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CENTRO UNIVERSITÁRIO FAVENI MULTICULTURALISMO E DIREITOS HUMANOS GUARULHOS – SP 2 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 4 2 CULTURA E MULTICULTURALISMO ................................................................ 5 2.1 Cultura e tradição ................................................................................................ 7 3 MULTICULTURALISMO E INTERCULTURALIDADE ........................................ 9 3.1 Ser humano: produto e produtor de cultura ...................................................... 11 3.2 Pluralismo Cultural ............................................................................................ 12 3.3 O diálogo e o respeito às diferentes culturas .................................................... 13 4 A CULTURA NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE ............................................... 15 4.1 Manifestações culturais no desenvolvimento educacional da humanidade ...... 16 4.2 A relação entre as culturas ............................................................................... 18 4.3 Universalismo, relativismo e multiculturalismo .................................................. 20 4.3.1 Universalismo ................................................................................................... 20 4.3.2 Relativismo.... ................................................................................................... 21 4.3.3 Multiculturalismo ............................................................................................... 21 4.4 As manifestações concretas e os aspectos principais da cultura ..................... 22 5 O QUE É IDENTIDADE DE UMA CULTURA? ................................................. 24 5.1 Conceituando a ideia de identidade nacional ................................................... 26 5.2 Refletindo sobre a identidade brasileira ............................................................ 27 6 DESIGUALDADE, DIVERSIDADE E DIREITOS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO ................................................................................................. 30 6.1 A desigualdade no acesso aos direitos no Brasil do ponto de vista histórico ... 30 6.2 A conquista de direitos no Brasil ....................................................................... 33 6.3 Conquistas e retrocessos nos direitos .............................................................. 36 7 O PROCESSO HISTÓRICO DA CONSTITUIÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS.................................................................................................................38 7.1 A constituição dos direitos humanos ................................................................. 39 7.2 Direitos humanos .............................................................................................. 41 7.3 Direitos humanos e senso comum .................................................................... 44 8 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS .............................. 47 8.1 Principais garantias ........................................................................................... 47 8.2 A importância da Declaração dos Direitos Humanos ........................................ 49 8.3 A Declaração e a legislação educacional brasileira .......................................... 51 3 9 DIVERSIDADE E TOLERÂNCIA ...................................................................... 54 9.1 Direitos Culturais ............................................................................................... 55 9.2 A tolerância em um mundo cada vez mais conectado ...................................... 57 10 CIDADANIA ...................................................................................................... 58 10.1 Dimensões da Cidadania .................................................................................. 58 11 DIVERSIDADE E EDUCAÇÃO ......................................................................... 62 11.1 Diversidade e educação de qualidade .............................................................. 65 11.2 Diversidade nas leis e secretarias .................................................................... 68 11.3 Práticas de diversidades: escola, sociedade e cultura ...................................... 69 11.4 Políticas de inclusão ......................................................................................... 70 12 COMO PROMOVER UMA EDUCAÇÃO MULTICULTURAL? .......................... 73 12.1 Práticas possíveis para a sala de aula .............................................................. 73 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 77 4 1 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 5 2 CULTURA E MULTICULTURALISMO O estudo sobre a cultura e o multiculturalismo é fundamental para compreendermos o ser humano, as suas interações e o seu desenvolvimento nas diferentes sociedades. Como cultura, podemos identificar tudo aquilo que é produzido pelo ser humano, entendido como ser cultural; já o multiculturalismo remete à existência de diferentes culturas. O que caracteriza o homem — o ser humano — e o diferencia dos demais animais? Como podemos defini-lo? O aspecto cultural, a partir das interações e manifestações humanas, é, sem dúvida, a sua principal característica. Mas o que é cultura? Segundo o autor François Laplantine, antropólogo francês, na obra Aprender antropologia (1989), a cultura pode ser compreendida como o próprio social considerado a partir das diferenças: O social é a totalidade das relações (relações de produção, de exploração, de dominação [...]) que os grupos mantêm entre si dentro de um mesmo conjunto (etnia, região, nação [...]) e para com outros conjuntos, também hierarquizados. A cultura, por sua vez, não é nada mais que o próprio social, mas considerado dessa vez sob o ângulo dos caracteres distintivos que apresentam os comportamentos individuais dos membros desse grupo, bem como suas produções originais (artesanais, artísticas, religiosas [...]) (LAPLANTINE, 1989, p. 120) Nesse sentido, o autor afirma que a cultura distingue o ser humano dos demais seres, como, por exemplo, os animais. Enquanto sociedade, os animais também podem conviver e ter sociabilidade, mas a produção cultural, a comunicação, a troca e o trabalho são especificamente humanos, como citado a seguir: [...] o que distingue a sociedade humana da sociedade animal, e até da sociedade celular, não é de forma alguma a transmissão das informações, a divisão do trabalho, a especialização hierárquica das tarefas (tudo isso existe não apenas entre os animais, mas dentrode uma única célula!), e sim essa forma de comunicação propriamente cultural que se dá através da troca não mais de signos e sim de símbolos, e por elaboração das atividades rituais aferentes a estes. Pois, pelo que se sabe, se os animais são capazes de muitas coisas, nunca se viu algum soprar as velas de seu bolo de aniversário (LAPLANTINE, 1989, p. 121). O ser humano é cultural, pois há uma comunicação que é cultural, isto é, produzida pelos homens e entre eles, que transforma a natureza, o seu meio, aperfeiçoa meios de sobrevivência, desenvolve técnicas, como o direito, a arquitetura, 6 a tecnologia, a música, a ciência, a arte, entre outros, por meio do uso da razão, do trabalho e da lógica. O desenvolvimento da cultura e do homem como ser cultural se dá, eminentemente, por meio da interação, das manifestações culturais, da linguagem, do processo de ensino e das tradições, que são passados entre gerações e grupos em um determinado contexto social. Várias formas de diferença e desigualdade convivem na sociedade contemporânea. Ao longo de suas trajetórias de vida, os indivíduos se identificam e se diferenciam dos outros das mais diversas maneiras. [...]. Os marcadores sociais da diferença são sistemas de classificação que organizam a experiência ao identificar certos indivíduos com determinadas categorias sociais (ZAMBONI, 2015, p. 13). Diversas ciências se ocupam do estudo do homem enquanto ser cultural, das suas manifestações, distinções, interações e dos seus comportamentos, como é o caso da antropologia, da sociologia e da psicologia. Outras áreas — como arquitetura, letras, pedagogia e Direito — têm como objeto manifestações próprias do ser humano, como a linguagem escrita e falada, o processo de ensino e aprendizagem, o desenvolvimento de técnicas, estruturas e ocupação, bem como o universo jurídico, tomando o Direito como manifestação de uma cultura e sociedade, que se modifica ao longo do tempo. No campo de estudo da antropologia, que é uma ciência que considera o homem em todas as suas dimensões, há uma área, ou ramo específico, que se ocupa de estudar as manifestações culturais dos seres humanos. Trata-se da antropologia cultural, que estuda as características que distinguem as condutas dos seres humanos e os faz identificar ou pertencer a uma mesma cultura, considerando os diferentes tempos e espaços de presença humana. Fonte: http://www.justificando.com/ 7 2.1 Cultura e tradição A partir da compreensão do ser humano como ser cultural, verificamos que o conceito de cultura é de fundamental importância, assim como o de tradição. Isso porque ambos se relacionam no que diz respeito à transmissão de conhecimento, práticas e comportamentos entre gerações. No entanto, há diferenças conceituais importantes na forma como se compreende cada categoria e as suas manifestações. (Barroso, 2018). O Quadro a seguir elucida a distinção entre cultura e tradição. CULTURA TRADIÇÃO O QUE É Do latim cultura, culturae, que significa “ação de tratar”, “cultivar” ou “cultivar a mente e os conhecimentos”. A palavra culturae se originou a partir de outro termo latino: colere, que quer dizer “cultivar as plantas” ou “ato de plantar e desenvolver atividades agrícolas”. A palavra tradição é mais dinâmica do que parece à primeira vista. Traditio, em latim, é a ação de entregar, de transmitir algo a alguém, de confiar algo valioso a outra pessoa. Uma pessoa tradicional é aquela que recebeu (e precisar transmitir depois) um conhecimento, uma herança ou uma responsabilidade do passado. COMO PODE SE MANIFESTAR Com o passar do tempo, a palavra cultura foi colocada de modo análogo entre o cuidado na construção e tratamento do plantio, com o desenvolvimento das capacidades intelectuais e educacionais das pessoas. Cultura popular, cultura organizacional e antropologia cultural. A tradição revela um conjunto de costumes, crenças, práticas, doutrinas, leis, que são transmitidos de geração em geração, em dado grupo social, e que permite a continuidade de uma cultura ou de um sistema social. No direito, a tradição consiste na entrega real de uma coisa para efeitos da transmissão contratual da sua propriedade ou da sua posse entre pessoas vivas. A situação jurídica resulta de uma situação de fato: a entrega. Entretanto, a tradição poderá não ser material, mas apenas simbólica. Tradição religiosa. Fonte: Carolina Bessa Ferreira de Oliveira, SAGAH – Soluções Educacionais Integradas, 2018. 8 A relação entre cultura e tradição coloca-se a partir de uma visão de manifestação humana e comportamento tipicamente do homem, como as lendas, as crenças e os costumes. Os elementos da tradição — como formas de se vestir, ritos de passagem, organização de trabalhos, cerimônias e religiões — podem passar a fazer parte de uma dada cultura. Por isso, a cultura se refere, de modo geral, aos modos de vida de uma sociedade ou grupo, pois inclui tanto os aspectos materiais e tangíveis (como símbolos, objetos e tecnologias) quanto imateriais ou intangíveis (como crenças, valores e ideias). Além disso, o costume é considerado uma fonte do Direito, ao lado de outras, como a lei e a jurisprudência, lembrando que o Direito se modifica à medida que a sociedade e o homem também são modificados. Assim, no campo do Direito, os fatores culturais e da tradição estão relacionados à evolução do Direito e às suas fontes. De acordo com Sergio Cavalieri Filho (2015), ao considerar a concepção sociológica do Direito como produto de múltiplas influências sociais, vivenciamos regras sujeitas a constantes modificações, porque se originam dos grupos sociais, que também se transformam ao longo do tempo. Assim, entre os principais fatores que concorrem para a evolução do direito, o autor elenca: fatores econômicos; fatores políticos; fatores culturais; fatores religiosos. Em relação aos fatores culturais, o autor afirma que: Cada povo tem sua peculiaridade, sua tendência ou dom natural. A Grécia, por exemplo, notabilizou-se pela arte, pela cultura; os hebreus pela religião; os fenícios pela navegação; Roma pelo direito. Pois o direito de cada um desses povos reflete o aspecto cultural em que mais se desenvolveram, e quando a cultura de um é colocada em contato com a do outro, há influências recíprocas sobre o direito de cada um. A conquista da Grécia, como é sabido por todos, exerceu influência decisiva, não apenas nas artes e na literatura romanas, mas também nas suas instituições jurídicas. [...] A maior evidência de ser o Direito uma manifestação de cultura social, um fenômeno cultural, está no fato de surgirem novos ramos do Direito à medida que se expande o mundo cultural do povo. Falamos hoje em Direito Espacial, Nuclear, das Telecomunicações etc. [...] (CAVALIERI FILHO, 2015, p. 56-57). 9 3 MULTICULTURALISMO E INTERCULTURALIDADE A sociabilidade e a socialização são dois temas clássicos da Sociologia, mas que são muito importantes para compreender como o ser humano se relaciona com a sociedade na qual está inserido e com a cultura dessa sociedade. Logo, também é uma preocupação da Antropologia compreender como o ser humano estabelece relações sociais. A sociabilidade é uma característica intrínseca ao ser humano, sendo quase uma necessidade para se viver em sociedade. É graças à sociabilidade que temos essa ânsia pela vida em grupo, já que o ser humano não é dado ao isolamento. No entanto, é a socialização que nos integra à cultura em que nascemos, inculcando- nos os valores e hábitos dela, que adotamos como nossos, por meio dos diversos agentes de socialização. São esses agentes de socialização que nos transmitem as normas que regem a nossa vida. A sociabilidade e a socialização são responsáveis pela característica dos seres humanos enquantoseres sociais e pela necessidade da vida em grupo. Nesse sentido, considerando a nossa vida social, é importante destacar que, embora outros animais (como os lobos, os macacos, as formigas e as abelhas) também sejam considerados animais sociais, pois vivem em grupos, “[...] somente os seres humanos têm culturas completamente elaboradas — tradições e costumes específicos transmitidos pela aprendizagem e pela linguagem ao longo de gerações”, conforme leciona Kottak (2013, p. 43). Nesse sentido, o conceito de cultura se torna fundamental tanto para a Antropologia quanto para a Filosofia, pois nos possibilita compreender melhor os seres humanos e a sua vida social. Você, provavelmente, está se perguntando: afinal, qual é o conceito de cultura? Bem, o antropólogo, escritor e ex-ministro da educação, Darcy Ribeiro (1999), com muita simplicidade, afirma que a cultura é tudo o que resulta do trabalho humano, tudo o que é feito pelos homens ou resulta do trabalho deles e dos seus pensamentos. Temos também a definição amplamente citada de cultura enquanto objeto da Antropologia, elaborada por Tylor (2000, p. 1, grifo nosso): “A cultura [...] é o todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, artes, regras morais, leis, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade”. Ou seja, para Tylor (2000), a cultura trata daquilo a que o ser humano 10 está exposto por crescer em determinada sociedade, ficando exposto a uma tradição cultural específica. Por exemplo, os indivíduos que nascem no Rio Grande do Sul são apresentados aos elementos de sua cultura, aquilo que é da tradição gaúcha. Portanto, o indivíduo poderá ou não aprender a tomar chimarrão, falar “bah” ou “tchê”, etc. Ao ser exposto a determinada cultura, ao nascer, o ser humano adquire seus hábitos e costumes, e, portanto, estes passam a ser seus hábitos e suas culturas. De acordo com Kottak (2013, p. 44): “Enculturação é o processo pelo qual uma criança aprende sua cultura”. O processo de enculturação é possibilitado pela facilidade de aprendizagem das crianças. Acerca disso, Kottak (2013, p. 44) afirma: “A facilidade com que as crianças absorvem qualquer tradição cultural reside na capacidade humana singularmente sofisticada de aprender” Outra definição de cultura bastante conhecida e referenciada é a do antropólogo Clifford Geertz. Para Geertz (1981), as culturas se caracterizam como um conjunto de mecanismos de controle — planos, receitas, regras, instruções, aquilo que os engenheiros de informática chamam de programas para comandar o comportamento. Logo, a cultura é por ele definida como ideias baseadas na aprendizagem e nos símbolos culturais. Essas ideias são passadas não apenas às crianças, embora elas assimilem e aprendam de forma mais fácil; mas nós, adultos, podemos também receber novos hábitos e costumes — isso se dá a partir dos fatos sociais. A cultura também é aprendida por meio da observação, segundo Kottak. As crianças observam os adultos e acabam repetindo os seus hábitos. Cabe ressaltar que essa aprendizagem nem sempre se dá de forma consciente. Fonte: CRStudio/Shutterstock.com. 11 3.1 Ser humano: produto e produtor de cultura Como vimos anteriormente, a cultura pode ser definida como tudo aquilo que o ser humano produz ou que sofre a sua intervenção, de forma que, segundo Ribeiro (1999), até uma galinha pode ser considerada cultura. Portanto, tudo o que vemos ao olhar ao nosso redor é cultural e foi produzido pelo ser humano, pois a realidade, como afirmou Freire, é a realidade humana, produzida pelo ser humano. Você deve concordar que o trabalho é muito importante para o ser humano, pois lhe dignifica, o torna útil e capaz de modificar a realidade, desde que não seja um trabalho em que seja explorado. Logo, não há exagero nenhum em dizer que o ser humano é produtor de cultura. Além disso, somos seres sociais que vivem em grupo, dotados de sociabilidade, ou seja, uma necessidade intrínseca de viver em grupo e/ou comunidades, pois não somos dados ao isolamento. Ainda, nossa educação, ou seja, as nossas aprendizagens, desenvolvidas ao longo da vida, são fruto dos processos de socialização que estabelecemos nos diferentes grupos sociais que integramos ao longo da nossa vida. Há também a enculturação, como vimos, por meio da qual aprendemos os hábitos da nossa cultura e tradição. Segundo a professora Aranha (2010), o processo de socialização tem início pela influência da comunidade sobre os indivíduos. É conhecida a história das meninas-lobo encontradas na Índia, em 1920, vivendo em uma matilha. O comportamento delas em tudo se assemelhava ao dos lobos: andavam de quatro, comiam carne crua ou podre, uivavam à noite, não sabiam rir nem chorar. Só iniciaram o processo de humanização quando foram encontradas e passaram a conviver com pessoas. O mundo cultural é, dessa forma, um sistema de significados já estabelecidos por outros, de modo que, ao nascer, a criança encontra um mundo de valores dados, onde ela se situa. A língua que aprende, a maneira de se alimentar, o jeito de sentar, andar, correr, brincar, o tom de voz nas conversas, as relações sociais, tudo, enfim, se acha estabelecido em convenções. Até a emoção, que é uma manifestação espontânea, sujeita-se a regras que dirigem de certa maneira a sua expressão. A condição humana resulta, pois, da assimilação de modelos sociais: a humanização se realiza mediada pela cultura. Se, como afirma Aranha (2010) no excerto acima, a humanização se realiza mediada pela cultura, não é possível dissociar a sociabilidade e a socialização da cultura e dos processos de enculturação, pois é por meio delas que nos tornamos 12 quem somos. É claro que não cabe exclusivamente ao processo de enculturação nos definir; somos constituídos pelos grupos sociais dos quais fazemos parte, pelas experiências que vivenciamos e por aquelas culturas com as quais temos contato. 3.2 Pluralismo Cultural O multiculturalismo, ou pluralismo cultural, dá-se por meio da convivência com diferentes grupos sociais de diferentes culturas em um mesmo território. Por meio do contato com outros grupos culturais, ocorre o processo de aculturação. A aculturação é o processo pelo qual os sujeitos adquirem traços ou se adaptam às outras culturas com as quais têm contato. O processo de aculturação permite o sincretismo cultural e religioso, uma vez que, a partir do contato com outras culturas e religiões, o sujeito acaba adquirindo os hábitos e costumes daquela sociedade ou grupo social, dando origem, muitas vezes, a novos hábitos e novas práticas culturais. No Brasil, a aculturação permitiu às culturas indígenas e africanas adquirirem traços das outras culturas. Houve também a aculturação religiosa, por meio da qual as religiões de matriz indígena e africana adquiriram traços das outras religiões. Essa troca entre as culturas é conhecida também como interculturalidade, que nada mais é do que o intercâmbio cultural entre as sociedades — é quando sociedades com culturas diferentes interagem, e uma acaba assimilando os hábitos da outra, sem perder os seus hábitos culturais. Alguns autores trabalham o conceito de interculturalidade como sinônimo de multiculturalismo. (ARANHA, 2018). Em uma sociedade globalizada como esta em que vivemos, é comum que exista o que os antropólogos chamam de assimilação, que nada mais é do que o processo de mudança que um grupo étnico pode experimentar quando se muda para um país no qual uma outra cultura é dominante. Porém, essa mudança não é inevitável e nem necessária, desde que o grupo não se sinta ameaçado ou constrangido por agir conforme a sua cultura. (ARANHA, 2018). Em situações em que as pessoas são pressionadas ou questionadas acerca dos seus hábitos e culturas, é mais comum que exista a assimilação cultural, até comouma forma de autodefesa. Uma sociedade multicultural não só socializa os indivíduos na cultura dominante (nacional), mas também cria uma cultura étnica e permite, assim, a compreensão das semelhanças e diferenças entre as culturas, sem fazer qualquer 13 julgamento. Contudo, em uma sociedade tão plural culturalmente, é necessário aumentar a vigilância contra os preconceitos e as intolerâncias. E, para isso, o diálogo e o respeito são imprescindíveis. 3.3 O diálogo e o respeito às diferentes culturas Nos cenários atuais, temos várias culturas convivendo em um mesmo território, graças à globalização, e as pessoas interagem via redes sociais com pessoas de diferentes culturas, tanto do seu próprio país como dos demais. Alertar para a necessidade do diálogo e do respeito às diferentes culturas se torna ainda mais necessário. Segundo Kottak (2013, p. 62): O termo globalização abarca uma série de processos que operam em nível transnacional para promover transformações, em um mundo no qual as nações e as pessoas são cada vez mais interligadas e mutuamente dependentes. Promovendo a globalização estão as forças econômicas e políticas, juntamente com modernos sistemas de transporte e comunicação. Como já vislumbrava o Papa João Paulo II, em sua Encíclica Redemptoris Missio (JOÃO PAULO II, 1990, documento on-line): Encontramo-nos hoje diante de uma situação religiosa bastante diversificada e mutável: os povos estão em movimento; certas realidades sociais e religiosas, que, tempos atrás, eram claras e definidas, hoje evoluem em situações complexas. Basta pensar em fenômenos tais como o urbanismo, as migrações em massa, a movimentação de refugiados, a descristianização de países com antiga tradição cristã, a influência crescente do Evangelho e dos seus valores em países de elevada maioria não cristã, o pulular de messianismos e de seitas religiosas. É uma alteração tal de situações religiosas e sociais, que se torna difícil aplicar em concreto certas distinções e categorias eclesiais, a que estávamos habituados. As redes sociais, ao mesmo tempo que aproximam as pessoas das diferentes culturas, familiarizando-as com as práticas culturais dos diferentes povos que estão presentes nessa grande aldeia global ou casa comum que é a Terra, acaba distanciando-as também, devido à incompreensão e à falta de diálogo e respeito. A cada dia, vemos as pessoas se sentindo autorizadas a escreverem e dizerem o que querem, como se as redes sociais fossem uma “terra de ninguém”. Talvez, aqui, o ponto nevrálgico seja que as pessoas escrevem e dizem o que pensam. Portanto, cabe questionar: como mudar esse pensamento? Como diminuir ou mesmo erradicar 14 a intolerância, a falta de respeito, a falta de empatia e de alteridade com relação ao outro? Esse outro que é estranho a mim, mas que, ao mesmo tempo, é meu irmão e criado por Deus também. A atitude de julgar a cultura e os hábitos do outro a partir da minha própria cultura é o que os antropólogos chamam de etnocentrismo. O etnocentrismo pode ser compreendido como uma visão do mundo na qual a própria cultura é tomada como superior e se aplicam os próprios valores culturais no julgamento dos comportamentos e das crenças de pessoas de outras culturas. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, ocorre na forma de sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc. Como alternativa aos comportamentos etnocêntricos, há quem defenda a perspectiva do relativismo cultural, que é a visão de que o comportamento de uma cultura não pode ser julgado pelos padrões culturais de outra, conforme aponta Kottak (2013). O problema com o relativismo cultural é que ele pode nos conduzir ao relativismo moral, fazendo com que tenhamos de abrir mão de alguns valores e princípios fundamentais porque não podemos julgar as práticas culturais e religiosas das outras sociedades. Nesse sentido, para evitar esse relativismo moral, se existe alguma atitude a ser tomada, ela envolve sempre o diálogo e o respeito, pois se tratam de questões complexas e polêmicas, como o caso do infanticídio em tribos indígenas, a mutilação de mulheres na África, a proibição ou não do aborto e tantas outras questões. De acordo com Dupré (2015, p. 210), “O relativismo em ética ou relativismo moral é a perspectiva de que o acerto ou o erro das ações é determinado pela cultura e pelas tradições (ou relativo a elas) de comunidades ou grupos sociais específicos”. Assim, como recomendou o Papa João Paulo II (1990, documento on-line), é importante que a Igreja atue como missionária e que tenha uma missão ad gentes. Torna-se necessário, porém, precaver-se contra o risco de nivelar situações muito diferentes, e reduzir ou até fazer desaparecer a missão e os missionários ad gentes. A afirmação de que toda a Igreja é missionária não exclui a existência de uma específica missão ad gentes, assim como dizer que todos os católicos devem ser missionários não impede — pelo contrário, exige- -o — que haja missionários ad gentes, dedicados por vocação específica à missão por toda a vida. 15 Nesse sentido, talvez seja importante, em vez de “relativizar”, dialogar sobre essas práticas culturais e religiosas que são distintas das nossas. Deve-se buscar encontrar uma forma de manter não apenas a memória e a história dos povos, mas seus adeptos, com uma visão mais atual e compreensiva acerca da humanidade e, também, não ferindo os direitos humanos. Isso, de fato, é bem difícil. 4 A CULTURA NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE Desde os primórdios da história, o homem e a mulher se confrontam com a necessidade de conhecer, a fim de explicar os fatos e fenômenos, dominar a natureza ou facilitar sua existência. A humanidade construiu conhecimentos a partir dos desafios necessários à sua sobrevivência. O conhecimento surgiu e foi acumulado em decorrência das experiências vividas (FREIRE, 1984). A dimensão histórica e social do tempo permite a compreensão da história como produção do ser humano, na dinâmica das relações sociais e de diferentes conjunturas, em épocas diferentes. Trabalhar a noção de tempo nessa dimensão possibilita analisar o contexto de diferentes épocas e localizar, no tempo, o modelo de sociedade no qual está inserido; permite ao indivíduo o esclarecimento da sociedade atual como uma evolução histórica de um processo político, social, cultural e econômico que se originou no passado e que continua a ser construído no seu dia a dia, por meio da ação dos sujeitos na história. De acordo com Freire (1999), o homem cria a cultura na medida em que, integrando-se nas condições de seu contexto de vida, reflete sobre ela e dá respostas aos desafios que encontra pelo caminho. A construção da Cultura é todo resultado da atividade humana, do esforço criador e recriador do homem e da mulher, de seu trabalho por transformar e estabelecer relações de diálogo com outros homens e mulheres. Nessa expectativa, cultura é tudo que resulta da criação humana, o sujeito cria, transforma e é afetado por essas transformações. O sujeito, ao produzir cultura, produz-se a si mesmo, ou seja, ele se autoproduz. Logo, não há cultura sem o sujeito, como não há sujeito sem cultura. A cultura, pois, não somente envolve o sujeito, mas penetra-o, modelando sua identidade, personalidade, maneira de ver, pensar e sentir o mundo. 16 Para Brandão (2002), a cultura existe nas diversas maneiras por meio das quais criamos e recriamos os tecidos sociais de símbolos e de significados que atribuímos a nós próprios, às nossas vidas e aos nossos mundos. Criamos os mundos sociais em que vivemos e só sabemos viver nos mundos sociais que criamos ou onde reaprendemos a viver, para sabermos criarmos com os outros os seus outros mundos sociais – e isso é a cultura que criamos para viver e conviver. A culturanão é, pois, algo que existe fora do sujeito; ela faz parte do seu íntimo. Se somos o que somos é porque temos contato com outros seres humanos, dentro de uma realidade específica que se torna nossa verdade, mas que se desenvolve apenas na interação entre os indivíduos. O ser humano não nasce “ser social”, ele se torna um “ser social” em contato com outras pessoas (DALLARI, 1984). O grande desafio da escola, hoje, é contribuir para a formação de cidadãos críticos, conscientes e atuantes (TRINDADE, 2000). Trata-se de uma tarefa complexa que exige da escola um movimento que ultrapasse temas, conteúdos e programas. Nessa realização, percebemos o verdadeiro sentido da palavra cidadania. Fonte: https://factrem2s.com.br/ 4.1 Manifestações culturais no desenvolvimento educacional da humanidade A cultura é histórica; pensar em cultura é pensar em conhecimento, significado e formas de interpretar o mundo e nosso cotidiano. A construção de uma cultura é baseada no que fomos agregando ao longo da história para transformar e transmitir 17 nosso pensamento, nossas formas de ser e sentir. Conhecer, aprender, ver as diferenças, como somos e como nos relacionamos é se apropriar do conhecimento. Para entender o conhecimento, tem-se que refletir sobre os inúmeros fatores pelos quais somos influenciados, tais como: o que assistimos na TV, o que temos como hábito de leitura, de saberes adquiridos, de técnicas corporais incorporadas, entre outros. As manifestações culturais se apresentam de diversas formas. De uma forma clara e objetiva, a cultura pode se manifestar de diferentes maneiras, ela é complexa e dinâmica e pode ser compreendida de acordo com a origem de quem a produz. Podemos conhecê-la como, conforme Coelho (1986): Cultura erudita: é produto da leitura, do estudo e da pesquisa. É a cultura aprendida nos ambientes formais de educação. Para que se produza cultura erudita, é necessário que se tenha vasto conhecimento sobre um determinado assunto. Cultura de massa: é a cultura produzida e /ou transmitida pelos meios de comunicação a um grande número de pessoas, por meio de intermédios impressos ou eletrônicos, como jornais, revistas, televisão e internet. Cultura popular: pode ser compreendida como a soma dos valores tradicionais de um povo, expressos em forma artística, como danças, ou em crendices e costumes gerais. A cultura popular é coletiva, marcada pelo anonimato. O conceito de cultura é amplo, de maneira que é interessante estabelecer conhecimento entre os conceitos de cultura erudita, de massa e popular. Essa diferenciação tem objetivos apenas didáticos, até mesmo porque existem articulações e relações entre os “tipos culturais”, e estabelecemos contato com elas o tempo todo, pois são mutáveis e dinâmicas, ou seja, as manifestações acompanham as sociedades onde se expressam, transformando-se, permanecendo ou adaptando-se a cada realidade. Outro aspecto importante a destacar é que convivemos com as diferentes manifestações culturais, pois a cultura é variável no tempo e vai transformando-se na vivência e no processo de comunicação e transmissão de sua existência. Elementos como modo de agir, vestir, caminhar, comer se alteram diante das novas necessidades constituídas entre as gerações, localizadas em um tempo e espaço de vivência, produzindo bem-estar para alguns e, para outros, uma metamorfose imposta e, portanto, de grande violência simbólica. 18 Ribeiro (1987) insiste na ideia de que, embora a cultura seja um produto da ação humana, ela é regulada pelas instituições de modo que se lapida a ideia a ser manifestada segundo os interesses ou valores de crenças de determinado grupo social. A cultura, para Ribeiro (1987), também é uma herança que se resume a um conjunto de saberes que são passados a partir das gerações, saberes manifestados e experimentados pelo ancestral. Quando se trata de cultura e educação, podemos dizer que são esses fenômenos intrinsecamente ligados, a cultura e a educação, que, juntos, tornam-se elementos socializadores, capazes de modificar a forma de pensar dos educandos e dos educadores; quando adotamos a cultura como uma aliada no processo de ensino- aprendizagem, estamos permitindo que cada indivíduo que frequenta o ambiente escolar se sinta participante do processo educacional, pois ele nota que seu modo de ser e vestir não é mais visto como “antiético” ou “imoral”, mas sim como uma forma de ele socializar com os demais colegas. Alguns autores defendem a ideia de que a educação não pode sobreviver sem a cultura e nem a cultura sem a educação. Candau (2003, p. 160) afirma que: “A escola é, sem dúvida, uma instituição cultural [...]” 4.2 A relação entre as culturas O avanço das tecnologias permite ultrapassar fronteiras de modo mais rápido e em maior frequência. Se você for de São Paulo a Porto Alegre de ônibus, o percurso levará por volta de 24 horas, mas se você for de avião, a duração da viagem é menor do que duas horas, o que facilita e oportuniza o deslocamento. Ainda que diferentes lugares do mundo estejam mais acessíveis, em grandes metrópoles, você pode escolher conhecer culturas que estão mais próximas, e isso não significa que elas sejam tão semelhantes às suas. Esse contato pode evidenciar elementos culturais que você considere estranhos, causando certo estranhamento sobre o modo de vida do outro. Às vezes, pode até mesmo achar engraçado o modo como as pessoas de outras sociedades falam, se vestem ou mesmo dançam. Estranhar, em um primeiro momento, é como não entender direito o porquê a pessoa age de determinada forma, fala diferente ou mesmo come algum tipo de prato típico da região. 19 A diferença entre as culturas acarreta em diferenças conceituais. Fonte: Ruas (2012). Isso acontece por que somos etnocêntricos, ou seja, entendemos que o nosso modo de vida é o certo, correto, adequado, já que, para nós, é a nossa cultura e o que faz sentido nela é o que está no centro do nosso entendimento. Assim, a referência do que é certo e errado é dada pela cultura na qual nascemos. Então, podemos dizer que nascemos etnocêntricos e, com o passar do tempo, podemos aprender a relativizar o que temos como referência. Nesse sentido, o comportamento etnocêntrico pode até ser depreciativo em relação aos padrões culturais diferentes dos seus, julgando-os como imorais, aberrações ou equívocos. (BARROSO, 2018). Deste modo, temos de cuidar para que não apreendamos atitudes discriminatórias de diferentes ordens com a cultura do outro. Entendemos que, em um mundo que possibilita cada vez mais encontros, temos de saber conviver, relativizar e entender os diferentes modos de vida. Nem todos vão ter o mesmo certo e o mesmo errado, e, então, para que sejamos respeitados nos nossos pensamentos é preciso que respeitemos o certo e o errado do outro. Com o tempo e com o convívio cultural, o que era diferente pode se tornar compreensível quando analisado a partir de outros modos de vida. O meu certo e meu errado podem ser diferentes do certo e do errado do outro. Por isso, o nosso contato pode permitir uma negociação de sentidos, entendimentos e leituras sobre a sociedade que nos possibilite ampliar a formas de ver o mundo. (BARROSO, 2018). 20 4.3 Universalismo, relativismo e multiculturalismo Temos algumas correntes de pensamento que elucidam possibilidades de encontrar acordos universais, e outras que entendem que esses acordos devem considerar as diferenças culturais. Vamos tentar entender o que propaga cada uma delas e como podemos nos apropriar de suas discussões, para pensarmos a relação entre as culturas. 4.3.1 Universalismo Em um cenário pós-segunda guerra, depois das crueldades cometidas pelo nazismo, o Movimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos se organizou para instituir alguns parâmetros éticos daordem internacional. Coube, assim, evidenciar alguns direitos considerados universais que perpassassem a condição geral da pessoa humana, independente de especificidades culturais. Desse modo, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, foi o documento adotado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e que reconheceu a dignidade humana de todos os seres humanos, sem levar em consideração as diferenças entre as culturas. A partir deste contexto histórico, o universalismo ganhou adeptos, principalmente, através de um discurso de proteção do homem, como diz Silva e Pereira (2013, p. 500): Com a universalização, portanto, buscou-se proteger o indivíduo simplesmente por ser um ser humano, independe de seu país, de sua cultura. Apenas a condição de ser humano é que interessa ao universalismo cultural, já que tais direitos decorrem inescusavelmente da própria dignidade humana, entendida como valor indissociável da condição de ser humano. É delicado o tema de adoção de princípios universalistas para que não seja tomada de forma radical, impondo que alguns países possam decidir pelos outros o que é considerado universal ou não. Ainda mais em um contexto de imperialismo, de globalização e de disputa por hegemonia econômica o argumento universalista pode ser utilizado como um pretexto para interferência nas práticas culturais diversas visando a dominação e até a aculturação dos povos. 21 4.3.2 Relativismo O relativismo cultural aposta na manutenção das diferenças culturais, preservando as identidades e a diversidade das inúmeras sociedades existentes. Neste pensamento, cabe considerar como parâmetro o respeito à autonomia de cada nação ou povo para definir sua forma de vida, conforme seus valores e crenças. E assim, opõe-se à criação de um parâmetro do universalismo, porque entendem que, se defini-lo como tal, pode buscar se sobrepor aos princípios e fundamentos de sociedades que não consideram esse parâmetro como legítimo. A intepretação de Silva e Pereira (2013, p. 506) sobre os relativistas é que, para eles: [...] assim como há diversas culturas, há diversos sistemas morais, pelo que restaria impossível o estabelecimento de princípios morais de validade universal que comprometam todas as pessoas de uma mesma forma (PIOVESAN, 2006, p. 45). Ou seja, os que aderem a esta posição, a cultura é a única fonte válida do direito e da moral, capaz de produzir seu próprio e particular entendimento sobre os direitos fundamentais. Logo, não haveria como propor um princípio universal entre os povos e sociedades existentes. A cultura torna-se preponderante para acessar, conhecer e até questionar práticas culturais consideradas absurdas. 4.3.3 Multiculturalismo Para sair dessas correntes de pensamentos dicotômicos, uma nova proposta se apresenta: o multiculturalismo. Esse conceito entende que deve haver harmonia na convivência da pluralidade cultural. Boaventura de Sousa Santos (1997, p. 19) propõe uma definição mais aprofundada: O multiculturalismo, tal como eu entendo, é pré-condição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma política contra- hegemônica de direitos humanos no nosso tempo. Deste modo, deve-se levar em consideração os princípios de igualdade e o reconhecimento das diferenças, para pensar em uma concepção de direitos humanos aglutinadora, híbrida e agregadora. Assim, não se deseja opor universalismo e relativismo, mas compor um diálogo entre essas teorias para defesa dos direitos humanos, sem descaracterizar as particularidades das diversas culturas. 22 4.4 As manifestações concretas e os aspectos principais da cultura O antropólogo Mércio Pereira Gomes (2008, p. 36) nos ensina que: [...] cultura é o modo próprio de ser do homem em coletividade, que se realiza em parte consciente, em parte inconsciente, constituindo um sistema mais ou menos coerente de pensar, agir, fazer, relacionar-se, posicionar-se perante o absoluto, e, enfim, reproduzir-se. Durante muito tempo, lidou-se com a ideia de que era a capacidade de desenvolver trabalho que distinguia o ser humano como produtor de cultura; no entanto, animais desenvolvem essa atividade e alguns grupos realizam trabalhos de alta complexidade. Por outro lado, as sociedades humanas desenvolveram uma capacidade sofisticada de linguagem — que não se repete nas demais espécies animais — marcada por reprodução instintiva no decurso de sua existência. A linguagem constitui um sistema simbólico, sendo o ser humano o único animal capaz de produzir símbolos e, por isso, cultura. Desse modo, devido ao amplo universo da linguagem, o aparato cultural é formado tanto por elementos tangíveis, que são materiais (caso das máquinas, galpões, automóveis, geladeiras, entre tantos outros que fazem parte da vida material de uma sociedade), quanto intangíveis, ou seja, imateriais e abstratos (como o próprio sistema simbólico de uma sociedade, a arte e os sistemas de valores, entre outros). Diante de uma gigantesca profusão de aspectos e práticas culturais, elencá-los seria deveras extensivo, de modo que se optou aqui por reproduzir uma lista enxuta e muito eficaz elaborada por Reinaldo Dias (2004), em um texto didático e fluente: a cultura é transmitida pela herança social e compreende a totalidade das criações humanas; é exclusiva das sociedades humanas e interfere no modo de ver o mundo; trata-se, portanto, como já dito, de um mecanismo de adaptação. Dentro de um gigantesco e incontável número de manifestações concretas da cultura, destacamos alguns, tendo como eixo o mundo da estética, tal qual a arte, a arquitetura e a moda. A moradia constitui uma manifestação subordinada à organização da vida material de uma sociedade. Tomemos como exemplo a cozinha da casa brasileira: se no início do período colonial, em São Paulo, a cozinha bandeirante em geral se localizava apartada do corpo da casa, no Brasil contemporâneo, esse cômodo ganhou centralidade, funcionando como lócus de convívio e integração socioespacial. 23 A estética, ou seja, os conceitos do belo, corresponde a uma das manifestações mais fundamentais da cultura. Assim, a fachada de uma edificação, por exemplo, é diferenciada ao longo do tempo e do espaço, estando associada a variáveis como economia, natureza e praticidade. O conteúdo estético, porém, que é intangível, faz- se sempre presente. (DIAS, 2004). Hábitos alimentares são traços culturais constitutivos e distintivos das sociedades humanas. Em tempos de globalização, com o aumento e a diversificação da produção do alimento, em virtude de recursos tecnológicos, surgem cozinhas high- tech, ocorrendo uma “gourmetização” da prática social de se produzir o alimento. Além de se tratar de um traço cultural fundamental, a arte é uma manifestação que, de algum modo, permeia todas as sociedades. Trata-se de uma prática complexa, carregada de materialidade e imaterialidade, a qual, ao mesmo tempo, sofre modulações no tempo e no espaço, sendo uma manifestação estética por excelência — a despeito de seu conteúdo técnico e tecnológico, a própria arquitetura contempla a arte em sua constituição. Outra manifestação cultural muitíssimo significativa é a vestimenta, um hábito social recorrente na esmagadora maioria das sociedades. A prática é embasada por diversos fatores, como os julgamentos morais, no caso do sentimento de pudor (no Brasil, o “atentado ao pudor” é uma atitude desviante socialmente); o fator estético- mercadológico, no caso da moda, e o psicossocial, no caso de tratar-se de uma forma de ser externada a individualidade — vale a pena lembrar que, no caso da moda, o corte de cabelo ou a maquiagem são desdobramentos práticos da manifestação estética da cultura. Fonte: https://www.netmundi.org/24 5 O QUE É IDENTIDADE DE UMA CULTURA? No planeta em que vivemos, somos todos diferentes. Porque cada um de nós ocupa um espaço no mundo, tanto geograficamente como socialmente. E isso nos permite acessar certos elementos culturais que, se estivéssemos em outro lugar de outra forma, não acessaríamos. Assim, vamos construindo a nossa identidade na sociedade, e nos percebendo como parte da cultura, ao mesmo tempo em que alimentamos essa própria cultura. Para o sociólogo Manuel Castells (2008), a identidade é fonte de significados e experiências de um povo, de uma nação, de uma etnia, de um grupo social que se arquitetam por meio de atributos culturais partilhados, como, por exemplo: língua, dança, música, alimentação, crenças, valores, entre outros. Todos esses elementos configuram o modo de um grupo social ser e se apresentar para o mundo, podendo ter algumas características específicas os quais caracterizam ou ainda mesmo dividem alguns desses elementos com outras sociedades. Portanto, a identidade se refere à como você é identificado em uma determinada cultura, ou seja, ela apresenta suas características em termos do seu reconhecimento no mundo. Deste modo, você é percebido pelos outros a partir dos elementos culturais que manifesta ao mundo, e, por isso, você é reconhecido. Assim, não é sempre que temos o controle sobre como as pessoas nos rotulam. Podemos dizer que esses rótulos são dados a partir de características as quais os outros reconhecem em nós. Em relação a um time, a um gosto musical ou mesmo a estilo de vestimenta, podemos tomar decisões conscientemente de como gostaríamos de ser reconhecidos, entretanto, em relação a outras características nossas, como a altura, a cor da pele ou mesmo condição social, talvez não tenhamos o mesmo controle. Muitas vezes, não vamos simpatizar com os rótulos que são identificados em nós. Ao mesmo tempo, a identidade pode ser partilhada com quem vive da mesma forma que você, seja quando assuma certas posições, seja por conviver em uma mesma situação de faixa etária, de gênero, ou mesmo vivenciando a mesma enfermidade. Essa partilha se realiza por meio dos elementos culturais que o indivíduo divide, conscientemente ou não, com a sociedade a qual ele pertence. Assim, a identidade individual se constrói em meio a identidade coletiva e vice-versa. 25 Conceituando cada termo, podemos dizer que a identidade individual alude aos aspectos culturais aos quais cada pessoa se reconhece como tal, seja por gosto musical, religioso, profissional, entre outros. Esses aspectos podem ser definidos pelas próprias pessoas ou serem percebidos pelos outros como algo que a diferencia do restante da sociedade. Portanto, um conjunto de pessoas pode constituir uma identidade coletiva, uma vez que se reconheçam com algo em comum, seja por ter nascido no mesmo estado, por partilhar a mesma língua ou por gostar do mesmo time. De qualquer modo, compreende-se que identidade de uma etnia, de um povo, de um grupo social é sempre relacional, como nos lembra Barth (1998). Pois o que é construído em uma nação se dá a partir de elementos culturais aceitos ou negados em relação a identificação de outros grupos, podendo modificar-se com o tempo ou até mesmo como é percebido em relação a outros indivíduos ou grupos. Assim, podemos dizer que a identidade de uma sociedade se dá justamente na relação que ela tem com outros grupos sociais a sua volta. Pois, dependendo de quem está por perto, são escolhidas características culturais para evidenciar como essa sociedade pode ser localizada, percebida e analisada. Pode-se destacar um prato típico, uma culinária específica, uma dança tradicional, componentes linguísticos próprios, as formas de se vestir, entre outros. Logo, os elementos que definem a identidade podem ser variados e complexos, de modo que o conjunto deles é que modelam e identificam os grupos e os indivíduos, como reforça Castells (2008, p. 23): A construção de identidades vale-se da matéria-prima fornecida pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso. Porém, todos esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que organizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão tempo/espaço. Assim, mostra-se que a identificação por meio da identidade se dá por um composto de elementos que, conjuntamente, definem aspectos culturais dos indivíduos ou grupos sociais. Ao mesmo tempo, alguns aspectos culturais que conformam a identidade podem ser modificados com o passar dos tempos pela dinamicidade em questão, como povos indígenas originários de determinado lugar e que mudam de local de moradia devido à escassez de alimento. 26 5.1 Conceituando a ideia de identidade nacional Falando mais especificamente das nações e da construção de identidade nacional, podemos dizer que o sentimento de um povo é construído com base em suas lutas sócio-históricas, evidenciando suas conquistas e os melhores feitos diante de disputa com outras nações como produto de uma memória coletiva e seletiva de fatos vividos que orgulhem seu povo. Esse sentimento de identidade de um povo une os membros de um mesmo grupo social, reproduzindo e reforçando suas práticas sociais, que os identificam entre outras partes do mundo. Assim, a língua, o local e a história podem consolidar a imagem que se tem de uma nação, fazendo com que os indivíduos que lá estão se sintam parte integrante de uma sociedade ou nação. Como nos lembra Reinheimer (2007, p. 166), “[...] a identidade nacional precisa ser observada a partir das situações específicas nas quais ela foi acionada como forma de escapar à naturalização e à reificação que o conceito pode acarretar.”. Ou seja, para pensar em identidade nacional, temos de pensar em que sentido ela foi acionada e como podemos elucidar os componentes que identificam a nação, de modo que os membros da sociedade em questão se reconheçam através desses elementos. Também podemos dizer que a identidade também pode ser disputada, já que o modo como as indivíduos e grupos são reconhecidos no mundo permitem diferentes acessos ao que está disponível no mundo. Ou seja, ser percebido como uma nação rica, segura e poderosa pode facilitar relações comerciais com outros países, enquanto que, ser considerada uma nação violenta e pobre, pode não ter a mesma facilidade. Todavia, como a identidade não é estática, a nação rica tem que continuar se esforçando para manter o modo como é vista, e a nação desfavorecida vai tentar transformar a forma como é percebida pelas outras sociedades. Interessa para Barth (1998) pensar essas “fronteiras étnicas” de um grupo social com o objetivo de compreender as dinâmicas do grupo que estão, constantemente, em interação com outros grupos, pois é por meio desse contato que a sua identidade é definida. Nesse sentido, cada grupo evidencia o que é diferente entre eles a fim de caracterizar e explicitar a especificidade que compartilha entre seus membros. Assim, essas características são como uma marca que rotulam o indivíduo ou grupo social. 27 Para além da questão econômica, há um conjunto de sentimentos que fazem com que seus membros se identifiquem com o seu país, favorecendo a integração nacional enquanto território reconhecido pela nação como tal. Nesse sentido, a união das partes territoriais integradas favorece que seus habitantes tenham consciência de unidade. Esse amálgama decorrente da convivência no mesmo território evidencia a nação. Como diz Moreno (2014, p. 18), a nação seria: [...] uma “comunidade imaginada” – como o são todas as sociedades, necessariamente, uma estrutura social e umartifício de imaginação (Balakrishnan, 2000, p. 216) – e alicerçada sobre as transformações geradas por novas relações sociais de produção que despontam com a modernidade. Nesse sentido, o que se entende por nação não é algo homogêneo e pronto, mas perpassa conquistas, disputas e contestações que o próprio povo vivenciou a favor da constituição e da construção de uma identidade comum. Também não quer dizer que todos os membros tenham uma identidade única. Eles partilham sobre o que é seu patrimônio cultural, os seus hábitos e modos de vida, o território em que estão aglutinados, entretanto, podem ter diferenças claras no que refere à gênero, raça e classe. Desse modo, vemos que um povo destaca sua semelhança quando é preciso lutar pelo bem comum, mas que os seus membros podem ser diferentes e ocupar posições sociais desiguais. Importa como falam de sua nação e como constroem a sua identidade nacional a partir do que tem em comum. Dependendo do que viverem juntos, esse discurso pode ser modificado, alterado e até mesmo corrompido. Logo, para refletir sobre identidade nacional, devemos analisar como diz Moreno (2014, p. 27-28): Na atualidade, há, portanto, que se considerar uma longa trajetória de discursos de identidade nacional, veiculados no decorrer do tempo, que funcionam como uma história incorporada a qual não se pode desprezar. [...] A eficácia discursiva, simbólica e política de novas representações identitárias dependerá do diálogo estabelecido com elementos de permanência de longo prazo, dentro das condições e limites dados por conjunturas específicas. 5.2 Refletindo sobre a identidade brasileira No Brasil, a identidade nacional vem acompanhada de um sentimento comum entre os brasileiros. São aproximadamente 200 milhões de pessoas habitando um dos 25 estados ou o Distrito Federal. Apesar das especificidades regionais, esses 28 habitantes dividem a mesma língua, a mesma história e alguns aspectos culturais, como vamos caracterizar adiante. A identidade brasileira é compartilhada entre quem habita, ou possui laços, com a cultura vivenciada no Brasil. Também aqueles nascidos no país e que imigram para outras partes do mundo se reconhecem como brasileiros, ou ainda estrangeiros que vieram para cá e compartilham da identidade dos brasileiros, por estarem aculturados. O território brasileiro foi ocupado pela colonização portuguesa a partir de 1500, em meio a disputas do espaço com povos indígenas e outros países que tentaram colonizar o local, como a Espanha, Holanda e França. Diante do poderio de armas de fogo dos portugueses e da organização político-econômica, escravizou-se os povos indígenas e ainda trouxeram negros escravizados do Continente Africano. Assim, a formação do povo brasileiro foi constituída por povos dessas três origens: indígenas, europeus e africanos. Entre disputas e conquistas, cada povo que firmou morada no Brasil colaborou na conformação do que hoje é entendido como o povo brasileiro, contribuindo, assim, com diversos elementos culturais que, atualmente, identificam a nossa cultura e a nossa identidade. Seja através da língua que falamos, da comida que comemos, do modo como nos vestimos, das religiões que temos, das músicas que escutamos, dos esportes que praticamos, partilhamos e dividimos aspectos comuns da cultura. Inúmeros exemplos podem definir o que faz o brasileiro um brasileiro, entretanto, podemos evidenciar alguns aspectos que Roberto Da Matta (1986, p. 14) elucida em um dos seus textos iniciais sobre o tema: Sei, então, que sou brasileiro e não norte-americano, porque gosto de comer feijoada e não hambúrguer; porque sou menos receptivo a coisas de outros países, sobretudo costumes e ideias; porque tenho um agudo sentido de ridículo para roupas, gestos e relações sociais; porque vivo no Rio de Janeiro e não em Nova York; porque falo português e não inglês; porque, ouvindo música popular, sei distinguir imediatamente um frevo de um samba; porque futebol para mim é um jogo que se pratica com os pés e não com as mãos; porque vou à praia para ver e conversar com os amigos, ver as mulheres e tomar sol, jamais para praticar um esporte; porque sei que no carnaval trago à tona minhas fantasias sociais e sexuais; porque sei que não existe jamais um “não” diante de situações formais e que todas admitem um “jeitinho” pela relação pessoal e pela amizade; porque entendo que ficar malandramente “em cima do muro” é algo honesto, necessário e prático no caso do meu sistema; porque acredito em santos católicos e também nos orixás africanos; porque sei que existe destino e, no entanto, tenho fé no estudo, na instrução e no futuro do Brasil; porque sou leal a meus amigos e nada posso negar a minha família; porque, finalmente, sei que tenho relações pessoais que não me deixam caminhar sozinho neste mundo, como fazem os meus amigos americanos, que sempre se veem e existem como indivíduos! 29 Logo, é preciso dizer que não precisamos partilhar de todos elementos da cultura nacional para termos uma identidade brasileira. Não é por que somos brasileiros que gostamos de carnaval ou mesmo de futebol, mas ao compartilharmos nossa história, nossa língua e aspectos da cultura partilhamos de um sentimento nacional, de um discurso específico, de uma sensação comum que nos torna pertencentes a identidade brasileira. (BARROSO, 2018). A identificação e a valorização dessa identidade estabelecem uma integração nacional pela qual seus membros lutam e defendem suas fronteiras. Na escola, somos estimulados a cantar o hino nacional e a ter respeito pela bandeira que nos representa. Então, de forma consciente e inconsciente, vamos aderindo e adorando a pátria. A identidade individual é perpassada pela identidade nacional, de modo que, enquanto construímos a nossa identidade, estamos construindo essa identidade coletiva também. Assim, quando vamos para outros países, carregamos conosco a identidade nacional, e mesmo que não sejamos iguais a todos os brasileiros, reconhecemos elementos culturais comuns entre aqueles que tenham habitado qualquer parte do Brasil. (BARROSO, 2018). Fonte: https://baurutv.com/ 30 6 DESIGUALDADE, DIVERSIDADE E DIREITOS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO A desigualdade sempre existiu na sociedade brasileira. Na atualidade, ela ainda se mantém muito presente e expressiva. Além disso, se configura como algo multidimensional, transversal e durável. Como você sabe, a desigualdade se manifesta de diversas formas. Uma delas é no acesso aos direitos. Nos últimos anos, muito se evoluiu em termos de garantias asseguradas constitucionalmente. No entanto, considerando a baixa aplicabilidade dos direitos, legislações complementares foram criadas a fim de preencher a lacuna entre o que está no papel e o que acontece na prática. 6.1 A desigualdade no acesso aos direitos no Brasil do ponto de vista histórico Do ponto de vista histórico, a desigualdade está intimamente relacionada ao desenvolvimento da humanidade e às relações de poder. Inicialmente, os homens utilizavam a força e a inteligência para se sobressair por meio de atitudes de liderança, começando a estabelecer situações de desigualdade. Com o passar do tempo e a evolução da humanidade, as relações também foram sofrendo alterações. As desigualdades existentes passaram a refletir a forma como as sociedades se organizam. O tema ganhou mais complexidade com o advento do capitalismo e a consolidação da industrialização. Você deve notar que até então a desigualdade presente nas sociedades pautava-se, basicamente, nas relações entre os que detinham o poder e aqueles que estavam em uma condição de subalternidade. Com a industrialização (século XVIII), alteram-se essas relações, pois amplia-se o comércio em nível mundial. Assim, se define uma condição bastante solidificada no mercado de trabalho, que é a relação entrepatrão e empregado. Nessa perspectiva de industrialização, expandem-se o capitalismo e a necessidade de acumular lucro e capital a todo custo. Então, se estabelecem diferenças importantes entre os detentores do capital e os vendedores da força de trabalho. Os trabalhadores possuem apenas a força de trabalho e pouco acesso à renda, ficando na parte inferior da relação com os empregadores. A desigualdade social fica evidente nesse contexto marcado pela diferença econômica, uma vez que 31 os trabalhadores não acessam o capital. Marx (1988) considera a desigualdade como fruto da sociedade capitalista e da relação de classes. Nesse contexto, a classe empregadora utiliza a condição gerada pelas desigualdades para estabelecer ainda mais poder sobre a classe trabalhadora. Como você viu, a desigualdade basicamente sempre existiu. Na atualidade, ela é bastante expressiva, além de multidimensional, transversal e durável. Segundo Scalon (2011), é por essas razões que discutir a desigualdade na sociedade atual é essencial, considerando suas inúmeras dimensões e consequências. Ainda de acordo com Scalon (2011, p. 50): [...] sabemos que a desigualdade não é um fato natural, mas sim uma construção social. Ela depende de circunstâncias e é, em grande parte, o resultado das escolhas políticas feitas ao longo da história de cada sociedade. Mas também sabemos que todas as sociedades experimentam desigualdades e que estas se apresentam de diversas formas: como prestígio, poder, renda, entre outras — e suas origens são tão variadas quanto suas manifestações. O desafio não é apenas descrever os fatores e componentes das desigualdades sociais, mas também explicar sua permanência, e em alguns casos seu aprofundamento, apesar dos valores igualitários modernos. Scalon (2011) também diz que, no caso do Brasil, chama a atenção o fato de a desigualdade resistir ao tempo e ao processo de modernização da sociedade. A autora ainda esclarece que é preciso considerar a desigualdade como um problema político que mantém relação direta com a democracia, a justiça social e a igualdade de oportunidades. Nesse sentido, não haverá democracia se não houver uma atenção mais focalizada para o problema das desigualdades sociais. Afinal, “[...] a igualdade pode ser considerada um dos atributos básicos da cidadania, considerada em seu sentido mais amplo como acesso a direitos” (SCALON, 2011, p. 51). A igualdade está assegurada na Constituição Federal de 1988, entretanto “[...] a lei só pode ser garantida de maneira eficiente quando sustentada pela igualdade nas chances de vida, que assegura tanto a possibilidade como a liberdade de escolha e a utilização plena das capacidades dos atores sociais” (SCALON, 2011). A grande questão é que isso não acontece de fato, dada a dimensão que as desigualdades sociais assumem no Brasil, impactando questões essenciais, como a efetivação da democracia e da justiça social, e transitando por aspectos relacionados à ética e à moral. 32 Faleiros (2014) destaca que, na sociedade capitalista, as demandas por serviços sociais demonstram as desigualdades econômicas, as situações de inclusões ou exclusões. Para o autor, essas: [...] são demandas complexas tanto pela efetivação de direitos como por cuidados específicos que exigem dos profissionais a análise das relações gerais e particulares dessas condições e do poder de enfrentá-las, o que implica trabalhar a correlação de forças (FALEIROS, 2014, p. 708) Netto (2007) aponta que as desigualdades sociais se expressam basicamente nas variadas manifestações da Questão Social, área da qual surgem as principais atuações do Serviço Social. Do ponto de vista histórico, Netto (2007) registra que há poucos países na América Latina e no mundo tão desiguais como o Brasil. O autor afirma que, no Brasil, “[...] em 1999 os 10% mais ricos se apropriam de 47,4% da renda nacional, cabendo aos 50% mais pobres apenas 12,6% dela e, particularmente, que o 1% mais rico se apropria de mais que os 50% mais pobres” (NETTO, 2007, p. 140). Ele ainda acrescenta outra informação: [...] o panorama da propriedade fundiária é emblemático dos suportes da desigualdade brasileira: há 10 anos, e este quadro não mudou em nada, 75 propriedades rurais detinham 7,3% [...] das terras totais do país, enquanto 75% das propriedades rurais permaneciam com somente 11% das terras agricultáveis (NETTO, 2007, p. 140). O autor destaca ainda que a desigualdade é um problema recorrente na maior parte das sociedades. No entanto, ela apresenta características diferenciadas no conjunto das sociedades capitalistas. As desigualdades sociais há tempos estão presentes na sociedade brasileira. Scalon (2011, p. 52) destaca a relação entre a desigualdade e a pobreza. Embora tenham conceituações distintas, elas são fortemente relacionadas, “[...] na medida em que as disparidades nas chances da vida acabam por determinar as possibilidades de escapar de situações de privação e vulnerabilidade”. Scalon (2011) aponta ainda que é ingenuidade acreditar que pobreza e desigualdade podem ser eliminadas apenas com “interesse político” ou mediante redistribuição de recursos entre ricos e pobres. A melhor alternativa, segundo a autora, para enfrentar tais questões, é a educação, 33 pois somente ela permitiria o acesso a melhores condições de trabalho e melhor remuneração. 6.2 A conquista de direitos no Brasil O Brasil possui um aparato legal que busca assegurar os direitos de todos os indivíduos residentes no território nacional. No entanto, o tema direitos é ainda bastante controverso, especialmente na sociedade neoliberal, marcada pela diversidade e pela desigualdade. Analisando o contexto histórico, se pode inferir que os direitos, mais especificamente os direitos humanos, têm sua origem nas lutas burguesas, com a Revolução Francesa, considerada o marco cronológico desses direitos. A Revolução Francesa é um marco para o advento do capitalismo. Ela representa a luta da burguesia pela liberdade, no sentido exclusivo de comprar e vender produtos com mais liberdade. Assim, os direitos que surgem estão vinculados à ideia de liberdade e de propriedade, em consonância com o sistema neoliberal. A liberdade defendida pelos burgueses não era para toda a sociedade, e sim limitada aos considerados cidadãos. Os direitos dessa época fazem parte da primeira geração de direitos e ficaram conhecidos como direitos individuais. No percurso histórico, mudanças foram ocorrendo no sistema capitalista. Com a Revolução Industrial, os trabalhadores também começaram a lutar pelos seus direitos, contrapondo-se à restrição dos direitos a uma classe. Nessa perspectiva, surge a segunda geração dos direitos humanos, os chamados direitos sociais e políticos. É o caso de direito à moradia, ao voto, à participação na vida pública, entre outros. Mediante o acirramento da luta de classes, os trabalhadores começaram a lutar por direitos mais específicos, aqueles das chamadas “minorias sociais”, ou seja, grupos considerados em situação mais desfavorecida. Como exemplos de minorias, você pode considerar: mulheres, pessoas com deficiências, grupos LGBT e outros. Tais grupos necessitavam que suas necessidades fossem, de fato, asseguradas. Os direitos das minorias são os mais discutidos na atualidade, recebendo uma atenção mais específica. 34 Os direitos não são pensados e construídos de uma única vez. Eles ganham forma conforme a sociedade humana vai se desenvolvendo e suas necessidades, surgindo. Assim, para compreender o significado que os direitos têm na atualidade, é essencial verificar como foram observados em épocas passadas. Isso posto, considere agora a evolução da legislação brasileira, tomando como ponto de partida a Constituição Federal de 1988, que apresenta os direitos e deveres dos cidadãos e pauta-seem valores de equidade e direitos universais. Além disso, a Constituição reafirma conquistas transformadas em direitos sociais nas áreas de saúde, assistência social, educação, previdência, trabalho, entre outras (PIANA, 2009). Conhecida como Constituição Cidadã, recebeu essa denominação: [...] em virtude da inclusão, como direitos fundamentais, de uma série de direitos sociais que a colocaram em contemporaneidade com os anseios da sociedade brasileira, após 42 anos de vigência da Constituição Federal de setembro de 1946, última promulgada sob regime democrático (OLIVEIRA, 2011, p. 6). Ainda segundo o autor: Criticada por uns, pelo detalhismo de suas disposições, justifica-se essa sua característica pela tradição de alto grau de descumprimento da legislação ordinária no país, a exemplo do que ocorre com a legislação trabalhista criada nas décadas de 1930 e 1940 e inscrita na Consolidação das Leis do Trabalho — CLT —, cujo cumprimento ainda é motivo de frequentes demandas judiciais por parte dos trabalhadores (OLIVEIRA, 2011, p. 6) Isso evidencia que o País possui um aparato legal muito completo e detalhado. No entanto, boa parte das leis ainda não são aplicadas como deveriam e como está expresso na Carta Magna. Por isso, tem-se verificado, nos últimos tempos, a necessidade de estabelecer leis complementares para garantir direitos já previstos na Constituição. Os avanços na legislação somente foram possíveis graças à organização e à mobilização de vários segmentos da sociedade, desde a década de 1970 (OLIVEIRA, 2011). Vários grupos mereceram atenção na legislação posterior à Constituição Federal de 1988, mas destaca-se aqui a situação dos trabalhadores. Para esse grupo, foi criada a Consolidação das Leis do Trabalho (BRASIL, 1988) e outros direitos sociais assegurados constitucionalmente. É o caso do direito contra a dispensa injustificada (partindo do princípio de que o empregador possui superioridade em relação ao trabalhador), do seguro-desemprego, do fundo de garantia por tempo de 35 serviço e outros. Recentemente, algumas mudanças foram realizadas na legislação trabalhista, nem todas favoráveis ao trabalhador. Ao longo do tempo, outros grupos foram tendo seus direitos esmiuçados em leis complementares, mediante luta e mobilização dos grupos sociais. A Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, é um exemplo de lei complementar, que detalha o art. 227 da Constituição Federal. Essa lei define os direitos das crianças e adolescentes, indicando quem deve aplicá-los e como são efetivados na prática. Assim, trata-se de um conjunto de normas que busca assegurar a proteção integral da criança e do adolescente. Entende-se como criança a pessoa com até 12 anos de idade incompletos, e adolescente, aquela que tem entre 12 e 18 anos de idade. Em seu art. 3º, o Estatuto da Criança e do Adolescente assegura que a criança e o adolescente gozem de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana (assegurados na Constituição Federal), mas sem os prejuízos da proteção integral de que trata essa lei. Isso implica dizer que crianças e adolescentes devem ser protegidos pelo Estado, pela família e pela sociedade com absoluta prioridade (BRASIL, 1990). Ao segmento idoso também foi assegurada atenção especial e houve evolução dos direitos ao longo do tempo. O Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003) foi criado para regular os direitos das pessoas com 60 anos ou mais. Além de estabelecer os direitos e as responsabilidades na efetivação da proteção dos direitos dos idosos, o Estatuto assegura a prioridade do atendimento em órgãos públicos e privados, estabelecendo prioridade especial aos maiores de 80 anos. De forma geral, o Estatuto estabelece que o idoso goze de todos os direitos fundamentais da pessoa humana, sem prejuízo dos demais direitos previstos na lei (BRASIL, 2003a). O Brasil também avançou na promoção dos direitos das pessoas com deficiência, por meio de políticas que as valorizam enquanto cidadãs, respeitando suas características e sua condição. Um desses avanços está materializado no Estatuto da Pessoa com Deficiência, a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015). Essa lei se destina “[...] a assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania” (BRASIL, 2015, documento on- line). Para tanto, se considera pessoa com deficiência: 36 [...] aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (BRASIL, 2015, documento on-line). 6.3 Conquistas e retrocessos nos direitos No que se refere aos direitos relacionados às diferentes etnias, você pode considerar que houve um avanço importante na legislação, especialmente no que se refere aos direitos dos negros e índios. Quanto aos negros, é preciso considerar as situações vivenciadas pelos seus antepassados na época da escravidão, bem como todo o sofrimento e as situações de precariedade enfrentadas. Somente séculos depois algo de efetivo começou a ser feito para essa população. Nesse sentido, Vieira (2013, p. 1) aponta: A situação da população negra na sociedade brasileira, vitimada em especial pela violência do preconceito histórico-cultural, pela discriminação sócio- racial e pela exclusão econômica na sua interação com os outros segmentos da população brasileira, se baseia na hipótese de que as posturas racistas ainda existentes em nossa sociedade foram e ainda são reforçadas pelo desconhecimento da formação e das origens históricas, sociais e culturais que fundaram o Estado brasileiro e, sobretudo, do esquecimento por parte do Estado em relação à população negra brasileira. Nessa perspectiva, pequenos passos começaram a ser dados com a Constituição Federal de 1988, que assegura o direito à igualdade de condições de vida e de cidadania. Além disso, ela garante igual direito às histórias e culturas que compõem a nação brasileira, bem como o direito de acesso às diferentes fontes da cultura nacional a todos os brasileiros (BRASIL, 1988). Algumas legislações posteriores, especialmente na área da educação, buscam oferecer uma resposta à demanda da população afrodescendente por meio do desenvolvimento de ações afirmativas para reparar possíveis prejuízos sofridos ao longo do tempo, reconhecer e valorizar a sua história, a sua cultura e a sua identidade. Nessa perspectiva, a Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afrodescendente na educação básica (BRASIL, 2003b). Tal iniciativa se faz necessária para que o Estado e a sociedade adotem medidas para ressarcir os descendentes de africanos negros dos danos psicológicos, sociais, materiais, políticos e educacionais vivenciados no regime escravista. Sem a intervenção do Estado, dificilmente as desigualdades e injustiças 37 seriam rompidas. Elas permaneceriam fundadas em preconceitos e na manutenção de privilégios para poucos. Situação semelhante à vivenciada pela população negra é a da população indígena, que sofreu com o processo de colonização e até hoje se encontra muito à margem da sociedade e do acesso aos direitos. A Constituição Federal de 1988 reconhece o respeito às formas de organização próprias dos povos indígenas, além de suas crenças, costumes, usos e tradições. Além disso, reconhece os direitos originários dos povos indígenas sobre suas terras. Além da Constituição Federal de 1988, o Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004, da Organização Internacional do Trabalho, assegura o direito à autonomia dos povos indígenas no sentido de garantir o respeito às formas
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