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Sociologia Sociologia III 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA SOCIOLOGIA III 4º semestre Professora Responsável: Mari Cleise Sandalowski Sociologia Sociologia III 2 SUMÁRIO Objetivos ...........................................................................................................................03 Programa ..........................................................................................................................04 1. Principais tendências da sociologia contemporânea ............................................05 1.1. Características da Sociologia Européia .....................................................07 1.2. Características da Sociologia americana ..................................................10 2. O construtivismo estruturalista ..............................................................................13 2.1. Pierre Bourdieu ..........................................................................................14 2.1.1. Bases teóricas e metodológicas ........................................................................15 2.1.2. A noção de direito e campo jurídico ..................................................................19 2.2. Anthony Giddens .......................................................................................26 2.2.1. Elementos teóricos e metodológicos referentes à sociologia de Anthony Giddens .......................................................................................................................27 2.2.2. O conceito de modernidade ..............................................................................32 3. Depois de Marx: a perspectiva da sociologia crítica segundo Jürgen Habermas..........36 3.1. Jürgen Habermas.......................................................................................36 3.1.1 A colonização do mundo vivido...........................................................................36 3.1.2. O que é ação comunicacional?..........................................................................39 3.1.3. A técnica e a ciência como ideologia.................................................................42 Sociologia Sociologia III 3 OBJETIVOS • Identificar as principais tendências sociológicas contemporâneas; • Estudar, sistematicamente, a obra de alguns dos principais autores contemporâneos; • Identificar as principais questões teóricas presentes e os fundamentos epistemológicos dessas teorias. Sociologia Sociologia III 4 PROGRAMA UNIDADE 1 – PLURALISMO TEÓRICO NA SOCIOLOGIA CONTEMPORÂNEA 1.1. O construtivismo estruturalista. 1.2. Teoria crítica e teoria da ação social. 1.3. Pós-estruturalismo. 1.4. Marxismo analítico. 1.5. Individualismo metodológico e teoria da escolha racional. 1.6. Teoria pós-moderna. 1.7. Contribuições à Teoria Social Contemporânea no Brasil. 1.8. Outras referências à Teoria Sociológica contemporânea. Sociologia Sociologia III 5 CAPÍTULO I PRINCIPAIS TENDÊNCIAS DA SOCIOLOGIA CONTEMPORÂNEA Sociologia surge em um contexto no qual a “questão social” emerge como elemento central para auxiliar na compreensão das mudanças desencadeadas pela Revolução Francesa e pela Revolução Industrial. Ancorada nos princípios da ciência moderna, esta nova disciplina marca, no século XIX, um momento de reflexão dos indivíduos sobre eles mesmos, isto é, observa-se a emergência do social como problema científico, pois os fatos observados não são mais explicados pela ordem divina, mas pelo racionalismo e pelo positivismo. Racionalismo → Descartes – tudo é posto em dúvida; prioriza sujeito em detrimento do objeto (penso, logo existo!); existência do ser que pensa; acentua caráter absoluto e universal da razão; dualismo psicofísico (dicotomia corpo/consciência); confiança na capacidade do homem de atingir verdades universais, eternas. Positivismo → ciência e técnica tornam-se aliadas; cientificismo das ciências naturais como único processo válido para organizar e compreender o mundo; oposição à explicação teológica e metafísica (simples descrição de como o fenômeno ocorre); o positivismo busca compreender como ele ocorre. Do mesmo modo, a Sociologia exprime uma tentativa de construção do conhecimento científico, cujo papel seria fornecer aos indivíduos daquele tempo o controle de sua sociedade e de sua história, assim como acontecia com as disciplinas da física e da química, que possibilitaram o controle das forças naturais. É por isso que inicialmente a Sociologia é denominada como física social, tendo por objetivo explicar a exatidão das práticas sociais. Por fim, pensadores como Saint-Simon, Auguste Comte, dentre outros, debatem sobre a possibilidade de colocar em prática os princípios de igualdade, liberdade e fraternidade proclamados pela Revolução Francesa. Como analistas e homens de ação declaram-se como sociólogos e formalizam as relações sociais. A Sociologia Sociologia III 6 Independente do sucesso e do desenvolvimento institucional da Sociologia, seu processo de consolidação, enquanto disciplina do conhecimento, não é neutro, linear e cumulativo. Ao contrário, da mesma forma que as transformações industriais, políticas e sociais desencadeadas no século XIX (Revolução Francesa e Revolução Industrial), as mudanças que se sucederam no século XX foram decisivas para moldar a sociologia contemporânea. Observe-se as interferências e conseqüências deixadas pelas duas guerras mundiais, além das constantes crises econômicas e sociais, da transformação dos regimes políticos, a globalização, etc. A Sociologia contemporânea, portanto, é caracterizada por dois traços principais: a extensão e a fragmentação. No que tange à extensão, pode-se dizer que a disciplina não está mais circunscrita ao continente europeu, mas conquistou espaço globalmente. Diante desta difusão, a mesma, contudo, sofreu um processo de fragmentação, que permitiu uma crescente especialização e uma maior competitividade entre as correntes teóricas e institucionais. Assim, “... os conflitos e as relações competitivas entre escolas, a luta pelo poder (no seio das universidades, das revistas especializadas...) as alianças com as autoridades políticas ou movimentos de contestação... são igualmente fatores determinantes da configuração do campo intelectual contemporâneo” (Lallement, 2004: 08). Levando-se em consideração as peculiaridades que marcaram o desenvolvimento da sociologia ao longo do século passado, é importante colocar em evidência não apenas a diversidade dos pontos de vista e de análises que a acompanham, mas, principal, torna-se salutar destacar o papel decisivo do contexto institucional e das estratégias utilizadas pelos próprios sociólogos para estruturar a disciplina. Deste modo, a Europa Ocidental e os Estados Unidos apresentam-se como dois pólos fundamentais para o desenvolvimento institucional e teórico da sociologia contemporânea. Embora apresentem diferentes perspectivas de análise, concomitantemente, é importante ressaltar que a sociologia contemporânea não pode evocar conjuntos rígidos com variáveis que se entrecruzam e muito menos territórios delimitados rigorosamente. Ao contrário, é preciso relativizar as Sociologia Sociologia III 7 oposições sistema/ator, ordem/conflito, objetivo/subjetivo, material/ideal. Estas abordagens dicotômicas que muitas vezes orientam as leituras e abordagens dos fenômenos sociais, embora úteis para realizar uma classificação, reduzem e empobrecem o olhar sociológico, visto que muitos trabalhos e obras encontram-se no entrecruzamento de paradigmas, não estando,portanto, vinculados exclusivamente a uma única tradição sociológica. 1.1. Características da Sociologia Européia Embora a Sociologia tenha surgido na Europa apresentando-se, aparentemente, como coesa e sincrônica, ela apresenta peculiaridades epistemológicas e metodológicas dependendo da perspectiva de análise adotada. É por este motivo que se torna possível falar não sobre uma sociologia unívoca, mas sobre sociologias francesa, alemã e anglo-saxônica. Esta diversidade de tradições analíticas permitiu, desde o século XIX, abordagens que privilegiaram tanto a interação e a ação social, quanto um olhar crítico sobre a estrutura da sociedade. Mesmo que a sociologia européia tenha se edificado sobre bases sensivelmente diferentes, o que permitiu uma variedade de abordagens analíticas sobre os fenômenos sociais, enriquecendo, assim, o debate sociológico, a primeira metade do século XX provocou uma grave crise institucional na disciplina. Esta crise teve como motivação as conseqüências deflagradas pelas duas guerras mundiais e pela ascensão dos regimes totalitários como o nazismo e o fascismo. Tais fatos provocaram a emigração significativa de sociólogos europeus para outros países como pôde-se observar em relação à Sorokim, Malinowski, Lazarsfeld, Adorno, Horkheimer, Elias, Mannheim, Schütz, Schumpeter, dentre outros. É nesse período que se observa o declínio da escola francesa e a pulverização da escola alemã, devido à fuga de muitos intelectuais como, por exemplo, os autores da Escola de Frankfurt. É somente a partir de 1945 que ocorre o renascimento da sociologia européia. No entanto, observa-se que, a partir deste período, “... a desconfiança diante da ‘grande’ teoria predomina imediatamente na maioria dos países europeus e dá-se agora a primazia aos trabalhos especializados. Se, ulteriormente, a Sociologia Sociologia III 8 balança se inclina de novo para o pólo teórico, a sociologia não escapa à história. Tanto no seu arranjo institucional como nas pressuposições teóricas e metodológicas dominantes, a sociologia européia se forja aos sabores dos acontecimentos marcantes das décadas pós-guerra (desenvolvimentismo, guerra fria, emergência dos novos movimentos sociais, implosão do comunismo na Europa Oriental...)” (Lallement, 2004: 42). É nesse contexto que ocorre o renascimento da sociologia européia no período pós-guerra. Na França a disciplina ao mesmo tempo em que é depreciada pelos intelectuais personalistas, marxistas e existencialistas (que caracterizavam as formas de pensamento em vigor naquele período), recebe vários estímulos por parte do Estado, assim como apoio de instituições internacionais e de empresas e fundações como, por exemplo, a Unesco e as Fundações Ford, Rockefeller, etc. Tais estímulos estão diretamente ligados às preocupações planejadoras do Estado. Além disso, os sociólogos franceses dessa época recebem uma forte influência metodológica americana. Embora as referências teóricas, metodológicas e as técnicas de investigação sejam incorporadas da sociologia americana, pode-se observar um olhar bastante crítico por parte da sociologia francesa em relação à industrialização. Desse modo, os estudos sobre delinqüência, violência, comunicações de massa e industrialização cedem espaço para um objeto de investigação que se torna privilegiado entre os cientistas sociais franceses nos anos cinqüenta: a classe operária. O mesmo pode ser observado em relação à sociologia alemã. Embora, no período pós-guerra predomine ainda a ênfase metodológica dos “velhos” sociólogos (nascidos nas duas últimas décadas do século anterior e cujas raízes estão fortemente arraigadas na tradição liberal), cuja perspectiva de análise privilegiava uma reflexão sobre “... a evolução da sociedade com o auxílio de vastos painéis sócio-históricos e culturais” (Lallement, 2004: 58), lentamente delineia-se uma ruptura metodológica. A nova geração de cientistas sociais deixa transparecer uma forte desilusão e desconfiança em relação às grandes teorias gerais; ancorada em uma prática sociológica de corte americano, os novos estudos privilegiam o aspecto empírico, ao mesmo tempo em que também são caracterizados pelo idealismo humanitário. É diante desse quadro que temas Sociologia Sociologia III 9 como trabalho, família, estratificação, religião, mobilidade social, etc., surgem como objetos de investigação. Por outro lado, emergem também estudos sobre desemprego, as conseqüências da automação, sexualidade, diretamente ligados aos problemas da sociedade alemã no período pós-guerra. Estas pesquisas, vinculadas a nova escola de Frankfurt, pouco simpatizam com a corrente sociológica americana. Críticos da investigação positivista recorrem à Marx e a Freud para pensar os problemas que assolam a sociedade de seu tempo, dando ênfase a uma reflexão mais genérica sobre os fenômenos sociais, culturais e políticos. É somente a partir da década de sessenta que ocorre a profissionalização da sociologia. A sua consolidação institucional, alimentada em muitos países pelo crescimento do Estado de Bem-Estar Social, permite uma difusão da disciplina e dos profissionais da área de forma significativa. Paralelamente, vão se diversificando também as perspectivas de análise sobre os fenômenos sociais, assim como os objetos de estudo. Migração, cultura de massa, tempo livre, organizações, escola, constituem alguns dos temas emergentes nas pesquisas sociológicas. Do mesmo modo, observa-se uma pulverização metodológica. Se nos anos sessenta são retomadas as teorias do ator social, na década posterior dissemina-se uma “sociologia da suspeita”, isto é, instituições como as prisões, a escola, a fábrica, os hospitais passam a ser problematizadas, sendo a elas atribuídas ações que envolvem poder e dominação de um grupo social sobre outro. É esse o elemento central que sustenta o estruturalismo francês no período e a abordagem crítica da realidade social, cuja ênfase teórica e metodológica tem como base a obra de Karl Marx. O multiculturalismo, a globalização e os avanços tecnológicos, que caracterizam a sociedade a partir dos anos oitenta, apontam para o esgotamento da sociologia crítica e das perspectivas funcionalistas, não mais capazes de responder às mudanças sociais e suas conseqüências. Se até então predominavam no máximo duas correntes de investigação sociológica, geralmente dicotômicas, as quais se constituíam em modelos de análise, os anos oitenta e noventa, assim como a primeira década do século XXI, exige da sociologia uma postura mais eclética. Os diferentes modelos de organização Sociologia Sociologia III 10 social, e as peculiaridades políticas, culturais e econômicas de cada região estimulam os profissionais da área a recorrerem a várias formas de abordagem dos fenômenos sociais. Perspectivas como o pós-modernismo, a etnometodologia, o interacionismo simbólico, o construtivismo, etc., são utilizados recorrentemente nas academias, constituindo uma verdadeira “Torre de Babel” (Lallement, 2004). Esta pulverização metodológica e teórica enriquece a prática sociológica, visto que estimula olhares diferenciados sobre uma mesma realidade social. 1.2. Características da Sociologia americana É apenas na primeira metade do século XX que a Sociologia ultrapassa as fronteiras do continente europeu, estabelecendo-se institucionalmente nos Estados Unidos. A presença das guerras de muitos estados dominados pelo totalitarismo são elementos determinantes para a fuga de pesquisadores e intelectuais, que passam a afluir para o continente americano, tornando, assim, os Estados Unidos um campo promissor da sociologia mundial. Esse afluxo de sociólogos permite uma aproximação e uma colaboração da disciplina com o estabelecimento tanto de políticas sociais, quanto de técnicas de avaliação e intervençãopara solucionar os problemas da sociedade. Isto contribui para legitimar a prática sociológica americana. Se, na primeira metade do século passado, a sociologia, como ciência, era percebida como uma disciplina que poderia e deveria contribuir tanto para o entendimento quanto para a gestão dos fenômenos sociais, mantendo-se ao mesmo tempo livre de qualquer tipo de interferência ideológica ou política, no período pós-guerra cresce o questionamento em torno da teoria sociológica, observando-se uma releitura crítica dos clássicos da área. Este movimento é devido ao crescimento expressivo da classe média e da burocratização nos Estados Unidos. Assim, a mobilidade social torna-se principal objeto de investigação sociológica e as sondagens empíricas perpetuam-se, embora a ênfase recaia na acumulação e no tratamento estatístico dos dados coletados (Riutotr, 2008). Dentre as principais correntes de pensamento sociológico que se desenvolvem ao longo do século XX nos Estados Unidos e que, por Sociologia Sociologia III 11 conseqüência, constituem balizas de conhecimento para a sociologia contemporânea, podem ser citadas a Escola de Chicago, o Culturalismo, a Escola de Harvard, o interacionismo simbólico e a etnometodologia. A partir dos anos oitenta emergem como objetos de investigação as reflexões entre o micro e o macrossocial, além de temas voltados para a sociologia dos gêneros, a sociologia histórica, a sociologia econômica (teoria das redes) e a sociologia da ciência. Escola de Chicago: • Surge na década de vinte, século XX; • Os autores afastam-se da tentação profética e das teorias gerais; • Os estudos dedicam atenção às comunidades ecológicas → objeto mais próximo dos fenômenos da industrialização e urbanização e suas conseqüências; • Ênfase nas comunidades; • Objeto → desorganização social → cidade, delinqüência, nomadismo operário; • Projetos: prevenir o desvio social (delinqüência urbana e a luta contra alcoolismo e drogas); • Vínculo entre sociologia e intervencionismo social. Escola de Columbia – Corrente culturalista: • Aparece na década de 30; • Objeto de investigação → a industrialização, o desaparecimento da pequena comunidade tradicional, disparidades entre as classes sociais, desenvolvimento das técnicas de propaganda e dos institutos de opinião pública, conseqüências da quebra da Bolsa em 1929. • Projetos: compreender como os indivíduos se apropriam de sua própria “cultura”; • Ênfase no relativismo e no determinismo; • Para alguns culturalistas existem processos concretos de aquisição das regras sociais, isto é, no espaço social podem ser encontradas formas de inculcar as normas sociais. Escola de Harvard: • Concomitante à corrente culturalista; • Fundadora da sociologia industrial; • Sociólogo como perito nas empresas; • Ênfase na oposição entre lógica racional (característica da direção empresarial/industrial) e lógica não racional (própria dos trabalhadores); • Objeto de investigação → industrialização; • “... longe de ser dominada por simples estímulos financeiros, a ação dos indivíduos se acha presa em uma rede muldimensional de lógicas (dos sentimentos, do custo, da eficiência, da ideologia) que não se reduz a pura e simples racionalidade econômica” (Lallement, 2004: 18- 19). Sociologia Sociologia III 12 Anos 70 • Interacionismo/etnometodologia • Objetos → trabalhos sobre justiça, escola, hospital, organizações, ciência, criminalidade, etc. Garfinkel → “a realidade social é uma construção permanente que não tem nada de exterior aos indivíduos” (35-36) → perspectiva fenomenológica (Alfred Schütz). Anos 80 • Estruturalismo concorre com a etnometodologia; • Objeto: reflexão entre o micro e o macrossocial; • Propõe-se como uma sociologia crítica → releitura de Marx. Anos 90 • Objetos → sociologia dos gêneros, sociologia histórica, sociologia econômica (teoria das redes), sociologia da ciência. TEMAS DE REFLEXÃO • O que significam tradições sociológicas? • Sociologia européia • Sociologia norte-americana • Profissionalização da sociologia • Prática sociológica SUGESTÃO DE LEITURAS • CASTRO, Ana Maria de; DIAS, Edmundo Fernandes (org.). Introdução ao pensamente sociológico. Émile Durkheim (et al). São Paulo: Centauro, 2001, pg. 01-30. • CORCUFF, Philippe. As novas sociologias: construções da realidade social. Bauru, SP: Edusc, 2001. • LALLEMENT, Michel. História das idéias sociológicas: de Parsons aos contemporâneos. Petrópolis: Ed. Vozes, 2004, 2ª ed. 341 p. • RIUTORT, Philippe. Compêndio de Sociologia. São Paulo: Ed. Paulus, 2008. Sociologia Sociologia III 13 CAPÍTULO II O CONSTRUTIVISMO ESTRUTURALISTA O que é construtivismo? É uma “... abordagem que tem a tendência de acentuar os mecanismos pelos quais a realidade social ganha forma. Um dos seus postulados consiste em afirmar que a realidade não preexiste jamais à observação e que o observador, pela sua simples presença, age sobre o fenômeno estudado” (Riutort, 2008: 797) s sociologias construtivistas referem-se a uma dupla dimensão do social. Elas designam um conjunto de estudos na área das ciências sociais que definem a realidade social como um conjunto de produções cotidianas que podem ser elaboradas por agentes individuais ou coletivos em uma determinada situação e contexto. É por este motivo que a realidade, nesta perspectiva de análise, não pode ser apreendida em si ou como uma coisa, mas a partir de ações concretas, que levam em consideração a conduta da ação, os saberes necessários e as temporalidades. As ações sociais “... se inscrevem, portanto, em um mundo social que também ele, por sua vez, é uma construção cuja consistência resulta de ações anteriores” (Riutort, 2008: 295). As sociologias construtivistas agrupam várias teorias, que têm como principal particularidade a rejeição à oposição entre holismo e individualismo, entre objetivo e subjetivo, entre material e ideal. Contrapondo-se ao viés dicotômico para definir e compreender o mundo social, os pesquisadores desta corrente de pensamento expõem que os fenômenos sociais complexos, que marcam a segunda metade do século passado e a primeira década do século XXI, não podem ser mais explicados através de categorias de pensamento binárias. É preciso pensar de modo conjunto aqueles aspectos da realidade, definidos pela sociologia clássica como antagônicos (Corcouff, 2001). A Sociologia Sociologia III 14 Estabelecendo uma crítica tanto à perspectiva metodológica que privilegia apenas a importância do ator quanto àquela que enfatiza apenas as estruturas, os construtivistas partem do pressuposto de que estes dois elementos encontram-se imbricados, não existindo uns sem os outros. Assim como “... os indivíduos não significam muita coisa fora de uma sociedade na qual evoluem, da mesma forma, a sociedade não é nada sem os indivíduos que a compõem” (Riutort, 2008: 296). Embora posterior aos fundadores da sociologia, esta perspectiva metodológica tem fundamental importância na sociologia contemporânea, visto que rompe com as formas de pensamento binário que perpassavam os pressupostos teórico-metodológicos na sociologia até a primeira metade do século XX. 2.1. Pierre Bourdieu Biografia: Pensador francês, Pierre Bourdieu tem origem familiar campesina. Nascido em 01 de agosto de 1930, na cidade de Denguin, foi um dos sociólogos mais relevantes e influentes da sociologia contemporânea. Filósofo de formação, formou-se na Escola Normal Superior, em Paris. Foi professor na École de Sociologie du Collège de France, consagrando-se em um dos mais importantes intelectuais do século passado, além de dirigir a revista Actes de la Recherche em Sciencies Sociales. A partir da segunda metade do século XX inicia suas pesquisas na Argélia,construindo as bases de seu referencial teórico-metodológico. Analisando temas relacionados à cultura, estilos de vida e educação, suas investigações são de grande relevância tanto para a teoria social quanto para a sociologia empírica, visto que realiza um trabalho denso e exaustivo sobre a dinâmica da vida social. Após décadas de intensas atividades intelectuais, morre em 23 de janeiro de 2002, na cidade de Paris. Construtivismo estruturalista ou estruturalismo genético “Pierre Bourdieu define o ‘construtivismo estruturalista’ na junção do objetivo e do subjetivo: ‘Por estruturalismo ou estruturalista, eu quero dizer que existem, no próprio Sociologia Sociologia III 15 mundo social (...), estruturas objetivas independentes da consciência e da vontade dos agentes, que são capazes de orientar ou de limitar suas práticas ou suas representações. Por construtivismo, quero dizer que há uma gênese social dos esquemas de percepção, de pensamento e de ação constitutivos do que chamo de habitus, por um lado, e, por outro lado, das estruturas sociais e, em particular do que chamo de campo’. Nesta dupla dimensão, objetiva e construída, da realidade social, uma certa primazia continua, no entanto, a ser dada às estruturas objetivas. É o que leva Pierre Bourdieu a distinguir dois momentos na investigação, um primeiro momento objetivista e um segundo momento subjetivista: “por um lado, as estruturas objetivas que o sociólogo constrói no momento objetivista, ao afastar as representações subjetivistas dos agentes, são o fundamento das representações subjetivas e constituem as limitações estruturais que pesam sobre as interações; mas, por outro lado, estas representações devem também ser analisadas se quisermos dar conta sobretudo das lutas cotidianas, individuais e coletivas, que visam transformar ou conservar estas estruturas’. Esta prioridade cronológica e teórica dada à dimensão objetiva da realidade social retira uma parte de suas raízes de uma reflexão epistemológica, expressa por Pierre Bourdieu, Jean-Claude Chamboredon e Jean-Claude Passeron em 1968 em Le Métier de sociologie e reiterada desde então por Pierre Bourdieu. Encontramos no centro desta orientação, a noção de ‘ruptura epistemológica’, ruptura entre o conhecimento científico dos sociólogos e a ‘sociologia espontânea’ dos atores sociais; o que aproxima as ciências sociais das ciências da natureza. Ela encontra uma de sua fontes no imperativo sociológico de ruptura com as ‘pré-noções’ dos atores denunciados por Durkheim em Les Régles de la méthode sociologique. No entanto, apesar da reafirmação deste princípio,o procedimento de Pierre Bourdieu – ao menos no que se refere ao segundo momento subjetivista – aparece geralmente, no detalhe das análises, mais complexo que uma simples dicotomia entre conhecimento erudito e conhecimento comum” (Fonte: Corcuff, 2001: 48-50) 2.1.1. Bases teóricas e metodológicas Ao contrário dos demais sociólogos de seu tempo, Pierre Bourdieu não recorre a um único referencial teórico e metodológico. Ao contrário, realiza concomitantemente uma reeleitura dos clássicos da sociologia, tradicionalmente colocados em oposição, incorporando elementos metodológicos e conceituais de Sociologia Sociologia III 16 Marx, Durkheim e Weber para pensar os fenômenos sociais da segunda metade do século XX. Intelectual engajado realiza críticas ao liberalismo, à globalização e à dominação, constituindo-se a última esfera em uma questão investigativa fundamental de todo o seu trabalho. Tendo por objetivo compreender os mecanismos da reprodução social que legitimam as várias formas de dominação, este tema perpassa toda a sua discussão sociológica, independente do objeto de estudo abordado, ou seja, a educação, a cultura, a mídia, a política, a lingüística são analisados à luz dos mecanismos de dominação existentes em um determinado grupo social. A sociologia desenvolvida por Pierre Bourdieu não focaliza como elemento central de suas análises os fatores econômicos. Compreendendo a sociedade como um grande espaço social, formado por diferentes campos e construído por relações de poder que lhe conferem sentido, o mundo social deve ser compreendido à luz de três conceitos fundamentais: o campo, o habitus e o capital. Desse modo, este espaço é organizado de acordo com os tipos de capital que cada agente ou grupos sociais possuem, sendo a realidade definida por agentes que vivem cotidianamente dentro desse mundo social, ou seja, o sentido daquilo que definimos como sendo uma realidade social é atribuído socialmente, tendo como fundamento as relações de poder que perpassam as práticas sociais, cujas experiências impõem aos indivíduos uma visão de mundo legítima (Bourdieu, 1983). É por este motivo que os agentes sociais executam suas ações de acordo com as representações sociais e as idéias da realidade social na qual estão situados. Se o meio social e a consciência dos indivíduos são o resultado da história de um determinado período, é preciso atentar para o fato da não naturalização daquilo que existe. Embora certas práticas sociais pareçam, em um primeiro momento, como ações inatas, isto é, produzidas pela natureza física e/ou genética, estas constituem, ao contrário, fenômenos sociais que são construídos socialmente. Tais elementos reforçam a necessidade de ruptura com a dicotomia indivíduo/estrutura. Para Bourdieu (2005) não há uma estrutura que se impõe aos Sociologia Sociologia III 17 indivíduos, mas o que se observa é uma história objetivada e incorporada, que se estrutura ao longo do tempo. Esta idéia de temporalidade indica que quanto mais uma noção ou um conceito comum perpetuam-se ao longo do tempo, maior é o seu enraizamento/cristalização social. Preocupado em compreender teoricamente os mecanismos sociais que legitimam as diferentes formas de dominação presentes na sociedade, o autor recorre ao conceito de violência simbólica, que é definida como não arbitrária da produção simbólica da vida social. Deste modo, é através da violência simbólica que ocorre o processo de produção e reprodução social que dá sentido ao mundo; representado o caráter legitimador daquilo que Bourdieu (2005) define como forças dominantes, a violência simbólica indica uma imposição de determinados significados que são incorporados pelos agentes sociais, fazendo com que estes percebam a realidade social de uma forma específica. Nesta perspectiva de análise, a violência simbólica é exercida através da dominação, impondo-se como legítima e universal através de mecanismos sociais que expressam os gostos de classe e estilos de vida dos grupos dominantes, gerando, por conseqüência, a distinção social (Bourdieu, 2007). Utilizando a perspectiva construtivista, esse autor parte do princípio de que há, de um lado, uma constituição social dos elementos de pensamento, percepção e ação dos sujeitos, elementos que constituem o habitus e, de outro, das estruturas sociais, ou seja, dos campos e grupos sociais, assim como das classes sociais (Bourdieu, 1990). A Sociologia, nesse sentido, é concebida como uma topologia social, na qual a realidade pode ser representada como um espaço determinado pelas bases de diferenciação e distribuição irregular de força e poder. Desse modo, o lugar do agente na estrutura social é definido pela posição que ele ocupa no espaço (Bourdieu, 1990), quer dizer, é nesse “... espaço social, no qual as distâncias se medem em quantidade de capital, [que se definem] proximidades e afinidades, afastamentos e incompatibilidades, em suma, probabilidades de pertencer a grupos realmente unificados (...); mas é na luta das classificações, luta para impor esta ou aquela maneira de recortar este espaço, para unificar ou dividir, etc., que se definem as aproximações reais. A classe nunca está nas coisas; ela também é representaçãoe vontade, mas que só tem possibilidade de Sociologia Sociologia III 18 encarnar-se nas coisas se ela aproximar o que está objetivamente próximo e afastar o que está objetivamente afastado” (BOURDIEU, 1990: 95). As relações hierárquicas estabelecidas a partir da posse de bens, materiais e simbólicos, da mesma forma que as posições reconhecidas e legitimadas, constituem os campos1 profissionais, sociais e econômicos. Investigando as propriedades gerais dos campos, Bourdieu (1983) identifica e descreve as formas que assumem os conceitos mais gerais (interesse, capital, investimento) e os mecanismos que atuam em cada um desses campos, assim como a própria formação do habitus profissional. Desse modo, é o lugar ocupado pelo agente nos diversos campos, ou seja, a composição do capital e do poder que esse agente possui, que define a sua posição no espaço social, pois cada campo tem uma determinada forma de capital e uma hierarquia próprias. Considerando o conceito de capital social como determinante para apreender as relações e diferenciações entre os agentes dentro de cada campo, Bourdieu (2005) explica que esse capital pode ter valor distinto em cada campo. O modelo explicativo elaborado por Bourdieu (2001), portanto, concebe a ciência como resultado da ação dos sujeitos no mundo, cuja consequência é a necessidade de decisão. Defende, desse modo, a ideia de um saber embasado na ação. Contrapondo-se ao saber escolástico, que tem como fundamento o pensamento teleológico, por um lado, e o pensamento dedutivo, por outro, o autor ressalta a necessidade de superar o mecanicismo objetivista, que reduz a prática social à execução inconsciente de regras, de dispositivos ou de estruturas, analisando aquela como um “... produto da relação dialética entre uma situação e um habitus, isto é, o habitus enquanto sistema de disposições duráveis é matriz de percepção, de apreciação e de ação, que se realiza em determinadas 1 Além dos campos econômicos, sociais e profissionais, Bourdieu ressalta a existência de outros campos como o político, o das instituições de ensino, o burocrático, o religioso, o jurídico, o da produção cultural, o jornalístico, o artístico, o universitário, entre outros. É importante ressaltar que sua perspectiva de análise não focaliza os fatores econômicos como elemento central na compreensão das práticas sociais. Sociologia Sociologia III 19 condições sociais” (BOURDIEU, 1983:19). Nessa perspectiva, há a necessidade de compreender o envolvimento do sujeito no mundo. Seu modelo argumentativo discorda das duas linhas de pensamento explicativas da ação do sujeito. Quanto ao estruturalismo contido na teoria funcionalista, Bourdieu (1996) caracteriza essa perspectiva como incapaz de elaborar uma teoria da ação, visto que o indivíduo encontra-se diluído na sociedade; por outro lado, discorda também da tese elaborada por Weber, na qual o sujeito teria a capacidade, através de sua ação, de mudar o curso da história, uma vez que ele é compreendido como um ser autônomo. Para o autor, essa autonomia individual, como sinônimo de ação, constitui-se em uma tessitura social, quer dizer, em um jogo social. O campo científico Para Bourdieu (2005), o campo científico é o espaço no qual se estabelece a luta concorrencial entre os atores sociais, cujas posições foram adquiridas em lutas anteriores. A questão que está em jogo é o monopólio de autoridade científica percebida como qualidade técnica e poder social, cuja capacidade de discursar e de agir são legitimadas socialmente. Nesse sentido, as práticas dos agentes estão orientadas na busca da autoridade, ou seja, na busca constante do reconhecimento, celebridade e prestígio social, meio no qual os títulos científicos têm um papel de grande importância. Diante da ideia de diferentes campos que interagem e disputam status social, assim como da noção de capitais desigualmente distribuídos, o autor parte do pressuposto de que o título universitário ou científico concorre com outros títulos para a aquisição de autoridade e prestígio. As profissões seriam, portanto, classes sociais ou grupos caracterizados pelas diferentes formas de mobilização e apropriação de um tipo de capital, nesse caso, o capital cultural, entendido como o responsável pela hierarquização, integrado ao capital social e ao capital econômico. (Fonte: BOURDIEU, PIERRE. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005). 2.1.2. A noção de direito e campo jurídico Dentre os objetos de estudo abordados pela sociologia de Pierre Bourdieu, destaca-se sua análise sobre o campo jurídico e a definição da esfera do direito. Sociologia Sociologia III 20 Ao analisar o campo jurídico e as relações dos profissionais que aplicam as regras de direito e as relações daqueles que as elaboram, o autor estabele três objetivos: primeiro, propõe-se a estabelecer uma sociologia crítica das desigualdades e da despolitização; segundo, investiga as ambivalências do campo jurídico e do habitus dos juristas; por fim, busca apreender a razão jurídica entre as razões escolásticas. Escolástica: criticada severamente por Bourdieu devido à sua contemplação da verdade. Para o autor, o saber científico não está distanciado em relação ao mundo e à verdade e à prática, mas se entrelaça com o costume, a autonomia, a força, o corpo, a imaginação e a probabilidade, isto é, é influenciado por condições históricas e sociais. (Bourdieu, 1994). Influência escolástica → fundada na tradição → privilegia certas problemáticas em detrimento de outras → “... existem problemas que os sociólogos deixam de apresentar porque a tradição profissional não os reconhece como dignos de serem levados em consideração, ou não propõe as ferramentas conceituais ou as técnicas que permitiriam tratá-los de forma canônica; e, inversamente existem questões que eles se obrigam a formular porque as mesmas ocupam uma posição elevada na hierarquia consagrada dos temas de pesquisa” (Bourdieu, 1994: 41). Ao contrário de autores clássicos do direito como Kelsen, para quem o direito representava uma esfera autônoma às pressões e reivindicações sociais, cuja história era entendida como um produto intrínseco ao desenvolvimento interno dos seus conceitos e métodos, configurando um sistema fechado e Sociologia Sociologia III 21 autônomo, e Althusser, que conferia uma abordagem economicista à prática jurídica, definindo o direito e a jurisprudência como um reflexo direto da relações de força existentes, responsáveis por exprimir as determinações econômicas e os interesses dos dominantes, Bourdieu (2005) atenta para a estrutura dos sistemas simbólicos, isto é, “... à existência de um universo social relativamente independente em relação às pressões externas, no interior do qual se produz e se exerce a autoridade jurídica, forma por excelência da violência simbólica legítima cujo monopólio pertence ao Estado e que se pode combinar com o exercício da força física” (Bourdieu, 2005: 211). Assim, as práticas e discursos jurídicos são produtos do funcionamento de um campo (jurídico), definido a partir das disposições socialmente construídas e responsáveis por gerar um conjunto de práticas em relação a um grupo de agentes, fazendo surgir, por conseqüência, aquilo que o autor define como habitus. O campo jurídico, portanto, pode ser caracterizado tanto “... pelas relações de força específicas que lhe conferem a sua estrutura e orientam as lutas de concorrência” [quanto] “... pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam em cada momento o espaço dos possíveis e, deste modo, o universo das soluções propriamente jurídicas” (Bourdieu, 2005: 211). É por este motivo que o autor explica que as pressões e os constrangimentos sociais fixam suasmarcas na cultura jurídica, caracterizada pela relação que o campo jurídico estabelece com o campo de poder e os demais segmentos da sociedade. O campo jurídico é um campo que coloca em prática procedimentos codificados de resolução de conflitos entre os profissionais da resolução regulada dos conflitos, podendo então o direito ser definido como um “... lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social” (Bourdieu, 2005: 212). Sociologia Sociologia III 22 Em outras palavras, o que Bourdieu está afirmando é que a produção de um discurso lingüístico específico (linguagem jurídica) confere competência técnica, capacidade e legitimidade social para ser utilizado em situações determinadas (no tribunal). Este discurso específico também significa relações de poder simbólico por meio das quais se atualizam as relações de força entre os locutores e seus respectivos grupos. Desse modo, a concorrência pelo monopólio do acesso aos meios jurídicos separa e reforça constantemente a distinção entre os profanos, aqueles que não dominam a linguagem jurídica, e os profissionais, veredictos armados de direitos. É por este motivo que o espaço judicial requer uma distinção, ou fronteira, entre aqueles que estão preparados e capacitados para entrar no jogo concorrencial e os que dele são excluídos, apresentando a necessidade de um intermediário: o advogado. Isto gera a impossibilidade do campo jurídico ser acionado pelos personagens principais, quer dizer, pela vítima e acusado. O direito, portanto, ao mesmo tempo em que fabrica o mundo social, pelo fato de ser a forma por excelência do discurso atuante e capaz de produzir efeitos sociais, também é feito por ele, visto que os agentes que constituem o campo jurídico transitam por outros campos da sociedade como, por exemplo, o campo religioso, político, ético, social, etc. Espaço de possíveis: é um corpus de precedentes reconhecidos entre os quais a solução pode ser buscada → “... é o que fundamenta racionalmente uma decisão que se pode inspirar, na realidade, em princípios diversos, mas que ela faz aparecer como produto de uma aplicação neutra e objetiva de uma competência especificamente jurídica” (Bourdieu, 2005: 231). Poder simbólico: é um poder invisível, exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que a ele estão sujeitos ou mesmo que o Sociologia Sociologia III 23 exercem. Na prática, esta forma de poder é exercida quando aparentemente o agente social pode escolher livremente a ação a ser tomada, porém, ele tende a optar por aquilo que será mais aceito do ponto de vista do contexto no qual está situado naquele momento. Da mesma forma que os indivíduos que compõem o campo jurídico fazem parte de outros campos, também existe um poder simbólico que é definido na relação entre aqueles que exercem o poder (profissionais do mundo do direito) e aqueles que lhe são sujeitos (profanos - demais grupos sociais que desconhecem a técnica e a linguagem jurídica). São os magistrados e os demais operadores de direito que constroem a realidade estabelecendo, assim, uma ordem, cujo poder das palavras (da linguagem jurídica) somente é possível pela crença na sua legitimidade (isto é, pela crença que a sociedade possui no direito e no campo jurídico). A RUPTURA EPISTEMOLÓGICA → “A vigilância epistemológica impõe-se, particularmente, no caso das ciências do homem nas quais a separação entre a opinião comum e o discurso científico é imprecisa do que alhures. Ao concedermos, com demasiada facilidade, que a preocupação com a reforma política e moral da sociedade levou os sociólogos do século XIX a abandonar, muitas vezes, a neutralidade científica e, até mesmo, que a sociologia do século XX renunciou , eventualmente, às ambições da filosofia social sem ter ficado isenta de contaminações ideológicas de outra natureza, dispensamo-no quase sempre de reconhecer, para tirar daí todas as conseqüências, que a familiaridade com o universo social constitui, para o sociólogo, o obstáculo epistemológico por excelência porque ela produz continuamente concepções ou sistematizações fictícias ao mesmo tempo que as condições de sua credibilidade. O sociólogo nunca conseguirá acabar com a sociologia espontânea e deve se impor uma polêmica incessante contra as evidências ofuscantes que proporcionam, sem grandes esforços, a ilusão do saber imediato e de sua riqueza insuperável. Sua dificuldade em estabelecer, entre a percepção e a ciência, a separação que, para o físico, exprime-se por uma oposição nítida entre o laboratório e a vida cotidiana, é tanto maior pelo fato de não conseguir encontrar, em sua herança teórica, os Sociologia Sociologia III 24 instrumentos que lhe permitiriam recusar radicalmente a linguagem corrente e as noções comuns (pg. 23). A TENTAÇÃO DO PROFETISMO → “Na medida em que tem mais dificuldade do que qualquer outra ciência para se liberar da transparência e para realizar, (...). a ruptura com as pré-noções; na medida em que, muitas vezes, lhe é atribuída (...) a tarefa de responder às questões últimas sobre o futuro da civilização, a sociologia está, hoje, predisposta a manter com um público, que nunca se reduz completamente ao grupo dos pares, uma relação mal esclarecida que corre sempre o risco de voltar a encontrar a lógica da relação entre o autor de sucesso e seu público ou, até mesmo, por vezes, entre o profeta e sua audiência. Mais do que todos os outros especialistas, o sociólogo está exposto ao veredicto ambíguo e ambivalente dos não-especialistas que se sentem com a autoridade de dar crédito às análises propostas, com a condição de que estas despertem os pressupostos de sua sociologia espontânea, mas que são levados, por essa mesma razão, a contestar a validade de uma ciência que eles só aprovam na medida em que ela coincide com o bom senso” (pg. 36). Fonte: BOURDIEU, Pierre (et alli). El oficio de sociologo. 17ª ed. México: Siglo Veintiuno, 1994. TEMAS DE REFLEXÃO • O que é construtivismo? • Relação entre campo e habitus • Características do capital social • Ruptura epistemológica • Habitus jurídico e espaço de possíveis SUGESTÃO DE LEITURAS • CORCUFF, Philippe. As novas sociologias: construções da realidade social. Bauru, SP: Edusc, 2001. • BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Ed. Edusp; Porto Alegre, Ed. Zouk, 2007. 560 pg. Sociologia Sociologia III 25 • ______________. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. • ______________. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. 320 p. • ______________. Novas reflexões sobre a dominação masculina. IN: LOPES, Marta J.; ESTRMANN, Dagmar M.; WALDOW, Regina (orgs). Gênero e saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996, p 28-40. • BOURDIEU, Pierre (et alli). El oficio de sociologo. 17ª ed. México: Siglo Veintiuno, 1994. • ______________. Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. 234 p. • ______________. Pierre Bourdieu – Sociologia. São Paulo, Ed. Ática, 1983. • RIUTORT, Philippe. Compêndio de Sociologia. São Paulo: Ed. Paulus, 2008. Sociologia Sociologia III 26 2.2. Anthony Giddens Biografia: Anthony Giddens é um dos principais expoentes da sociologia contemporânea. Nascido em 1938, em Londres, Inglaterra, foi professor na Universidade de Cambridge e diretor da London School of Economics and PoliticalScience (LSE), entre os anos de 1997 e 2003. Apresenta como principal objeto de estudo a reflexão sobre a importância da sociologia contemporânea de ultrapassar determinados antagonismos clássicos do pensamento sociológico. Para a realização desta tarefa, recorre à teoria da estruturação. Ao contrário de Pierre Bourdieu, a obra de Giddens é, sobretudo, teórica. Neste sentido, seu interesse acadêmico está atrelado à idéia na necessidade de reformular a teoria social e re-estudar a forma como o desenvolvimento e a modernidade são compreendidos. Dentre os principais temas analisados por este autor, podem ser citados a história do pensamento social, a família, a estrutura de classes, as nações e os nacionalismos e a identidade pessoal e social. Além destes objetos de estudo, Giddens foi um dos primeiros pensadores das ciências sociais a analisar o fenômeno da globalização a partir de um ponto de vista sociológico. O que é estruturação? A estruturação pode ser “... definida como sendo o processo de relações sociais que se estruturam no tempo e no espaço, via (...) dualidade do estrutural” (Riutort, 2008: 396), ou seja, “... as propriedades estruturais de sistemas sociais são, ao mesmo tempo, meio e fim das práticas que elas recursivamente organizam” (Giddens, 20); ao mesmo tempo, ela restringe e possibilita as práticas dos agentes sociais. Sociologia Sociologia III 27 2.2.1. Elementos teóricos e metodológicos referentes à sociologia de Anthony Giddens Anthony Giddens apresenta como proposta de investigação sociológica a necessidade de uma profunda renovação das análises estruturalistas. Nesta perspectiva, a prática sociológica pode apenas levar em consideração a idéia de que o ajuste “... entre as ações sociais e as estruturas é realizado a priori” (Riutort, 2008: 339), fato que leva o pesquisador a perceber a existência da sociedade a partir de dois níveis, que se reforçam mutuamente na prática, por meio das ações sociais desenvolvidas através de rotinas, as quais fazem com que estas práticas sociais adquiram solidez. Estes níveis, aos quais o autor se refere, correspondem às estruturas sociais e às representações dos agentes. Ao definir o conceito de estruturação sob o ângulo do movimento, uma vez que a estrutura é entendida como uma dualidade do estrutural pelo fato de que o processo de relações sociais é estruturado no tempo e no espaço, a construção do mundo social é percebida como circular. Tal visão tem como fundamento o pressuposto de que as dimensões estruturantes da vida social estão situadas concomitantemente, quer dizer, elas correspondem tanto às condições que antecipam a ação quanto aos produtos resultantes desta ação. Logo, “... a vida cotidiana, assim está estruturada por meio de um conjunto de regras codificadas que vão da fragmentação da jornada em seqüências temporais predefinidas (o emprego do tempo), até a previsibilidade das ações sociais em função da natureza de seu interlocutor (sabemos intuitivamente como nos comportar no trato com o carteiro, com a esposa, o vizinho...), o que permite ao indivíduo buscar referências no espaço e no tempo. O fato das interações sociais estarem situadas espacial e temporalmente marca profundamente as ações” (Riutort, 2008: 340). Os agentes sociais, portanto, são dotados de competências, pois eles conhecem o mundo em que atuam e têm a capacidade de estabelecer ações racionais e intencionais, podendo, por conseqüência, explicar os atos realizados. Contudo, estas ações sociais cotidianas Sociologia Sociologia III 28 “... se vêem capturadas nas redes múltiplas e difíceis de dominar do inconsciente e das conseqüências não intencionais da ação. Além disso, (...) a atividade social mais corriqueira de todos os dias é menos determinada por motivações diretas do que pela rotina que é um meio de reduzir as fontes de angústia” (Lallement, 2004: 177). Ao definir que as regras sociais são ao mesmo tempo coercitivas e habilitantes, Giddens explica que a estrutura social ao mesmo tempo em que ela pode limitar a margem de ação dos atores, pode, também, autorizar outras práticas sociais. Para agir nestas situações específicas, os indivíduos recorrem as suas competências, as quais correspondem à existência de uma consciência prática, que tem a capacidade de agir e fundar uma ação com base em pontos de apoio, retirados tanto da realidade na qual estes indivíduos se encontram quanto de suas experiências passadas. Logo, as competências correspondem a tudo aquilo em que os indivíduos acreditam e conhecem sobre a sua própria ação e a ação dos outros; estas competências podem ser tácitas (rotineiras) ou discursivas (expressas de maneira verbal), sendo acionadas pelos agentes na produção e reprodução da ação. As competências correspondem às capacidades reflexivas dos agentes sociais, significando que estes têm a capacidade de compreender o que fazem, durante o ato da ação, isto é, enquanto o fazem. É por este motivo que Giddens (1987) define os indivíduos enquanto agentes sociais, imbuídos de agência. O agente, segundo o autor, é aquele sujeito que possui a capacidade de exercer algum tipo de poder, podendo, com isto, causar algum evento ou mudança. Desta forma, o sentido da agência corresponde à capacidade que as pessoas têm para realizar as coisas, podendo elas ter atuado de modo diferente, em qualquer fase de uma seqüência de comportamento. O indivíduo é percebido como perpetrador dos eventos sociais. A agência não se refere, portanto, às intenções que as pessoas possuem ao fazer as coisas. Para o autor, “Não é a experiência do ator individual nem a existência de qualquer forma de totalidade social, mas as práticas sociais ordenadas no espaço e no tempo. As atividades sociais humanas (...) são recursivas. Quer dizer, elas não são criadas pelos atores sociais, mas continuamente recriadas por eles através dos Sociologia Sociologia III 29 próprios meios pelos quais eles se expressam como atores. Em suas atividades, e através destas, os agentes reproduzem as condições que tornam possíveis essas atividades” (Giddens, 2). Crítico da sociologia funcionalista clássica, Giddens (1999) desconstrói o conceito de função apresentado por esta perspectiva metodológica. Para ele, a metáfora utilizada por autores como Durkheim, por exemplo, em comparar o sistema social a um organismo vivo (biológico), entendo a sociedade como uma extensão do corpo humano, negligencia a competência dos indivíduos e as suas atividades intencionais. Ao invés de situar o indivíduo passivamente perante os fenômenos sociais, este é definido pelo autor como um sujeito que apresenta capacidades de ação. Estas capacidades são adquiridas através da agência humana, quer dizer, não são os indivíduos quem criam os sistemas sociais (as sociedades humanas); ao contrário, “... eles os reproduzem ou transformam, refazendo o que já está feito na continuidade da práxis. (...) quanto maior for o distanciamento tempo-espaço de sistemas sociais – quanto mais suas instituições se fixam com firmeza no tempo e no espaço – tanto mais eles resistem à manipulação ou mudança por qualquer agente individual. (...) O distanciamento tempo-espaço fecha algumas possibilidade de experiência humana, ao mesmo tempo que abre outras” (140). Neste sentido, os agentes sociais são potencialmente capazes de produzir variações históricas em seus próprios comportamentos rotineiros, fazendo com que os sistemas sociais sejam expressos nas rotinas da vida social cotidiana, baseadas na consciência prática. A rotina, conforme o autor, faz parte da continuidade da personalidade do agente social. Isto ocorre na medida em que os caminhos das atividades cotidianas e das instituições, que compõem uma determinada sociedade, são continuamente reproduzidos. Motivação da ação:refere-se “... às necessidades que a instigam (...). Ela refere-se mais ao potencial para a ação do que propriamente ao modo como a Sociologia Sociologia III 30 ação é cronologicamente executada pelo agente” (5). Intencionalidade da ação – este conceito “... caracteriza um ato que seu perpetrador sabe, ou acredita, que terá uma determinada qualidade ou desfecho e no qual esse conhecimento é utilizado pelo autor para obter essa qualidade ou desfecho” (8). “A dualidade do estrutural: O estrutural, As estruturas Os sistemas sociais A estruturação Regras e recursos, ou conjunto de relações de transformação, organizados enquanto propriedades de sistemas sociais. Relações entre atores ou coletividades, reproduzidas e organizadas enquanto práticas socialmente regulares. Condições que regem a continuidade ou a transmutação das estruturas e, por via de conseqüência, a reprodução dos sistemas sociais. Em síntese, o estrutural, enquanto conjunto de regras e recursos organizados de modo recursivo, está fora do tempo e do espaço, à exceção da sua atualização e coordenação sob a forma de traços mnésicos. Além disso, o estrutural se caracteriza por uma ‘ausência do sujeito’. Enfim, está engajado de modo recursivo nos sistemas sociais que, contrariamente ao estrutural, se compõem de atividades espácio-temporalmente situadas dos agentes humanos que reproduzem estas últimas no tempo e no espaço. O estudo da estruturação dos sistemas sociais é o estudo dos modos pelos quais estes sistemas, que se baseiam nas atividades de atores competentes, situados no tempo e no espaço, lançando mão de regras e recursos em uma diversidade de contentos de ação, são produzidos e reproduzidos na interação desses atores, e por ela. No centro da idéia de estruturação encontramos a dualidade do estrutural que, no plano lógico, deriva das afirmações precedentes. A constituição de agentes e a constituição de estruturas Sociologia Sociologia III 31 não são dois fenômenos independentes, um dualismo: trata-se de uma dualidade. Segundo a dualidade do estrutural, as propriedades estruturais dos sistemas sociais são ao mesmo tempo o médium e o resultado das práticas que organizam de modo recursivo. O estrutural não é ‘exterior’ aos agentes: enquanto traços mnésicos e enquanto atualizado nas práticas sociais, é, no sentido durkheimiano, mais ‘interior’ que exterior a suas atividades. O estrutural não é apenas coerção; ele é ao mesmo tempo coercitivo e habilitante. Isso não impede que as propriedades estruturadas dos sistemas sociais se estendam, no tempo e no espaço, muito além do controle que pode exercer aí cada ator. O que procede não impede tampouco que possa haver sistemas sociais reificados em teorias produzidas por atores que, pelas suas atividades, contribuem para a constituição e a reconstituição destes mesmos sistemas. A reificação das relações sociais ou a ‘naturalização’, sob a forma de discurso, das circunstâncias e dos produtos historicamente contingentes da ação humana, constitui uma das principais dimensões da ideologia na vida social”. (Fonte: Giddens, Anthony. La constitution de la société. Paris: Ed. PUF, 1987, 74-75). O sistema social: “Mesmo permanecendo bastante crítico em relação ao funcionalismo, corrente à qual ele desaprova justamente o fato de desconhecer as capacidades cognitivas e estratégicas dos atores sociais, Giddens concebe, no entanto, o projeto de elaborar uma teoria capaz de dar conta da coerência do conjunto do sistema social. Giddens caracteriza, desta forma, o sistema social como sendo a formação, no espaço e no tempo, de modelos regularizados de relações sociais concebidas como práticas reproduzidas que ele religa à interação social: ‘A reciprocidade de práticas entre atores em circunstâncias de co-presença concebidas como encontros que se fazem e se desfazem’ (...). Essa perspectiva, que assim visa apreender cada interação concreta que se dá em um espaço-tempo específico e em relação com as características estruturais que a definem, tende a ultrapassar a segmentação entre micro e macrossociologia. Entretanto, é possível ver nesse procedimento, em parte, uma maneira de ressuscitar – ainda que renovando-a – a ‘suprema teoria’ que caracterizaria o estruturalismo funcionalista de Parsons e que constituiria em propor um esquema abstrato de realidade social de difícil operação no plano empírico”. (Fonte: Riutort, 2008: 341). Sociologia Sociologia III 32 2.2.2. O conceito de modernidade A partir da teoria da estruturação, Anthony Giddens (1987) investiga as conseqüências da modernidade, ou seja, procura compreender quais são os efeitos produzidos pelo distanciamento espacial e temporal entre os indivíduos, promovido pela evolução dos progressos tecnológicos. O conceito de modernidade é definido pelo autor como sendo um estilo de vida, um costume ou organização social que surgiu em um local específico (Europa), em uma época específica (século XVII-XVIII) e que, posteriormente, tornou-se mais ou menos mundial em sua influência. Desse modo, contrapondo alguns filósofos que definem a modernidade (pós-modernidade) como sendo uma fase inédita e bastante peculiar da história da humanidade, Giddens (1997) a associa à determinados traços históricos que surgiram com o capitalismo, entendido por ele como sistema social e econômico. Tal fenômeno social determinaria, a partir desse período histórico, em uma separação e distanciamento cada vez maior entre o espaço e o tempo, provocando, por conseqüência, o aparecimento de novas relações sociais. Tais relações se referem ao deslocamento que “... consiste, então, primeiramente em isolar essas relações de seu contexto de interação, depois em reestruturá-las em um campo espaço-temporal indefinido. Esse fenômeno envolve dois mecanismos: o desenvolvimento de avalistas simbólicos, isto é, de instrumentos de trocas que podem circular a todo o momento, tal como o dinheiro (...). e também o aparecimento de sistemas especializados, domínios técnicos ou de savoir-faire profissional que concernem vastos setores de nosso meio material e social, tais como objetos cotidianos que necessitam de um grau elevado de tecnologia, como um automóvel, um elevador ou um sistema elétrico” (Riutort, 2008: 343). Por conseqüência, os demais indivíduos, considerados pelo autor como profanos, isto é, pessoas que desconhecem as particularidades e especificidades de uma determinada técnica ou campo de saber, devem depositar confiança nesses sistemas complexos, devido a sua própria incapacidade de fabricá-los. Desse modo, as sociedades modernas apresentam como principal característica dependência em relação aos mecanismos abstratos, definidos por Giddens (1997) Sociologia Sociologia III 33 como instâncias que demandam uma reflexão constante por parte dos agentes sociais. Estes mecanismos requerem uma profunda transformação na organização social, ampliando significativamente o espaço e o tempo. As modificações dos recursos que se referem a estas instâncias da sociedade podem ser identificadas na leitura que o referido sociólogo faz em relação ao fenômeno da globalização, a qual apresenta quatro dimensões: o sistema do Estado-nação, a economia capitalista mundial, a ordem militar mundial e a divisão internacional do trabalho. Se outrora as relações sociais referiam-se a um determinado espaço e tempo, bastante (de)limitados, na contemporaneidade estas relações e interações ocorrem globalmente, isto é, em escala planetária, fator que afeta as subjetividades dos indivíduos. A confiança e a segurança, características da sociedade tradicional, não mais ocupam espaço central na modernidade; ao contrário, seus lugares são ocupados pela incerteza, que é cada vez mais crescente neste modelo de organização social.Tal sentimento de insegurança e incertezas constantes está associado aos sistemas sócio-técnicos, cada vez mais complexos e dificilmente controláveis. Ao referir-se à incerteza e ao medo, Giddens (1997) cita como exemplos os receios que as sociedades modernas têm de acidentes nucleares, do potencial de destruição produzido por armamentos cada vez mais sofisticados, etc. A modernidade, portanto, no seu atual contexto político, social, econômico e cultural, apresenta três aspectos, que radicalizam o seu dinamismo. O primeiro aspecto refere-se à separação tempo-espaço; para o autor a difusão do relógio e a padronização dos calendários tornaram o tempo uma construção social-artificial. Outro elemento que caracteriza o período analisado diz respeito aos mecanismos de desencaixe, quer dizer, observa-se um deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço. As organizações modernas são capazes de conectar o local e o global de modo impensável nas sociedades mais tradicionais, afetando, por conseqüência, o cotidiano social e a vida de milhares de pessoas (como exemplo destas transformações é possível citar as mudanças desencadeadas pelo uso da internet na vida dos indivíduos, a qual permite com Sociologia Sociologia III 34 que estes tenham acesso instantâneo à informação). Dentre os principais mecanismos de desencaixe, Giddens (1997) ressalta dois: as fichas simbólicas, que consistem em meios de troca impessoais (crédito) como, por exemplo, o dinheiro, que tem um valor padrão, e os sistemas peritos, definidos como sistemas especializados de conhecimento aos quais os leigos (ou profanos) não têm acesso e por isso confiam naqueles que detêm tal conhecimento. O terceiro aspecto refere-se à reflexividade; por reflexividade o autor entende que é necessário pensar e repensar as relações sociais, pois este processo permite a descoberta e o desenvolvimento de novos conhecimentos sobre essas relações, ou seja, a utilização cotidiana desses conhecimentos permite que os indivíduos ordenem e reordenem as suas relações sociais. Diante desse quadro, Giddens (1997) destaca que o ritmo de mudança acelerado, observado no último século principalmente, gera um dinamismo que é a essência da modernidade. A sociedade moderna torna-se mais reflexiva no contexto pós-tradicional, pois é o próprio indivíduo que reflete e reconstrói incessantemente o seu mundo. A perspectiva teórico-metodológica apresentada, ao contrário de abordagens mais clássicas, enfatiza o caráter ativo, isto é, reflexivo, da conduta humana. Ao rejeitar as tendências metodológicas, como as sociologias da interação social, pautadas na interiorização das normas sociais, por exemplo, que percebem o comportamento dos indivíduos como resultante de forças e situações que os atores sociais não controlem e nem compreendem, Giddens (1997) atribui um papel central para a linguagem e as capacidades de entendimento individuais na explicação da vida social. “As sociologias construtivistas que tentam ultrapassar a clássica oposição entre individualismo e holismo, hoje frequentemente são consideradas como sendo ‘novas sociologias’. Elas se esforçam, apesar de suas sensíveis diferenças, em considerar as duas pontas da análise social, estudando conjuntamente as representações e as estruturas sociais, sem privilegiar necessariamente umas em Sociologia Sociologia III 35 detrimento de outras. A amplitude da tarefa permite apreender ao mesmo tempo a predileção e os vivos debates que essas abordagens geralmente têm suscitado” (Riutort, 2008: 345). TEMAS DE REFLEXÃO • O que é modernidade para Anthony Giddens? • A dualidade do estrutural • Estruturação e sistemas sociais • Reflexividade • Fichas simbólicas e sistemas peritos • Mecanismos de desencaixe SUGESTÃO DE LEITURAS • CORCUFF, Philippe. As novas sociologias: construções da realidade social. Bauru, SP: Edusc, 2001. • GIDDENS, Anthony. Estruturalismo, Pós-estruturalismo e a Produção da Cultura. IN: GIDDENS, Anthony; TURNER, Jonathan (org.) Teoria social hoje. São Paulo, Ed. UNESP, 1999. • GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Ed. Da UNESP, 1997. • GIDDENS, Anthony. La constitution de la société. Paris: Ed. PUF, 1987. • LALLEMENT, Michel. História das idéias sociológicas: de Parsons aos contemporâneos. Petrópolis: Ed. Vozes, 2004, 2ª ed. 341 p. • RIUTORT, Philippe. Compêndio de Sociologia. São Paulo: Ed. Paulus, 2008. Sociologia Sociologia III 36 CAPÍTULO III DEPOIS DE MARX: A PERSPECTIVA DA SOCIOLOGIA CRÍTICA SEGUNDO JÜRGEN HABERMAS 3.1. JÜRGEN HABERMAS Biografia: Jürgen Habermas nasceu na cidade de Düsseldorf, Alemanha, em 1929. É reconhecido internacionalmente pelo seu trabalho como filósofo e sociólogo. Formado na Universidade de Bonn, em 1954, foi assistente de Theodor Adorno no Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt entre os anos de 1956 e 1959. É considerado como um dos principais herdeiros da Escola de Frankfurt, conhecida pelas discussões referentes à sociologia crítica. Contudo, diferencia-se de seus antecessores como Adorno, Marcuse, Horkheimer, por exemplo; ao contrário destes, que percebiam o projeto da modernidade como inexeqüível, Habermas parte do pressuposto de que a razão possui um potencial emancipatório, possível através do exercício da ação comunicacional. 3.1.1. A colonização do mundo vivido Os estudos de Habermas, considerado por muitos pensadores como membro da última geração da Escola de Frankfurt, representam uma reflexão e uma tentativa de reconstrução e/ou renovação da sociologia crítica contemporânea. Reconhecendo a influência da teoria marxista sobre sua perspectiva teórica-metodológica, o autor explica que a teoria crítica precisa realizar uma ruptura com Marx em três dimensões: a primeira delas consiste em deixar de lado a tentação evolucionista identificada nos trabalhos de Marx, isto é, de que as sociedades passariam por estágios de desenvolvimento bastante específicos, o qual teria início com o capitalismo e culminaria, impreterivelmente, em um modelo de organização social comunista. A segunda dimensão refere-se ao viés economicista observado na obra de Marx; se este consagra uma preeminência das forças produtivas e do trabalho em relação às outras esferas da sociedade, Habermas (2004) destaca o papel fundamental que o debate público possui no Sociologia Sociologia III 37 contexto social, visto que é através deste que se consolidam as regras e instituições sociais. Por fim, considera uma perspectiva reducionista a tendência de olhar o sistema social através da clivagem da dominação. Deste modo, ao contrário da perspectiva marxista, que percebia a possibilidade de mudança social através da revolução, Habermas (2004) sugere, ao longo de seus estudos, caminhos mais emancipatórios, quer dizer, destaca “... as virtudes libertadoras de um estado ideal de sociedade de comunicação pura e perfeita, situação de interação através do diálogo, onde não haveria dominação. Este ideal constitui, a seu ver, uma alternativa às outras formas de atividade (instrumental, estratégica) que, comandadas pela única esperança de sucesso, contribuíram para a perda do poder regulador próprio da tradição, dos costumes, dos valores” (Lallement, 2004: 217). Esta colonização do mundo da vida, isto é, a sobreposição da burocratização e da monetarização das esferas do cotidiano social em detrimento da argumentação e participação pública, interfere no processo de interações sociais. Logo, o mundo da vida refere-se ao mundo sociocultural, o qual se torna inteligível e descritível quando os atores sociais têm a capacidade deadquirir familiaridade com o mesmo, incorporando-o nas suas práticas de uso cotidianas. A colonização significa, portanto, a dominação crescente do sistema (econômico e administrativo) sobre o mundo da vida dos indivíduos, abrangendo as esferas públicas e privadas. Se o debate público, ou a opinião pública, são considerados como instâncias fundamentais para a consolidação da democracia moderna, Habermas (2004) observa que, na segunda metade do século XX, o que é visível é uma privatização e mercantilização do espaço público. A argumentação pública, central para o estabelecimento de um consenso, isto é, de regras sociais, cede lugar aos interesses administrativos e econômicos. O mesmo pode ser observado em relação às instâncias privadas, as quais são invadidas gradativamente e cada vez mais regulamentadas pelo Estado e/ou pelo dinheiro; as atividades artísticas, científicas, educacionais, etc., passam a ser mediadas por instrumentos e normas que desconstroem as formas tradicionais dos laços sociais. Sociologia Sociologia III 38 Em que consiste a ética do discurso? Para Habermas (2003) “... as fundamentações morais dependem da efetiva realização de argumentações, não por razões pragmáticas relativas ao equilíbrio de poder, mas, sim, por razões internas relativas à possibilitação de discernimentos morais. A tentativa de fundamentar a ética sob a forma de uma lógica da argumentação moral só tem perspectiva de sucesso se também pudermos identificar uma pretensão de validez especial, associada a mandamentos e normas, e isso já no plano em que surgem os primeiros dilemas morais: no horizonte do mundo da vida (...). Se não for verdade que já aqui, nos contextos do agir comunicativo, logo antes de toda reflexão, surgem pretensões de validade no plural, não deveremos esperar uma diferenciação entre verdade e correção normativa no plano da argumentação. Não quero repetir a análise do agir orientado para o entendimento mútuo (...), mas gostaria de lembrar uma idéia fundamental. Chamo comunicativas às interações nas quais as pessoas envolvidas se põem de acordo para coordenar seus planos de ação, o acordo alcançado em cada caso medindo-se pelo reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validez. No caso de processos de entendimento mútuo lingüísticos, os atores erguem com seus atos de fala, ao se entenderem uns com os outros sobre algo, pretensões de validez, mais precisamente, pretensões de verdade, pretensões de correção e pretensões de sinceridade, conforme se refiram a algo no mundo objetivo (enquanto totalidade dos estados de coisas existentes), a algo no mundo social comum (enquanto totalidade das relações interpessoais legitimamente reguladas de um grupo social) ou a algo no mundo subjetivo próprio (enquanto totalidade das vivências a quem têm acesso privilegiado). Enquanto que no agir estratégico um atua sobre o outro para ensejar a continuação desejada de uma interação, no agir comunicativo um é motivado racionalmente pelo outro para uma ação de adesão – e isso em virtude do efeito ilocucionário de comprometimento que a oferta de um ato de fala suscita”. Fonte: HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. RJ, Tempo Brasileiro, 2003, pg. 78-79). 3.1.2. O que é ação comunicacional? O desenvolvimento da sociedade moderna implica, na perspectiva de Habermas, em um crescente domínio da racionalidade instrumental (burocrática) sobre as práticas e interações sociais. Observando os clássicos da sociologia observa-se um ponto em comum entre esses autores, embora cada um deles apresente suas especificidades Sociologia Sociologia III 39 teóricas e metodológicas. Tanto Marx, quanto Durkheim e Weber partem do pressuposto de que as instituições estruturantes da sociedade moderna e capitalista são o Estado racional burocratizado e o mercado competitivo. A esfera pública ou da sociedade civil, “negligenciados” como problemáticas sociológicas pelos cientistas sociais clássicos, são tardiamente incorporadas pelos estudos sociológicos. É neste sentido que Habermas se destaca enquanto pensador social. Para ele a esfera pública não pode ser confundida como a oposição clássica entre sociedade civil (espaço das possibilidades) e Estado; ao contrário, a esfera pública representa nesta perspectiva metodológica um terceiro momento das sociedades modernas, não podendo ser confundida nem com o Estado e nem com o mercado. Ela pode ser definida como “... uma esfera composta de sujeitos privados com opinião própria, o que assegura a possibilidade da contraposição coletiva a decisões discricionárias do poder público” (Souza, 2000: 60). É neste espaço que os atores sociais privados reunidos em um público têm a possibilidade de formar aquilo que o autor denomina como opinião pública crítica, capaz de discutir coletivamente a legitimidade discursiva do Estado. Assim, tudo aquilo que é definido como público, quer dizer, como instâncias de interesse geral, precisa ser provado argumentativamente como sendo um bem para todos. A comunicação assume, então, um papel fundamental. É devido à linguagem que as formas de sociabilidade são possíveis, pois é através dela que ocorre a reprodução cultural, a integração social e a socialização. O agir comunicacional representa todas aquelas interações em que os membros de uma determinada sociedade discutem coletivamente e publicamente questões relativas a seus planos de ação. Estas decisões, tomadas em conjunto, constituem aquilo que o autor define como princípio da universalização; para que isto ocorra é preciso a obtenção de um consenso, não no sentido de que todos os indivíduos pensem exatamente da mesma forma, mas com base na idéia de que todas as pessoas tiveram a possibilidade de participar de um debate público e, a partir dele, construir um conjunto de regras legitimadas socialmente. É com base nesta racionalidade comunicativa que Habermas (2003) aponta para a possibilidade de tornar efetiva nas sociedades modernas a Sociologia Sociologia III 40 competência potencial. Desse modo, a reflexão, a argumentação e a ação comunicativa são centrais para pensar o desenvolvimento das práticas e interações sociais. A deliberação não está baseada em princípios universalmente estabelecidos, mas em casos analisados, tendo por objetivo traçar uma política da ação (Habermas, 2004a). Diante de uma sociedade fragmentada, na qual não é possível constituir uma vida ética absoluta, Habermas (2004a) questiona se há alguma possibilidade de autonomia e moral nesse tipo de sociedade. É a partir desse quadro que ele procura entender o atual desenvolvimento da ciência e as suas conseqüências no cotidiano da sociedade. Partindo de uma discussão filosófica sobre a distinção entre a teoria kantiana da justiça e a ética de ser si mesmo, Habermas (2004a) procura entender as mudanças desencadeadas no século passado, especialmente. Se até o século XIX, o modelo de análise metafísico oferecia modelos de vida como, por exemplo, a ética e a política, as quais possuíam uma única base, a partir do século passado, a transformação social acelerada reconfigurou essas doutrinas; a partir dessa mudança, a Filosofia não conseguiu mais oferecer respostas absolutas às perguntas sobre as formas de se conduzir individual ou coletivamente. Nesse sentido, perguntas do tipo “o que devo fazer”, estão imbuídas de questões morais-práticas que, “... são afastadas da discussão racional na medida em que não podem ser respondidas do ponto de vista da racionalidade meio- fim. Essa patologia da consciência moderna requer uma explicação no quadro de uma teoria da sociedade; a ética filosófica, que é incapaz de fornecê-la, tem que proceder terapeuticamente e mobilizar, contra o deslocamento dissimulador dos fenômenos morais fundamentais, as forças de auto-saneamento da reflexão” (HABERMAS: 2003:
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