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1 QUANDO OS PAIS COMPARECEM À ESCOLA: O QUE SEUS DISCURSOS REVELAM Débora Mendes de Souza1 Iuna Sapia Pereira2 Locimar Massalai3 Luís Alberto Lourenço de Matos4 RESUMO Este artigo é uma análise de discurso de pais de alunos de uma escola estadual do estado de Rondônia sobre a escola e trabalho docente. Com base na análise do discurso proposta por Orlandi (2010), procura estabelecer relações entre os conceitos de formação discursiva, interdiscurso, formação ideológica e não ditos e o atual cenário educacional brasileiro. A materialidade da análise constituiu-se das respostas dadas acerca das expectativas das famílias sobre a escola contida em um questionário aplicado pela equipe pedagógica com o objetivo de subsidiar a retomada do Projeto Pedagógico. Palavras-chave: Gestão democrática. Docência. Condições de trabalho. INTRODUÇÃO Desde que o discurso da gestão democrática começou a se fortalecer e se estabelecer em nosso país através das normativas e diretrizes educacionais nacionais, as escolas têm buscado formas de fazer cumprir a proposta de incluir todos os atores escolares, bem como a comunidade na tarefa de pensar o futuro da escola e elaborar o Projeto Pedagógico Escolar (PPE), ou seja, o documento norteador das ações escolares. Na busca por alternativas, variadas são as estratégias de participação dos envolvidos no processo educativo. Neste artigo, apresentaremos a estratégia utilizada por uma escola estadual de Rondônia para ouvir os pais sobre questões acerca da escola. As questões propostas pela escola foram respondidas pelas famílias de forma escrita, através de um questionário e são estas respostas o corpo da análise proposta neste artigo. Conforme Orlandi (2007, 2011), buscaremos, através da Análise do 1 Pedagoga e aluna do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Rondônia. E-mail: debb_mendes@hotmail.com 2 Psicóloga e aluna do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Rondônia. E-mail: iunapereira@yahoo.com.br 3 Pedagogo e aluno do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Rondônia. E-mail: locimassalai@gmail.com 4 Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo e professor adjunto da Universidade Federal de Rondônia. E-mail: lumatospvh@hotmail.com mailto:debb_mendes@hotmail.com mailto:iunapereira@yahoo.com.br mailto:locimassalai@gmail.com mailto:lumatospvh@hotmail.com 2 Discurso, elementos de reflexão quanto às expectativas das famílias sobre o trabalho docente e a atuação do professor frente aos desafios da sociedade moderna. Concordando com ORLANDI (2009, p. 26) acreditamos que: A análise do discurso não estaciona na interpretação, trabalha seus limites, seus mecanismos, como parte dos processos de significação. Também não procura um sentido verdadeiro através de uma “chave”, de interpretação. Não há esta chave, há método, há construção de um dispositivo teórico. Não há uma verdade oculta atrás do texto. Há gestos de interpretação que os constituem e que o analista, com seu dispositivo, deve ser capaz de compreender. Não é nossa intenção determinar uma interpretação única, apenas a possibilidade de uma compreensão partindo dos princípios e conceitos da AD. Iniciaremos contextualizando a escola e em seguida analisaremos os discursos dos pais sobre ela. CONTEXTUALIZANDO A ESCOLA A escola Parque dos Pioneiros5 está localizada no interior do Estado de Rondônia e foi criada em 1985, pelo último Governador nomeado deste Estado, Ângelo Angelim. Conforme dados colhidos na Secretaria da escola, constatou-se que possui uma clientela cujo padrão socioeconômico é constituído por famílias em sua grande maioria de baixa renda que recebem Bolsa Família e 95% dos alunos são nascidos em Ji-Paraná e os outros 5% são emigrantes de outros Estados e Municípios brasileiros. Os bairros do entorno onde a escola está inserida são muito violentos onde a ausência do Estado é quase que absoluta quando se pensa em políticas públicas voltadas para a saúde e lazer. Atualmente a escola atende alunos do 1º ao 9º ano do Ensino Fundamental e Médio, Educação de Jovens e Adultos, nível Fundamental e Médio, funcionando nos três períodos: matutino, vespertino e noturno. Segundo o documento “Estatístico do Rendimento Escolar”, de 2011, a escola possuía neste ano 517 alunos matriculados do 1º ao 5º ano; 492 alunos do 6º ao 9º ano no Ensino Fundamental Regular; 224 alunos no Seriado do Ensino Fundamental; 149 no Ensino Médio (vespertino); e 217 alunos no Ensino Médio Seriado, totalizando 1599 alunos.6 5 Nome fictício. 6 Este número se altera no decorrer do ano porque freqüentemente há entradas e saídas de alunos na escola. 3 Atualmente a escola conta com amplo quadro de profissionais que se subdividem nos três turnos de funcionamento, sendo 41 professores do 1º Ano do Ensino Fundamental ao 3º Ano do Ensino Médio, duas supervisoras, três orientadores educacionais, uma diretora, uma vice-diretora, uma secretária geral e seis auxiliares, três bibliotecários, uma coordenadora da “TV Escola”, dois responsáveis pelo laboratório de informática, duas inspetoras, nove zeladores, sete merendeiras e três porteiros. Entre os 21 professores de 1º ao 5º ano, 20 são do sexo feminino e apenas um do sexo masculino. Quanto à formação 16 delas são pedagogas, duas são formadas em Letras, sendo que uma delas está concluindo o curso de Pedagogia, uma tem apenas o Magistério e os outros dois são graduados em Educação Física. As duas supervisoras são Pedagogia com Habilitação em Supervisão Escolar. Dos três orientadores, dois são formados em Pedagogia com Habilitação em Orientação Educacional e uma em Pedagogia e Pós-Graduação em Orientação Educacional. Entre as bibliotecárias, duas são pedagogas readaptadas e a outra exerce essa função, pois foi promovida por uma ex-diretora, mas sua lotação original era professora dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. A coordenadora da “TV Escola” e os dois responsáveis pelo laboratório de informática também são professores readaptados. O processo de readaptação7 de professores faz parte do cotidiano desta e de muitas outras escolas públicas. A identidade pedagógica destes professores torna-se descaracterizada, mesmo permanecendo na escola, geralmente ocupando cargos administrativos. Pezzuol (2008, p. 16), observa que: No contexto das instituições escolares, tem sido comum ouvir de professores readaptados, dúvidas, angústias, frustrações e reclamações sobre as atuais condições do professor na situação de readaptado, que geram desrespeito e desvalorização profissional, sofrimento, exclusão, restrição de atividades, mudança de função ou de local de trabalho, entre tantas outras que impedem esse professor de desenvolver sua identidade profissional, pois, embora se submetam a uma modificação de suas funções, continuam tendo a formação de professores e atuando no âmbito da educação. Na maioria das vezes desconsidera-se que o professor readaptado foi acometido por um problema de saúde em seu local de trabalho, ou seja, na escola, e que este professor tem uma identidade e uma história profissional que quase nunca é levada em 7 Procedimento realizado com os servidores que sofreram alguma limitação em sua capacidade física ou mental impossibilitando-os de continuar exercendo suas atribuições. A readaptação está prevista no Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis do Estado de Rondônia através da Lei Complementar Nº 68, de 09 de Dezembro de 1992. (RONDÔNIA, 1992) 4 consideração, tornando-se apenas um problema8 que precisa ser resolvido. Sobre este assunto, entendemos que muitos outros questionamentos poderiam ser levantados, como, por exemplo: qual é o perfil dos professores readaptados nas escolas estaduais de Rondônia?O que este perfil revela sobre as condições de trabalho e o cotidiano das escolas? Entretanto, não é nosso objetivo aprofundar a discussão nessa temática, mas defendemos que a história de vida destes profissionais não é apenas, uma questão de perícias médicas quase sempre ligadas “a práticas governamentais que não fazem parte de uma proposta política de recursos humanos para promoção da saúde do servidor”. (PEZZUOL, 2008, p. 29). A PARTICIPAÇÃO DA FAMÍLIA NA GESTÃO DEMOCRÁTICA A participação das famílias no processo de elaboração da proposta pedagógica escolar se deu a partir do uso de um instrumento intitulado Instrumental de Construção do PPE: Questionário para a família, formulário este, composto de 14 questões, que entre outras perguntas, questionava a expectativa das famílias em relação à escola. Os pais foram convidados por meio de um comunicado impresso encaminhado através dos alunos, para que comparecessem na escola em determinado horário e data. Nesta ocasião a direção da escola apresentou a proposta do “Programa Escola Aberta9” e em seguida solicitou aos familiares que respondessem o “Instrumental de Construção do PPE” . Inicialmente, chamamos a atenção para o enunciado deste formulário: Se as escolas tivessem documento de identidade, ele seria a proposta pedagógica. Em vez de número de registro, filiação, cidade e data de nascimento, informações igualmente valiosas para identificar o “dono”: missão, que aluno deseja formar, metodologia de trabalho e formas de avaliação. Assim como as pessoas são únicas, também as escolas constroem a proposta pedagógica para se diferenciar. A Proposta Pedagógica para ser eficaz e verdadeira, deve ser consolidada na coletividade: escola, família e comunidade. Para isso acontecer, precisamos de sua parceria10. 8 Grifo nosso. 9Programa do governo federal que prevê a utilização dos espaços das escolas nos finais de semana para desenvolver atividades de lazer, cultura, formação e esporte, não apenas para os alunos, mas também para a comunidade em geral. 10 Este enunciado foi escrito pelas duas Supervisoras da escola e encabeça o questionário aplicado aos pais ao final da reunião. 5 Através da utilização de uma metáfora entre o documento de identidade e a proposta pedagógica, o discurso apresentado neste enunciado pressupõe a busca de uma identidade institucional, no entanto, o que chamamos a atenção para o objetivo desta construção: “[...] também as escolas constroem a proposta pedagógica para se diferenciar.” De fato, conhecer a escola, envolver a comunidade nas questões educacionais, construir um documento norteador das ações escolares com participação democrática são iniciativas necessárias, mas não apenas para diferenciar uma escola da outra, para identificar características que diferem ou que igualam as escolas do mesmo bairro ou de bairros diferentes. Nesta perspectiva, encontramos fundamentos para levantarmos questões que fortalecem a prática de produção de documento para arquivamento. A ação da construção se finda em si mesma e é ignorada toda a possibilidade de continuidade do trabalho a partir do que foi construído. Após análise dos questionários, optamos por trabalhar com as expectativas das famílias a respeito da escola através das respostas à questão: Que escola queremos para nossos filhos? Para categorizar os dados obtidos nas respostas a essa questão, utilizamos dois métodos de análise: Análise de Conteúdo e Análise do Discurso. Primeiramente empregamos Análise de Conteúdo que, segundo Bardin (2009), é um conjunto de técnicas de análise das comunicações, qualitativas ou quantitativa, que acredita no rigor do método como forma de não se perder na heterogeneidade de seu objeto. Visa obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores e conhecimentos relativos às condições de variáveis inferidas na mensagem. A principal pretensão da análise de conteúdo é buscada na possibilidade de fornecer técnicas precisas e objetivas que sejam suficientes para garantir a descoberta do real significado. Este método foi aplicado para agrupar os conteúdos recorrentes nas respostas dos pais. Analisando-os, identificamos que a escola que eles almejam para os seus filhos, está focada em seis tipos de expectativas: centradas no professor, centradas em valores, em perspectivas de futuro, em segurança, condições de funcionamento e educação de qualidade. Neste artigo como nos interessa perceber o que está por trás dos discursos dos pais sobre os professores, focaremos nas respostas da categoria “centrada nos professores” e utilizaremos como método de análise a Análise do Discurso (AD), assim 6 como proposta por Orlandi (2007, 2011). Na AD procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história. A AD não trata da língua, nem da gramática. Trata do discurso como palavra em movimento, prática da linguagem. Este método de análise concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive. “Entretanto, não se trata de pensar a língua enquanto forma abstrata, mas em sua materialidade”. (ORLANDI, 2007, p. 19). A análise do discurso permite explorar de muitas maneiras a relação trabalhada com o simbólico, sem apagar as diferenças, significando-as teoricamente, no jogo que se encontram e no cotidiano onde acontecem. Ao falarmos em sentidos, nos apoiamos em Fernandes (2008, p. 15), quando aponta que No discurso os sentidos das palavras não estão fixos, não são imanentes, conforme, geralmente, atestam os dicionários. Os sentidos são produzidos face aos lugares ocupados pelos sujeitos em interlocução. Assim, uma mesma palavra pode ter diferentes sentidos em conformidade como o lugar socioideológico daqueles que a empregam. Então podemos dizer que a língua se insere na história e a constrói para produzir os sentidos. Em nosso caso especificamente, vamos analisar o discurso dos pais quando preenchem um documento pedido pela escola, por ocasião de uma reunião coletiva que os desafiava a participar da construção do Projeto Político Pedagógico e diante da decisão de se aceitar ou não o Projeto Escola Aberta nos finais de semana na escola. Ainda é significativo informar que os professores das escolas estaduais de Rondônia, no momento do preenchimento do instrumental, estavam em greve, exigindo que o governo do estado cumprisse o prometido sobre o pagamento das licenças prêmios vencido em pecúnia, entre outras reivindicações. ANALISANDO OS DISCURSOS Passemos então para a análise dos discursos dos familiares que ao serem chamados a se manifestar a respeito da escola desejada para os filhos, depositaram grande expectativa sobre os professores. Contudo, é importante nunca perder de vista o 7 contexto e as condições de produção desses discursos expostos anteriormente, pois esta é uma característica fundamental da AD. Quadro 1 Conforme podemos verificar no quadro acima, em sete dos 60 questionários analisados, encontramos expectativas nas falas dos familiares sobre o trabalho dos professores. Optamos por analisar os dois últimos discursos juntamente, por entendermos que eles se referem a uma mesma formação discursiva acerca dos professores. Todavia, esses discursos nos revelam não apenas a expectativa sobre o trabalho desses profissionais, mas também a imagem que estas famílias têm sobre os trabalhos dos professores. Desta forma, o que exatamente está por trás desses discursos? O que eles nos revelam? Com que outros discursos eles dialogam? “Professores capacitados para ensinar.” Nessediscurso evidencia-se um não-dito que para a AD, caracteriza-se não apenas por transmitir alguma mensagem implicitamente, mas pela necessidade do locutor de verbalizar exatamente o oposto do que quer ocultar ou negar (ORLANDI, 2011). Isto é, este familiar quando diz “professores capacitados para ensinar” implicitamente nos comunica que acredita que os professores desta instituição não estão capacitados para ensinar ou que podem até estar capacitados para realizar outras atividades ou funções, mas não para ensinar. Ora, mas não é exatamente essa a função dos professores: ensinar? Então, temos que, este familiar, que coloca seus filhos na escola para aprender, entende que eles não estão obtendo êxito, pois os seus professores CATEGORIA DISCURSOS QUANTIDADE DE REPETIÇÕES Centrada no Professores Bons professores. 03 Professores capacitados para ensinar. 01 Repleta de atividades. 01 Com professores ativos que possam dar para nossos filhos a mesma atenção que damos em casa. 01 Como se fosse os pais acompanhando o crescimento dos seus filhos. 01 8 não estão capacitados para ensiná-los e apesar disso, ainda assim os mantém nesta escola. Esse encadeamento lógico nos leva então a refletir sobre os fatores internos e externos à escola envolvidos no momento da escolha da escola. Entre os fatores internos levados em consideração destaca-se a estrutura física, o currículo, o quadro de professores, entre outros. Contudo os fatores externos são mais complexos, pois pode envolver valores, princípios e outras motivações dos pais ou responsáveis, motivações dos alunos, condições financeiras e muitos outros aspectos. Contudo, ainda que o aluno seja um dos maiores interessados, dificilmente cabe a ele a seleção, pois a condição primeira que determina a escolha parece ser mesmo a questão financeira, pois esse critério determina se o filho será matriculado em escola pública ou particular visto que a menos que o responsável consiga alguma bolsa de estudo para o filho, caso não tenha condições de arcar com mensalidade e materiais escolares, o aluno será colocado em escola pública, pois esta é a realidade de nosso país. Considerando que por mais que o discurso do Governo seja de que atualmente já existe vaga para todos nas escolas, a realidade nos revela o quão difícil é para os pais conseguir vaga para seus filhos, em muitas escolas os pais passam a noite na fila para conseguir fazer a matrícula no dia seguinte. Além destes fatores, a proximidade da escola, ainda que não seja mais uma regra, ou a proximidade do local de trabalho de um dos responsáveis, é um critério muito utilizado, pois definirá a logística de leva e trás dos filhos durante os 200 dias letivos. Essa breve explanação nos possibilita entender porque por mais que a única coisa que este responsável diz querer da escola do filho, são professores capacitados para ensinar, não vê isso se concretizar, mas ainda assim não o troca de escola – muitos outros critérios são utilizados para colocar ou retirar o aluno de determinada escola. Sobre essa afirmação podemos inferir ainda, que dialoga com o discurso das capacitações de professores, que desde o ano 2000, quando iniciou o Programa de Habilitação e Capacitação de Professores (PROHACAP), está fortemente presente nos discursos dos governantes, educadores e demais atores escolares do Estado de Rondônia. Na AD, chamamos esse diálogo com algo que foi dito anteriormente de interdiscurso, que nas palavras de Orlandi (2011, p.31) é: [...] aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é o que chamamos de memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na 9 base do dizível, sustentando cada tomada da palavra. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada. Isto é, o interdiscurso exprime a integração do discurso com uma pluralidade de discursos ditos anteriormente de modo que esta pessoa somente utilizou a expressão “professores capacitados”, pois lhe foi disponibilizado esse dizer, fruto de sua memória discursiva. “Com professores ativos que possam dar para nossos filhos a mesma atenção que damos em casa.” “Como se fossem os pais acompanhando o crescimento dos seus filhos.” Nas duas falas comparecem formações discursivas sobre a escola como a segunda casa, a extensão do lar, e aos professores como profissionais polivalentes que devem ensinar, zelar e cuidar dos filhos Temos que considerar que estas falas dos pais foram produzidas em tempos de greve. Fernandes (2008, p.15), ao falar da relação entre língua e história afirma que: A língua se insere na história (também a construindo) para produzir sentidos. O estudo do discurso toma a língua materializada e forma de texto, forma lingüístico-histórica11, tendo o discurso como objeto. A análise destina-se a evidenciar os sentidos do discurso tendo em vista suas condições sócio- históricas e ideológicas de produção. Quando os pais pedem professores ativos acionam a memória discursiva comparando-os consigo ou talvez lembrando que na maioria das vezes eles, por questões econômicas e sociais, não dão conta de cuidar de forma segura de seus filhos em casa. As diversas reorganizações familiares, a correria da vida moderna, novos papéis assumidos pela mulher, o mercado de trabalho, impedem as famílias de acompanhar, pelo menos da forma convencional, seus filhos. Está em jogo uma construção social/imaginária de professor e de escola, como se a escola, através da figura do professor, pudesse ocupar o lugar que está vago, pois seus ocupantes legítimos também já se deslocaram para outros lugares. Freire (1997, p. 09) opõe-se a uma visão com ares maternais ou paternais, esta visão quase que angelical dos professores, em especial, das professoras como cuidadoras e diz que 11Destaque dos autores. 10 Recusar a identificação da figura do professor12com a da tia não significa, de modo algum, diminuir ou menosprezar a figura da tia, da mesma forma como aceitar a identificação não traduz nenhuma valoração à lei. Significa, pelo contrário, retirar algo fundamental do professor: sua responsabilidade profissional de que faz parte a exigência política por sua formação permanente. A recusa, a meu ver, se deve, sobretudo a duas razões principais. De um lado, evitar uma compreensão distorcida da tarefa profissional da professora, de outro, desocultar a sombra ideológica repousando manhosamente na intimidade da falsa identificação. Identificar professora com tia, o que foi e vem sendo ainda enfatizado, sobretudo na rede privada em todo o país, quase como proclamar que professoras, como boas tias, não devem brigar, não devem rebelar-se, não devem fazer greve. Quem já viu dez mil “tias” fazendo greve, sacrificando seus sobrinhos, prejudicando-os no seu aprendizado? E essa ideologia que toma o protesto necessário da professora como manifestação de seu desamor aos alunos, de sua irresponsabilidade de tias, se constitui como ponto central em que se apóia grande parte das famílias com filhos em escolas privadas. Mas também ocorre com famílias de crianças de escolas públicas. Gostaríamos de chamar atenção para o seguinte discurso dos pais em relação àquilo que eles esperam dos professores: “Com professores ativos que possam dar para nossos filhos a mesma atenção que damos em casa”. Este discurso é ideologicamente marcado porque demonstra qual papel social e lugar, os pais atribuem aos professores o que gera determinadas expectativas e conflitos nesta relação. Os sujeitos em questão, no caso especifico, os pais dos alunos, em interlocução vão dando sentidos aos seus discursos, por meio do uso da linguagem. Os sentidos e não o significado da palavra“greve”, “ensinar”, “escola como extensão do lar”, foram sendo produzidos por eles, em decorrência de suas ideologias, da forma como compreendem a função social da escola e o papel dos professores dentro de seu contexto. Os discursos não são fixos, estão num processo de movência constante, “pois as palavras vão adquirir um sentido ou outro conforme a posição discursiva de quem as tiver usando”. (REIS, 2011, p. 3). No caso do discurso dos pais, estes podem ter outro olhar sobre o fazer dos professores se forem desafiados a se aproximar da escola e “estarão investindo na melhoria da qualidade da educação de seus filhos bem como na melhoria de sua própria qualidade de vida.” (PARO 2001, p.68). “Repleta de atividades.” 12Grifos nossos. 11 De acordo com Orlandi, (2007) o discurso deve ser analisado além da materialidade, parte dela, mas devem ser considerados outros elementos importantes para a compreensão e análise. Um dos aspectos que propomos na análise deste discurso são as condições de produção do mesmo. O questionário foi aplicado às famílias dos alunos matriculados no ensino fundamental. Estas famílias são constituídas de adultos que trabalham, logo passam grande parte do dia fora de casa. Não há estrutura no bairro como parques, praças ou outros espaços de lazer, também não há condições financeiras para que mantenham adultos cuidadores das crianças em casa. Conforme elucida ORLANDI (2009, p. 30) Podemos considerar as condições de produção em sentido estrito e temos as circunstâncias da enunciação: é o contexto imediato. E se as considerarmos em sentido amplo, as condições de produção incluem o contexto sócio- histórico, ideológico. Este discurso constitui uma formação imaginária que localiza a escola como uma instituição capaz de ocupar o tempo destas crianças, ampliando o atendimento para além das atividades regulares. Num sentido mais amplo, podemos flagrar a formação ideológica marcada pelas políticas públicas nacionais e mídia, a ideia de que a educação, materializada no espaço da escola é capaz de enfrentar e vencer as mazelas sociais. É o mesmo discurso que ancora a fundamentação dos projetos e programas federais como, Projeto Escola Aberta, Projeto Segundo Tempo, Programa Saúde na Escola, entre outros. Saviani (1991) aponta críticas a respeito da inserção de atividades extracurriculares de forma indiscriminada na escola. De acordo com o autor: De uns tempos para cá se disseminou a ideia de que currículo é o conjunto das atividades desenvolvidas pela escola. [...] Recentemente fui levado a corrigir essa definição. [...], se tudo o que acontece na escola é currículo, se se apaga a diferença entre curricular e extracurricular, então tudo acaba adquirindo o mesmo peso; e abre-se o caminho para toda sorte de tergiversações, inversões e confusões que terminam por descaracterizar o trabalho escolar. (SAVIANI, 1991, p.23) Tão séria quanto a ideia de que a escola absorva atividades extracurriculares é o fato de estas atividades serem organizadas e dirigidas por professores e demais profissionais da escola. A demanda advinda das diretrizes nacionais e, apoiada pelas expectativas das famílias, não traz consigo ampliação na estrutura física e humana. 12 Pesquisas recentes na educação apontam para um processo denominado intensificação do trabalho docente, conforme evidenciam Assunção e Oliveira (2009, p. 354-355) quando apontam que: À medida que se tornam mais complexas as demandas às quais as escolas devem responder, também se complexificam as atividades dos docentes. Estes se encontram muitas vezes diante de situações para as quais não se sentem preparados, seja pela sua formação profissional ou mesmo por sua experiência pregressa. Quanto mais pobre e carente o contexto no qual a escola está inserida, mais demandas chegam até elas e, consequentemente, aos docentes. Diante da ampliação das demandas trazidas pelas políticas mais recentes, o professor é chamado a desenvolver novas competências necessárias para o pleno exercício de suas atividades docentes. Neste contexto, não é difícil prever a dimensão da expectativa que as famílias depositam no professor. O que justifica o último discurso: “Bons professores.” Nesse caso, o sujeito não flui e não se desloca. Ao invés de se fazer um lugar para fazer sentido, ele é pego pelos lugares (dizeres) já estabelecidos, num imaginário em que sua memória não reverbera. Estaciona. Só repete. (ORLANDI, 2009 p. 57) Orlandi (2009) faz referência à formação imaginária, neste caso referenciado na imagem do professor como o profissional que representa a escola, esta instituição depositante de expectativas cada vez mais ambiciosas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os conceitos da AD apontados nesta análise como formação discursiva, formação ideológica, interdiscursividade e não-ditos, tornam-se mecanismos de análise e reflexão dos discursos proporcionando possibilidades de interpretação para além do que foi mostrado, dito ou escrito. São mecanismos que possibilitam desmontar a materialidade e que ampliam o pensamento, normalmente linear. A expectativa que as famílias têm da escola, perpassa obrigatoriamente pelas expectativas relacionadas ao trabalho docente, atribuindo a estes a responsabilização não apenas pela educação formal, mas também por questões de entretenimento, saúde, formação social, cívica, entre outros aspectos. As famílias não percebem, mas repetem um discurso ideológico, que comparece na legislação educacional vigente e nas mídias em geral. Um discurso fundamentado 13 num pensamento neoliberal, no qual atribui ao cidadão mais autonomia, responsabilizando-o cada vez mais, e permitindo ao Estado assumir cada vez menos responsabilidades. Políticas como a da gestão democrática atribuem uma demanda aos professores além das já assumidas em sala de aula. Outros programas e projetos também demandam dos profissionais da escola uma organização que vai além do que é minimamente possível para garantir um trabalho efetivo e saudável. REFERÊNCIAS ASSUNÇÃO, A. A.; OLIVEIRA, Dalila Andrade. Intensificação do trabalho e saúde dos professores. Educ. Soc. [online], vol.30, n.107, pp. 349-372, 2009. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Portugal: Edições 70, 2009. BRASIL. Decreto nº 6.094, 24/04/2007. Dispõe sobre a implementação do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, pela União Federal, em regime de colaboração com Municípios, Distrito Federal e Estados, e a participação das famílias e da comunidade, mediante programas e ações de assistência técnica e financeira, visando a mobilização social pela melhoria da qualidade da educação básica.. Disponível em:<http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/DEC%20 6.094-2007?OpenDocument> Acesso em: 05 maio 2012. ______. Lei nº 9.394, 20/12/1996. 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