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1 CENTRO UNIVERSITÁRIO FAVENI HISTÓRIA MEDIEVAL GUARULHOS – SP 2 SUMÁRIO 1 FONTES PARA O ESTUDO DA HISTÓRIA MEDIEVAL ............................................... 6 1.1 Desafios da pesquisa sobre a Idade Média ................................................................ 8 1.2 Contagem do tempo no Medievo .............................................................................. 10 2 INVASÕES E MIGRAÇÕES GERMÂNICAS ............................................................... 12 2.1 Enfraquecimento do Império Romano e expansão dos povos bárbaros .................. 12 2.2 Os povos bárbaros ................................................................................................... 16 2.3 A cultura dos povos germânicos ............................................................................... 20 3 A FORMAÇÃO DOS REINOS GERMÂNICOS ............................................................ 22 3.1 Os reinos germânicos ............................................................................................... 22 4 DECLÍNIO POPULACIONAL E RURALIZAÇÃO ......................................................... 26 4.1 Os germânicos e a Europa Ocidental medieval ........................................................ 28 5 O REINO FRANCO ..................................................................................................... 30 5.1 Império Franco ......................................................................................................... 30 5.2 A conversão de clóvis e a expansão do império merovíngio .................................... 32 5.3 Enfraquecimento dos merovíngios ........................................................................... 36 6 A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO BIZANTINO .................................................................. 39 6.1 Constantinopla e as invasões bárbaras .................................................................... 39 6.2 O imperador e o patriarca no processo de consolidação bizantina .......................... 42 6.3 O legado do imperador Justianiano .......................................................................... 45 6.4 Corpus Juris Civilis ................................................................................................... 46 6.5 Justiniano, Teodora e a revolta de Nika ................................................................... 48 6.6 Modelo cultural e econômico do Império Bizantino .................................................. 49 7 A EXPANSÃO MUÇULMANA E A SOCIEDADE ÁRABE ............................................ 52 3 7.1 O surgimento “precoce” do islã (632–700) ............................................................... 52 7.2 Os primeiros califas (632–660) ................................................................................. 54 7.3 As redes comerciais como sistema econômico sarraceno ....................................... 56 7.4 A expansão islâmica ................................................................................................. 57 7.5 Expansão islâmica no Oriente Médio e além ............................................................ 59 7.6 Um Oriente multicultural ........................................................................................... 60 8 A CRIAÇÃO DO ISLÃ .................................................................................................. 61 8.1 A sociedade árabe e o surgimento do islã ................................................................ 61 8.2 O islã e o seu profeta ................................................................................................ 64 8.3 O livro sagrado do Islã .............................................................................................. 66 8.4 A cidade do profeta................................................................................................... 68 8.5 A morte do profeta e os conflitos internos ................................................................ 70 9 O SURGIMENTO DO FEUDALISMO .......................................................................... 71 9.1 A crise do sistema escravista romano ...................................................................... 71 9.2 As invasões germânicas e a desagregação do Império ........................................... 73 9.3 As duas fases das invasões bárbaras ...................................................................... 75 9.4 O enfraquecimento do Império Carolíngio ................................................................ 77 9.5 Sistema de colonato ................................................................................................. 79 10 RELAÇÕES FEUDO-VASSÁLICAS .......................................................................... 82 10.1 A influência dos contratos da dinastia carolíngia .................................................... 82 10.2 Contrato vassálico .................................................................................................. 85 10.3 Obrigações vassálicas ............................................................................................ 86 10.4 O suserano ............................................................................................................. 87 11 RENASCIMENTO URBANO ...................................................................................... 88 11.1 Ressurgimento das cidades na Europa .................................................................. 88 4 11.2 Renascimento comercial ........................................................................................ 92 11.3 Surgimento da burguesia ........................................................................................ 94 12 A IGREJA E O CRISTIANISMO ................................................................................ 97 12.1 O cristianismo como processo civilizador ............................................................... 97 12.2 Concílios: o processo civilizador da Igreja ............................................................ 100 12.3 A ascensão do cristianismo na Idade Média ........................................................ 102 12.4 Idade Média ou Idade das Trevas: as perspectivas historiográficas sobre a ascensão do cristianismo ............................................................................................................. 105 12.5 A organização hierárquica eclesiástica na Idade Média ....................................... 106 13 A TRANSIÇÃO DA IDADE MÉDIA PARA A MODERNIDADE ................................ 110 13.1 As Cruzadas e os encontros culturais .................................................................. 110 13.2 O fim da vassalagem ............................................................................................ 114 13.3 O surgimento das monarquias nacionais .............................................................. 117 REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 122 5 Prezado aluno! O grupo educacional Faveni, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No casoda nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 6 1 FONTES PARA O ESTUDO DA HISTÓRIA MEDIEVAL A escrita da história baseia-se em evidências, indícios e rastros (escritos, materiais, orais, visuais) deixados por certos povos, que os historiadores convertem em fontes históricas. Algumas sociedades legaram inúmeros materiais; em outras, esses registros foram destruídos devido à passagem do tempo ou deliberadamente, pela ação do homem; há ainda aqueles povos cuja cultura é transmitida oralmente, de modo que, com a passagem das gerações, muitos dados podem se perder. Além disso, cada uma dessas fontes pressupõe conceitos, metodologias e teorias específicas, como a arqueologia, a etnografia, a paleografia, etc. Como será que os medievalistas lidam com as suas fontes? Para além das críticas internas e externas aos documentos, existe outra perspectiva, como assinala Vidotte (2010, documento on-line): O medievalista continua realizando essa crítica, mas hoje o que está em foco nos estudos medievais são as novas perspectivas sobre fontes já conhecidas, sejam textos escritos ou elementos da cultura material. A releitura e reconsideração das fontes, somada ao aprofundamento de uma perspectiva interdisciplinar, tem proporcionado uma profunda renovação do conhecimento das sociedades medievais. Nos mil anos que compreendem a Idade Média, há determinados períodos cronológicos mais bem documentados do que outros. Além disso, os diferentes reinos e povos conservaram seus registros e materiais de formas distintas, entre outras tantas circunstâncias que acabam por influenciar diretamente o trabalho de escrita da história do Medievo. Em geral, os historiadores encontram informações importantes para seus trabalhos de forma fragmentária em fontes muito diversas, que chamam a atenção por sua variedade mais do que por sua quantidade. De acordo com Linage Conde (1997), é possível elencar algumas categorias de documentos como fontes para a escrita da história da Idade Média. Veja a seguir. Historiografia: historiadores e outros intelectuais contemporâneos aos acontecimentos escreveram histórias sobre temas do Medievo. Elas são importantes fontes para se compreender o modo como a história era escrita, as 7 concepções temporais, os conceitos utilizados, bem como os dados empíricos trazidos pelos escritores. Crônicas: entende-se por crônica medieval qualquer escrito cuja matéria ou assunto seja essencialmente histórico, envolvendo tanto eventos do passado quanto eventos contemporâneos ao escritor, ou ainda fatos que ele tenha presenciado. É interesse analisar quais fatos os cronistas julgavam dignos de registro e quais eram os argumentos que justificavam essa escolha. Alguns historiadores vêm problematizando os cronistas e as suas crônicas, questionando se eles podem ser considerados “historiadores” e se suas obras integram uma “tradição historiográfica” (FONTOURA, 2014). Fontes intelectuais: documentos produzidos pelas universidades, como catálogos de bibliotecas. 2 Fontes e problemas no estudo da Idade Média Fontes jurídicas (legais e de aplicação do Direito): leis e tratados, além de processos, que permitem conhecer as instituições, os costumes, as profissões, as noções de justiça. Mentalidades (referentes à cultura, à religião e às tradições): tradição oral, brasões, normas de conduta cristã, hagiografia, liturgias, música, canto. Fontes naturais (biológicas e geológicas): os estudos de achados arqueológicos e fósseis animais e vegetais, assim como as modificações nas paisagens, permitem conhecer uma série de eventos e informações sobre o Medievo. Fontes científicas: considerações sobre astronomia, mapas cartográficos e marítimos, regulamentos médicos. Fontes materiais (cultura material): achados arqueológicos como moedas, vestuários, armas, cerâmica. Fontes artísticas: arquitetura, tapeçaria, artes plásticas, poesia e prosa A seguir, na Figura 1, veja uma das páginas do Livro de horas dito de D. Fernando, uma fonte importante para os estudiosos que pesquisam a história do Medievo. Tal livro continha as orações a serem realizadas em horários preestabelecidos (que também eram uma forma de contar as horas ao longo do dia). 8 1.1 Desafios da pesquisa sobre a Idade Média Os historiadores medievalistas podem encontrar uma série de desafios na escrita da história da Idade Média. Aqui, você vai conhecer algumas dificuldades enfrentadas por esses pesquisadores. Primeiramente, considere a disponibilidade de fontes. Pode- se pensar que existem poucos vestígios do Medievo, escritos ou materiais, mas essa não parece ser a realidade enfrentada pelos pesquisadores: para essas investigações não estavam disponíveis acervos específicos, manuscritos ou impressos, em arquivos públicos ou privados, nem coleções monumentais. O problema não era propriamente a ausência de documentos, mas sim a sua dispersão. As tipologias tradicionais dos documentos não colaboravam nessa busca que culminou no agrupamento e na análise de fontes dos mais variados tipos, sobretudo aquelas produzidas com outros objetivos [...] (SANTOS, 2010, documento on-line). Isso demonstra que o principal problema de acesso às fontes não é a sua inexistência, mas a sua dispersão. Tal situação se explica também pela variedade tipológica desses vestígios e de seus autores, o que acarreta a existência de inúmeros acervos atomizados. Felizmente, com projetos de digitalização de documentos, é possível fazer muitas buscas documentais on-line, sem a necessidade de visitar in loco 9 os arquivos espalhados por diferentes regiões e países europeus. A informática e a internet não somente facilitaram o acesso aos documentos como ainda incrementaram as possibilidades metodológicas de críticas às fontes. O primeiro processo permitiu que pesquisadores localizados nos mais diferentes lugares do mundo passassem a pesquisar em fontes primárias digitalizadas e disponíveis virtualmente, o que democratizou o acesso às informações. “Atualmente é impossível medir a extensão total desses acervos na rede, dada a quantidade e variedade da oferta” (SANTOS, 2010, p. 26). Quanto às possibilidades metodológicas de trabalho com as fontes, a informática facilitou o desenvolvimento do campo da história seriada, permitindo a análise de dados quantitativos ao longo de séculos, tarefa executada em segundos pelas máquinas, uma revolução nos anos 1970. Mais recentemente, surgiram software de mineração de dados, de modo que é possível realizar análises semânticas a partir da história e das humanidades digitais. Superados os problemas em relação ao acesso às fontes, é necessário dedicar-se à crítica interna, ou seja, compreender a formulação de cada documento e então enfrentar nesses vestígios a fragmentação característica das sociedades europeias medievais. Considere, por exemplo, a contagem dos anos realizada nos diferentes reinos medievais e nas diversas regiões desses reinos. Segundo Franco Jr. (2006), desde o Egito faraônico houve a adoção do ano de 365 dias. Contudo, como essa contagem não correspondia exatamente aos ciclos solares (que hoje são compensados com os anos bissextos), surgiram diferenças significativas na datação dos anos. Outro exemplo é o calendário cristão e seus marcos a partir do nascimento de Jesus Cristo. Tal calendário foi proposto pelo monge Dionísio, o Pequeno, no século VI, e popularizado por Beda, o Venerável, no século XVIII: os francos adotaram-no no século IX; os germanos, no século X; os habitantesda Península Ibérica, apenas no século XII. Isso significa que, até esse momento, esses reinos possuíam formas de datação diferentes, e os historiadores que trabalham com esse período devem estar atentos a essas variações. Por fim, um último exemplo das dificuldades de se pensar 10 um tempo único ou uniforme durante a Idade Média provém das diferenças entre o calendário civil e o religioso. Apenas com as reformas instituídas pelo papa Gregório, em 1582, houve uma uniformização desse calendário. Veja as diferenças existentes antes dessa data: Na França do Norte e Países-Baixos, o ano começava na Páscoa, que sendo festa móvel fazia alguns anos terem 13 meses e outros apenas 11. Na França do Sul e parte da Itália, na festa da Anunciação (25 de março). Na Inglaterra, Alemanha, Espanha e Portugal, o ano civil coincidia com o litúrgico, começando no Natal. As mudanças de sistema não eram raras e acentuavam a confusão, como na Inglaterra do século XIV, que passou a adotar o 25 de março (FRANCO JR., 2006, p. 22–23) Como você pode notar, um dos problemas encontrados pelos medievalistas é a busca de parâmetros temporais estáveis para as suas análises. As diferentes formas de datação e de relação com o tempo geram problemas para se pensar as simultaneidades, já que é possível que reinos contíguos geograficamente possuam datações diferentes para eventos sincrônicos. O historiador que se dedica à escrita da história desse período deve estar atento a essas características culturais e religiosas para compreender a natureza de suas fontes de pesquisa. 1.2 Contagem do tempo no Medievo De acordo com as análises de Franco Jr. (2006), existiam duas maneiras de se conceber o tempo durante a Idade Média: aquela provinda das interpretações teológicas e a forma pré-cristã. Ainda que essa divisão pareça muito esquemática, entre religiosos e pagãos, ela tem certa validade. A concepção temporal pagã, difundida entre diferentes povos, era de um tempo cíclico, baseado em fenômenos astronômicos e da natureza, com uma ideia de “retorno”. Não havia a noção de historicidade e de irreversibilidade dos acontecimentos. A contagem do tempo existia tão somente para a reprodução de determinados marcos, festas e rituais cotidianos. “Daí a importância da festa de Ano Novo, que era uma retomada do tempo no seu começo, isto é, uma repetição da cosmogonia, com ritos de expulsão de demônios e de doenças” (FRANCO JR., 2006, p. 21). 11 Essa concepção temporal foi apropriada e transformada pelo judaísmo e, principalmente, pelo cristianismo, o que deu origem a uma noção de história linear: “há um ponto de partida (Gênese), um de inflexão (Encarnação) e um de chegada (Juízo Final) ” (FRANCO JR., 2006, p. 21). Contudo, se o cristianismo reinterpretava a história, não podia deixar de sentir seu peso, por isso sua liturgia baseia-se na repetição periódica e real da Natividade, Paixão, Morte e Ressureição de Jesus, quer dizer, o fiel, ao participar da reprodução do evento divino, volta ao tempo em que ele se deu. Ou seja, a cristianização das camadas populares não aboliu a teoria cíclica, pelo contrário, permitiu por influência dela o reforço de certas categorias do pensamento mítico (FRANCO JR., 2006, p. 21). Dessa forma, a sociedade medieval possuía três concepções temporais distintas: o tempo cíclico, o tempo linear e um tempo escatológico, que correspondia aos tempos da existência do todo, que somente Deus conheceria. Assim como na Antiguidade Romana, o dia dividia-se em 12 horas, da mesma forma que a noite, independentemente da época do ano, o que poderia significar dias (verão) ou noites (inverno) mais longas. Contudo, a contagem dessas horas somente se aprimora com o surgimento do relógio mecânico, no século XIV. Como destaca Franco Jr. (2006, p. 22): Apenas o clero, por necessidades litúrgicas, estabeleceu um controle maior sobre as goras, contando-as grosseiramente de três em três a partir da meia- -noite (matinas, laudes, primas, terça, sexta, nona, vésperas, completas). Esse sistema, contudo, era impreciso e não se adequava às atividades laicas. Em geral, a forma de contagem das horas era precária porque não se via necessidade de um controle rígido do tempo: com a maioria da população ruralizada, o tempo se guiava pelo ritmo imposto pela natureza, pela Lua, pelo Sol e pelas estações do ano. Você já viu que a contagem dos anos era problemática, gerando dificuldades para o pesquisador da Idade Média. E a contagem dos dias? De acordo com Franco Jr. (2006, p. 22), A contagem dos dias agrupava-os em semanas de sete, adotadas no Ocidente por volta do século IV. No Sul os dias receberam nomes de deuses romanos e no Norte de deuses germânicos. [...] O agrupamento em meses, por sua vez, de origem muito antiga, passou para a Europa medieval, latina e germânica, com seus nomes romanos. 12 Para além da contagem do tempo do calendário, o historiador Jacques Le Goff, em sua obra Para um novo conceito de Idade Média (1980), afirma que existiriam pelo menos três vivências de temporalidades no Medievo: o tempo rural, clerical e leigo; o tempo dos mercadores ou o tempo urbano; e o tempo religioso. Nenhuma dessas temporalidades existia isoladamente, mas de forma articulada e interdependente. De acordo com o autor, o tempo rural, clerical e leigo teria sido o mais característico da Idade Média. Como você já viu, era um tempo cíclico, vinculado ao trabalho executado na terra (semeadura e colheita) e a fenômenos naturais (dia e noite, estações do ano, etc.). No intervalo dessas atividades, existiam os tempos de orações, e as efemérides astronômicas também eram celebradas a partir de dias santos (LE GOFF, 1980). O tempo dos mercadores, ou o tempo urbano, estaria vinculado a outras atividades sociais, o que lhe conferiria uma ideia de cumulatividade e linearidade, com tarefas executadas com tempos definidos por outros critérios. As feiras, por exemplo, tinham correlação direta com acontecimentos religiosos. Também estavam em jogo, nessa categoria temporal, as distâncias a serem percorridas entre uma vila e outra, o tempo de produção das mercadorias, etc. “Para o mercador, o meio tecnológico sobrepõe um tempo novo, mensurável, quer dizer, orientado e previsível, ao tempo eternamente recomeçado e perpetuamente imprevisível no meio natural” (LE GOFF, 1980, p. 52). Em relação ao tempo religioso, é necessário lembrar que é considerado como pertencente a Deus, vinculado a uma ideia de eternidade e dividido entre a vida terrena e a vida pós-morte. 2 INVASÕES E MIGRAÇÕES GERMÂNICAS 2.1 Enfraquecimento do Império Romano e expansão dos povos bárbaros Os estudos dedicados às condições que levaram à dissolução do Império Romano são muito variados. A historiografia contemporânea enfatiza aspectos tanto internos quanto externos a esse processo. Além disso, procura romper com antigas 13 expressões, tais como “declínio”, “decadência” ou “queda”, que transmitem uma ideia de progresso à trajetória das sociedades. O importante é você ter em conta que, durante a crise do século III, os romanos não se imaginavam vivendo o fim do Império: essa é uma visão retrospectiva dos historiadores. Percebe-se, sim, uma série de transformações que configuraram algumas das características das sociedades medievais, em um processo bastante lento. Na Figura 1, a seguir, você pode ver o Império Romano antes das grandes migrações. 14 Como você já viu, os historiadores procuram respostas para a dissolução do Império em diferentes aspectos. Alguns pesquisadores, enfatizando o viés político, afirmam que o problema residia na falta de regras para a sucessão dos imperadores, o que gerou um desequilíbrio de poder e uma crise estrutural. Outros, por sua vez, assentam suas explicações nos fatores econômicos, ressaltando as mudanças na organizaçãodo trabalho (da escravidão para a servidão) como um indício de transformação social. Há ainda aqueles que assinalam os problemas entre a administração central e as províncias, do ponto de vista econômico e político (principalmente com a incorporação de alguns povos germânicos). Além disso, há os pesquisadores que afirmam que a difusão da cultura e das práticas cristãs foram responsáveis pelo enfraquecimento do Império, devido à assimilação que a população fez de valores tais como a humildade e a resignação. Por fim, existe uma corrente que interpreta o fim do Império a partir de aspectos militares, como a perda da capacidade de conquista e a incorporação dos “bárbaros” ao Exército. Embora as possibilidades interpretativas sejam várias, os historiadores parecem concordar que o período que se estende de 193 a 284, chamado de “crise do século III”, representa um ponto de inflexão na história do Império Romano. Essa “crise” foi, na verdade, um conjunto de crises estruturais e problemas inter- relacionados que levaram a transformações profundas e generalizadas: uma crescente influência da cultura germânica, uma tendência valorativa positiva à monarquia autocrática em detrimento da autoridade imperial e do Senado, um processo de ruralização, a expansão da cristandade, etc. Como afirma Machado (2015, p. 90–91), o século III foi “[...] um período caracterizado por problemas políticos (especialmente relativos à sucessão imperial), mas principalmente por guerras (civis e contra invasores) e a peste. Estes não são processos idênticos, mas que foram combinados e que levaram à formação de uma nova sociedade e ordenamento políticos [...]”. Aqui, você vai ver como se deu a pressão das tribos germânicas sobre as fronteiras do Império Romano. Contudo, lembre-se de que esse é apenas um dos aspectos de uma sociedade que estava em profunda transformação. A movimentação das tribos germânicas nas 15 fronteiras romanas ocorria desde o período dos antoninos, ou seja, não era uma novidade no século III. Contudo, nesse período, houve um agravamento dessa relação. Isso ocorreu primeiramente pela morte de Alexandre Severo, em 235, assassinado após a notícia de um possível acordo com os persas (o Império Sassânida, de origem persa, representava uma ameaça às províncias orientais). Outra causa foi a assimilação, por parte das tribos germânicas, de certos conhecimentos, práticas e valores romanos. Tais tribos passaram a se estabelecer próximo às fronteiras do Império para saqueá-lo ou por sobrevivência; assim, as invasões não eram mais circunstanciais ou esporádicas, mas frequentes, com liderança e motivações. Por fim, havia movimentos internos dos germanos, principalmente os orientais, que pressionavam territorialmente os ocidentais e, por consequência, as fronteiras do Império. Portanto, no século III, o império sofria pressões em sua fronteira com os germanos no norte e com o Império Sassânida ao leste. O Império Romano tinha sob seu controle um dos mais extensos domínios territoriais já conquistados, motivo pelo qual o exército ficava em primeiro plano, tendo peso decisivo na manutenção do poder instituído. “A partir do século III, assiste-se a um progressivo e inexorável processo de crise das estruturas imperiais, responsável pela fragmentação da unidade política romana, pelo desmembramento e desaparecimento definitivo do Império [...]” (MACEDO, 2006, p. 78–79). Para Macedo (2006), uma das causas está nas transformações ocorridas no recrutamento para o Exército e na possibilidade de germanos serem utilizados como guardiões de fronteiras. Veja: No princípio do século IV, as antigas formações militares (legiões e guarda pretoriana) foram praticamente dissolvidas e em seu lugar apareceram duas unidades militares específicas: as tropas de fronteira, colocadas em fortificações permanentes nos limes, isto é, nos limites do mundo romano, com a incumbência de protegê-los de eventuais invasões; e uma força tática móvel, colocada em posições estratégicas no interior do território imperial. A tais reformas corresponderam novas formas de recrutamento. As consequências econômico- financeiras da crise afetaram a estabilidade militar devido à dificuldade de remuneração dos soldados. No século IV, uma das formas de pagamento do serviço militar consistia na concessão de lotes de terra de fronteira a soldados regularmente recrutados e incorporados aos quadros do exército quando cumpriam seu tempo regular de serviço ao fim de 25 anos. Era uma maneira de 16 assegurar a presença de pessoas capacitadas a defender as fronteiras em caso de ataque (MACEDO, 2006, p. 79). Portanto, as invasões que ocorrem no século V não são uma novidade para os romanos, mas se tornam um fator de enfraquecimento do poder imperial em função da crise do século III. Nesse sentido, é importante lembrar que, para um dos maiores especialistas em Idade Média, Le Goff (2016), as causas do fim do Império Romano são internas, não têm a ver com as invasões: A causa da catástrofe é interna. Foram os pecados dos romanos — inclusive cristãos — que destruíram o Império que seus vícios entregaram aos bárbaros. Os romanos eram, de si mesmos, inimigos piores do que seus inimigos de fora, pois, embora os bárbaros já os tivessem arrasado, eles se destruíam ainda mais por si mesmos (LE GOFF, 2016, p. 21). Em outro trecho, o historiador reforça a questão da crise como maior fator explicativo: “A verdade é que os bárbaros foram favorecidos pela cumplicidade ativa ou passiva da massa da população romana. A estrutura social do Império Romano, em que as camadas populares eram cada vez mais esmagadas por uma minoria de ricos e poderosos, explica o sucesso das invasões bárbaras [...]” (LE GOFF, 2016, p. 22). 2.2 Os povos bárbaros Quem eram esses “invasores”? No tópico anterior, você estudou o fim do Império Romano do Ocidente a partir da presença dos povos germanos em seu território e em suas fronteiras. Contudo, também deve considerar a falsa dicotomia étnica existente entre romanos e não romanos. Veja: Os romanos e seus vizinhos, que viviam próximos ao limes, não possuíam diferenças muito consistentes em termos de identidade ou etnia, que a existência dicotômica entre romanos e bárbaros é uma criação moderna e que esta só se consolidara no discurso político, na tentativa de enaltecer a tradição clássica face ao constante crescimento do poder provinciano e estrangeiro. [...] Nesta óptica, as populações germânicas da antiguidade já não poderiam mais ser vistas como racialmente homogêneas, organizadas a partir de características étnicas de “matriz” germânica ou ariana, mas por tradições culturais — a crença em um determinado deus, um antepassado em comum, semelhanças linguísticas —, o que permitiria que estes grupos tivessem uma configuração poliétnica (SILVA; ALBUQUERQUE, 2015, p. 347). 17 A seguir, você vai conhecer melhor os reinos germânicos, formados a partir da política dos foederati (domínios relativamente independentes do Império). Você vai ver que a organização política, religiosa e social desses reinos em nada se assemelhava à condição de “barbárie”, termo pejorativo utilizado para lhes referenciar. O termo “bárbaros” é encontrado em crônicas romanas desde o século I a.C. e era utilizado para fazer referência a todos os povos que não falavam o latim, sem distinção entre celtas, eslavos, gauleses ou germanos. Considere o seguinte: [...] a denominação de “bárbaros”, no sentido moderno do termo, não era absolutamente justificada, porque os germanos, os persas, os árabes e os outros numerosos povos vizinhos do Império não podiam ser absolutamente reduzidos a hordas desorganizadas, selvagens e incontroláveis. Por outro lado, eles nunca haviam formado uma coalizão devotada a uma tarefa deliberada de destruição do Império Romano, como se isso fosse desejado por Deus. A diversidadegeográfica das fronteiras era acompanhada por povoamentos variados, e ambições muito diferentes eram expressas pelos externi, “aqueles do mundo exterior” (LE ROUX, p. 2013, p. 86) Os primeiros contatos entre Roma e aqueles que foram chamados de “germanos” ocorreram no final do século II a.C. Pressionados por questões ambientais e pelo excesso populacional, os povos teutões e cimbros migraram para o sul e pressionaram as fronteiras de Roma no norte da Itália. Veja: Certamente aqueles tempos foram principalmente de confusão. Confusão surgida antes de tudo da própria mistura de invasores. Ao longo de seu trajeto, as tribos e os povos haviam se combatido, submetido uns aos outros, misturado. [...] Confusão acrescida pelo terror. Mesmo levando em conta os exageros, os relatos de massacres, de devastações, que abundam na literatura do século V, não deixam dúvida quanto às atrocidades e destruições que acompanharam os “passeios” dos povos bárbaros (LE GOFF, 2016, p. 26). Durante muito tempo, predominou a visão historiográfica segundo a qual as relações entre os romanos e germanos ocorrera apenas nos séculos IV e V, sendo marcadas por ataques e invasões violentas, já que o objetivo principal desses povos que viviam fora das fronteiras do Império era destruir e saquear. Contudo, há registros de relações comerciais e diplomáticas entre romanos e não romanos. Assim, novas abordagens têm procurado desconstruir a visão das “[...] invasões bárbaras enquanto um fluxo de populações que irrompem violentamente no seio do Império de um momento para outro — e por momento entendemos o último quarto do 18 século V — e que seriam responsáveis pelo esfacelamento da coesão imperial [...]” (SILVA, 2011, p. 4–5). Por exemplo, após a crise do século III, o Império Romano estabeleceu acordos para que os francos repovoassem a Gália e para que os ostrogodos se fixassem na Península Ibérica, em uma política chamada hospitalias (“hospitalidade”). Tratou-se de uma estratégia para manter a integridade dos territórios e a soberania do Imperador nas províncias do Mediterrâneo. Ao mesmo tempo, tal estratégia possibilitou a fixação de alguns povos nômades no território. Posteriormente, alguns desses reinos foram elevados à condição de federados ao Império. Porém, a preocupação com as fronteiras e as possíveis invasões do território antecede e muito o século III: Durante o período republicano (509–27 a.C.), Roma sofreu uma série de ameaças, sendo a mais famosa imposta por Breno, chefe gaulês da costa adriática da Itália, que em 387 a.C., invadiu e saqueou a cidade. No Principado, Augusto (63 a.C.–14 d.C.) manteve um interesse particular pela conquista da Germânia (atual Alemanha). Porém, a expansão é finalizada quando Armínio (16 ou 17 a.C.–21 d.C.), germano de nascimento, porém cidadão romano e treinado na arte da guerra pelos mesmos, aniquilou o exército comandado pelo cônsul Públio Varo (46 a.C.–9 d.C.), na Batalha da Floresta de Teutoburg. No segundo século da Era Cristã, o imperador Adriano (76–138) mandou erguer na Bretanha a Muralha de Adriano, com a intenção de deter os constantes invasores pictos (originários da Escócia) (CARLAN, 2010, p. 169). A historiografia contemporânea tem demonstrado a necessidade de se superar a dicotomia aliados versus inimigos para se considerarem as relações entre os povos romanos e não romanos. Nesse sentido, afirma-se que, em diferentes situações, essas relações poderiam ser “[...] de opositores militares, de refugiados, de povos assimilados, de povos assimilados que se rebelam, de contingentes militares integrados ao Império, de contingentes integrados ao exército imperial que novamente se insurgem [...]” (BARROS, 2009, p. 556–557). Na Figura 2, veja as migrações dos povos bárbaros. A seguir, veja uma descrição das principais rotas. 19 Anglo-saxões: compreendiam os anglos, os saxões, os jutos, os frísios e outros povos que se instalaram na foz do rio Reno. Alguns grupos, posteriormente, migraram para a ilha da Grã-Bretanha, no século V, dominando as populações celtas e criando reinos que perduraram até a invasão dos normandos (vikings) em 1066. Burgúndios: formaram um reino no início do século V, que foi destruído pelos hunos. Posteriormente, fundaram um novo reino, em 443, que foi destruído pelos francos aproximadamente um século depois. Francos: constituíram um dos mais poderosos reinos. Em 481, dominaram grande parte da Europa Central, na margem esquerda do rio Reno. Nessa mesma região, os hunos fizeram incursões contra o Império Romano. Ostrogodos: criaram na Itália um reino que congregou romanos e germanos. Em 553, foram conquistados pelo Império Bizantino. Suevos: estabeleceram, em 410, um reino na região da Galícia (norte de Portugal e noroeste da Espanha), tendo sido conquistados em 585 pelos visigodos. 20 Vândalos: invadiram a Península Ibérica entre 407 e 409, tendo sido expulsos primeiramente pelos romanos, depois pelos visigodos. Ocuparam o norte da África em 429, fundando um poderoso rei. Visigodos: instalaram-se primeiramente na Gália e, em 409, partiram para a Península Ibérica, estabelecendo-se em 418. Foram conquistados pelos muçulmanos no século VII, migrando para a região dos Pirineus e colaborando com os francos. Novamente, note a diversidade de povos abarcados pelos termos “bárbaros” e “germânicos”. Os caracteres que costumeiramente foram utilizados para distinguir os povos uns dos outros talvez não sejam suficientes para se estabelecer uma etnia e, por consequência, criar uma diferenciação tão grande dos romanos. Veja: Tal como os relatos dos gregos/romanos sobre as gentes barbarorum, língua, armas, roupas ou cabelos (cortes ou penteados) também não são sinais confiáveis para identificar identidades étnicas estáveis. Isso não significa que não houvesse diferenças marcantes nos povos antigos, ou que essas projeções culturais — cabelo, língua, roupas, armas — não fossem relevantes, mas sim que elas eram muito fluidas e dinâmicas, e a supervalorização destas atende mais aos estereótipos do que à História (SILVA; ALBUQUERQUE, 2015, p. 352) Após o intenso movimento migratório ocorrido no século V, aos poucos as tribos germânicas foram se fixando num determinado local. Seus membros, por sua vez, foram se misturando aos romanos, ocorrendo uma fusão das duas culturas. Você vai estudar mais sobre isso no próximo tópico. 2.3 A cultura dos povos germânicos Como você viu nos tópicos anteriores, diferentes povos foram reunidos por meio do termo “germânicos”. Hoje, há diferentes níveis de informações sobre tais povos. Como lembram Silva e Albuquerque (2015, p. 347), grande parte do que se sabe a respeito do mundo germânico deriva de “[...] uma construção ideológica alemã [...]”. Tal construção tem início com a “redescoberta dos escritos de Tácito no século XV, atingindo seu ápice no século XIX, quando as tendências políticas e intelectuais da época (romantismo, pan-germanismo, filologia, teoria da raça ariana, dentre outras) 21 buscavam legitimar uma unificação do mundo nórdico”. A seguir, você vai ver algumas características desses povos, mas lembre-se de que é preciso estudá-los em suas singularidades e nas variações que ocorrem ao longo do tempo. Veja o que afirma Le Goff (2016, p. 25): Os bárbaros que se instalaram no Império Romano no século V não eram aqueles povos jovens, mas selvagens, recém-saídos de suas florestas ou de suas estepes, descritos por seus detratores da época ou seus admiradores modernos. Tinham evoluído muito com seus deslocamentos, muitas vezes seculares, que acabaram por lançá-los no mundo romano. Tinham visto muito, aprendido muito e incorporado bastante. Seus caminhos os levaram a contatos com culturas e civilizações das quais absorveram costumes, artes e técnicas. Direta ou indiretamente, a maioria deles haviasofrido influência das culturas asiáticas, do mundo iraniano e do próprio mundo greco-romano, principalmente em sua parte oriental, que, em vias de tornar-se bizantina, continuava sendo a mais rica e mais brilhante. Aqueles povos que viviam mais próximos aos limes estabeleceram constantes trocas com os romanos, apropriando-se de alguns de seus hábitos e práticas culturais. Esse estabelecimento dos povos nas fronteiras do Império deveu-se a um processo de assentamento de culturas que eram anteriormente nômades e viviam nas estepes e florestas. Tais povos dominavam técnicas de trabalho com o couro e a madeira, além da fundição de metais. Em seu processo de sedentarização, alguns desses povos permaneceram com suas práticas religiosas, com rituais animistas e de adoração à natureza, enquanto outros se converteram ao cristianismo ariano. Veja: Por um curioso acaso, que acarretou pesadas consequências, esses bárbaros convertidos — ostrogodos, visigodos, burgúndios, vândalos e, mais tarde, lombardos — o foram ao arianismo, que, depois do Concílio de Niceia, tornara- - se heresia. [...]. Assim, o que deveria ter sido um vínculo religioso foi, ao contrário, objeto de discórdia e gerou lutas acirradas entre bárbaros arianos e romanos católicos (LE GOFF, 2016, p. 24) Quanto ao culto pagão, provavelmente havia cultos a rochas, bosques, árvores, fontes, etc. Não há indícios de grandes construções. Nos poucos locais de culto com edificações, estas eram utilizadas para “[..] alojar ex-votos, imagens de divindades (provavelmente muito singelas, a julgar pelos poucos exemplares indubitáveis achados) e objetos sagrados [...]” (CARDOSO, 2012, p. 10–11). 22 Além disso, eram realizadas visitas individuais, não cerimônias coletivas. Em decorrência do processo de ruralização ocorrido durante o Medievo, há um predomínio da vida privada em detrimento da vida pública: Antes a alegria de viver estava nas ruas e nos grandes monumentos urbanos; agora se refugia nas casas e nas cabanas. Antes, com suas leis, tropas e edis, o Império se honrara em facilitar a vida pública como ideal de vida; agora, com os reinos germânicos, dilui-se o culto da urbanidade em proveito da vida privada. Para os recém-chegados, os germanos, quase tudo é de domínio privado (ROUCHE, 1900, p. 403) A cultura dos germanos era essencialmente rural, com atividades agrárias, mas com forte ênfase no pastoreiro. Dessa forma, a organização familiar tornou- -se muito importante para esses povos. As famílias agrupavam-se em tribos a partir de laços de solidariedade e, assim, criavam uma estabilidade. Daí decorre um traço importante da cultura germânica, a ideia de linhagem, formada pela herança dos antepassados, o que dá aceitação social e prestígio perante o grupo. As sociedades germânicas eram patriarcais, sendo o papel masculino decisivo para a organização familiar e matrimonial, bem como para a educação dos filhos e as decisões políticas e militares, que ocorriam por meio dos comitatus. Alguns desses povos estruturaram formas de Estado com poder monárquico. Assim, o militarismo e a participação em guerras faziam parte da cultura dos povos germânicos. 3 A FORMAÇÃO DOS REINOS GERMÂNICOS 3.1 Os reinos germânicos A desintegração do Império Romano do Ocidente ocorreu formalmente em 476, com a deposição do imperador Rômulo Augusto por Odoacro, chefe da confederação de tribos germânicas dos hérulos. A partir de então, formaram- -se diversos reinos romano-germânicos. Como se deu esse processo durante a chamada Alta Idade Média ocidental? De acordo com Bastos (2008, p. 3), é um erro supor que a organização política dos reinos germânicos decorreu “[...] de uma suposta limitação 23 étnica, da gestão inconsequente derivada da incapacidade política germânica [...]”, ou, ainda, que foi “[...] uma forma inacabada, decadente ou deformada de instituição [...]”. Segundo o autor, essas abordagens são decorrentes de uma [...] atenção exacerbada à crise da formação estatal imperial romana no Ocidente, ao passo que se minimizam, quando não se desconsideram radicalmente, as expressões várias das transformações “políticas” que se impunham às comunidades germânicas ao longo do período. Estratificação social e cristalização de núcleos de poder foram as suas manifestações mais marcantes, e deram ensejo à constituição de chefaturas, de protoestados e, enfim, de estruturas estatais (BASTOS, 2008, p. 3). Utilizando referências provenientes de Aidan Southall, Bastos (2008, p. 9) apresenta da seguinte forma as características políticas dos reinos da Alta Idade Média ocidental: a soberania territorial é reconhecida, mas limitada: a sua autoridade esbate- -se ao aplicar-se às regiões afastadas do centro; b) o governo centralizado coexiste com focos de poder sobre os quais exerce um controle apenas relativo; c) o centro dispõe de uma administração especializada que também se encontra, mas reduzida, nas diversas zonas; d) os níveis de subordinação são distintos, mas as suas relações permanecem de caráter piramidal: a autoridade é conforme, em cada um deles, a um mesmo modelo; e) as autoridades subordinadas têm tanto mais possibilidades de mudar de obediência quanto ocupam uma posição mais periférica; f) a autoridade central não possui o monopólio absoluto do emprego legítimo da força. A seguir, você vai ver como se deu o processo de constituição desses reinos em diferentes regiões do território europeu, de acordo com os povos que lá estavam ou que para lá se dirigiram. Como você já sabe, após a desintegração do Império Romano, formam-se diversos reinos romano-germânicos, ou seja, com populações de culturas galo-romana, hispano-romana e ítalo-romana, mas 2 A formação dos reinos germânicossob o governo de reis germânicos. “Dentre os reinos romano-germânicos da Europa destacavam-se o visigótico (na atual Península Ibérica), o ostrogótico e, posteriormente, o lombardo (na atual Itália), os reinos anglo-saxões (na atual Grã- Bretanha) e o franco (na atual França) [...]” (BIBIANI; TÔRRES, 2002, p. 4). Entretanto, esses não foram os únicos povos germânicos a se estabelecerem no território do antigo Império Romano. Os visigodos possuíam uma longa relação estabelecida com o Império Romano. Em certos momentos, houve convivência de mútuo 24 proveito, mas em outros períodos aconteceram conflitos, como quando os visigodos pilharam a cidade de Roma, em 410. Depois desse episódio, estabeleceram-se na região da Aquitânia e tiveram seu período de maior prosperidade durante o reinado de Eurico (466–484), em que estenderam seus domínios sobre a maior parte da Hispânia e da região da Provença. Em 507, foram vencidos pelos francos, o que levou ao término desse primeiro reino e obrigou os visigodos sobreviventes a fugirem pelos Pirineus. O segundo reino visigótico, o da Hispânia, foi, para alguns autores, o mais próspero e poderoso de todos os reinos romano-germânicos, ainda que a unidade e a paz interna fossem dificilmente estabelecidas. Isso ocorria, [...] primeiramente, pela presença de povos inimigos instalados na própria Hispânia, como os germânicos suevos, que formavam um reino no oeste da Península [...]. Também devido às constantes lutas contra os sempre insubmissos bascos e cantábricos. Finalmente, pelas tentativas de frear o avanço dos bizantinos [...] (BIBIANI; TÔRRES, 2002, p. 4). A unificação política ocorreria somente sob o reinado de Leovigildo (568–586). Já na Península Itálica, em 489, Teodorico, chefe dos ostrogodos, invadiu a região sob o consentimento do imperador oriental Zenão e derrotou Odoacro, levando à conquista ostrogótica da Itália. Seu reinado caracterizou-se por um hibridismo, que mantinha paralelamente tradições germânicas e imperiais romanas. Ele “Manteve as antigas leis, deixou o nome do imperador nas moedas, conservou os magistrados nos cargos de outrora; sobretudo,soube ganhar o apoio da classe senatorial, respeitando-lhe os privilégios, e do povo de Roma [...]” (BIBIANI; TÔRRES, 2002, p. 5). Ao mesmo tempo, “[...] conservou estreitos contatos com tribos estabelecidas na atual Alemanha, de onde recrutava soldados e enviava legados destinados a reforçar a solidariedade dos germanos [...]” (BIBIANI; TÔRRES, 2002, p. 5). Além disso, estabeleceu laços familiares com outros povos por meio de casamentos com vândalos, visigodos e burgúndios. Após sua morte, houve problemas que terminaram por levar à conquista dos ostrogodos pelos lombardos. Os lombardos migraram para a região das planícies da Europa Central, gerando muitas guerras e um 25 período de grandes destruições. Tais conflitos constituíram a chamada Guerra Gótica (535–555), que terminou por destruir a Itália. Nos primeiros tempos, as populações fugiam perante os ataques destes novos germanos, violentamente hostis, pouco influenciados pela civilização romana, ligados a cultos ancestrais ou recentemente convertidos ao arianismo, que pareciam animados por um ardor xenófobo contra os cristãos romanos. Assim a ocupação lombarda foi, por muito tempo, regida pela dura lei militar dos conquistadores: as terras foram confiscadas, a aristocracia romana ou goda exterminada. Durante muito tempo nenhuma lei garantiu as pessoas ou os bens dos romanos, submetidos a vexames e grandes dificuldades. Além disto, a migração destruiu o limes do Friul e as praças fortes da Venécia, deixando assim abertos os passos e as rotas dos Alpes aos ávaros e aos eslavos, que, por várias vezes, lançaram suas raízes nas planícies e sobre as costas do Adriático (BIBIANI; TÔRRES, 2002, p. 6). O reino lombardo desintegrou-se em função de inúmeras crises sucessórias até ser dominado no século VIII pelos exércitos francos. Alguns autores afirmam que “[...] foram as diferenças religiosas (entre lombardos arianos e ítalo-romanos nicenos) e a incapacidade de criar um reino unitário que [...] tornaram inviável a identificação da Península com seus novos hóspedes [...]” (BIBIANI; TÔRRES, 2002, p. 6). Nas ilhas da Grã-Bretanha, a ordem política e social também se constituiu por meio de conquistas militares e migrações de povos de origens diversas, como os anglos, os jutos e os saxões, que começaram a se estabelecer na região na segunda metade do século V, em caráter descontínuo. Veja o que é dito sobre sua organização política: Todos pareciam habituados a uma vida comunitária, à manutenção de assembleias de camponeses livres para repartir as tarefas. [...] Os reis, de início chefes guerreiros de uma só tribo, viviam cercados por seus companheiros que formavam “nobrezas militares”. Estes laços de homem a homem, estas relações pessoais hereditárias da antiga sociedade de guerreiros germânicos, marcaram sensivelmente por muito tempo a vida política da Ilha. Estas tribos, desde o século VI, reuniram-se em reinos mais poderosos, dominados por um chefe principal ligado a inúmeros pequenos senhores. Estes reinos, mais precisamente confederações de tribos, permaneceram por muito tempo incertos, mal fixados, ligados à sorte de seu rei, frequentemente desintegravam-se após sua morte (BIBIANI; TÔRRES, 2002, p. 7). Os francos eram provenientes das margens inferiores do rio Reno e conquistaram todo o norte da Gália. Clóvis foi o responsável por reunir sob sua autoridade inúmeras colônias francas e por empreender expedições contra os povos vizinhos dos alamanos, 26 burgúndios e turíngios. Após a conversão ao cristianismo, houve uma enorme expansão do reino, que adquiriu uma missão evangelizadora. 4 DECLÍNIO POPULACIONAL E RURALIZAÇÃO Como você viu, os reinos germânicos surgiram a partir da ocupação territorial ocorrida antes da desintegração do Império Romano e também a partir das transformações posteriores ao fim do poder político romano no Ocidente. Agora, você vai conhecer os fatores que levaram à ruralização dos territórios ocupados pelos reinos bárbaros, bem como verificar por que houve um declínio populacional durante esse primeiro momento após o fim do Império. Na verdade, os especialistas no período medieval concordam que há dificuldades para se estabelecer estudos ou estimativas demográficas para o período entre os séculos V a VII, o que é devido à escassez de registros. As informações disponíveis permitem, sim, afirmar que não havia grandes núcleos populacionais e que a população era desnutrida e apresentava baixo crescimento vegetativo. Esses elementos, somados às guerras, à fome e às epidemias, configuravam um quadro nada favorável para um aumento populacional (MORENO, 2011). Outra questão apontada pelos pesquisadores é que a chamada “crise demográfica dos séculos V a VII” encontra suas origens em um processo que remete ao século III, ainda durante o Império Romano, e que se agravou com a passagem do tempo. Nesse sentido, podem-se citar as perdas populacionais ocorridas com as guerras (que também afetam diretamente a reprodução e a economia) e com a fome, devido aos cercos das cidades e ao abandono de campos de cultivo, para além da destruição de algumas plantações e colheitas (MORENO, 2011). Outro dado que aparece seguidamente nas fontes é a pequena quantidade de mão de obra campesina. Somada a esse fator, existia a fome. De acordo com Moreno (2011, p. 124), a má alimentação: 27 [...] era consequência, quase sempre, de dois fatores distintos que, em grande medida, se encontram inter-relacionados: o grande número de mudanças de propriedade de terra, com a redução da produtividade por falta endêmica de mão de obra, que fugia dos campos por diferentes motivos, e as parcas tecnologias agrícolas. Segundo Anderson (2000, p. 192), [...] o solo [se] deteriorava por causa da pressa e do mau uso. As últimas reservas de terra regenerada eram normalmente de qualidade pobre, solo muito fino ou úmido, mais difícil de cultivar, e onde eram semeadas as plantações inferiores, como a aveia. As terras aradas mais antigas, por outro lado, estavam sujeitas ao desgaste e deterioração pela própria antiguidade de seu cultivo. A fome levava um grande contingente populacional a marchar sem rumo, vivendo da caridade de outras pessoas ou da Igreja. Por consequência, a expectativa de vida era baixa, assim como o crescimento vegetativo. As famílias possuíam, em média, na Toscana, 4,8 membros (MORENO, 2011). A situação de má nutrição tornava propícia a disseminação de doenças, como a epidemia da peste negra. Veja: Passando da Crimeia aos Bálcãs via Mar Morto, a peste viajou como um furacão por Itália, Espanha, Portugal, fez uma curva em direção ao norte através da França, Inglaterra e dos Países Baixos, e finalmente tomou impulso de volta ao Oeste e passou novamente pela Germânia, Escandinávia e Rússia. Com a resistência demográfica já enfraquecida, a Peste Negra cortou uma faixa da população talvez em torno de um quarto dos habitantes do continente (ANDERSON, 2000, p. 195). O processo de ruralização iniciou-se ainda durante o Império Romano, em função das incursões dos povos visigodos, ostrogodos, vândalos e hunos, além de outros, no território imperial. As mudanças cotidianas decorrentes dessas invasões, bem como o medo e o pânico, enfraqueceram as estruturas econômicas, políticas e sociais, o que levou a uma migração das grandes cidades para o campo. Como afirma Anderson (2000, p. 115), “Enquanto as cidades continuavam a declinar, o campo foi deixado basicamente intocado pela primeira onda de invasões, à parte a desordem de guerras externas e guerras civis e a introdução de propriedades e camponeses germânicos lado a lado com seus protótipos romanos [...]”. Em relação ao processo de ruralização, a atividade agrícola dos reinos germânicos variou muito 28 conforme a região. O território europeu possui uma diversidade de paisagens e condições agrícolas,o que torna certas regiões mais ou menos propícias para certos cultivos ou para a própria prática agrícola, característica dessas sociedades. Veja o que diz o historiador Le Goff (2016, e-book) sobre o processo de ruralização ocorrido em território europeu: Fato econômico, fato demográfico, a ruralização é ao mesmo tempo, primordialmente, um fato social que modela a fisionomia da sociedade medieval. A desorganização das trocas multiplica a fome, e a fome impele as massas para o campo e as submete à servidão aos que dão o pão, os grandes proprietários. Fato social, a ruralização é apenas o aspecto mais visível de uma evolução que imprimirá na sociedade do Ocidente medieval um caráter essencial que permanecerá ancorado nas mentalidades por mais tempo ainda do que na realidade material: a compartimentação profissional e social. A fuga em relação a certos ofícios, a mobilidade da mão de obra rural levara os imperadores do baixo Império a tornar obrigatoriamente hereditárias certas profissões e estimulara os grandes proprietários a vincular à terra os colonos destinados a substituir os escravos, cada vez menos numerosos. Em outra obra, Le Goff (2007, p. 47) assinala que o processo de ruralização significou “[...] a ruína das estradas, das oficinas, dos entrepostos, dos sistemas de irrigação [...]”. De acordo com ele, “O refluxo da população urbana para a zona rural não enche o vazio deixado pela regressão demográfica. No lugar da cidade, urbs, é a vila, o grande domínio, que se torna a célula econômica e social de base [...]”. Economicamente, as consequências dessa transformação são o recuo da economia monetária e o aumento dos sistemas de troca, além de uma diminuição do comércio de longo alcance. Assim, a ruralização e o problema demográfico estão intimamente relacionados. A ruralização e a fragmentação do poder político estiveram presentes nos reinos germânicos formados após a desintegração do Império Romano. Somadas a outros aspectos, essas condições conformariam as principais características da sociedade medieval, que você vai estudar no próximo tópico. 4.1 Os germânicos e a Europa Ocidental medieval Um dos principais esforços da historiografia contemporânea sobre o Medievo envolve desvencilhar a concepção de Idade Média da de feudalismo. Tal analogia foi 29 construída em determinado momento e até os dias de hoje permanece em algumas narrativas, inclusive nos livros didáticos. Para além de ultrapassar essa concepção reducionista do período medieval enquanto sistema econômico e político feudal, é imprescindível refletir sobre a origem da sociedade da Idade Média. A ideia é identificar quais são as características provenientes dos romanos e quais foram legadas pelos povos germânicos. Os legados romanos para o Medievo incluem: a organização de vilas (grandes latifúndios de economia de base agrária, relativamente autossuficientes); o sistema de trabalho de colonato (vínculo estabelecido pelo trabalhador com o lote por ele ocupado); a descentralização do poder político (ocorrida pelo processo de ruralização do Império). E quais são os legados dos povos germânicos? Esses povos legaram: uma sociedade de base agropastoril, sustentada na relação do beneficium (concessão do direito de usar a terra em troca de serviços e tributos); o poder descentralizado, em que cada tribo era formada não somente por relações familiares, mas também de lealdade; o comitatus, ou seja, a relação de fidelidade que se estabelecia entre os soldados e os seus chefes, em troca de proteção e participação na distribuição das pilhagens; o direito consuetudinário, ou seja, nos costumes e usos de cada tribo Considere o seguinte: A tradição jurídica propriamente germânica era consuetudinária e exercida nas Sippen (comunidades de sangue) que seguiam fielmente seus chefes guerreiros que [...] estavam condenados a vencer para poder manter sua autoridade. O fundamento das organizações germânicas não foi como o de Roma no período do Império, que estava assentada na ideia de salvação pública e de bem comum, mas era uma “reunião de interesses privados numa associação provisória automaticamente reconstruída pela vitória” (DE PAULO, 2009, p. 180–181). 30 Le Goff (2007, p. 47–48) afirma que houve dois elementos de uniformização dos reinos germânicos que deixaram um legado para a Europa Ocidental: as monarquias e, principalmente, a figura dos reis; e o seu conjunto de leis, que, segundo o autor, resumiam-se na “[...] lista de tarifas, de multas, de compensações monetárias ou corporais, que castigam os delitos e os crimes, e diferentes segundo a pertença étnica e a classe social dos culpados [...]”. Essa teria sido a base jurídica da Alta Idade Média. 5 O REINO FRANCO 5.1 Império Franco Os francos, um dos povos germânicos que ocupavam o território da Europa Ocidental, são originários da união de grupos que viviam na região do vale do rio Reno. Tal união ocorreu em torno dos séculos II e III da Era Cristã. Durante esse período, os francos estiveram em guerra com o Império Romano em diversas ocasiões devido a invasões territoriais bastante significativas, tendo chegado, por exemplo, até a região de Tarragona, na atual Espanha. Já no século IV, entre 355 e 358, o imperador Juliano estabeleceu relações mais diplomáticas com os francos, cedendo-lhes uma parte considerável do norte da Gália (na região da atual Bélgica). A partir de então, tornaram-se um povo com o status de federado junto ao Império Romano. Dessa forma, ajudaram na proteção das fronteiras do Império como aliados. Não restam muitas fontes que possam contribuir para o estudo dos primeiros reinados dos francos, sendo muito difícil separar acontecimentos políticos de narrativas mitológicas. Assim, é difícil saber se os reis Faramond e Clódio, por exemplo, possuíam alguma relação com a dinastia merovíngia. Durante o século V, os francos germânicos se tornaram líderes de um número cada vez maior de subalternos galo-romanos, principalmente por meio de guerras contra inimigos comuns, estrangeiros. Essas guerras, que também dão indícios do expansionismo do período, acabaram por firmar o domínio da dinastia merovíngia. Os francos haviam conquistado o norte da Gália antes do reinado de Clóvis, porém foi após 31 a posse deste como rei dos francos que ocorreu a dominação de todas as regiões ao norte do rio Loire. Esse domínio se estabeleceu não somente por meio de guerras — como a realizada contra os alamanos, os burgúngios e os turíngios —, mas também pela reunião, sob a autoridade dos francos, de inúmeras colônias. Fonte: www.povosgermanicos.com.br É neste contexto que surge a figura de Clóvis, que conseguirá realizar a união política dos francos e estender sua hegemonia por toda a região das Gálias por meio de uma série de vitórias militares e de uma política de alianças matrimoniais com outras monarquias. No entanto, o prestígio advindo dos triunfos militares não era capaz de resolver uma questão decisiva para a consolidação do poder de Clóvis, qual seja, o alinhamento da poderosa aristocracia galo- -romana à sua autoridade. Uma das dificuldades para tanto era o problema religioso (CRUZ; JOAQUIM, 2014, p. 64) Com a conversão de Clóvis ao cristianismo niceno (não se sabe se ela ocorreu no ano de 496, 498, 499 ou 506), iniciou-se uma aliança junto à Igreja Católica. Assim, o processo expansionista adquiriu um viés evangelizador e Clóvis conquistou o sudoeste da Gália, até a região dos Pirineus, e, posteriormente, as tribos francas do rio Reno (BIBIANI; TÔRRES, 2002). 32 Clóvis teria se convertido oficialmente ao catolicismo em Reims, condenando, dessa forma, o arianismo. Após a vitória nos confrontos com os alamanos e visigodos e a conquista do sudoeste da Gália até a região dos Pirineus, Clóvis adquire “[...] a fama de rei inspiradopor Deus e representante da verdadeira cristandade, apesar dos discutíveis métodos com que realiza a sua expansão, dominando os francos e mais ou menos toda a Gália [...]” (METZNER, 2010, p. 117). Quais são os problemas que se colocam aos historiadores para o estudo desse reino, principalmente durante a dinastia merovíngia? Muitos são os historiadores que apontam o intervalo compreendido entre o século VI e a primeira metade do século VIII na Gália como um período de poucos testemunhos escritos. De acordo com alguns autores, as principais fontes para o estudo dos francos nesse período são: “[...] a Lei Sálica, a correspondência dos príncipes da Austrásia, os capitulários, os cânones conciliares, os poemas de Venâncio Fortunato (c. 535–c.600), pequenas crônicas, vidas de santos e, sobretudo, as obras de Gregório de Tours (c. 538–594) [...]” (SILVA; MAZETTO JÚNIOR, 2006, p. 90). Para além da questão quantitativa, existem problemas relativos ao estado de conservação dos documentos, que nem sempre é satisfatório, e às dificuldades em compreender o latim desses manuscritos, que se difere bastante do latim clássico. Ademais, há os erros cometidos pelos copistas nas transcrições dos manuscritos (SILVA; MAZETTO JÚNIOR, 2006). Quais eram as características desse reino durante a dinastia merovíngia? Veja o que afirma Cruz (2013, p. 54): [...] o período merovíngio é marcado pela existência concomitante de diversos monarcas pertencentes à dinastia reinante. Somente em poucos momentos, encontramos a monarquia unificada sob a égide de um único monarca, sendo os mais importantes e longos períodos os reinados de Clóvis e Dagoberto, em que observamos a unidade do poder real nas Gálias. 5.2 A conversão de Clóvis e a expansão do Império Merovíngio Antes de ler a respeito da conversão de Clóvis e da expansão do Reino Franco, você deve compreender como funcionava o catolicismo na Europa durante a Alta 33 Idade Média. A Igreja, tendo os seus muitos bispos atuando de maneira autônoma em suas dioceses, sentindo-se herdeira do Império Romano, enxergava os povos germânicos, na sua grande maioria pagãos no início da eminente ameaça ao Império, como os seus grandes inimigos. Apesar de os ostrogodos, visigodos e vândalos já estarem convertidos ao estabelecerem contatos com o Império Romano, eles não professavam a fé católica, aquela que Constantino oficializou no Concílio de Niceia, em 325. Ao contrário, esses povos haviam se convertido ao arianismo, considerado herético nesse mesmo concílio. Isso gerou um confronto religioso entre os migrantes e invasores “heréticos” e as populações católicas locais. Nessa conjuntura, os francos, que eram um povo predominantemente pagão, no final do século V, diferentemente dos demais reinos germânicos, convertem-se ao cristianismo, e não ao arianismo. Clóvis compreendera o poder que os bispos haviam adquirido em seu reino e, convertendo-se ao cristianismo, conseguiu o apoio do clero e da população em geral para suas conquistas militares (BASCHET, 2006). Você deve compreender quem era Clóvis a fim de entender a importância de seu processo de conversão. Nas últimas décadas do século V, os francos estavam divididos em diferentes grupos antagônicos e reconheciam alguns aristocratas galo- romanos como autoridade máxima. Em 481, Clóvis foi eleito rei dos francos e, embora pertencesse a um clã de origem sálica, promoveu a unidade militar e política desse povo na batalha contra Siágrio, um aristocrata galo-romano, em 486. Sua vitória, somada ao bom relacionamento com os segmentos aristocráticos galo-romanos, foi decisiva para a construção da hegemonia franca na antiga província da Gália. Um dos principais desafios do reinado de Clóvis foi o enfrentamento às tribos de origem alamana que, estabelecidas nas regiões próximas à atual cidade de Colônia, na Alemanha, ameaçavam o poder franco e as propriedades dos aristocratas de origem germano-romana. Assim, aliado aos romanos, Clóvis enfrentou os alamanos na Batalha de Tolbiacum, em 496, saindo vitorioso e consolidando o seu poder militar e político. É a partir da vitória nessa batalha que se pode falar sobre a conversão de 34 Clóvis ao cristianismo. Existem diferentes explicações historiográficas para a conversão de Clóvis. Antes de conhecer algumas dessas teorias, você deve compreender as práticas religiosas no Reino Franco. Diferentemente de outros povos germânicos, os francos não se converteram ao arianismo, mantendo-se com seus cultos pagãos, com rituais à natureza e aos fenômenos naturais, bem como a algumas divindades da mitologia nórdica. Assim, alguns missionários e monges da Igreja Católica veem no Reino Franco uma grande possibilidade de disseminação do catolicismo e conversão dos povos germanos. A pressão exercida pela esposa de Clóvis, a princesa católica de origem burgúndia Clotilde, também é comentada como fator que levou ao rei a se converter. Além disso, os pesquisadores apontam as guerras contra os alamanos, entre 496 e 497, como um dos motivos para a conversão do rei ao catolicismo: Clóvis teria prometido que se converteria caso ganhasse os confrontos. Veja o que afirma Le Goff (2006, p. 31): O século VIII é, na verdade, o século dos francos. [...]. O golpe de mestre de Clóvis foi converter-se com seu povo, não ao arianismo, como os outros reis bárbaros, mas ao catolicismo. Com essa cartada religiosa ele consegue beneficiar-se do apoio, se não do papado ainda fraco, pelo menos da poderosa hierarquia católica e do igualmente poderoso monaquismo. No século VI os francos conquistaram o reino dos burgúndios, de 523 a 534, e depois a Provence, em 536. O processo de conversão do rei foi realizado pelo bispo de Reims, São Remígio, e envolveu três mil soldados que também foram batizados no mesmo dia. Obviamente, a adoção do catolicismo como religião entre os francos não aconteceu espontaneamente, mas foi primordial para a unificação política das tribos germânicas e para o fortalecimento do poderio da Igreja Católica. “Além disso, o apoio da Igreja Cristã era um poderoso elemento de legitimação do poder monárquico, porém a conversão deveria atender também aos interesses régios de manutenção de sua autoridade e autonomia em relação à própria Igreja e aos demais reinos bárbaros [...]” (CRUZ; JOAQUIM, 2014, p. 70). A partir de então, Clóvis, com o apoio da Igreja, iniciou uma série de conquistas nas regiões vizinhas do Reino Franco, associando a dominação política com a evangelização e, dessa forma, pressionando outros reis arianos a converterem-se ao 35 catolicismo ortodoxo. Em outras palavras, a unificação política sob o domínio de Clóvis também se deu sob o comando eclesiástico da Igreja Católica. Houve uma aliança de interesses políticos e religiosos, e a atuação militar pôde ser respaldada pela crença e pela fé. Existem referências que apontam que as conquistas de Clóvis eram seguidas de muita violência. Havia a possibilidade de se convertem os conquistados a partir dos trabalhos dos bispos e missionários, que promoveram processos de conversão em massa de tribos arianas, ou seja, de forma pacífica. Contudo, em outros lugares, esse processo se deu por meio de conflitos e guerras. Portanto, a conversão de Clóvis, além de contribuir para as suas empreitadas militares, permitiu um contato muito mais receptivo com as populações galo-romanas do que, por exemplo, com os povos arianos, burgúndios, vândalos ou visigodos. Os merovíngios puderam então construir um reino que se tornaria estável ao longo do tempo. Neste sentido, o batismo de Clóvis é um ato político que estabelece uma ruptura com as tradições pagãs que sustentavam e legitimavam a realeza franca. Mais do que a atuação de um Providencialismo, que é uma estratégia narrativa, a conversão ao catolicismo do rei merovíngio deve ser analisada tendo em vistaa necessidade da monarquia franca de marcar sua independência e autoridade diante dos reinos visigodo de Alarico II e ostrogodo de Teodorico Amalo por um lado, e a busca de angariar o apoio da aristocracia galo-romana por outro (CRUZ; JOAQUIM, 2014, p. 65). Após a conversão de Clóvis, suas iniciativas expansionistas e militares tornaram- se melhor vistas pelo episcopado católico. Este passa a apoiar Clóvis no enfrentamento com os visigodos, convertidos ao arianismo, considerado herético. Apoiado pelas forças burgúndias, Clóvis derrotou Alarico II, em 507, na batalha de Vogladum (localidade próxima à atual cidade de Poitiers, na França), acabando com o reino visigodo de Tolosa e incorporando seu território ao Reino Franco. Essa vitória, bem como a construção da hegemonia pelos francos no território da antiga província da Gália, fez com que o imperador romano-oriental Anastácio conferisse a Clóvis os títulos de augusto e de cônsul. Portanto, os processos de conversão dos reis bárbaros ao cristianismo respondem tanto a questões religiosas quanto a interesses políticos. Em ambos os casos, a conversão foi utilizada como forma de afirmação de 36 poder e de independência em relação às demais monarquias surgidas após a fragmentação da autoridade tardo-romana. 5.3 Enfraquecimento dos merovíngios Na Figura 1, veja as fronteiras do Reino Franco à época de Clóvis para compreender o alcance de suas expansões e as causas, após sua morte, do enfraquecimento da dinastia merovíngia. 37 Não existem informações precisas sobre a morte de Clóvis. Sabe-se apenas que faleceu em 511, aos 45 anos de idade, talvez por consequência de uma guerra por ele iniciada junto ao atual Canal da Mancha. De acordo com a lei sálica, o reino foi dividido entre seus quatro filhos homens: Teodorico (485–533), filho de uma princesa renana, e Clodomiro (496/497–524), Childeberto (?–558) e Clotário (500–561), filhos de Clotilde (METZNER, 2010). Iniciou-se então uma fase de muitos conflitos no Reino Franco. Houve um crescente descumprimento da lei, além de problemas comerciais, o que ocasionou um processo fragmentação social, com a criação de vilas cada vez mais autossuficientes. Além disso, as terras passaram a ser compreendidas como objeto de herança, o que levou a movimentos de divisão e unificação territorial frequentes — não sem assassinatos e guerras entre famílias, aos quais a família real não ficou imune. A rivalidade entre os filhos de Clóvis acirrava ainda mais os antagonismos. Apenas Clotário, no curto espaço de tempo entre 558 e 561, conseguiu restabelecer a unidade régia dos francos. Com sua morte, houve uma nova partilha e surgiram os reinos francos que se prolongariam até o século VII: Neustria, Austrasia, Aquitania e Borgonha. Nesse contexto, havia muitos confrontos entre os reis e as aristocracias regionais. Essa fragmentação política e social acabou enfraquecendo o poder central do monarca devido à criação de nobrezas locais: Após sua morte [de Clóvis], em 511, os sucessores, que invocavam um ancestral legendário, Meroveu, e que por isso passaram a ser chamados pela historiografia de merovíngios, deram prosseguimento às conquistas francas: as seguidas vitórias sobre burgúngios, alamanos e bávaros proporcionou-lhes um vasto “império”, muitas vezes sobre a forma de protetorados sancionados por tributos. Mas o poder real foi gradualmente dissolvendo-se na medida em que se afirmava o dos duques, comandantes dos exércitos, e sobretudo o dos membros do palácio, que formavam um grupo fechado e solidário, enriquecido com a posse de grandes domínios e capaz de arrancar importantes concessões aos reis (BIBIANI; TÔRRES, 2002, p. 8) Durante os reinados dos filhos de Clóvis, o Reino Franco seguiu seu processo de expansão, dominando praticamente todo o território da atual França, bem como áreas do sudoeste da atual Alemanha (um território conhecido como Alâmania) e a Turíngia (a partir de 531). A unidade do Reino Franco sob o comando da dinastia merovíngia vai, aos poucos, cedendo espaço a outras famílias, até a consolidação da dinastia carolíngia. 38 Os reis merovíngios distanciaram-se das funções administrativas e políticas e, por isso, foram chamados por alguns de “reis indolentes”. A partir de 639, com a ascensão ao poder dos chamados reis indolentes, o governo passou a ser exercido na prática pelos prefeitos do palácio, cargo administrativo tornado hereditário e concentrado com os duques de Heristal. O Reino Franco 9Carlos Martel, da família de Heristal, em 714 tornou-se prefeito do Palácio. Vencendo os muçulmanos, em expansão pela Europa Ocidental, na Batalha de Poitiers (732), passou a ter grande prestígio. Com sua morte, seu filho, Pepino, o Breve tornou-se prefeito do palácio em 471. Com apoio do papa Zacarias, interessado em usar a força militar dos francos contra o avanço bizantino e lombardo na Itália, Pepino, o Breve, com um golpe de Estado, retirou do poder o último rei merovíngio, Childerico III, e assumiu como novo rei franco, iniciando a dinastia carolíngia (MERCADANTE, 1990, p. 150). O poder de fato passou a ser exercido pelos major domus (“prefeitos do palácio”), altos funcionários pertencentes à nobreza. Como afirma Le Goff (2006, p. 31): As divisões e as rivalidades entre os descendentes de Clóvis retardam o esforço franco, que até parece comprometido no início do século VII com a decadência da dinastia merovíngia — legendária pela imagem de seus reis vadios — e do clero franco. [...] a dinastia jovem e empreendedora dos carolíngios substituía a dinastia merovíngia debilitada. Aos problemas relativos à fragmentação política e ao enfrentamento entre o poder real e as aristocracias regionais, soma-se um problema econômico e político. De acordo com Franco Júnior (2001), já havia naquela época uma tendência à busca da autossuficiência dos feudos, em função de uma série de fatores (inseguranças causadas pelas invasões e ruralização da sociedade, por exemplo). Dessa forma, houve o fortalecimento do poder local pelos proprietários de terras, que passaram a desempenhar algumas funções estatais, como a cobrança de tributos. Os administradores públicos e os soldados também eram remunerados com imunidades e terras e, dessa forma, segundo o autor, houve um enfraquecimento da dinastia merovíngia, cedendo lugar à família latifundiária dos carolíngios. Essa visão é compartilhada por Carlà (2010, p. 52): [...] as camadas aristocráticas, especialmente em determinadas zonas como a Gália merovíngia, preferem deixar de residir no centro urbano para viver nas suas propriedades fundiárias, atraindo para elas numerosas estruturas produtivas e deslocando, pelo menos em parte, o baricentro econômico e administrativo da cidade para o território [rural]. 39 A partir da construção dessa rede de fiéis proprietários de terra em torno dos soberanos, criaram-se laços de parentesco que deram origem às linhagens dos arnolfíngios, pepínidas ou carolíngios. Assim, foi possível tornar hereditário o cargo de prefeito do palácio e estabelecer clientelas militares. 6 A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO BIZANTINO 6.1 Constantinopla e as invasões bárbaras A formação do Império Bizantino começa com a reconstrução da antiga cidade grega de Bizâncio, ordenada pelo imperador romano Constantino. Surge assim uma nova capital para o Império Romano, com rotas comerciais estratégicas que colocariam a Roma do Oriente como interface entre o mar Mediterrâneo e o mar Negro, ou seja, na zona limítrofe entre Europa e Ásia. Nesse sentido, a história de Bizâncio remete ao mundo greco-romano, perdurando por aproximadamente mil anos na Idade Média. Segundo Monteiro (2016), a colonização grega que deu origem a Bizâncio teria ocorrido em meados do século VII a.C., com um agrupamento de gregos oriundos de Mégara, uma cidade ao oeste de Atenas. Segundo o autor,
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