avenida Central do campus do 
Gragoatá da UFF. 
Participei de algumas bancas de mestrado e doutorado na pós-graduação em 
Direito das Cidades na Universidade Estadual do Rio de Janeiro a convite do 
Coutinho, assim como o convidei para bancas de mestrado e de doutorado no 
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF, onde, além de 
professor, fui por três vezes o coordenador. Também quando assumi a direção da 
Faculdade de Direito o convidei mais de uma vez para realizar conferências e 
participar de mesas redondas. Acho que foi lá, num evento sobre os cem anos da 
revolução russa, em outubro de 2017, sua última participação acadêmica, antes de vir 
a falecer. Na ocasião estava feliz, havia superado forte doença e me fez prometer que 
estaria presente em sua festa de 80 anos, iria alugar um clube e prometia um grande 
evento. 
Pena, Coutinho, perdemos essa grande festa que não pode acontecer, mas segue 
esse presente atrasado. 
Vai brindando por nós aí encima que aqui embaixo estaremos precisando. 
 
Abraços, 
 
Wilson 
 5 
PROSCÊNIO 
 
 
 
 
 
 
 
 
Forma e função nos edifícios teatrais clássicos gregos, cfe SOUZA (2006). Disponível em 
http://www.avaad.ufsc.br/moodle/mod/hiperbook/view.php?id=497&groupid=&target_navi
gation_chapter=240 
 6 
 
O Direito é uma construção cultural, resultado da percepção de cada povo sobre 
seus valores morais e seus modos de vida, estabelecendo regras de conduta 
coletivizadas. Todavia, a crença existente no Direito Ocidental de ser o Direito imanente 
à busca humana por verdade e justiça permite especular que essa trajetória é complexa e 
deriva da libertação do poético da esfera religiosa. 
A perspectiva ante ao inexplicável, à natureza e ao metafísico geraram a religião 
e a magia, a teogonia e a poesia. Talvez ambas as formas de encarar o lirismo 
existencial tenham se somado e misturado durante séculos e é possível que isso ainda 
ocorra. Mas a era clássica grega se caracteriza por ser uma era tecnológica, capaz de 
realizar, pelo instrumental da filosofia, a passagem do metafísico para o político e, 
portanto, de avançar da dimensão macroreligiosa para a microfísica cidadã. 
Essa alteração não se deu de forma binária, mas em várias etapas culturais 
sucessivas e ao mesmo tempo justapostas e reconfiguradas. Primeiro a poesia se 
despregou da religião e ganhou autonomia. Esse passo civilizatório é crucial para se 
entender a origem do Ocidente. Resultou, de um lado, na tecnologia da palavra, fogo 
prometeico a pautar a civilização documentalmente. Todavia, foi o teatro trágico, 
derivado da poesia homérica, emprestando verossimilhança ao épico e ao mitológico, o 
passo fundamental e intermediário para elaborar uma nova forma de poesia: o Direito. 
É essa passagem justamente que esse livro buscará demonstrar. A ideia é que o 
Direito surge como uma nova forma de poesia: poesia pública. A era clássica teria 
avançado da subjetividade para a criação de uma noção sui generis de gestão. A origem 
da lei se daria em paralelo com o amadurecimento do teatro, ambos com funções 
públicas que passam a ser muito bem definidas. O poeta se afasta do deslumbramento 
religioso e se consagra com o ideal de cidadão emergente. 
 Junito de Souza Brandão já trabalhara uma hipótese correlata: 
 
 Há muito que vimos estudando o Teatro Grego e sempre 
estranhamos as confusões reinantes, até em obras de responsabilidade, 
acerca das origens do teatro da Hélade. De modo geral, parte-se do 
teatro egípcio, hindu e cretense e desemboca-se tranquilamente na 
Grécia, fazendo-se do originalíssimo Teatro Grego apenas uma forma 
evoluída, quando não um mero apêndice dos teatros supracitados. 
Todos sabemos que Egito, Índia, China, Creta e a própria Grécia, para 
não citar outros, possuíam “teatro” bem antes do aparecimento do 
Teatro Grego, mas este, conforme procuraremos demonstrar, nada tem 
em comum com aqueles, a não ser no que tange à matéria prima, pois 
que todos tiveram como ponto de partida a religião. Os teatros 
 7 
egípcio, hindu, chinês, cretense e “grego” (antes do Teatro Grego) 
porém, nasceram da religião e jamais conseguiram libertar-se dela, 
nem quanto aos significantes, nem quanto aos significados. O Teatro 
Grego, ao contrário, colocando a religião como sua infraestrutura, 
ergueu sobre ela um edifício voltado para os problemas do homem. 1 
 
 Este é um ponto importante, mas não encerra a questão. Pelo contrário, é um 
ponto distintivo para iniciar outro debate: o da separação entre teatro e legislação. Nossa 
hipótese pretende avançar no fato de que o teatro trágico não apenas encenava o direito 
nascente, como foi, em si mesmo, o momento de transubstanciação da poesia em fala 
pública, em política. 
 As idéias que ajudaram a formatar o Ocidente reúnem pelo menos duas grandes 
correntes de contribuição: a era clássica grega, em especial o século dos trágicos, e o 
Cristianismo. Na vertente grega, a disjunção da religião com o teatro caracterizou uma 
evolução dos atos de representação, que terminaram por desembocar num modelo de 
maior expressão de cidadania. Entretanto, vivemos, no correr de nossos séculos de 
formação, ações gregas sob um céu cristão. Dante Alighieri vai ter como guia Virgílio, 
o poeta romano que transliterou o grego Homero, e irá encontrar, no Paraíso, com o 
imperador Justiniano, deixando, no Inferno, os heróis e os filósofos gregos, ainda que 
iluminados por luz imanente. Goethe irá cruzar a Grécia helênica no Fausto II para 
apresentar uma alma resgatada por um céu barroco. Esta junção é a do Ocidente se auto-
inventando: a ação conjugada ao humanismo. 
 Aristóteles destacava o fato de que uma mudança estilística se acentuava com o 
apogeu da tragédia: 
 
 Na tragédia é a ação que é imitada, e essa ação é executada por 
agentes que necessariamente revelam certas qualidades distintas, tanto 
de caráter como de mentalidade, de acordo com as quais podemos 
definir a natureza das ações. A mentalidade e o caráter são, pois, as 
duas causas naturais de ações, e delas é que todos os homens 
dependem para o êxito ou o fracasso. A representação da ação 
constitui o enredo da tragédia; chamo de enredo a disposição bem 
ordenada dos incidentes. A personagem, por outro lado, é o que nos 
permite definir o caráter dos participantes, e sua mentalidade é 
revelada pelo que eles dizem, quando apresentam um argumento ou 
manifestam uma opinião, por suas idéias, enfim.1 BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: origem e evolução. Rio de Janeiro: Tarifa Aduaneira do 
Brasil Editora Ltda., 1980, p. 7. 
 8 
 Há necessariamente, portanto, na tragédia seis componentes que 
determinam sua qualidade. São o enredo, personagem, elocução, 
idéias, espetáculo e canto. 2 
 
 A era clássica sentira a necessidade de transpor para a realidade humana os 
valores esmagadores dos deuses. Tratara-se de mimetizar o sofrimento como forma 
sublime de compreensão. Raciocinar sobre o temor do abismo. A própria exploração 
sobre o divino, ao aproximarmo-nos dele pela via da poesia, teria sido a primeira 
odisséia a explorar um espaço até então insondável. Nesse sentido, dois poemas 
mesclaram-se em nossa pré-história mítica: a Teogonia e o Gênesis. Explicar a 
genealogia dos deuses e o surgimento da vida passa a representar a noção que temos de 
nós mesmos. Aproximar-se o homem, pelo fogo da escrita, da palavra irrevelável: o 
nome divino. 
 Haroldo de Campos explicando tradução do fragmento inicial do Gênesis 
(Bere´shith), que prefere chamar de “trans-criação”, revela: 
 
 No final do v. II, 4, conforme ficou dito, aparece pela primeira vez o 
nome impronunciável de Deus (segundo a tradição) e por isso não 
vocalizado no original, YHVH, conjugando-se ao de Elohim, que se 
vinha repetindo desde I, 1. Numa primeira versão, optei pela 
reprodução de ambas as expressões hebraicas, unidas pela referência 
comum à divindade, num composto (“Deus-Yavéh-Elohim”), qual um 
emblema onomástico do original. Na presente revisão, preferi atentar 
à convenção de leitura (qerê, “o que deve ser lido”), que leva a 
oralizar o tetragrama inefável com as vogais de ‘adonai (“Meu 
Senhor” ou, simplesmente, “Senhor”) e, em especial, àquela outra que 
o substitui por hashshém (“o Nome”), segundo uma tradição que 
remonta ao Levítico, XXIV, 11 (Dicionário Oxford). Esta última 
forma apelativa, que fiz preceder do pronome “Ele” (“Ele-O Nome”), 
pareceu-me a mais expressiva para efeito de tradução, por anunciar o 
nome divino sem enunciá-lo sob uma pronúncia discutível, 
preservando-lhe, assim, a indizibilidade. 3 
 
Esse nome, não dito, que se torna a palavra cerne, a afirmação fundamental no 
seio da metafísica, reverbera nas pausas da pronúncia, no ato da fala e, aos poucos, se 
destaca. É necessário notar a alteração causada por essa tecnologia da palavra: eis que 
esse debate elabora as condições para o surgimento dos livros (biblios) e, portanto, da 
palavra transmitida enquanto ensinamento, e do próprio livro enquanto objeto cultural, 
 
2 ARISTÓTELES. Da arte poética. In: ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINUS. Crítica e teoria 
literária na Antiguidade. Tradução de David Jardim Júnior. Introdução de Assis Brasil. (Coleção 
Universidade de Bolso). Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1989, p. 21. 
3 CAMPOS, Haroldo de. Bere’Shith: a cena de origem. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 34. 
 9 
de fascínio e de fé. A palavra escrita será campo de disputa – entre religião e poesia, 
entre teologia e filosofia, entre religião e ciência, entre ciência e poesia. 
Mas uma modalidade poética ousada estava em curso, a junção de poesia e fala 
comum, criando uma arte que mimetizava aquele cenário canônico nos padrões da 
compreensão da fala do vulgo: surgia o teatro trágico. 
 
[...] o teatro, mesmo quando recorre à literatura dramática como seu 
substrato fundamental, não pode ser reduzido à literatura, visto ser 
uma arte de expressão peculiar. No espetáculo já não é a palavra que 
constitui e medeia o mundo imaginário. É agora, em essência, o ator 
que, como condição real da personagem fictícia, constitui através dela 
o mundo imaginário e, como parte deste mundo, a palavra. 4 
 
Por sua vez, em Hesíodo, os deuses irão se revelar em uma árvore genealógica 
que desvenda, na depauperação alquímica das eras, o surgimento de um novo tipo, que 
carrega toda a herança da diversidade em sua simplicidade: o trabalhador rural. A 
tecnologia da escrita precisa estar aliada à tecnologia mundana, do homem que ara a 
terra e dela retira sua sobrevivência. Assim como o homem simples arremata a obra 
conjunta dos tempos, a inversão parece ser a característica do antigo aedo, como 
salienta Torrano: 
 
 Se o Cantar é e coincide com o próprio Ser, e se o Cantar é que tem 
as moradas olímpicas como tem também a Tudo o que será e é e já foi, 
- como é possível que não haja uma coincidência temporal entre o 
mo(vi)mento do Cantar (i.e., das Musas) e o mo(vi)mento do que o 
Cantar a-presenta (i.e., presentifica)? Ou, em outras palavras: como 
podem as Musas terem nascido na Piéria geradas por Zeus e serem a 
força ontofântica pela qual não só Zeus mas também a Totalidade 
Cósmica se dão como Zeus e como Totalidade Cósmica?5 
 
O poeta passa por uma metamorfose. Antes atuou de forma iconoclasta, 
separando-se do rito religioso. Agora laiciza a palavra, aproximando-se do cotidiano da 
pólis. O Direito surge no bojo de uma articulação lingüística mais refinada. O Direito 
teria sido uma espécie de inovação linguística que ocorreu em torno do século V a.C. 
 
 Sem a elevação da lei ao plano da representação, e a conseqüente 
realização de seu conceito, juntamente com a formação da 
personalidade individual pensante, não era possível a objetivação do 
 
4 ROSENFELD, Anatol. O fenômeno teatral. In: Texto/contexto. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 28. 
5 TORRANO, Jaa. O mundo como função de Musas. In: HESÌODO. Teogonia: a origem dos deuses.. 
Estudo e tradução de Jaa Torrano. 5ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 84. 
 10 
direito, articulado no sistema jurídico, nem do pensamento que o 
tematiza: filosofia e direito emergem juntos e configuram-se a partir 
de uma mesma experiência. Tal experiência será amplamente 
favorecida pela introdução da escrita e conseqüente alfabetização da 
Grécia. 
[...] 
 Podemos dizer que a construção da lei como categoria autônoma 
segue de perto o desenvolvimento da linguagem como veículo 
conceitual e a transformação do seu padrão sintático imposta pela 
transição da oralidade à escritura. 6 
 
 Nesse sentido, quando afirmo que houve uma origem trágica da lei, não estou 
me valendo de uma figura de estilo ou de uma metáfora, tampouco utilizando da 
literatura como uma espécie de perfumaria para ilustrar a história do Direito. Estou a 
afirmar que, de fato, enquanto tecnologia e modelo cultural e político, o Direito foi um 
derivado do teatro trágico grego. 
Entender um pouco mais essa mudança crucial, essa revolução cultural que 
marcou tão profundamente nossa formação intelectual e política, implica em retomar a 
leitura desses clássicos, especular em torno da passagem do teatro para o surgimento da 
lei, em seus momentos mais agônicos: o Livro de Jó e a Oréstia, de Ésquilo. Não para 
deslindar o passado, mas para inventar o presente, fazê-lo surgir como obra do nosso 
labor, pulsante, ardente, impressionante. 
 
 
 
 
 
6 TOLEDO, Plínio Fernandes. Uma interpretação filosófica do direito a partir da análise de sua forma 
objetiva na transição da oralidade para a escritura. In: BOUCAULT, Carlos E. de Abreu; RODRIGUEZ, 
José Rodrigo (orgs.) Hermenêutica plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 26. 
 11 
PRIMEIRO ATO 
 
 O LEGISLADOR ENQUANTO NOVO ESTETA NA MAGNA 
GRÉCIA 
 
 
 
 
Sólon (638 a.C- 558 a.C.) 
Imagem disponível em https://el.wikipedia.org/wiki/Σόλων_ο_Αθηναίος 
 
 
 
 
 12 
 
 A palavra como valor fundamental para a constituição da ordem social. Em 
torno dessa idéia parece terem se construído alguns dos principais monumentos da 
humanidade na era clássica, a saber, a poesia e a ordem jurídica. 
 Entender essa transição, onde a figura do aedo, enaltecida no século VIII a.C. 
pela figura de Homero, se transmuda, no séculodos trágicos, na bifurcação entre o rito 
religioso e a ação dramática e daí incorpora um novo personagem na cena pública, o 
legislador, é a tarefa árdua aqui proposta, perseguindo pistas e fragmentos. 
 Nesse sentido, nos socorremos de Garcia-Roza, que comenta: 
 
 Muito tempo antes do homem ocidental inventar o conhecimento, de 
opor o verdadeiro e o falso no interior do discurso, a cultura grega já 
era atravessada pela noção de alétheia: a verdade, para o poeta da 
Grécia arcaica. À pré-história da verdade filosófica corresponde uma 
verdade poética que foi o solo a partir do qual ou contra o qual se 
organizou o pensamento filosófico grego. 7 
 
 Não se alude aqui apenas ao tracejado técnico e à evolução das ferramentas que 
tornaram possíveis a escrita. Alude-se, sobretudo, à distinção da linguagem constituída 
de uma dupla face, a forma da expressão e o conteúdo expresso, enfim, a argila 
linguística e a forma a ela atribuída pelo artista do discurso. Compreender como a fala 
do poeta passa a constituir um campo semântico original e como essa elaboração 
estética – e não a dos sacerdotes – é absorvida e transmudada pela invenção do 
legislador, obriga-nos a acompanhar alguns passos nos aedos clássicos – Homero e 
Hesíodo – e nos arautos de outra era – Platão e Aristóteles. 
 
 
1.1. As primeiras navegações: a odisséia do signo 
 
 A Ilíada, primeiro dos poemas épicos de Homero, narra o nono ano da Guerra 
de Tróia. Somos de imediato atirados às praias de Ílion, a cidadela troiana, onde a 
guerra perdura e a crise se instala entre os invasores gregos. A primeira grande narrativa 
da história da literatura faz emergir o ouvinte/leitor em plena e súbita ação, já iniciado 
os tempos, imprevisto o futuro. O conflito dos primeiros versos alude à fúria do herói 
Aquiles contra o basileu Agamêmnon. Este, general dos gregos, partilhando as presas de 
 
7 GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Palavra e verdade – na filosofia antiga e na psicanálise. Rio de 
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 25. 
 13 
batalha recente, escolhera ter como escrava a bela Criseida, sendo sua irmã Briseida 
escolhida como parte dos troféus de Aquiles, o mais completo dos heróis. Ocorre, 
porém, que o sacerdote Crises, pai de ambas, dirige-se ao líder grego e invoca a 
proteção de Apolo à sua filha mais velha, Criseida, na realidade uma sacerdotisa de 
Apolo, que não poderia, portanto, ser partilhada. Agamêmnon, temendo a reação do 
deus, mesmo diante de seguidas baixas e face a guerra que se prolonga mais do que o 
esperado, resolve ceder, devolvendo Criseida. Todavia, orgulhoso, valendo-se de sua 
hierarquia, reclama o segundo prêmio, a bela Briseida, já possuída por Aquiles. O herói, 
colérico, impedido pela ética de guerra de atingir o basileu, retira-se da luta, o que 
complica sobremaneira a situação dos gregos. 
 O rapto de Briseida logo se revelará como versão microfísica da causa mítica da 
guerra, o rapto de Helena, esposa de Menelau, irmão de Agamêmnon, pelo príncipe 
troiano Páris, irmão do grande herói Heitor, e filho de Príamo, rei de Ílion. 
 Essa Guerra mítica nos permite aproximar de uma complexa elaboração social, 
ao tomar a epopeia enquanto material arqueológico. Desse modo, Ciro Flamarion 
Cardoso comenta: 
 
 Quais eram as características comuns a todas as cidades-Estados 
clássicas? Talvez possamos distinguir as seguintes como sendo as 
mais importantes: 1) do ponto de vista formal, a tripartição do governo 
em uma ou mais assembleias, um ou mais conselhos, e certo número 
de magistrados escolhidos – quase sempre anualmente – entre os 
homens elegíveis; 2) a participação direta entre os cidadãos no 
processo político: a noção de cidade-Estado implica a existência de 
decisões coletivas, votadas depois de discussão (nos conselhos e/ou 
nas assembleias), que eram obrigatórias para toda a comunidade, o 
que quer dizer que os cidadãos com plenos direitos eram soberanos; 3) 
a inexistência de uma separação absoluta entre órgãos de governo e 
justiça, e o fato de que a religião e os sacerdócios integravam o 
aparelho de Estado.8 
 
 Ocorre que entre os motivos míticos da Guerra avultam a vaidade e a fraqueza 
femininas. A conquista da mulher enquanto troféu de guerra é, no círculo da existência, 
uma reação dos hoplitas à vaidade das deusas. Tudo se iniciara por uma disputa entre as 
deusas olímpicas Atena, Hera e Afrodite. Estas, desejosas de saber qual delas seria a 
mais bela, oferecendo uma maça como prêmio – o “pomo da discórdia” - indagam aos 
deuses, que, por serem deuses, se esquivam, e fogem à resposta. Resolvem, então, as 
 
8 CARDOSO, Ciro Flamarion S. A Cidade-Estado antiga. São Paulo: Ática, 1987, p. 7. 
 14 
três deusas, aparecerem de forma hierofântica a um humano - um mortal não suportaria 
a visão real da beleza divina. O escolhido, um príncipe a pastorear rebanhos, é Paris, de 
Ílion. Cada deusa faz uma oferta ao jovem caso seja a escolhida: Atenas, deusa da 
sabedoria, faria dele o mais sábio homem de todos os tempos; Hera, esposa de Zeus, 
oferece torná-lo o homem mais poderoso, senhor de exércitos invencíveis; Afrodite, 
deusa do amor, oferece ao jovem um simples, mas eficiente dom, o de seduzir qualquer 
mulher. Escolhida Afrodite, o pomo da discórdia fará com que as deusas “derrotadas” 
venham a se posicionar contra os troianos. 
 Entrementes, a bela Helena, a mulher mais linda do mundo, e também a mais 
disputada, escolhera finalmente como noivo Menelau. Para evitar que o escolhido fosse 
morto pelos demais pretendentes, a partir de uma proposta de Tíndaro, pai de Helena, 
um pacto fora firmado: todos se comprometeriam a velar pela felicidade do casal, 
reagindo a quem quer que atentasse contra a união. Tempos após, hóspedes no palácio 
de Menelau os filhos de Príamo, Paris seduz Helena, raptando-a. 
 Assim todos os pretendentes, que constituem a nata dos reis e heróis míticos, 
atendendo ao pactuado, dirigem-se à cidadela troiana, para recuperar o maior de todos 
os troféus, a bela Helena. Entre estes, destaque-se o solerte Ulisses, que sobressairá, 
com Aquiles, entre os protagonistas, chamando a atenção para outro tipo de herói que 
possui como principal valor não mais a força hoplita, mas a sagacidade. 
 Werner W. Jaeguer9, em contexto correlato, observa o fato de que, após a obra 
dos aedos do século VII a.C. – Homero e Hesíodo –, um verdadeiro hiato produtivo na 
poesia política levaria a indagações sobre possíveis mudanças na noção de heroísmo 
(arete), já presentes na figura de Ulisses e, em especial, na completa mudança de 
cenários entre as epopéias homéricas. 
 Iniciando pela constatação de que, diferentemente de Esparta e de Atenas, que 
melhor produziram uma poesia política que encontraria no Estado sua definição última, 
a poesia jônica teria cumprido o papel de despertar as forças individuais. Deste modo, 
em leitura retrospectiva, a partir de estágios posteriores e acontecimentos análogos, 
seria possível vislumbrar, nos poemas homéricos, os primeiros reflexos da pólis jônica. 
 Sob esse original viés, Jaeguer se vale da imagem do reflexo para citar a 
passagem na Ilíada onde Aquiles – retornando para a guerra após a morte de Pátroclo – 
 
9 JAEGUER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução de Artur M. Parreira. 
São Paulo: Martins Fontes, 1995. 
 15 
se valeu de seu escudo brilhante para, pendurando-o no alto, perscrutar o interior da 
cidadela troiana. E nos informa: 
 
 Na única passagem em que a Ilíada nos apresenta uma cidade em 
paz, a descrição do escudo de Aquiles, coloca-nos no centro da cidade, 
na praça do mercado, onde se executa um julgamento: os anciãos, 
sentados em pedras polidas e dispostos no círculo sagrado, discutem 
uma sentença. As famílias nobres tomam parte importante naadministração da justiça, anteriormente reservada ao rei. As famosas 
palavras contra a divisão do governo testemunham que o rei ainda 
existia, embora a sua posição frequentemente já fosse precária. A 
descrição do escudo fala-nos também dos bens da coroa e da 
complacência do rei, ao contemplar o cultivo dos campos. Mas trata-
se provavelmente de um proprietário nobre, uma vez que a epopeia 
também dá aos senhores o título de basileus.10 
 
 Vale dizer, Tróia representava um tipo de estrutura produtiva rural, sob a égide 
de um modelo de propriedade centralizado na figura de um basileu, entendido tal por 
Homero como um reinado, o qual, por sua vez, com a morte próxima de Príamo e a 
crise provocada pelo sítio dos gregos, assumia novas formas políticas, dando margem 
ao surgimento de uma aristocracia. Esta aristocracia simbólica, por seu turno, estaria a 
demonstrar o surgimento próximo futuro de uma burguesia mercantil, visto estar o 
sistema agrário ameaçado constantemente por invasores diversos. 
 Desse modo, a guerra de Tróia estaria exemplificando, com um cerco glorioso, o 
final de uma era, e de um modelo político: o fim da estrutura rural baseada em grandes 
propriedades. 
 Nesse mesmo sentido, baseando-se em estudos da arqueologia contemporânea, 
Marcos Alvito de Souza nos chama a atenção: 
 
 O aparecimento dos soldados de infantaria pesadamente armados a 
lutarem de forma coesa, em grupo e não mais individualmente como 
nos Tempos Homéricos, teria sido, segundo alguns, o principal fator a 
explicar a ampliação da participação política. Isto é, se a segurança da 
comunidade deixava de repousar exclusivamente nas mãos de uma 
minoria de aristocratas, conseqüentemente, o monopólio político dos 
nobres também era ameaçado por uma participação crescente nos 
assuntos da cidade por parte dos que lutavam como hoplitas.11 
 
 Vale dizer, a epopeia homérica estaria aqui a representar dois valores 
tecnológicos: a palavra enquanto tecnologia, expressa na forma erudita sofisticada de 
 
10 JAEGUER, W. Op. cit., pp. 131-132. 
11 SOUZA, Marcos Alvito Pereira de. A guerra na Grécia clássica. São Paulo: Ática, 1888, p.27. 
 16 
versos alexandrinos e o contexto histórico-político-sociológico, demonstrando outras 
facetas tecnológicas implícitas no mito, como a vitória da tecnologia de construção das 
naus gregas vencedoras em face da cidadela agrícola e arcaica dos troianos, 
mimetizando a expansão comercial e a nova fase civilizatória territorial. 
Por sua vez, a Odisséia representaria a nova era, mercantilista, onde o mar se 
torna o palco do desconhecido, com variadas aventuras. “Com a mudança das formas de 
vida deve ter nascido também um novo espírito”12, menciona Jaeguer. Sai de cena o 
herói hoplita, cuja arete se baseia na força física e na luta colérica contra o inimigo, 
assumindo como protagonista o herói estrategista, o astuto Ulisses, modelo da iniciativa 
individual a propor uma nova ordem. 
 Com Odisseu os inimigos deixam de ser o estrangeiro próximo, a disputar, sob a 
força do aço e entre o cheiro do sangue, os despojos do mais fraco. Entram em cena 
ciclopes, fadas, bruxas, monstros marinhos, redemoinhos. É todo um mundo fabuloso a 
ser desvendado. Trata-se de um mundo inteiro a ser desvendado, narrado na forma do 
fabuloso. O imaginário ganha em liberdade e um pré-teatro se anuncia. Citemos a 
clássica passagem da evocação aos mortos 
 
Ulisses prosseguiu: “Preclaro amigo, 
Horas há de falar e horas de sono; 
Mas, se o levas em gosto, não recuso 
Dos meus contar-te os lutos e infortúnios, 
E dos que, livres da cruenta guerra, 
Na pátria sucumbiram pela infâmia 
De um falsa mulher. – Disperso tendo 
Prosérpina os femínios simulacros, 
O de Agamêmnon surge, e os do que Egisto 
Com ele assassinou. Bebido o sangue, 
Braços me estende, em lacrimas a pares; 
O alento lhe falece, que era d’antes 
Em seus membros flexíveis, e eu carpindo 
Lhe brado condoído: “Ó glorioso 
Rei dos reis, como houveste o fatal golpe? 
Domou-te o azul tirano em tempestade? 
Ou mãos hostis em terra, ao depredares 
Armentio e rebanho? Ou defendendo 
O pátrio muro e a honra das famílias?” 
“Divo e sábio Laércio, respondeu-me, 
Não me domou Netuno em tempestade, 
Nem mãos hostis em terra: Egisto à casa, 
Com minha atroz consorte conluiado, 
Atraiu-me, e no meio de um banquete, 
Como a rês no presepe, derribou-me; 
 
12 Id., ibid., p. 133. 
 17 
E estes sócios comigo estrangularam, 
Quais porcos de um ricaço destinados 
A função por escote ou bródio ou núpcias. 
Estiveste em conflito e carnagens, 
Mas por tão feio horror nunca choraste: 
Crateras e mesas e comer e sangue 
Mistos rolam; no chão pungentes gritos 
Soam-me de Cassandra Priameia, 
Que ante mim trucidava Clitemnestra; 
Soergo-me, e ainda busco moribundo 
Pegar do alfanje; aparta-me a imprudente, 
Nem quis, no instante em que baixava a Dite, 
Cerrar-me os olhos e compor-me os lábios. 
Nada há mais sevo que a mulher indigna, 
Capaz de conceber tamanhos crimes. 
A que esposa donzela assim tratou-me: 
Crua morte me urdiu, quando eu pensava 
Prazer vir a dar a fâmulos e a filhos. 
Torpemente manchou-se, e tanta infâmia 
Tem as mais virtuosas deslustrado. 13 
 
 Homero na Odisséia canta para um novo tempo que busca no passado heróico o 
guia que irá ajudá-lo a trilhar o caminho para o fim do exílio. Não foi por menos que 
Dante encontra Ulisses no canto XXVI do Inferno14, pois reconheceu que ali estava o 
sinal para todo exilado político em todas as eras e que a libação aos mortos era o apelo 
inelutável a ser tributado aos antepassados para que se tornasse possível o retorno ao lar. 
 Essa busca pela paz do lar é a busca alegórica pela harmonia cívica, construindo, 
na diversidade, uma leitura até então inédita, alterando a ordem reinante. 
 Desse modo, Jaeguer opõe ainda a justiça (themis), conforme descrita por 
Homero, à justiça (dike), descrita por Hesíodo. Themis seria a justiça imposta, vindo de 
cima para baixo, tendo como referência o antigo estado de coisas, sobre o qual reinava 
Zeus, absoluto. O ideal cavalheiresco, dos tempos patriarcais, julgaria de forma análoga, 
buscando mimetizar Zeus e dando themis aos homens. Já, o conceito de dike, reclamado 
por Hesíodo contra o senhores venais, possibilitaria outro entendimento: 
 
 O conceito de dike não é etimologicamente claro. Vem da linguagem 
processual e é tão velho quanto themis. Dizia-se das partes 
contenciosas que “dão e recebem dike”. Assim se compendiava numa 
palavra só a decisão e o cumprimento da pena. O culpado “dá dike”, o 
 
13 Homero. Odisséia. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004, pp. 214-216, vs.296-340. A tradução e a 
editoração dos textos clássicos é em si um tema saboroso, que valeria um trabalho à parte. Citamos aqui a 
polêmica tradução de Odorico Mendes, repudiada pela crítica literária nacional do início do século XX 
pelo excesso de arabescos e romanismos e resgatada pela crítica literária do final do mesmo século XX 
como criativa e inovadora.. 
14 Cf. ALIGHIERI, Dante. Inferno. Tradução de Jorge Wanderley. Rio de Janeiro: Record, 2004. 
 18 
que equivale originariamente a uma indenização, ou compensação. O 
lesado, cujo direito é reconduzido pelo julgamento, “recebe dike”. O 
juiz reparte “dike”. Assim, o significado fundamental de dike equivale 
aproximadamente a dar a cada um o que lhe é devido. Significa, ao 
mesmo tempo, concretamente, o processo, a decisão e a pena. 15 
 
 Dike irá simbolizar, portanto, o direito positivo nascente, um direito igualitário, 
equivalente político à invenção da moeda no plano econômico, que garante a justa 
medida no intercâmbio das mercadorias. Com a luta política por garantir a dike, que se 
aplicava inclusive aos basileus, descortinava-se um horizonteidealizado desde os 
tempos antigos. Antes, porém de atingir a democracia existiram vários graus 
intermediários. O que importa é determinar que uma mudança paradigmática se dera. E, 
alterado o conceito de justiça, alterava-se, em paralelo, o conceito de virtude heróica 
(arete), passando esta a se fazer presente não necessariamente através da força física, 
mas, sobretudo, pela aptidão por um ideal de cidadão, que, ao defender os valores 
cívicos, traria o modelo de um novo homem. E vaticina Jaeguer: 
 
 As posteriores críticas da lei, como as que no tempo da democracia 
corrompida foram movidas contra um legalismo do Estado, opressor e 
despótico, não afetam o que acabamos de afirmar. Em oposição a esse 
cepticismo, todos os pensadores antigos são concordes no elogio da 
lei. Ela é, para eles, a alma da pólis. O povo deve lutar pela sua lei 
como pelas suas muralhas, diz Heráclito. Surge aqui, por trás da 
imagem da cidade visível, defendida pela sua cinta de muralhas, a 
cidade invisível que tem na lei um firme baluarte.16 
 
 Vimos, portanto, que Jaeguer descreve os épicos homéricos como se estivera a 
descrever um longo passo histórico subsequente, o Renascimento. No fundo, sob a 
imagem relatada ressalta a dimensão das navegações a romper com um passado feudal e 
a emprestar aos horizontes do olhar um admirável mundo novo. 
 
 
1.2. Um novo herói: o trabalhador 
 
 A obra do camponês Hesíodo, poeta do séc. VIII a.C., demonstra a importância 
que a obra homérica havia alcançado, chegando a influenciar a educação e os concursos 
populares. Afinal, sabe-se que Hesíodo foi o vencedor de um concurso em honra de 
 
15 JAEGUER, W. W. Op. cit., pp. 134-135. 
16 Id., ibid., p. 143. 
 19 
certo Afidamos, havendo viajado para Cálcis, na ilha de Eubéia, com o objetivo de 
participar dos jogos funerários. Hesíodo teria vivido por volta de 800 a.C. na Beócia, 
região situada no centro da Grécia, passando a maior parte da vida em Ascra, sua aldeia 
natal. Foi autor de pelo menos duas obras consagradas, a Teogonia e Os trabalhos e os 
dias. 
 A Teogonia narra a cosmogonia, o surgimento da vida, relatando a agônica 
história dos deuses da mitologia pré-homérica. No início existiam as divindades 
originárias: Caos, Tártaro (Abismo), Gaia (Terra) e Eros17. Numa primeira era 
panteística, Caos – o vazio primordial -, dotado de energia prolífica, dá origem à Érebo 
(Trevas) e à Noite. Noite gera Éter e Hemera (Dia). De Gaia nascem Montes, Pontos 
(Mar) e Urano (Céu), feito de igual proporção a ela, que a recobre toda, e que a 
desposou, assumindo o reinado dos deuses. Entre os filhos de Gaia e Urano encontra-se 
o titã Cronos, que, incentivado pela mãe, se rebelou contra a tirania do pai e, depois de 
castrá-lo, governou o universo. Cronos, por sua vez, consolida a segunda geração 
divina, o Tempo primordial (as priscas eras), que acaba por representar uma nova ordem 
tirânica e, para evitar novo destronamento, devora os próprios filhos ao nascer. Foi, 
todavia, destronado pelo filho Zeus, que, por um estratagema de Réia, sua mãe, escapou 
ao banquete fatídico. Zeus, então, representando a terceira e definitiva geração olímpica, 
fundou o panteão clássico. Em seguida, da união dos deuses com os mortais, teriam 
nascidos os heróis. 
 Os trabalhos e os dias, um poema didático, tem como foco o homem e 
exaltação da virtude e da justiça e, em especial, a narrativa pessoal dos dissabores de 
Hesíodo, depois da morte do pai, quando seu irmão, Perses, corrompeu os juízes locais 
e apoderou-se da maior parte da herança que correspondia a ambos. A primeira parte da 
obra (o Erga) é dedicada aos mitos de Prometeu e Pandora, ressaltando a necessidade 
do trabalho duro e honesto. Exalta a Justiça (Dike), filha predileta de Zeus e única 
esperança dos homens e descreve o mito das Cinco Idades. A segunda parte do poema 
tem propósitos pontuais: estabelece normas para a agricultura, seus ciclos, utensílios, 
conselhos técnicos e precauções relativas à semeadura e ao plantio, servindo, no fundo, 
como admoestação ao irmão Perses, leviano, demonstrando como uma riqueza modesta 
pode sobrevir do suor cotidiano. Uma terceira parte apresenta conselhos morais e 
religiosos, estabelecendo como primeira providência para a prosperidade a escolha de 
 
17 Existem controvérsias sobre a legitimidade dos versos 118-119 da Teogonia, o que leva alguns 
doutrinadores a distinguir apenas três divindades primordiais: Caos, Gaia e Eros. 
 20 
uma boa esposa. Faz, ainda, admoestações sobre bem criar os filhos e encerra com um 
calendário sobre os dias fastos e nefastos para o trabalho. 
 Emerson Luiz de Farias, resenhando a bibliografia do aedo, comenta: 
 
 Diferentemente de Homero, Hesíodo não se ocupou das esplêndidas 
façanhas dos heróis gregos. Seus temas são os deuses, regentes do 
destino do homem, e o próprio ser humano, com suas fadigas e 
misérias. Dividiu a história da humanidade em cinco períodos, da 
idade do ouro à do ferro, das quais o último correspondia ao difícil 
período histórico em que ele próprio viveu. Para Hesíodo, só o 
trabalho e o exercício das virtudes morais permitem aos seres 
humanos chegar a uma existência discretamente feliz na infausta idade 
do ferro. Hesíodo morreu, ao que tudo indica, em Ascra. 18 
 
 Considerado o pai do Direito por dispor o tema de O trabalho e os dias como se 
fosse uma petição aos juízes que se deixaram vender ao irmão, Hesíodo inaugura a ética 
como princípio da justiça. Desse modo, Hesíodo representa a denúncia do povo contra 
os poderosos. Embora não raro se encontrem críticas a seu estilo, menos rebuscado que 
o de Homero, seus poemas certamente auxiliaram a despertar o espírito democrático 
nascente. Permeando idas e vindas na narrativa, nem sempre completando a 
argumentação de forma harmoniosa, intercalando-a com narrativas independentes, 
talvez, por isso mesmo, tenha representado a poética de um estrato mais simples da 
população, o que dá testemunho da popularidade dos aedos. 
 A obra hesíodica nos aproxima ainda mais de um relato pormenorizado, 
revelando que ainda não havia a cisão entre campo e pólis, que ambos, de certa forma, 
se integralizavam. Jean-Jacques Maffre trabalha nessa esteira: 
 
 Para os gregos da época clássica, ao menos tão importante quanto o 
meio natural é o ambiente humano, isto é, o contexto político, cultural 
e religioso, que devemos precisar, embora sumariamente, já que terá, 
evidentemente, consequências sobre a vida concreta dos indivíduos. 
Qualifica-se usualmente a Grécia clássica como Grécia das cidades. 
Realmente, do ponto de vista político, salvo alguns reinos como a 
Macedônia, ou algumas regiões longínquas, como o Epiro, que vive, 
em aldeias, obedecendo a uma organização tribal, o mundo grego 
clássico está dividido em póleis, isto é, em cidades, que são entidades 
independentes; esses verdadeiros pequenos Estados, juridicamente 
soberanos e autônomos, compõem-se não apenas de uma cidade, que é 
o centro político, social, administrativo e religioso, mas também de 
um território mais ou menos vasto, a khôra, essencialmente rural, 
 
18 FARIAS, E. L. Hesíodo. In: http://www.nomismatike.hpg.ig.com.br/Mitologia/Hesiodo.html, acesso 
em 22/07/2004. 
 21 
onde estão instalados algumas aldeias e pequenos burgos, algumas 
fortalezas perto das fronteiras e até alguma aglomeração importante, 
como o porto, especificamente, se a cidade principal não está à beira-
mar, como o Pireu, ao lado de Atenas; além disso há santuários, 
alguns dos quais têm fama pan-helênica, como o de Olímpia, no 
território de Elis. A pólis constitui o ambiente do qual muitos 
habitantes só saem de quando em quando. 19 
 
 Para melhor compreender a dimensão da obra hesíodica, retomemos um ponto 
centralem sua poética: o mito de Prometeu e Pandora. Hesíodo narra o conto predileto 
do deus decaído, daquele que, roubando a chama olímpica, presenteia os homens com a 
inteligência. A imagem é reveladora: trata-se a um tempo da humanização dos deuses e 
da resposta à tirania, que impede que a consciência iluminadora se espalhe, libertando o 
mundo. Em Pandora, a desgraça feminina a retirar dos homens a paz, inventando a 
necessidade do trabalho, traduz, por sua vez, o novo (o único?) heroísmo possível. 
 
 
1.3. Platão e o legislador 
 
 Penetrar nesse debate é sondar um diálogo entre épocas, patrocinado, em 
especial, por Platão, que chama para a tribuna da escrita um auditório variado, na 
medida em que traz argumentos de antanho e elabora circunvoluções de teoria antigas. 
Vejamos, no autor ateniense, passagens relatando a importância da estratégia da 
linguagem para a construção da idéia platônica, através de breve exame do dialógo 
Crátilo, que nos permitirá apreciar de forma intertextual a República. 
 Assim é que, no Crátilo, o personagem Sócrates intermedia a oposição entre 
Crátilo e Hermógenes.20 O primeiro pretende que os nomes são exclusivos e 
conformam-se às coisas as quais nomeiam; o outro considera as palavras mera 
convenção, podendo-se trocar umas pelas outras sem afetar-se o poder de designação. 
 
Hermógenes - Sócrates, o nosso Crátilo sustenta que cada coisa tem 
por natureza um nome apropriado e que não se trata da denominação 
que alguns homens convencionaram dar-lhes, como designá-las por 
 
19 MAFFRE, Jean-Jacques. A vida na Grécia clássica. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: 
Jorge Zahar Editor, 1989, pp. 35-36. 
20 Em momento correlato, trabalhamos as interseções desse diálogo platônico com as revisões do próprio 
autor em As leis, tendo como perspectiva a constituição de um campo próprio para a semiologia, frente a 
recuperação das idéias estóicas por Saussure. Ver nosso: O hermeneuta e o demiurgo: presença da 
alquimia no histórico da interpretação jurídica, in: BOUCAULT, C. E. de A.; RODRIGUEZ, J. R. (orgs.). 
Hermenêutica plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 45-100. 
 22 
determinadas vozes de sua língua, mas que, por natureza, têm sentido 
certo, sempre o mesmo, tanto entre os Helenos como entre os bárbaros 
em geral. Perguntei-lhe, então, se, em verdade, Crátilo era ou não o 
seu nome, ao que ele respondeu afirmativamente, que assim, de fato, 
se chamava. E Sócrates? perguntei. É Sócrates mesmo, respondeu. E 
para todos os outros homens, o nome que aplicamos a cada um é o seu 
verdadeiro nome? E ele: Não; pelo menos o teu, replicou, não é 
Hermógenes, ainda que todo mundo te chame deste modo. 21 
 
 A exceção à regra de Crátilo, o próprio nome de Hermógenes (mentiroso, 
enganador) dará vez à exposição de Sócrates, diferenciando os discursos entre falsos e 
verdadeiros, uma vez que é possível mentir, ou seja, usar as mesmas palavras para 
designar numa coisa aquilo que ela não é. Debatendo em separado com os opositores, 
demonstrará, junto a Hermógenes, a conformação ideal dos nomes às coisas e, junto a 
Crátilo, a impossibilidade absoluta dessa conformação. 
 Para tanto, com Hermógenes, conceituará a linguagem como técnica. Assim 
como se utiliza um furador para perfurar, uma lançadeira para tecer, para nomear 
utiliza-se o nome. A imagem socrático-platônica parece ter como intenção desviar a 
oposição entre phýsis (natureza) e thesei (convenção), defendidas respectivamente, por 
Crátilo e Hermógenes, objetivando uma terceira categoria, mediadora, a da mimésis - 
onde o nome-instrumento, realizando a ação de nomear - criaria uma "outra natureza", 
imagem do protótipo. 
 
Sócrates - E a respeito do nome, poderias dar resposta idêntica? Se 
dizemos que o nome é instrumento, que fazemos quando designamos 
alguma coisa? 
Hermógenes - Não sei como responder. 
Sócrates - Não damos informações uns aos outros, e não distinguimos 
as coisas, conforme sejam constituídas? 
Hermógenes - Perfeitamente. 
Sócrates - O nome, por conseguinte, é instrumento para informar a 
respeito das coisas e para separá-las, tal como a lançadeira separa os 
fios da teia.22 
 
 Junto a Crátilo, e já havendo determinado anteriormente ser o legislador ou 
nomoteta o artífice que, na origem, determina o nome para cada coisa, questiona dois 
itens centrais: 1) pode o mesmo nome existir sem variantes em culturas diferentes?; 2) 
 
21 PLATÃO, Crátilo/ Teeteto. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Universidade Federal do Pará, 
1973,, p. 119. 
22 Id., ibid., pp. 125-126. 
 23 
quem criou os primeiros nomes, nomeando o legislador, visto só ser possível conhecer 
as coisas através dos nomes? 
 
Crátilo - Sou de parecer, Sócrates, que a mais justa explicação será 
dizer que foi um poder sobre-humano que deu às coisas os primeiros 
nomes e que por isso mesmo eles têm de estar certos. 
Sócrates - Julgas, então, que quem instituiu os nomes o fez em 
contradição consigo mesmo, ou tenha sido um demônio ou uma 
divindade? Ou consideras como não dito tudo o que conversamos há 
pouco?23 
 
 Concluem, a partir daí, ser possível conhecer as coisas também sem o auxílio 
dos nomes. Entre a imitação, o nome e a verdade, estariam as próprias coisas; a busca 
dessa definição original devendo, portanto, ser exercida junto a estas. 
 A novidade da proposta socrática não só antecipa a cisão entre racionalismo e 
irracionalismo como o estudo propriamente técnico da linguagem. Divorciando as 
coisas e os nomes, está sugerida a imagem da junção de forma e conteúdo na criação 
dos signos. Como, de resto, salienta Benedito Nunes: 
 
 Platão nos transporta a essa questão-limite que aglutinou a 
Semiologia, depois que Saussure estabeleceu, aliás redescobrindo 
certos veios da cultura estóica e da tradição escolástica, o caráter 
arbitrário do signo lingüístico e a sua estrutura diferencial, como 
unidade entre significante e significado.24 
 
 Contudo, para Platão, naquele momento, fora capital desviar do nome o poder de 
preposto das próprias coisas, evitando o perigo inerente a essa representação: o discurso 
pretende-se como substituto da verdade. Sua preocupação referia-se primordialmente à 
ameaça representada pelos sofistas, mestres da persuasão (peithó) em detrimento do 
conhecimento (epistéme). 
 Ao final do diálogo, explanando sobre a questão inicial, o nome de Hermógenes, 
Platão/Sócrates vale-se de extrema sutileza e ironia, em certa parceria mal disfarçada 
com a posição de Crátilo, o que também se revela pela assimetria do texto, que leva o 
nome deste quando cerca de 70% do debate é travado com o discípulo sofista. Assim, 
explorados morfológica e semanticamente os nomes mitológicos a partir de citações de 
Homero, e após Sócrates definir, por exemplo, uma dupla etimologia para Zeus como 
Diá (através de) e Zên (vida) e ainda conceituar os demônios como uma raça anterior a 
 
23 Id., ibid., p.191 
24 NUNES, Benedito. Introdução. In: PLATÃO, op. cit, p. 14. 
 24 
dos homens e de maior valia por sua sensatez, chega-se quase inevitavelmente ao nome 
de Hermes. Sócrates procura esquivar-se, dando novo rumo ao debate, mas Hermógenes 
insiste. 
 
Hermógenes - É o que farei; antes, porém desejo perguntar-te a 
respeito de Hermes, por haver dito Crátilo que eu não sou 
Hermógenes. Investiguemos, portanto, o verdadeiro significado do 
nome Hermes, para ver se ele tinha razão no que disse. 
Sócrates - De todo jeito, quer parecer-me que o nome Hermes se 
relaciona com discurso: é interprete, ou mensageiro, e também 
trapaceiro, fértil em discursos e comerciante labioso, qualidades essas 
que assentam exclusivamente no poder da palavra. Ora, como 
dissemos antes, falar (eirein) é fazer uso do discurso, além de haver 
uma expressão muitoempregada por Homero (emêsato) que significa 
inventar. Da reunião dessas duas expressões - falar e inventar - formou 
o legislador o nome do deus, como se nos advertisse expressamente: 
Homens, o deus que inventou o discurso deve ser chamado, com toda 
a justiça, Eiremes. Mas hoje, segundo penso, embelezamos-lhe o 
nome, e lhe chamamos Hermes. Íris, também, parece provir do mesmo 
vocábulo, eirein, por ser ela mensageira. 
Hermógenes - Então, parece que Crátilo tem mesmo razão de dizer 
que não me chamo Hermógenes, pois sou jejuno em matéria de 
discursos.25 
 
 Etimologicamente, Hermógenes significando descendente de Hermes, implica, 
considerada a tese de Crátilo, em ser Hermógenes descendente do discurso, no caso, o 
discurso sofista. A ironia do Crátilo está no fato de, tomada a palavra como verdade, 
Hermógenes, que defendia a tese oposta, não poderia ser considerado verdadeiro, logo 
seria a exceção à regra (demonstrando que, organicamente, na feitura da obra, já 
encontrava-se antecipado o prognóstico socrático sobre o discurso falso). Dessa forma, 
Sócrates, ao definir o nome de Hermes, complementa-lhe o sentido, ou melhor, cria um 
neologismo - reunindo o sentido de "falar" ao de "inventar", resultando na conjunção 
também o sentido de "trapaceiro, fértil em discursos e comerciante labioso", ou seja, 
define o deus como um sofista autêntico, interessado na persuasão, imaginativo e 
cobrando caro pela transmissão de sua técnica aos discípulos ambiciosos. Hermógenes 
faz que não percebe e retruca estar correta a observação inicial de Crátilo posto não ser 
ele um orador. Sócrates não diz nem que sim nem que não, fazendo da definição do 
nome Hermes uma paródia resumida do próprio diálogo como um todo, concentrando 
nesta as explanações quanto à natureza e quanto ao consenso como determinantes dos 
nomes. Entretanto, sua queda à posição de Crátilo, revela-se na crueza irônica da 
 
25 Id., ibid., p. 151. 
 25 
continuidade do golpe, ao persistir, disfarçadamente, no assunto, partindo então para a 
definição do nome do filho mitológico de Hermes, ou seja, de forma velada, o próprio 
Hermógenes. 
 
Sócrates - Quanto a Pan, camarada, filho de Hermes, é fácil 
compreender que é de natureza híbrida. 
Hermógenes - Como assim? 
Sócrates - Como sabes, o discurso indica todas as coisas (pan), e 
circula e se movimenta sem parar, além de ser de natureza híbrida, 
verdadeira e falsa ao mesmo tempo. (...) É justo, portanto que seja 
denominado Pan Aipólos o que tudo (pan) exprime e é o 
movimentador constante (aei polôn) das coisas, o filho híbrido de 
Hermes, macio em cima e áspero e hircino, ou trágico, em sua porção 
inferior. É evidente que Pan é discurso ou irmão de discurso, a ser, de 
fato, filho de Hermes, pois é muito natural que haja parecença entre 
irmãos.26 
 
 Pan/Hermógenes, o filho de Hermes, produto híbrido de verdade e falsidade, 
simbolizando o próprio discurso em suas potencialidades divinas e mundanas, acaba por 
representar o próprio gênero humano em sua franqueza, vale dizer, no forma que lhe é 
atribuído pela escola de Heráclito. Ao promover, através de Hermógenes, a 
possibilidade de conversão do sofista, trazendo-o para o mundo das verdades e das 
essências, Platão faz dessa conversão tabula rasa dos signos que apenas capacitar-se-ão 
à justiça por via da busca do conhecimento e da adoração à verdade, essência das coisas. 
 Quando, portanto, na República, Sócrates expulsa os poetas, o faz em nome de 
uma nova ordem estilística. É ao gênero do imitativo, ameaçadoramente próximo do 
sofisma, que se endereça o golpe. Resta a poesia como sublimação, ou seja, a própria 
filosofia, que não apenas estará presente como mesmo no comando da nova era. 
 
Sócrates – E se afirmo que a nossa cidade foi fundada da maneira 
mais correta possível, é, sobretudo, pensando no nosso regulamento 
sobre a poesia que o digo. 
Glauco – Que regulamento? 
Sócrates – O de não admitir em nenhum caso a poesia imitativa. 
Parece-me mais que evidente que seja absolutamente necessário 
recusar admiti-lo, agora que estabelecemos uma distinção clara entre 
os diversos elementos da alma. 
Glauco – Não compreendi bem. 
Sócrates – Digo, sabendo que não ireis denunciar-me aos poetas 
trágicos e aos outros imitadores, que, segundo creio, todas as obras 
deste gênero arruínam o espírito dos que as escutam, quando não têm 
o antídoto, isto é, o conhecimento do que elas são realmente. 
 
26 Id., ibid, pp 151-152 
 26 
Glauco – Por que falas assim? 
Sócrates – É preciso dizê-lo, embora uma certa ternura e um certo 
respeito que desde a infância tenho por Homero me impeçam de falar. 
Na verdade parece ter sido ele o mestre e o chefe de todos esses belos 
poetas trágicos. Mas não se deve testemunhar a um homem mais 
consideração do que à verdade e, como acabei de dizer, é um dever 
falar. 27 
 
 Muitos comentadores, a começar por Aristóteles, têm assinalado como paradoxal 
a expulsão dos poetas, seja como ato tirânico, seja como contradição, uma vez 
internalizada a República também como obra poética. Chamamos, todavia, a atenção 
para a exploração distintiva que Platão trouxera à mostra: tratava-se da emergência de 
um novo tipo de poesia enquanto literatura empírica, abandonando o ritual trágico-
religioso e penetrando no espaço da elaboração filosófico-política da verdade. 
 
 
1.4. A gestão de legislador 
 
 No segundo livro da Política, Aristóteles não apenas revela sua ácida crítica à 
República de Platão como nos adianta ser esta, em suma, uma obra poética. 
Ironicamente, portanto, como na obra platônica Sócrates expulsa os poetas, o próprio 
Platão estaria, em última análise, expulsando a si mesmo. 
 Contudo, o primordial da crítica de Aristóteles encontra-se no próprio conjunto 
de análise, mais complexo e original. Note-se que, buscando explorar as contribuições 
existentes para se pensar uma República ideal, Aristóteles elabora um método analítico 
inovador: a junção de teoria e prática. Assim, nos oferece a seguinte hipótese: trabalhar 
as principais contribuições poéticas em correlação com os principais exemplos 
empíricos. Tal estudo estaria justificado pela necessidade de um diagnóstico preciso: 
 
 Empreendemos a tarefa de procurar, entre as sociedades políticas, a 
melhor para os homens, os quais têm, aliás, todos os meios de viver 
segundo sua vontade. Devemos, pois, examinar não só as diversas 
formas de governo em vigor nos Estados que passam por ser regidos 
por boas leis, mas ainda as que foram imaginadas pelos filósofos, e 
que parecem sabiamente combinadas. Faremos ver o que elas têm de 
bom e de útil, e mostraremos ao mesmo tempo que, procurando uma 
combinação diferente de todas elas, não pretendemos mostrar 
 
27 PLATÃO. A república. Tradução de Enrico Corvisieri. 15ª ed. São Paulo: Editora Nova Cultural, 
2004, p. 321. 
 27 
sabedoria, mas que o vício das constituições existentes a isso nos 
compele.28 
 
 Desse modo, na primeira clivagem, analisando os autores que apontaram ideias 
originais sobre uma república ideal, comenta aspectos em Platão, em Faleias de 
Calcedônia e em Hipodamos de Mileto. Na obra platônica, lê com acento crítico o fim 
da propriedade privada, onde a própria família fora vista por Platão enquanto modelo de 
propriedade, portanto socializável. Da análise dos prós e contras, Aristóteles resgata 
uma idéia mediana: controle do acúmulo de riquezas. Em Faleias, ressalta a partilha das 
fortunas, equilibrando a sociedade em momentos de desnível. E, em Hipodamos, chama 
a atenção para o planejamento original das cidades e para a economia processual. 
 No segundo bloco de abordagens, Aristóteles observa o governo de cidades em 
sua época, em especial as cidades de Esparta, Creta e Cartago. Em Esparta, exemplopor 
extensão da Lacedemônia, o autor ressalta a organização militar, a ordem, a hierarquia, 
infelizmente ameaçados de decaírem por não existir uma previsão da função das 
mulheres, as quais, herdeiras dos homens, devido ao risco de vida permanente, acabam 
por dilapidar o patrimônio reunido. Em Creta chama a atenção, em especial, para o 
sofisticado modelo representativo. E em Cartago anuncia uma novidade audaciosa: o 
plebiscito, onde o povo reunido em assembleia pode obstaculizar a atuação soberana. 
 Todavia, a grande originalidade da análise está em identificar, para além da 
crítica ao caráter meramente poético-discursivo da República de Platão, o surgimento 
de um novo personagem no cenário político: o legislador: 
 
 Entre os homens que divulgaram sistemas de governo, muitos há que 
jamais tiveram parte nos negócios públicos, que jamais saíram da vida 
privada. Temos dito sobre a maior parte deles tudo o que merece 
alguma atenção. Vários legisladores têm ditado leis a seus 
concidadãos ou a outros povos estrangeiros, e eles próprios têm-se 
ocupado do governo. Desses legisladores, alguns só elaboram leis, 
outros fundam estados, como Licurgo ou Sólon, que foram 
simultaneamente legisladores e fundadores de governo. 29 
 
 Aristóteles faz do legislador o aedo dos novos tempos, aquele capaz de recolher 
a contribuição poética e o exemplo prático, capaz de escrever a obra fundamental do 
Gênio e de fundar cidades, consubstanciando na ação o ideal imaginado. 
 
28 ARISTÓTELES. A política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 
1988, p. 28. 
29 Id., ibid., p. 48. 
 28 
 
SEGUNDO ATO 
 
JÓ: O EXEGETA E O CÂNONE 
 
 
William Blake, gravura 15 do Livro de Jó. Disponível em 
https://br.pinterest.com/pin/405605510174200983/?lp=true 
 29 
 
No Livro de Jó encontra-se talvez a mais importante das antigas referências a 
Satanás, o opositor, então um mero ministro de Deus, uma espécie de Promotor Público 
junto à Justiça Divina; sendo, na realidade, denominado “o Satan”, objetivando o artigo 
tratar-se antes de um substantivo comum - um cargo - do que um substantivo próprio - o 
nome do Mal. Trata-se a obra de um longo poema relatando diálogos sucessivos numa 
estrutura dramática introduzida e concluída por breves trechos em prosa. Nela, Jó vive 
em torno do século V a.C. e é afortunado, piedoso e justo, tem um imenso rebanho, uma 
grande família e adora o Senhor. Deus, por sua vez, também está muito satisfeito com 
tal servo, a ponto de comentar com o Satan, quando este retorna de suas andanças pelo 
mundo, de que não há ninguém igual a Jó na terra. É quando o Satan, que está entre os 
filhos de Deus (cf. Jó 1,6), retruca que é fácil adorar a Deus quando se possui felicidade 
e fortuna. Deus então responde: “Pois bem! Tudo o que ele tem está em teu poder” (Jó 
1,11)30. E a completa desgraça vem a recair sobre Jó: os Sabeus roubam seu gado e 
jumentos, um raio incendeia-lhe ovelhas e escravos, os Caldeus em três bandos roubam-
lhe os camelos e assassinam-lhe os servos e um furacão abala sua casa matando-lhe 
todos os filhos. Jó rasga as roupas, arranca os cabelos e caindo prosternado diz: “O 
Senhor deu, o Senhor tirou, bendito seja o nome do Senhor!” (Jó 1,21). 
Retornando o Satan à presença de Deus, Este torna a citar a integridade de Jó, 
alegando ter sido em vão ter-se incitado a perdê-lo. “Pele por pele!”, respondeu o Satan, 
“O homem dá tudo o que tem para salvar a própria vida. Mas, estende a tua mão, toca-
lhe nos ossos, na carne; juro que te renegará em tua face” (Jó 2,4s). O Senhor decide 
dispor Jó ainda uma vez ao poder do opositor, recomendando: “poupa-lhe apenas a 
vida” (Jó 2,6). 
Ferido com uma lepra, Jó vê seu próprio corpo consumir-se. Sua mulher incita-o 
a amaldiçoar a Deus. Mas Jó insiste: “Aceitamos a felicidade da mão de Deus; não 
devemos também aceitar a infelicidade?” (Jó 2,10). E, sentado sobre cinzas, valendo-se 
de um caco de telha para coçar-se, Jó é visitado por três patriarcas que, sabedores da sua 
desgraça, procuram consolá-lo. Os patriarcas choram frente ao estado lastimável de Jó e 
o cercam em silêncio por sete dias e sete noites, tão grande é a dor em que o encontram 
 
30 Cf. BÍBLIA SAGRADA. Tradução dos originais mediante a versão dos monges de Maredsous 
(Bélgica) pelo Centro Bíblico Católico, revista por Frei João José Pedreira de Castro. São Paulo: Editora 
Ave Maria, 1989. Todas as demais citações diretas do Livro de Jó seguem essa mesma referência. 
 30 
mergulhado. Após esse prazo, Jó inicia um profundo lamento, onde amaldiçoa o dia em 
que nasceu, em profunda mágoa para com o desatino divino. 
O longo poema que se segue tem como tema o sofrimento. Interessante notar 
que as falas virão todas em versos, diferente do prólogo, relatado em prosa. Desse 
modo, o texto em prosa funciona como marcação teatral para enquadrar o extenso 
diálogo entre os atores. 
Haroldo de Campos chama a atenção para os aspectos dialéticos presentes na 
própria elaboração do personagem Jó: 
 
[...] o Livro de Jó (Sêfer Há-Íyov), atribuído a Moisés pela tradição 
hebraica, tem parecido a alguns estudiosos modernos “desarmonioso” 
ao extremo na construção de seu principal protagonista – a 
personagem-título, Jó. Por essa razão se justificaria a hipótese de que 
esse Jó paradoxal teria resultado da “fusão de duas (outras) 
personagens: ‘Jó, o paciente’, herói do relato em prosa (moldura do 
livro); ‘Jó, o impaciente’, figura central do diálogo poético que no 
livro transcorre”; desse segundo Jó, aquele que na verdade mais nos 
fascina, já foi dito que era movido pela “hybris da virtude”. 31 
 
Em seu lamento, Jó, aniquilado, aspira tão-somente a que Deus traga-lhe a 
morte, inconformado com o fato de sofrer incessantemente apesar de haver sido sempre 
justo. Os patriarcas, Elifaz de Temã, Bildad de Chua e Sofar de Naama obtemperam, 
caracterizando o sofrimento como castigo e instando com Jó para que peça perdão por 
seus pecados. O drama vai, paulatinamente, desenvolvendo os contornos de uma lide 
jurídica. Nota-se que há, no procedimento das falas e das réplicas, um fundo ritualístico, 
invocando o Direito Judaico. Os patriarcas representam o pensamento corrente em 
Jerusalém. Mas para defender-se dessas idéias comuns, ou melhor, para afirmar a 
impropriedade de um justo ser castigado, Jó questiona a aplicabilidade de pressupostos 
sobre justiça, uma vez que para Deus, ao que tudo indica, tanto se Lhe faz. Ao contrapor 
argumentos aos companheiros, o que Jó pretende é fazer, pelo paradoxal da questão, 
com que o próprio Deus suba à Tribuna para replicar com sua voz o porquê dele estar 
sendo condenado. É quando declara: 
 
Mas é com o Todo-Poderoso que eu desejaria falar, 
 é com Deus que eu desejaria discutir. 
 
31 CAMPOS. Haroldo de. Bere’shith: a cena de origem. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000, pp. 57-58. 
A citação faz referência interna a GREENBER, Moshe. Job. In: ALTER, Robert; KERMONDE, F. The 
literary guide to the Bible. Cambridge: The Belknap Press of University Press, 1987; e a TERRIEN, 
Samuel. Job (Comentaire de l’Ancien Testament, XIII). Neuchátel, Suisse: Delachaux/Niestlé, 1963. 
 31 
Pois vós não sois mais que impostores, 
 não sois senão médicos que não prestam para nada 
 (...) 
Escutai, pois, minha defesa, 
 atendei aos quesitos que vou anunciar. 
Para defender a Deus, ireis dizer mentiras, 
 será preciso enganardes em seu favor? 
Tereis, para com Ele, juízos preconcebidos, 
 e vos arvorais em ser seus advogados? 
(Jó 13, 3-4. 6-8) 
 
Jó tem plena consciência de que litiga contra Deus. Está a ser, por assim dizer, 
um opositor. E é de certa forma contra esse absurdo que Elifaz, Bildad e Sofar reagem. 
O tema é ainda elaborado e discutido sob váriospontos de vista sem que se chegue a 
alguma conclusão satisfatória. Os três patriarcas refutam a argumentação de Jó por vê-la 
como um disparate, pois incorreria na admissibilidade de um erro divino, restando tão 
só e certamente a possibilidade do pecado humano, agora sublinhado pela disposição 
herética do condenado. Jó, todavia, sabedor de que a fonte de seus males provém de 
Deus, questiona qual será a vantagem de ser puro, quando o ímpio rouba o gado e 
enriquece impune, pouco ligando em crer ou não em Deus. 
Na tradição onde se encontra inscrito, Jó não faz mais do que pedir a 
conformação da lei divina à correção humana, mesmo porque podemos supô-lo como 
um exegeta. O contexto dessa peça jurídica que origina os autos teatrais, se configura 
justamente como uma lide jurídica, com argumentos e contraditórios, seguidos de 
réplicas e tréplicas. 
 Quanto ao deutoronomista em particular, deve-se observar, 
contrariando Frost, que, como Jó não é israelita, seus sofrimentos não 
constituem nenhuma violação da aliança deutoronômica. Jó nunca 
ouviu falar de Moisés. Não há tampouco nada na estrutura do Livro de 
Jó que possa sugerir que deva ser visto como uma alegoria dos 
sofrimentos de Israel durante ou depois do exílio babilônico. Nem Jó, 
nem Deus, nem Satã, nem nenhum dos acusadores de Jó chega sequer 
a insinuar a história de Israel. A única aliança conhecida por Jó é a 
aliança do Éden, por assim dizer, e ele não a conhece por conhecer o 
mito da criação israelita enquanto tal. Ele simplesmente acredita que 
Deus é criador e bom e que um Deus bom não criaria um mundo em 
que um homem inocente como ele acabe sofrendo sem nenhuma boa 
razão. Sua cosmologia é, com efeito, a do recém-concluído Livro dos 
Provérbios, menos a cláusula liberatória judaica ou derivada da 
Tora.32 
 
32 MILES, Jack. Deus: uma biografia. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das 
Letras, 1997, p. 343. O tradutor adverte, em nota e rodapé, nessa passagem: “A expressão ‘cláusula 
liberatória’, que voltará a aparecer no texto, é jurídica. Indica ‘cláusula em que se convenciona que uma 
das partes (de um contrato) ficará exonerada de responsabilidades ou encargos quando ocorram certas e 
determinadas circunstâncias’’’ 
 32 
 
 Vale dizer, para que serve Deus senão para impor uma ordem, um modelo de 
justiça? Repare-se que seu lamento apenas se inicia depois da comparação com seus 
congêneres. Após a maturação das semelhanças e diferenças elencadas no silêncio 
daqueles sete dias e sete noites, mesmo período que o Senhor utilizara para a Criação, 
Jó emerge, engrandecido por um saber até então inédito: o da necessidade imperiosa de 
estabelecer-se, entre os homens, um simulacro da justiça divina. Nesse sentido, o 
lamento de Jó pode ser compreendido como uma proto-história do compromisso social 
e mesmo das noções de direitos e deveres individuais. Se por vezes se compara sua lida 
com a de Abraão ao subir o monte disposto a sacrificar o filho de sua velhice, vale 
lembrar que para o Pai da fé um anjo permite o deus ex machina e tudo resta explicado. 
Jó não vai contra o desígnio divino, quer apenas entender a função do seu sofrimento na 
orquestração maior, a qual, sob seu ponto de vista, resta desprovida de lógica. Em 
outras palavras, aspira a um deus ex machina em prol da Virtude. 
Retornando ao contexto, nesse momento entra em cena um quinto personagem, 
Eliú, filho de Baraquel, de Buz, um jovem que aguardara pacientemente que aos mais 
velhos a sabedoria se fizesse conhecer. Entretanto, ao notar que os argumentos 
cessavam sem, contudo, desvendar-se uma explicação razoável, encoleriza-se e toma a 
palavra. E ao Direito reclamado por Jó, frente ao qual este é um justo, opõe o 
inescrutável, o desígnio divino às vezes incompreensível “pois Deus é maior do que o 
homem” (Jó 33,12). E de nada adiantaria acusar Deus de não responder de viva voz, 
pois o discurso de Deus é de outra natureza, comunica-se através do sonho e através do 
sofrimento. E arremata: 
 
Imaginas ter razão 
 em pretender justificar-te contra Deus? 
Quando dizes: “Para que me serve isto, 
 qual a minha vantagem em não pecar?”. 
Pois vou responder-te, 
 a ti e a teus amigos. 
Considera os céus e olha: 
 vê como são mais altas que tu as nuvens! 
Se pecas, que danos lhe causas? 
 Se multiplica tuas faltas, que mal lhe fazes? 
Se és justo, que vantagem lhe dás? 
 ou que recebe ele de tua mão? 
Tua maldade só prejudica o homem, teu semelhante, 
 tua justiça só diz respeito a um humano. 
 (Jó 35, 2-8) 
 33 
 
E Eliú termina glorificando as maravilhas de Deus que é a própria Natureza, seu 
poder fenomenal e sua voz tonitruante que se faz ouvir como uma lei aos elementos. 
O aparte de Eliú - cujo nome é uma variante de El-Iah (El/Deus-Iahweh/Jeová) - 
funciona como uma introdução ao último e magnífico personagem: o próprio Deus que, 
do seio de uma tempestade, no meio de um redemunho, responde a Jó: 
 
Quem é aquele que obscurece assim a Providência 
 com discursos sem inteligência? 
 (...) 
Onde estavas quando lancei os fundamentos da terra? 
 (...) 
Algum dia na vida deste ordens à manhã? 
 (...) 
Qual é o caminho da morada luminosa? 
 Onde é a residência das trevas? 
Poderias alcançá-la em seu domínio, 
 e reconhecer as veredas de sua morada. 
 (Jó 38, 2.4.12.19-20) 
 
Cabe ao homem aceitar o modo divino de proceder e não questionar a Sabedoria 
e a Bondade. Jó retrata-se e arrepende-se. O Senhor, então, dirigindo-se aos patriarcas, 
dá conta de sua irritação pela argumentação travada contra seu servo Jó e exige o 
holocausto de sete touros e sete carneiros. E a Jó é restituída a saúde, a posição social, 
as posses anteriores vêm em dobro e todos os amigos e parentes ofertam-lhe riquezas. 
Torna a ter tantos filhos e filhas quantos os que havia perdido e ainda mais belos. E vive 
por mais 140 anos para conhecer a quarta geração dos filhos de seus filhos. “Depois, 
velho e cheio de dias, morreu” (Jó 42,17). 
A obra do poeta desconhecido, autor do Livro de Jó, elaborada provavelmente 
entre os séculos VI e V a.C., é produto de um douto na ciência jurídica. Temos na 
atualidade a noção vulgarizada de que o Direito ocidental é exclusivamente uma 
evolução histórica do Direito Romano com laivos socrático-platônicos. Destarte, 
levando-se em conta o concurso do judaísmo na formatação cultural da moral católica 
apostólica romana, vale salientar que dentre os povos do antigo Oriente próximo, o 
Estado de Israel constituía uma exceção por sua estrutura jurídica caracteristicamente 
democrática, com acesso de todos os indivíduos à lei. Ainda que o povo não exercesse 
propriamente o poder, dava-se proteção aos desamparados, mesmo se escravos. E 
inclusive Jó dá testemunho disso: 
 34 
 
Nunca violei o direito de meus escravos, 
 ou de minha serva, em suas discussões comigo. 
Que farei eu quando Deus se levantar, 
 quando me interrogar, que lhe responderei? 
Aquele que me criou no ventre, não o criou também a ele? 
Um mesmo criador não nos formou no seio da nossa 
mãe? 
Não recusei aos pobres aquilo que desejavam, 
 não fiz desfalecer os olhos da viúva, 
não comi sozinho meu pedaço de pão, 
 sem que o órfão tivesse a sua parte; 
desde a minha infância cuidei deste como um pai, 
 desde o ventre de minha mãe, fui o guia da viúva. 
 (Jó 31,13-18) 
 
O Direito é aqui de vocação exclusivamente holística. Por funcionar como 
imanência de uma lei maior, cosmológica, a lei sagrada enfrenta no drama uma lide 
paradoxal, extremada por dois posicionamentos que ameaçam tornarem-se leituras 
subversoras. São eles, o direito individual por parte de Jó e, da outra parte, a 
concorrência do mal no desígnio sagrado. Onde a Lei, ao tipificar um crime, de certa 
forma, carrega-o consigo, ao enquadrá-lo fá-lo parte da Criação. Se praticamente todos 
os códigos penais do futuro,em diferentes civilizações, concordarão com o pressuposto 
de que não haverá crime sem lei anterior que o defina, para aquele momento, onde a 
palavra era revelação, a Lei tornava-se, concomitantemente, o lugar onde surgia o 
crime. 
Na opinião de Jack Miles, o confronto que se inaugura revela um problema 
incisivo: 
 
 Pela posição adotada nos Provérbios, o mundo é justo no geral, mas, 
quando não o é, presume-se que o Senhor teve boas razões para isso. 
O autor de Jó aceita essa posição como ponto de partida, mas depois 
especula: “Muito bem, e que razões são essas?”. Ele responde à 
própria questão contando uma história profundamente blasfema sobre 
o Senhor Deus. A originalidade subversiva do Livro de Jó pode ser 
encontrada tanto nessa blasfêmia como na angustiada eloqüência dos 
discursos do personagem-título.33 
 
Fica em questão dessa maneira não só a explicação poético-teológica para o erro 
jurídico, mas a própria fundamentação da interpretação legal, onde se consorcia a 
exegese do texto não escrito. Pois que Jó tenta demonstrar em sua argumentação que o 
 
33 MILES, Jack, op. cit., p. 345. 
 35 
seu sofrimento é exemplar, e, por assim ser, atenta contra a representatividade que ele 
possuía entre os homens e, consequentemente, é eivado de ilações políticas. Se fora um 
patriarca justo, proprietário de um número vasto de animais e escravos, fiel, reprodutor, 
ordeiro, trabalhador e ainda louvara ao Senhor na benesse e na desgraça, Jó deveria 
representar a ordem de Deus na terra, recebendo em harmonia o proporcional ao suor e 
à dedicação. Quando cai em desgraça, por motivos inescrutáveis, o que figura em perigo 
é o status da própria Representação, em suma, a segurança de Ser. 
Os três patriarcas, que aparentemente defendem Deus das invectivas de Jó, não 
conseguem esconder essa preocupação. Ainda que incompreensível a culpa de Jó, para 
os outros patriarcas este tinha que ser culpado, mesmo que de uma culpa invisível aos 
olhos, em vista de uma lógica argumentativa do tipo ad maiorus ad minus. Está em 
risco o estatuto social, a Lei não poderá decair junto com Jó, o que poria em perigo a 
posição deles mesmos e dos demais patriarcas, para não falar na idéia de patriarcalismo. 
É importante que se assinale que naquele momento histórico era prática comum 
o holocausto de animais a Deus, mormente cordeiros, estabelecendo-se, através do 
sangue das vítimas, um conduíte para com o sobrenatural34. Essa prática, comum a 
várias religiões, seja no antigo Oriente próximo, no Egito ou na Grécia, aquilatava o 
pedido ou o castigo conforme a quantidade e qualidade do sacrifício oferecido. Assim, 
para um ritual meramente simbólico - um batizado, o agradecimento a uma hospedagem 
- uma pequena ave seria o suficiente; porém, na medida em que o que estivesse em 
questão fosse mais difícil de alcançar, o sacrifício exigido poderia ser bem maior. Para 
Abraão exigiu-se a disposição de sacrificar o próprio filho centenariamente aguardado; 
para Jó, à sua revelia, sacrificou-se toda a família e todas suas posses; para a 
humanidade, sacrificar-se-ia o próprio filho de Deus. Portanto, não é de se estranhar 
totalmente que, na visão de Elifaz, Bildad e Sofar, para a preservação da ordem 
patriarcal, parecesse necessário que o antigo esplendor de Jó e ele mesmo fossem 
sacrificados naquele holocausto involuntário. 
Robert Alter, por outro lado, chama a atenção para a clarividência de Jó: 
 
 Jó nunca duvida da existência de Deus, mas, exatamente porque 
supõe, à maneira bíblica, que Deus deve ser responsável por tudo o 
que acontece no mundo, ele reiteradas vezes quer saber por que Deus 
 
34 Conforme, no imaginário grego, a cena da invocação aos mortos na Odisséia, que examinamos. 
 36 
agora permanece escondido, por que Ele não se mostra e enfrenta o 
indivíduo a quem infligiu sofrimento tão agudo. 35 
 
Ao exigir um reexame da matéria, ao pretender uma nova instância que lhe 
explicite a culpa, Jó não está negando o castigo - este, ele o sabe, é de origem divina -, 
está afirmando seu direito à revelação, ao princípio da publicidade da justiça, ao tempo 
em que nega a legitimidade da instância aparente, subvertida pela inexplicabilidade do 
caso. O que Jó tenta demonstrar com todas as forças é justamente a validade de uma 
teoria da justificação da decisão diante mesmo das leis não escritas, que refletiria na 
validade do exemplo atemporal dos patriarcas: o principium que precede a norma, 
trazendo a perfeita adequação do direito humano à justiça divina. Essa, justamente, a 
revolução de sua postura: ao exigir uma resposta, ao pretender conformar vida e texto 
sagrado, exige o surgimento de uma exegese jurídica que contemple a tradição enquanto 
referendum, podendo, dessa forma, auxiliar-se da jurisprudência da fé. 
O que Jó tece no silêncio dos sete dias e noites que antecederam ao debate, é a 
profunda interpretação dos pressupostos civilizatórios do povo eleito. Trata-se, 
retrospectivamente falando, do primórdio de um discurso hermenêutico sobre os 
Princípios Fundamentais do acesso à justiça do Estado nascente. O líder tribal, em seu 
sofrimento, reconhece que sua dilacerante travessia pela perda e pela dor não se faz em 
vão, mas coincide com a maturidade da própria humanidade. Esta, havendo já muito 
sofrido, imersa no cotidiano do trabalho duro, teria passado simbolicamente por um 
holocausto íntimo, por uma verdadeira catábase, que faria ressurgir o homem definitivo, 
aquele capaz de basilar sua posição e defender a primazia de sua honestidade como 
pressuposta, mesmo frente à Instância Maior.36 
Não é por menos que parte de seu discurso se dá sob a rubrica da sabedoria, 
buscando sua definição. Se a sabedoria coincide forçosamente com os desígnios de 
Deus e, consequentemente, com a justiça administrada pelo povo eleito, e se Jó, o 
modelo patriarcal desse povo, é justo e fiel, é de se esperar a conclusão óbvia de ser ele 
um sábio, ou seja, de ter ele razão ao exigir razão de Deus. Seu argumento ab 
auctoritate procura demonstrar a si mesmo como essa autoridade de onde desvenda-se a 
exegese da lei judaica. 
 
35 ALTER, Robert. Em espelho crítico. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 24. 
36 Nesse sentido, Jó e Hesíodo em Os trabalhos e os dias convergem, do mesmo modo que o Gênesis 
convergira com a Teogonia. 
 37 
Dessa maneira, na esfera humana, Jó investe-se dos atributos de um Opositor. 
Não se trata de um reflexo do Satan, mas, juridicamente, ele é um opositor ao Opositor 
(vez que o Satan enforma a esfera divina); age, por assim dizer, não pelo Princípio do 
Contraditório, então carente de elaboração, mas em Legítima Defesa da Fé. Todavia, Jó 
não sabe do Satan, sabe que Deus é único, e, portanto, é à justiça divina que Jó se opõe, 
ou melhor, é a Deus que Jó opõe a sua fé. 
E é como opositor que Elifaz de Temã, Bildad de Chua e Sofar de Naama o 
percebem. Estão condoídos por seu sofrimento, mas sua solidariedade não chega ao 
ponto de questionar as intenções sagradas, ainda mais quando esse questionamento 
implicaria numa revisão de seus próprios pressupostos enquanto patriarcas. Consideram 
as réplicas intermitentes de Jó como uma argumentação ab absurdum. O que anteviam 
em Jó era justamente o desvincular da exegese em relação ao cânone religioso. 
A argumentação que se abre, todavia, é muito mais do que um jogo ou um 
arrazoado retórico. O discurso se plasma de características poéticas, as quais, no 
invólucro de cada fraseado, sustentam uma coloração estilística que arremata o próprio 
cerne discursivo. É Robert Alter quem assinala: 
 
 O que se precisa enfatizar, no entanto, muitíssimo mais do que foi 
feito até agora, é o papel essencial que a poesia desempenha na 
realização imaginativa da revelação. Se a poesia de Jó –

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