Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 Rauana Vitória – MEDICINA 7º P O afogamento é definido como a submersão em um meio líquido, resultando em dificuldade respiratória ou asfixia. É um tipo de trauma em que ocorre aspiração de líquido não corporal, por meio de submersão ou imersão. O indivíduo, sobrevivendo ou não, será considerado como vítima de um episódio de afogamento. A maioria dos afogados é de pessoas jovens, saudáveis, com expectativa de vida de muitos anos, o que torna imperativo um atendimento imediato, adequado e eficaz, que deve ser prestado pelo socorrista imediatamente após ou mesmo, quando possível, durante o incidente, ainda dentro da água. O atendimento pré-hospitalar a casos de afogamento é diferenciado de muitos outros, pois necessita que se inicie pelo socorro dentro da água. Esse atendimento exige do socorrista conhecimento do meio aquático para que não se torne mais uma vítima. A incidência de afogamento é trimodal. O maior pico é em crianças com menos de 5 anos, o segundo pico é naquelas com idade entre 15 e 24 anos e o terceiro pico está em idosos. Crianças pequenas afogam-se principalmente depois de cair em piscinas ou em água aberta, mas também se afogam em banheiras e baldes em casa. Os médicos também precisam avaliar afogamento intencional (abuso infantil) ou transtorno factício de procura de atenção médica (anteriormente denominado síndrome de Münchhausen). Os idosos têm um risco aumentado de afogamento em banheiras, muitas vezes relacionado com comorbidades, condições médicas ou medicamentos. Mesmo em áreas costeiras, a maioria dos afogamentos ocorre em águas quentes e em água doce (especialmente piscinas). Embora as praias sejam um grande atrativo para turistas e o local onde ocorre o maior número de salvamentos, não é na orla e sim em águas doces onde ocorre o maior número de afogamentos com morte. Como vimos, a maioria dos casos de afogamento acontece pela incapacidade da vítima de manter a sua via aérea acima da superfície da água, mas outras condições que a levam a afogar-se devem ser ativamente pesquisadas: • Incapacidade de nadar. • Comportamento de risco. • Hiperventilação: a necessidade urgente de respirar é devida principalmente ao aumento da PaCO2. A hiperventilação diminui a PaCO2, mas não aumenta a PaO2. Portanto, a hiperventilação pré- mergulho leva à diminuição da necessidade de respirar, mas, com o consumo de oxigênio, a hipóxia cerebral pode levar à perda de consciência e afogamento. • Falta de supervisão adulta. • Hipotermia. • Intoxicação alcoólica (observada em até 70% dos casos). • Infarto agudo do miocárdio. • Arritmia. • Hemorragia subaracnoidea. • Acidente vascular cerebral (AVC). 2 Rauana Vitória – MEDICINA 7º P • Epilepsia (15 a 20 vezes o risco de afogamento). • Trauma (principalmente se associado a história de mergulho em águas rasas). • Suicídio (adolescentes e adultos) e homicídio (crianças). Quando uma pessoa que está se afogando, ela não consegue manter as vias aéreas livres de líquido, de modo que a água que entra na boca é voluntariamente cuspida ou engolida. A resposta imediata é tentar segurar a respiração, mas após um minuto a água é aspirada para as vias aéreas e a tosse ocorre como uma resposta reflexa. Em raras situações, pode ocorrer laringoespasmo, mas o principal dano ocorre por asfixia, com hipóxia do sistema nervoso central (SNC). A grande maioria dos pacien- tes que chegam ao hospital com sinais cardiovasculares estáveis e função neuro- lógica alerta, desperta e sobrevive com incapacidade mínima. Aqueles que chegam com função cardiovascular e coma apresentam desfechos ruins devido à provável lesão hipóxico-isquêmica. Esse último grupo representa de 15 a 20% dos pacientes. A aspiração de substâncias como material estranho contaminado, bactérias, vômitos ou irritantes químicos pode afetar a eventual recuperação pulmonar. A água nos alvéolos provoca a inativação do surfactante. O volume aspirado de vítimas não fatais é, em geral, de 3 a 4 mL/kg. A aspiração de água salgada e a de água doce causam graus similares de lesão. Em ambos os tipos de afogamento, o efeito osmótico na membrana alvéolo-capilar rompe parcialmente a sua integridade, aumenta a sua permeabilidade e, por consequência, a sua função. As alterações na membrana alveolar-capilar cursam com edema pulmonar, que diminui principalmente a troca de oxigênio. É necessária a aspiração de mais de 22 mL/kg para que haja alterações de eletrólitos. As anormalidades eletrolíticas raramente são significativas e, geralmente, são transitórias, exceto se houver hipóxia significativa, depressão do SNC, lesão renal por hemoglobinúria ou mioglobinúria. Os valores hematimétricos são usualmente normais, a menos que haja hemólise maciça, que é mais comum nos afogamentos em água doce. A coagulação intravascular disseminada pode ser um fator de complicação no resultado de afogamento, mas geralmente ocorre após lesão hipóxica grave. A parada cardíaca no afogamento ocorre em quase 100% dos casos em assistolia, sendo precedida pela parada respiratória em segundos a alguns minutos. Casos de parada em fibrilação ventricular podem ocorrer após o início da ressuscitação e o uso de adrenalina nesses períodos. Comumente, a maioria dos afogados apresenta sinais de resposta inflamatória sistêmica, com manifestações variáveis de acordo com a intensidade do evento. A classificação do afogamento pode ser feita a partir do tipo de água, da causa do afogamento e, mais importante, quanto à gravidade do afogamento. Classificação quanto ao tipo de água • Afogamento em água doce: Piscinas, rios, lagos. • Afogamento em água salgada: Mar. • Afogamento em água salobra: Encontro de água doce com o mar. • Afogamento em outros líquidos não corporais: Tanque de óleo, lama ou outros líquidos. Classificação quanto à causa do afogamento • Afogamento Primário: não há indícios de uma patologia associada ao afogamento. Houve uma subestimação do risco ou uma super estima da competência aquática do indivíduo que o levou ao afogamento. • Afogamento Secundário: há alguma causa que impediu a vítima de se manter na superfície da água e precipitou o afogamento. Pode estar associado ao uso 3 Rauana Vitória – MEDICINA 7º P de drogas (princ. o álcool), convulsão, traumatismos, doenças cardíacas, patologias pulmonares, acidentes de mergulho, etc. Classificação quanto à gravidade do afogamento É o sistema de classificação mais importante, pois permite ao socorrista estabelecer a gravidade de cada caso, indicando a conduta a ser seguida. Se a ausculta pulmonar é normal e o paciente não apresenta tosse, não é sequer classificado (Resgate). O paciente alerta, consciente e responsivo, pode ser graus 1 a 4. Paciente em PCR é grau 6, desde que o tempo de submersão seja menor que 1 hora ou que não tenha sinais evidentes de óbito. Se o paciente tem tempo de submersão maior que 1 hora ou sinais evidentes de óbito, é considerado óbito. Os episódios de afogamento são usualmente testemunhados, com exceção daqueles que acontecem com crianças; assim, o relato de testemunha pode ajudar a determinar se o paciente apresentou algum sintoma ou síncope antes do afogamento. Pacientes com lesão pulmonar podem apresentar taquipneia, desconforto respiratório, hipoxemia, cianose ou parada cardiorrespiratória. Os pacientes podem apresentar ainda aumento da frequência respiratória e roncos audíveis, estertores ou sibilos. Esses achados devem aumentar a preocupação com a possibilidade de lesão pulmonar. As vítimas de afogamento engolem um volume significativamente maior de água que o aspirado, e a distensão gástrica da ventilação com pressão positiva durante o resgate é comum. Como resultado, 60% dos pacientes vomitam após um evento de afogamento. A aspiração doconteúdo gástrico aumenta muito o grau de lesão pulmonar e a probabilidade de síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA). Além disso, a aspiração de contaminantes particulados, como lama, esgoto e bactérias, pode obstruir os brônquios e bronquíolos menores e aumentar consideravelmente o risco de infecção de natureza bacteriana e fúngica. As vítimas com lesão do SNC podem apresentar sintomas que variam de leve letargia a coma, com pupilas fixas e dilatadas. A lesão do SNC resulta da lesão hipóxica ou isquêmica inicial e da cascata de lesão de reperfusão que se segue ao restabelecimento do fluxo sanguíneo cerebral após uma parada. A liberação de mediadores inflamatórios e a geração de radicais livres de oxigênio no período pós- ressuscitação contribuem para o edema cerebral citotóxico, para o comprometimento da barreira hematoencefálica e para o aumento da pressão intracraniana. As arritmias cardíacas podem ser causa de síncope, provocando afogamento, ou desenvolver-se como consequência do afogamento. A hipoxemia, a acidose e, potencialmente, a hipotermia são os principais fatores responsáveis pelas arritmias, desde taquicardia ventricular e fibrilação até bradicardia-assistolia. Os distúrbios eletrolíticos raramente são significativos o suficiente para causar arritmias. Outras sequelas clínicas de afogamento podem incluir insuficiência renal aguda, que está presente na admissão em aproximadamente 50% dos pacientes como resultado de acidose láctica, hipoperfusão prolongada e, em alguns casos, rabdomió- lise. A coagulopatia como consequência de hipotermia associada ou a coagulação intravascular disseminada (CIVD) também podem ocorrer. 4 Rauana Vitória – MEDICINA 7º P Todos os pacientes devem ser submetidos a monitorização cardíaca e a eletrocar- diograma (ECG) a fim de determinar a presença de arritmias significativas, prolongamento do intervalo QT ou sinais de isquemia. A gasometria arterial deve ser realizada em todas as vítimas de afogamento, em busca de sinais de hipoxemia, hipercapnia e acidose. Devem ser coletadas glicemia e creatinina sérica e eletrólitos (Na, K e Ca) devem ser obtidos, embora a concentração de creatinina sérica e os níveis de eletrólitos sejam geralmente normais na apresentação inicial. O hemograma é frequentemente normal, mas pode haver leucocitose. Os níveis séricos de etanol e exames toxicológicos na urina podem ser apropriados se existe suspeita de uso de drogas ilícitas. Os pacientes podem cursar com coagulação intravascular disseminada (CIVD), disfunção renal, disfunção hepática; assim, é recomendada a dosagem de enzimas hepáticas, bilirrubinas (pode avaliar também hemólise) e coagulograma. A radiografia de tórax inicial é muitas vezes normal e pode subestimar a gravidade da lesão pulmonar. Infiltrados ou edema pulmonar podem ser evidentes em questão de horas; portanto, radiografias repetidas são indicadas quando há sintomas respi- ratórios persistentes. As radiografias iniciais do tórax geralmente não são dignas de nota, mesmo no cenário de processos patológicos sérios e em evolução. Em pacientes com insuficiência respiratória, coleta rotineira a cada 12 horas de gasometria arterial é indicada para monitorar a rápida alteração da função respiratória. O eletroencefalograma (EEG) pode avaliar se existe atividade convulsiva em vítimas inconscientes. A tomografia computadorizada (TC) de crânio raramente é útil, a menos que se suspeite de trauma significativo ou outra lesão. A ressonância magnética (RM) do cérebro pode prever o desfecho neurológico após o afogamento, mas seu valor prognóstico não é ideal antes de 3 ou 4 dias. A abordagem deve seguir o atendimento baseado no “ABCDE”, conforme as reco- mendações do ATLS ou PHTLS ou o uso de protocolo semelhante. O manejo pré-hos- pitalar com rápida ressuscitação de uma vítima de afogamento (restauração rápida da ventilação e oxigenação) otimiza o resultado e deve ser iniciado em todos os pacientes com insuficiência respiratória grave ou apneia, com história de menos de 60 minutos de submersão e sem sinais evidentes de morte como rigidez cadavérica. Abordagem pré-hospitalar: Em pacientes ainda na água que não estiverem respirando, pode-se tentar realizar ventilações boca a boca ou por outro método, caso não atrase a remoção da vítima da água ou implique em diminuir a segurança da remoção. Após a remoção segura da vítima da água, a ressuscitação cardiopulmonar (RCP) deve ser iniciada o mais rapidamente possível. 5 Rauana Vitória – MEDICINA 7º P Em pacientes que não estão em parada cardiorrespiratória, a prioridade inicial é a via aérea. Deve-se administrar oxigênio com alto fluxo por máscara facial se o paciente estiver respirando ou ventilação com máscara de pressão positiva se o paciente não estiver respirando. Para pacientes que não recuperam o esforço respiratório espontâneo, são necessárias intubação endotraqueal e ventilação com pressão positiva. O objetivo é manter ventilação e oxigenação adequadas, com SaO2 alvo entre 90-95%. Um acesso venoso deve ser estabelecido, se possível, na cena do afo- gamento e o paciente deve ser mantido estável do ponto de vista hemodinâmico. Na cena, se for percebido que o paciente está hipotérmico, ele deve ser aquecido com cobertores. Todos os pacientes que na cena do afogamento apresentam amnésia em relação ao evento, perda ou rebaixamento do nível de consciência, ou um período observado de apneia, bem como aqueles que necessitam de um período de ventilação artificial, devem ser transportados para um departamento de emergência para avaliação, mesmo que fora isso estejam assintomáticos na cena. Abordagem no Departamento de Emergência • Medidas de suporte Após a chegada do paciente ao departamento de emergência (DE), as vias aéreas devem ser avaliadas novamente. Oxigênio suplementar deve ser oferecido a todos os pacientes com hipóxia e deve-se verificar a temperatura central e auxiliar a ventilação, conforme necessário. O objetivo é manter a temperatura >34,9ºC. No departamento de emergência (DE), o paciente hipotérmico deve receber isotô- nicos aquecidos por via EV e medidas para aquecimento (por exemplo, cobertores, aquecedores aéreos e dispositivos de aquecimento). Lesões traumáticas associadas devem ser abordadas, mas, como comentado, são raras. Deve ser realizada monitorização cardíaca contínua, oximetria de pulso, monitorização da temperatura e reavaliações frequentes para todos os doentes. A equipe do atendimento pré-hospitalar deve ser questionada sobre o evento que levou ao afogamento, tempo de submersão, possibilidade de trauma associado e história de intoxicação exógena. Os pacientes que se apresentam no DE com escala de coma de Glasgow >13, saturação de oxigênio ≥ 95% e sem achados pulmonares (tosse, roncos, sibilos, retrações, estertores) apresentam baixo risco de complicações e devem ser observados por 4 a 6 horas. Após esse período, nesses casos, o paciente pode receber alta com segurança. Estudos laboratoriais e radiografias são desnecessários e não são preditivos de alta. O paciente deve ser avisado para retornar ao DE se houver febre, alterações no estado mental ou sintomas pulmonares. Se, após 4 a 6 horas, o paciente desenvolver uma necessidade de oxigênio, se os achados no exame pulmonar forem anormais, ou se a condição do paciente se deteriorar, reavaliação e admissão ou transferência para uma unidade de terapia intensiva é necessária. Os pacientes que se apresentam no DE com escala de coma de Glasgow <13 devem ser mantidos em oxigênio suplementar e suporte ventilatório, conforme necessário. Se o oxigênio em alto fluxo (fração de oxigênio inspirado de 40% a 60%) não puder manter uma PaO2 adequada (>60 mmHg em adultos,> 80 mmHg em crianças),pode ser necessária ventilação invasiva. A maioria dos pacientes demonstra melhora rápida na oxigenação nas primeiras 24 horas. Pacientes com padrão de aspiração significativo ou colapso cardiovascular estão predispostos a desenvolver síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA). 6 Rauana Vitória – MEDICINA 7º P Na ausência de resposta neurológica satisfatória ou presença de sinal focal na avaliação primária, deve-se considerar a realização de TC de crânio e cervical. Vítimas de afogamento de grau 2 geralmente respondem bem a oxigenoterapia e podem ter alta se assintomáticas após 4-8 h de observação; caso não haja melhora, podem ser admitidas em enfermaria ou unidade de observação mais prolongada para melhor definição do quadro. Vítimas com graus 3-6 geralmente requerem intubação orotraqueal (IOT) e ventilação mecânica (VM), sendo assim, é indicada internação em UTI. Se ao chegar ao DE o paciente está normotérmico e em PCR ou assistolia, deve-se pensar seriamente em interromper os esforços de ressuscitação, já que a recuperação sem complicações neurológicas profundas é rara. Para pacientes sobreviventes de parada cardíaca, a resposta hemodinâmica à adrenalina administrada exogenamente é frequentemente de curta duração, e a maioria exige uma infusão contínua de vasopressores no DE ou unidade de terapia intensiva. A recuperação hemodinâmica, quando ocorre, pode ser esperada dentro de 48 horas. Os pacientes que não demonstram recuperação hemodinâmica após 48 horas podem melhorar lentamente na primeira semana, mas são mais propensos a ter danos neurológicos em longo prazo.
Compartilhar