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Paulo Gabriel da Silva Mota. Medicina UFR. Convulsões, epilepsia e anticonvulsivantes INTRODUÇÃO • O cérebro humano apresenta uma enorme complexidade elétrica → mais de 10 bilhões de neurônios e 1014 conexões sinápticas. • Esses sinais elétricos requerem um nível muito maior de regulação do que o tecido cardíaco, por exemplo. • O controle dessa complexa função elétrica começa a nível dos canais iônicos, que influenciam a atividade das redes neuronais. • Uma anormalidade nos canais iônicos ou nas redes neuronais pode resultar em propagação sincrônica e descontrolada da atividade elétrica → Essa é a base da convulsão. • Os distúrbios convulsivos formam um grupo heterogêneo com diferentes manifestações clínicas e causas variadas. Eles são manifestações da atividade elétrica anormal no cérebro. • A epilepsia é a afecção em que um indivíduo tende a sofrer convulsões recorrentes. • De acordo com a localização da atividade convulsiva no SNC, o indivíduo pode apresentar uma variedade de sintomas: Sintomas motores e perda de consciência nas convulsões tônico-clônicas, alterações paroxísticas não motoras (sensação, olfato, visão) ou de funções de ordem superior (emoção, memória, linguagem, discernimento). FISIOLOGIA • O cérebro humano normal, mesmo sem lesões nem anormalidades genéticas, pode sofrer convulsões. • Os complexos circuitos neurais no cérebro encontram-se em equilíbrio entre fatores excitatórios e inibitórios e alterações desse equilíbrio podem causar disfunção importante. • Por exemplo, aumento na disponibilidade ne neurotransmissores excitatórios (ex.: ingestão da toxina demoato, análoga do glutamato) ou redução da disponibilidade de neurotransmissores inibitórios (ex.: injeção de penicilina, um antagonista de GABAA) podem resultar em convulsões. • No SNC, existem dois sistemas envolvidos na sinalização neuronal que funcionam para impedir as descargas repetitivas e sincrônicas da convulsão: em nível celular e nas redes neurais. • No nível celular, o período refratário induzido pela inativação dos canais da Na+ e pela despolarização mediada pelos canais de K+ impede a descarga repetitiva anormal nos neurônios. Propagação dos potenciais de ação • Ocorre através de canais iônicos regulados por voltagem. • Depois de iniciar no cone de implantação, o potencial de ação se propaga por correntes alternadas de influxo de Na+ despolarizante e efluxo de K+ hiperpolarizante. • Durante o potencial de ação os canais de Na+ passam por três estados distintos: (1) Estado fechado, antes da ativação. (2) Estado aberto, durante a despolarização. (3) Estado inativado, pouco antes do pico de despolarização. • Durante a depolarização, os canais de Na+ tornam-se inativos, e permanecem assim até a completa repolarização da membrana. Por isso, os potenciais de ação são intrinsecamente autolimitados. • A abertura dos canais de K+ repolariza a membrana, mas o fluxo de K+ é tão intenso que hiperpolariza temporiamente a membrana para além do potencial de repouso. Isso atrasa ainda mais a geração de novo potencial de ação. • Ou seja, nas condições fisiológicas, os canais de Na+ e de K+ limitam a frequência de descarga, evitando a descarga repetitiva característica de muitos tipos de convulsões. • Além do nível celular, existem as redes neurais também contribuem para evitar atividade convulsiva. Essas redes restringem os efeitos de um potencial de ação a uma área definida (apesar de 1 neurônio no neocórtex estabelecer mais de 1000 sinapses). • O neurônio que dispara ativa imediatamente neurônios vizinhos, mas também interneurônios inibitórios (GABA) que inibem outros neurônios circundantes. • Isso é denominado inibição circundante, que é essencial para isolar e amplificar sinais locais, impedindo a sincronicidade inadequada em áreas diferentes. Muitas patologias surgem de um desequilíbrio nesse sistema. Paulo Gabriel da Silva Mota. Medicina UFR. FISIOPATOLOGIA • Os mecanismos fisiopatológicos das convulsões ainda estão sendo elucidados → Por isso, as convulsões ainda são classificadas quanto às manifestações clínicas. • As convulsões focais (convulsões parciais) são diferentes das que envolvem ambos os hemisférios (convulsões generalizadas), mas todas as convulsões envolvem descarga sincrônica anormal. • Para que ocorram convulsões, os mecanismos protetores em nível celular e em nível das redes deve estar comprometido. • As causas dessas alterações podem ser primárias (anormalidades genéticas, como defeitos dos canais) ou secundárias (induzidas por toxinas ou por lesões de AVE e neoplasias) ou por combinações das duas (convulsões febris em crianças). Fisiopatologia das convulsões parciais • A convulsão parcial ocorre em três etapas específicas: (1) Aumento da atividade elétrica neuronal (2) Sincronização dos neurônios circundantes (3) Propagação para áreas adjacentes do cérebro • São iniciadas por uma súbita despolarização dentro de um grupo de neurônios → é o desvio despolarizante paroxístico (DPP), que dura até 200 ms e gera uma salva de potenciais de ação. • Uma lesão expansiva pode causar aumento do K+ extracelular e atenuaria a pós-hiperpolarização. • Aumento dos neurotransmissores excitatórios ou a modulação dos receptores excitatórios por moléculas exógenas poderia também levar a rajadas de despolarização. • Condução anormal dos canais ou alterações da membrana também poderiam ser as causas dessas rajadas. • Devido à inibição circundante, as descargas locais geralmente são contidas em um foco, que não causam sintomas, mas podem ser visualizadas no eletroencefalograma (EEG) como pontas interictais agudas → permitem localizar o foco convulsivo. • Porém, existem várias vias que permitem ao foco epiléptico “passar por cima” dessa inibição circundante. (1) As descargas repetitivas aumentam o K+ extracelular, atenuando a hiperpolarização. (2) Neurônios de descarga rápida abrem canais NDMA e acumulam canais de Ca2+ em suas terminações sinápticas, aumentando a chance propagação do sinal e sincronização local. (3) Comprometimento na transmissão gabaérgica. A diminuição da inibição mediada pelo GABA (devido a fatores exógenos, degeneração dos neurônios gabaérgicos ou alterações dos receptores GABA) é o principal fator para sincronização de um foco convulsivo. • Se o foco sincronizante for grande o suficiente, a descarga anormal de uma pequena rede neural irá se propagar para outras áreas do córtex. Nesse momento, o pacienta pode manifestar uma aura → um “alerta” consciente da propagação da convulsão. • Existe uma ampla variedade de áureas: olhar fixo perplexo, medo e confusão, distúrbios da memória (como déjà vu) ou linguagem ou sensações alteradas. • Outras manifestações clínicas podem surgir enquanto a convulsão vai se propagando, dependendo a região acometida. • A propagação da atividade convulsiva através do homúnculo motor gera a marcha jacksoniana → contrações rítmicas começam nas mãos, progridem para o braço e depois para a perna. Fisiopatologia da convulsões generalizadas secundárias • As convulsões parciais podem se tornar generalizadas ao se propagar por conexões difusas e afetar ambos os hemisférios cerebrais. Esse processo é a convulsão generalizada secundária. • A propagação da atividade convulsiva se dá através de diversas vias: o Fibras em U → conectam várias regiões do córtex o Corpo caloso → conectam os hemisférios o Projeções tálamo-corticais → propagação através do cérebro • Quando a atividade convulsiva se propaga e afeta ambos os hemisférios, a pessoa geralmente perde a consciência. • As convulsões tônico-clônicas são as convulsões generalizadas secundárias mais comuns. Os sintomas clínicos se relacionam à atividade anormal dos canais. Paulo Gabriel da SilvaMota. Medicina UFR. • A primeira fase, denominada fase tônica, está associada com a perda súbita do influxo de GABA → Isso leva a uma série e descargas de vários segundos de duração. Manifesta-se como a contração dos músculos agonistas e antagonistas (daí o nome tônica). • Na segunda fase, a fase clônica, a inibição pelo GABA começa a voltar, enquanto a excitação mediada por AMPA e NMDA começa a oscilar, produzindo movimentos clônicos (contração involuntária do corpo), se o córtex motor tiver sido atingido. • Por fim, na fase pós-ictal, a inibição mediada pelo GABA prevalece e o paciente torna-se flácido e permanece inconsciente até restaurar a função cerebral. Fisiopatologia das convulsões generalizadas primárias • As convulsões generalizadas primárias diferem das convulsões parciais na fisiopatologia e na etiologia. • Ao contrário das convulsões parciais, a convulsão generalizada primária surge de regiões centrais do cérebro e se propaga rapidamente para ambos os hemisférios. • Elas também nem sempre começam com uma aura (o que permite diferenciá-las das convulsões parciais com generalização secundária). • As crises de ausência (convulsões do tipo pequeno mal) são o tipo mais bem caracterizado. • Elas se caracterizam por interrupções súbitas da consciência, geralmente com olhar fixo e perplexo e sintomas motores ocasionais (piscar rápido, estalar os lábios). • Propõe-se que elas resultem da sincronização anormal das células tálamo-corticais e corticais. • Ao EEG, apresenta um padrão similar ao sono de ondas lentas (estágio 3). • Os neurônios retransmissores que conectam o tálamo ao córtex cerebral se apresentam em dois estados, de acordo com o nível de vigília. (1) Durante o estado de vigília, esses neurônios funcionam no modo de transmissão, em que os sinais sensoriais que chegam são fielmente transmitidos ao córtex. (2) Porém, durante o sono de ondas lentas, a atividade em rajadas de um canal de cálcio tipo T altera os sinais de entrada e os sinais de saída para o córtex passam a apresentar frequência oscilatória → padrão de “ponta e onda” no EEG. Nesse estágio, a informação sensorial não é transmitida ao córtex. • As crises de ausência estão associadas à ativação desse canal de cálcio do tipo T durante o estado de vigília. Esse canal requer a membrana hiperpolarizada → aumento do K+ intracelular, aumento do influxo gabaérgico do núcleo reticular ou perda do influxo excitatório. • Esse canal é um alvo primário no tratamento farmacológico das crises de ausência. CLASSES E AGENTES FARMACOLÓGICOS • A abordagem para o tratamento da epilepsia depende, em parte, do tipo de convulsão apresentada. • Os pacientes com convulsões parciais, com ou sem generalização secundária, normalmente recebem tratamento com antiepilépticos (AAE). Também se verifica se essas convulsões são caudas por uma lesão focal identificável e passível de ablação ou remoção cirúrgica. • Os AAE são a base do tratamento de pacientes com convulsões generalizadas. • A eficácia dos AAE deve-se à manipulação da atividade dos canais iônicos. Os AAE são classificados em quatro categorias principais: (1) Fármacos que aumentam a inibição pelos canais de Na+ (2) Fármacos que inibem os canais de Ca2+ (3) Fármacos que aumentam a inibição pelo GABA (4) Fármacos que inibem os receptores de glutamato • Essa classificação baseia-se no alvo primário do fármaco, pois eles atuam de modo pleiotrópico (atuam por diferentes mecanismos). Por isso, muitos deles são intercambiáveis. Paulo Gabriel da Silva Mota. Medicina UFR. I - Fármacos que aumentam a inibição mediada pelos canais de Na+ • A depolarização da membrana neuronal inativa os canais de sódio → ponto de controle para prevenir descargas repetitivas. • Os AAE fenitoína, carbamazepina, lamotrigina e ácido valpróico aumentam a inibição em nível celular ao agir diretamente sobre os canais de Na+. • Os AAE que atuam sobre os canais de Na+ têm alta especificade para tratamento de convulsões parciais e generalizadas secundárias. Fenitoína • Diminui a velocidade de recuperação do canal de Na+ de seu estado inativado para o estado fechado → aumenta o limiar dos potenciais de ação e impede a descarga repetitiva. • Com isso, impede o desvio despolarizante paroxístico (DPP) que inicia a convulsão parcial. • Além disso, impede a rápida propagação da atividade convulsiva para outros neurônios (eficácia nas convulsões generalizadas secundárias). • Atua sobre os canais de Na+ de maneira dependente do uso → só os canais envolvidos no DPP tem chance de serem inibidos. Isso diminui efeitos sobre a atividade neuronal normal e evita efeitos adversos (como nos potencializadores de GABAA). • Fármaco de escolha no tratamento das convulsões parciais e convulsões tônico-clônicas. Não é usado em crises de ausência. Carbamazepina • Mecanismo semelhante ao da fenitoína. • É comumente o fármaco de escolha para as convulsões parciais (simples e secundariamente generalizadas). Lamotrigina • Mecanismo semelhante aos anteriores. • Alternativa para a fenitoína e carbamazepina em convulsões tônicas e tônico-clônicas. • Também é a terceira escolha no tratamento de crises de ausência (depois da etossuximida e do ácido valpróico). II - Fármacos que inibem os canais de cálcio • Pertencem a duas classes principais: a) Inibidores dos canais de cálcio do tipo T b) Inibidores dos canais de cálcio regulados por voltagem • O canal de cálcio tipo T é despolarizado e inativo durante o estado de vigília. Porém, hiperpolarização paroxística ativa o canal durante o estado de vigília → inicia as descargas de “ponta e onda”. ➔ Por isso, os inibidores dos canais de cálcio tipo T são especificamente usados no tratamento das crises de ausência. • Os canais de cálcio regulados por voltagem são importantes no controle da entrada de cálcio na vesícula pré-sináptica → regulam a liberação de neurotransmissores. ➔ Os inibidores desses canais são pleiotrópicos, sendo usados em convulsões parciais ou em convulsões generalizadas (exceto crises de ausência). Etossuximida • Bloqueador específico de canais de Ca2+ do tipo T. • Não tem efeito sobre a inibição mediada pelo GABA. • Usualmente, é o tratamento de primeira escolha para as crises de ausência não complicadas. • Não é efetiva para convulsões parciais ou generalizadas secundárias. Ácido valpróico • Atua de modo pleiotrópico. • Diminui a velocidade de recuperação dos canais de Na+ do estado inativado (tal como a fenitoína e a carbamazepina). • Também reduz a atividade de canais de cálcio do tipo T. • Também atua sobre o metabolismo da GABA: a) Aumenta a atividade da ácido glutâmico descarboxilase (GAD) → síntese de GABA. b) Inibe as enzimas que degradam o GABA. • É um dos AAE mais efetivos nas epilepsias generalizadas com tipos mistos de convulsões. • Fármaco de escolha em convulsões generalizadas idiopáticas. • Usado em crises de ausência que não respondam à etossuximida. • Alternativa à fenitoína e carbamazepina no tratamento das convulsões parciais. Gabapentina • Análogo estrutural do GABA → aumenta a inibição mediada pelo GABA. • Aumenta o conteúdo de GABA nos neurônios e nas células gliais. • Mas, principalmente, inibe os canais de cálcio regulados por voltagem pré-sinápticos → reduz a liberação de neurotransmissores excitatórios. • Vantagem: pouca interação com outros fármacos. • Desvantagem: não é tão efetivo para a maioria dos pacientes. III - Fármacos que aumentam a inibição mediada pelo GABA • Exercem efeitos mais variados. Paulo Gabriel da Silva Mota. Medicina UFR. • Não tendem a ser intercambiáveis → Devido à diversidade de receptores GABAA no cérebro (pelo menos 10 subtipos). • Todos aumentam o influxo de Cl-, mas os benzodiazepínicosatuam em somente em alguns canais de GABAA, enquanto os barbitúricos atuam sobre todos os canais de GABAA. Benzodiazepínicos (Diazepam, Lorazepam, Midazolam, Clonazepam) • Aumentam a afinidade do GABA pelo receptor GABAA e intensificam a frequência de abertura dos canais iônicos na presença de GABA → aumenta o influxo de Cl- através do canal. • Duplo efeito: a) Suprimem o foco da convulsão (elevam o limiar do potencial de ação) b) Fortalecem a inibição circundante • Diazepam, lorazepam e midazolam são usados para convulsões parciais e tônico-clônicas. o Por seus efeitos adversos (tontura, ataxia, sonolência) são usados apenas de forma aguda. • O clonazepam atuam especificamente nos receptores GABAA no núcleo reticular (tronco encefálico), inativando o núcleo, mas impedindo a hiperpolarização do tálamo. → Isso inativa os canais de cálcio do tipo T (relacionados com as crises de ausência). o O uso é limitado pelos efeitos adversos, sendo apenas a quarta escolha nas crises de ausência. Barbitúricos (Fenobarbital) • Liga-se a um sítio alostérico no GABAA e: a) Potencializa as ações do GABA endógeno. b) Aumenta a duração da abertura dos canais de Cl- →influxo muito maior de íons Cl-. • Também são agonistas fracos dos receptores GABAA. • Podem exacerbar as crises de ausência → como atuam em todos os receptores GABAA, despolarizam também os neurônios retransmissores do tálamo, o que ativa dos canais de cálcio do tipo T. • São eficazes como alternativas nas convulsões parciais e tônico-clônicas, mas seus efeitos sedativos diminuíram seu uso clínico. IV - Fármacos que inibem os receptores de glutamato • Os receptores ionotrópicos do glutamato medeiam as ações do principal neurotransmissor excitatório do SNC. • A inibição dos subtipos NMDA e AMPA de receptores de glutamato pode inibir a geração da atividade convulsiva. • Nenhum desses antagonistas é usado de modo rotineiro → efeitos adversos inaceitáveis sobre o comportamento. Felbamato • Inibe os receptores NMDA, sendo mais seletivo para a subunidade NR2B → não tão expresso no cérebro. • Por conta desse antagonismo menos pronunciado, exibe menos efeitos adversos sobre o comportamento e não apresenta efeitos sedativos. • Uso associado ao desenvolvimento de anemia plásica fatal e insuficiência hepática. • Uso restrito a epilepsias extremamente refratárias.
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