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Rio de Janeiro 2013 Marcello Silva e Santos Mario Cesar Vidal Paulo Afonso Rheingantz A complementaridade da ação ergonômica na ação projetual e na concepção de ambientes de trabalho ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO Ambientes Construídos para o Trabalho Agradecemos a todos os colaboradores e integrantes do GENTE - Grupo de Ergonomia e Nova Teclogia da COPPE / UFRJ, em especial a Bernardo Bastos da Fonseca, doutorando da instituição e responsável pela revisão bibliográfica, a Luiz Ricardo Moreira, mestrando, designer, ergonomista da instituição e responsável pelo projeto gráfico e diagramação final e a Ricardo Perboni, responsavél pela diagramação preliminar. Agradecimentos Sumário Introdução .......................................................................................................... 7 Capítulo 1 - Introdução á Percepção Artísitca e Arquitetônica .............. 21 1.1 - Percepção no contexto da ciência e filosofia. ..................................... 21 1.2 - O formalismo antropotécnico ............................................................... 24 1.3 - A percepção dos espaços e formas ..................................................... 29 1.3.1 - Princípio da constância da forma .......................................... 32 1.3.2 - Princípio da constância de tom ............................................... 32 1.3.3 - Outros aspectos da observação e interpretação de formas ...... 32 1.4 - Origens e organização da percepção da forma............................. 35 1.4.1 - Determinantes inatos da percepção ........................................ 36 1.4.2 - Percepção do espaço tridimensional ...................................... 36 1.4.3 - Percepção de movimento .......................................................... 40 1.5 - Tópicos adicionais em percepção ........................................................ 40 1.5.1 - A estabilidade do ambiente percebido .................................... 41 1.5.2 - Instabilidade do ambiente percebido ...................................... 42 1.5.3 - Ilusões espaciais e pós-efeitos ................................................ 43 1.5.4 - Aprendizagem e motivação ....................................................... 45 Capítulo 2 - Ferramentas de Desenho e Representação ........................ 52 2.1 - Geometria plana ................................................................................... 53 2.1.1 - Algumas definições básicas: ........................................................ 54 2.2 - Geometria espacial ............................................................................... 61 2.3 - Geometria Descritiva ........................................................................... 63 2.4 - Perspectiva .......................................................................................... 65 2.5 - O Desenho Técnico no Contexto de Projeto ....................................... 70 2.6 - O desenho e o projeto de arquitetura ................................................... 79 2.7 - Desenho em 3D ................................................................................... 86 Capítulo 3 - Ergonomia e Arquitetura - Limites e Possibilidades ..... 100 3.1 - Tipologia e classificações ................................................................... 105 3.2 - Antropometria .....................................................................................110 3.3 - Introdução ao conforto ambiental: influência e impactos no design ...113 3.4 - A psicologia ambiental e sua influência no design...............................115 3.5 - Avaliação de ambientes construídos para o trabalho: a APO e as análises do tipo “Pré-Projeto” ............................................................ 123 3.6 - O Diferentes formas de representação e modelagens ...................... 140 3.7 - O leiaute no projeto de postos e ambientes de trabalho ................... 143 Capítulo 4 - Arquitetura Ergonômica - Aplicações e Discussões ........ 149 4.1 - Considerações gerais sobre o projeto no contexto da ergonomia...... 150 4.2 - Estabelecimento de ações participativas no contexto do projeto ergonômico ......................................................................................... 178 4.3 - Métodos e ferramentas para o gerenciamento de projetos ............... 189 4.4 - Gestão do projeto de arquitetura de ambientes de trabalho - A prática da Ergonomia de Concepção no espaço de trabalho. ........... 193 4.4.1 - Considerações gerais sobre projetos em ergonomia, arquitetura e engenharia ...................................................... 195 4.4.2 - Escolha de um modelo adequado para o processo de gerenciamento de projetos em ergonomia de concepção - A alternativa do PMBOK............................................................. 206 4.4.3 - O modelo consolidado FOCA de gestão integrada de projetos de ergonomia de concepção .................................. 210 4.5 - A apropriação do conceito de pattern languages, um método de instrução em ação projetual na ergonomia de concepção - Os “padrões conceituais”......................................................................... 214 4.5.1 - O uso de padrões conceituais na ergonomia de concepção em sistemas complexos ........................................................... 219 4.5.2 - O futuro dos padrões conceituais na ergonomia de concepção ............................................................................... 223 4.6 - Padrões conceituais no estado da arte - O uso de padrões conceituais na exploração de metodologias de projeto ...................... 228 Capítulo 5 - Estudos de Casos .................................................................. 236 5.1 - Avaliação de desempenho em hospital em Resende, RJ ................... 236 5.2 - Uma abordagem participativa na implantação de um Centro de Tratamento Intensivo em Hospital Universitário no Rio de Janeiro, RJ ...237 5.3 - Abordagem participativa e análise de benchmarking em hospitais nos EUA ............................................................................................ 258 5.4 - Acessibilidade (critérios e dimensionamento) em área industrial ...... 290 5.5 - Do estado da arte para o estado da técnica – o uso de padrões conceituais na ergonomia de concepção de ambientes de trabalho .. 298 Bibiografia ..................................................................................................... 309 7ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho As experiências de ação conjunta no planejamento e concepção de ambientes de trabalho vêm ocorrendo há algumas décadas. Arquitetos, psicólogos, antropólogos, ecologistas, planejadores e engenheiros de produção/ergonomistas têm procurado uma ação cooperativa e interdisciplinar no processo projetual do ambiente construído através de abordagens sistêmicas. De fato, o conceito e a metodologia de Avaliação Pós-Ocupação1 (APO) nasceram de um processo de questionamento - inicialmente com psicólogos ambientais - do paradigma do design como imposição do ideal de um artista para a coletividade ou na tradução em elementos formais de instruções normativas e padrões dimensionais. Não existe, na atualidade, um paralelo entre a ergonomia e profissionais de design no tocante a adoção conjunta de uma metodologia estruturada ou ferramentas de eficácia comprovada para dar conta da do enquadramento prático destas duas disciplinas. Se é verdade que ergonomistas carecem de um maior conhecimento sobre a ação projetual, por sua vez falta à arquitetura a vontade, capacidade ou autoridade para incorporar requisitos ergonômicos ao projeto, particularmente ao lidarmos com o processo produtivo do ambiente construído para o desempenho de atividades de trabalho. Uma definição mais próxima do termo design, num sentido amplo, seria uma forma de esforço criativo - bidimensional ou tridimensional - com o qual se materializam objetos ou meios de comunicação e expressão diversas do cotidiano. Contudo, poderiaser também traduzido como “concepção”, visto que “criar” não necessariamente se refere ao ato de desenhar, mas sim de conceber. Algumas traduções propostas para o termo não “pegaram” (i.e.: projética, proposta por Houaiss; ou desígnio, sugerida pelo arquiteto Vilanova Artigas). Para o teórico Gui Bonsiepe todo design é um design de interfaces, design de interfaces, no sentido de que o designer (profissional) não vai produzir a forma como o produto funciona (tarefa da engenharia, programação, entre outras áreas de desenvolvimento), mas a interação do produto com o usuário, o que nos parece bastanteadequado para a abordagem em ergonomia. Aqui utilizaremos o termo “projeto” também por uma questão prática. Esta diferenciação é útil visto que na construção de ambientes profissionais nem sempre o arquiteto tomará decisões isoladamente. Projetistas de instalações, técnicos e engenheiros de produção constantemente influenciarão todo este processo criativo Introdução 1 Avaliação pós-ocupação é uma metodologia de avaliação de desempenho baseada em levantamentos, observações e entrevistas com usuários e tratamento estatístico destes dados. 8 ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho e, de uma forma ou de outra, também podem estar envolvidos em atividades de projeto. Na ação participativa no processo projetual, ou o design participativo de ambientes de trabalho, precisamos saber identificar outro obstáculo existente: a ergonomia pressupõe que a multidisciplinaridade seja não apenas decorrente de um processo natural da formação diferenciada dos profissionais atuantes na área. A eficácia da ação ergonômica como mecanismo de intervenção nos sistemas de produção é exatamente uma decorrência deste quadro multidisciplinar. Ou seja, existe um processo de sinergia “influenciando” os resultados de planos de ação ergonômica devido à ocorrência de uma participação mais abrangente dos diversos agentes de um determinado sistema de trabalho. Esta participação, acreditamos, deve ser mediada por ergonomistas, que preferencialmente possuam formações diversas. Dessa maneira estes podem atuar mais efetivamente como facilitadores de um processo criativo. Entretanto, por vezes, uma equipe de ergonomia carece de um “olhar espacial” fundamental à observação e compreensão das demandas de projeto, além de uma natural dificuldade interpretativa proveniente das diferentes linguagens profissionais envolvidas no processo de design de um sistema ou ambiente de trabalho. Em outras palavras, ninguém precisa aprender a enxergar; este é um mecanismo inato do ser. Contudo, precisamos ser educados entender o mundo que nos cerca, absorvendo, assimilando e, sobretudo, interpretando as mensagens sensoriais que são transmitidas ao nosso cérebro a todo instante. Para contextualizar a questão é preciso enquadrar conceitualmente o objeto de nossa intervenção. Na tentativa de enquadramento conceitual, epistemológico e metodológico, os pesquisadores encontraram dificuldades devido à complexidade na integração homem-ambiente. Dentre as formulações conceituais existentes podemos citar os termos “arquitetura de locais de trabalho” ou ainda “ambiente profissional construído”. Na primeira proposta, surge uma indagação quanto a não qualificação espacial presente em “locais”, o que faz com que termo seja compreendido como qualquer lugar não delimitado ou fechado. O termo mediano (profissional) na segunda proposta remete a um questionamento léxico, fazendo com que alguém possa vir a interpretar um curral ou uma área de pastagem como ambientes profissionais. Tomando posse de uma prerrogativa que nos cabe enquanto profissional acadêmico - o de escolher terminologias para formulações conceituais novas ou derivadas de outras - adotaremos o termo “ambiente de trabalho construído” e esperaremos as reações para a sua adequação ao tema proposto. Ainda que outras nomenclaturas utilizadas não sejam consideradas imprecisas, preferimos adotar o termo Ambiente Construído para o Trabalho (ACT) que responde satisfatoriamente a um processo de construção de tesauros mostrado 9ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho no quadro 1 (linguagens terminológicas, citado por Curras, 1995) gerando a seguinte definição: O ambiente de trabalho construído é um espaço físico artificialmente criado pelo homem para atender a uma função social específica e onde diversas atividades de trabalho humanas são desenvolvidas (Santos, 1998). Quadro 1 - Construção do tesauro Ambientes de Trabalho Construído Adotaremos, portanto, o termo Ambiente Construído para o Trabalho sempre que nos referirmos ao espaço “fechado”, tridimensional e dinâmico que serve de cenário a um processo de trabalho. Neste cenário, necessariamente se desenvolvem atividades de trabalho humano, um conjunto sócio-organizacional complexo e indissociável. Quando estivermos nos referindo conjuntamente a elementos do entorno destes ambientes (áreas externas, jardins, guaritas, acessos, etc.), daremos preferência ao termo “Local de Trabalho”, que nos parece mais abrangente. Este estudo apresentará aspectos para serem compartilhados com profissionais de áreas diversas que não tenham o domínio sobre conceitos, métodos e ferramentas de design. Não há aqui a intenção de transformar fisioterapeutas em arquitetos, médicos em engenheiros de produção ou propostas semelhantes. Muito menos apresentar teorias pouco úteis para a ação ergonômica. Estamos concentrando o enfoque na ergonomia de concepção, cujo objetivo principal é garantir a existência de sistemas de interface otimizados ou, para ser mais específico, uma integração adequada do homem ao seu ambiente de trabalho. 10 ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho Para a ergonomia de concepção é imprescindível que haja uma conscientização de clientes, designers e usuários quanto à importância em “fazer certo da primeira vez” para não ter que remediar depois. Neste particular, cabe aos tomadores de decisão e designers a maior parcela de responsabilidade visto que geralmente estes são envolvidos nos estágios iniciais do ciclo projetual, ao contrário dos usuários que recebem o ambiente pronto e sem possibilidade de intervenção. Para ilustrar este distanciamento, em uma reunião para se discutir propostas de modificações em um ambiente de trabalho, houve grande resistência por parte do comitê informal criado para negociar mudanças em um anteprojeto para ampliação de uma determinada área administrativa em uma empresa do ramo petrolífero. Um dos participantes, representante do setor, mas não um futuro usuário dos ambientes a serem construídos, alegou que o envolvimento dos usuários diretos iria provocar o atraso na contratação dos serviços técnicos. Foi preciso a intervenção da gerência para solucionar o impasse que poderia ter provocado sérias inadequações no ambiente e nas atividades das pessoas envolvidas. Estas intercorrências presentes no relacionamento pessoal em organizações têm origens por demais complexas para serem interpretadas de maneira determinística e reducionista. Este é um aspecto da Teoria das Organizações que vem provocando um crescimento evidente. Algumas abordagens procuram compreender melhor o processo de inter-relação pessoal nas organizações, dentre elas os estudos de Sistemas Adaptativos Complexos (SAC). Nos SACs, a maior parte do ambiente de um agente adaptativo consiste de outros agentes adaptativos. Assim, uma porção de esforço do indivíduo é despendida para compreender e adaptar-se aos outros indivíduos. Para se entender um ambiente de trabalho complexo, portanto, devemos aceitar este fenômeno e ajustarmo-nos a esta característica. Vidal e Gualberto (1996) apresentaram uma série de condicionantes para uma abordagem de projeto participativo. Para tornar-se eficaz, uma abordagem participativa deve ser claramente negociada com todos os atores do projeto previamente a qualquer atividade projetual. São quatro os princípios a serem observados na composição de um sistema participativo:informação, cooperação, restituição e socialização. (ver quadro 2) 11ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho Outro ponto importante no estudo das atividades de trabalho em um projeto ergonômico é o conceito de representações mentais. Essas representações são construções mentais semi-reais de dados percebidos e interpretados a partir da observação de um determinado ambiente. Apenas como exercício de contextualização, estas representações poderiam ser classificadas como orgânicas (inatas e naturais), sociais (culturais e étnicas) e tecnicistas (idiossincráticas e profissionais). Na verdade, este é um mero exercício conceitual uma vez que o processo cognitivo sensorial ocorre de forma integrada, combinando vários sentidos. Da mesma forma, a linguagem, como principal meio de expressão das inter-relações pessoais, também sofre a influência destas três dimensões distintas. Esta não é uma tarefa simples. Porém, compreender o trabalho também não é e nem por isso diferentes domínios de especializações humanas deixam de se interessar pelo tema. Atuando na esfera de sua competência e respeitando as suas limitações, todos se empenham na busca dos meios possíveis para torná-lo cada vez mais parte integrante e dissociável da vida em sociedade, ou seja, um objetivo a ser alcançado para a plenitude do ser e cada vez menos um mal necessário à nossa subsistência. Uma das formas de aproximar diferentes povos é aprender sua cultura e seu idioma. Afinal, aprender os mecanismos de operação de profissionais de saúde em um centro cirúrgico nunca fará de ninguém um cirurgião ou instrumentista. Mas certamente propiciará àqueles sem formação específica a oportunidade de viabilizar propostas de mudança por critérios práticos e objetivos, compatíveis com a realidade dos profissionais a serem afetados pela ação intervencionista. A isso chamamos de uniformização de linguagens. A partir de um alinhamento induzido Quadro 2 - Princípios prevalentes na abordagem participativa 12 ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho de diferentes representações mentais, podemos conseguir com que abordagens participativas avancem de forma mais eficiente, possibilitando a melhoria contínua de todo o processo. A uniformização que defendemos não significa somente treinamento prático-profissional. Ela deve visar o estabelecimento de conjuntos de “símbolos” padronizados que aproxime diferentes culturas profissionais (e suas diferentes linguagens), criando bases de dados mais homogêneos para melhor atender a diferentes grupos de indivíduos. O conhecimento deste vocabulário comum de projeto pode reduzir a complexidade dos sistemas diferentemente representados, elevando simultaneamente o nível de domínio necessário à discussão dos mesmos. Uma das ferramentas a ser explorada é a utilização da Linguagem dos Padrões (tradução livre de Pattern Language) propostos por Christopher Alexander (1977), arquiteto austríaco que propõe um método dedutivo, de inspiração construtivista, baseado de certa forma na filosofia positivista, em contraponto aos modelos pragmáticos, puros, materialistas e outras abordagens usuais na arquitetura moderna. Além dos 253 padrões originais estabelecidos, o método pressupõe que, dependendo do contexto, se possa avançar até mesmo no sentido do estabelecimento de novos padrões de unificação formal. Graças a essa característica singular de contextualização e codificação, o método encontrou maior aplicação na informática, para surpresa de seu criador. Na ergonomia, os padrões são trabalhados como conceitos (ou padrões conceituais) e remetem não apenas a um guia orientador de projeto como a uma espécie de manual ilustrativo de boas práticas, podendo servir como ferramenta de repercussão de soluções ergonômicas. Outra questão importante é a necessidade de introdução – para aqueles não familiarizados com projeto ou design - ou a recapitulação – para todos que já não utilizam esses conceitos no dia a dia - de princípios básicos de representação gráfica (incluindo a geometria plana, sólida, descritiva e a perspectiva) e noções básicas de desenho (especialmente, convenções e procedimentos) e leitura (interpretação) de plantas e mapofluxogramas. Em suma, a incorporação do conhecimento formal de projeto no estudo e na prática em ergonomia, possibilita o equilíbrio das dimensões usualmente presentes na disciplina, ou seja: as dimensões físicas – e seus impactos de ordem física –, organizacional – e seus impactos na organização do trabalho e produção, – e cognitiva – e seus impactos psicofisiológicos e mentais. Conforme o modelo FOCA (Figura 1) proposto como indutor para a metodologia de tratamento dos potenciais impactos ergonômicos pela ação projetual, somente um ambiente bem projetado e consistente em seus requisitos de usabilidade pode equilibrar adequadamente todas as dimensões presentes na atividade de trabalho humana. O “A” de ambiente no esquema é justamente o elemento de equilíbrio das diferentes dimensões da ergonomia, já que se o mesmo ambiente não responder adequadamente às demandas de conforto e adequação, ainda que se estabeleçam 13ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho procedimentos e boas práticas para dar conta das outras dimensões ergonômicas, todo o sistema de trabalho deixa de funcionar em sua plenitude. Figura 1 - O modelo de análise e gestão do ambiente de trabalho – FOCA (Santos, 2000) A intenção aqui é a de propor um distinto ponto de vista teórico, epistemológico e metodológico sobre a noção dos ambientes profissionais construídos, assim entendidos os locais organizados pelas empresas que materializam seus espaços de produção e que integram o espaço geográfico da sociedade. São espaços menores dentro de espaços maiores e nele constituem um domínio autônomo de práticas pessoais e sociais onde se vivencia uma estranha dicotomia entre local de produção e local de vida. Para darmos um exemplo: você viveria num local sem uma boa janela? Não? Pois bem, se levar mais de dez segundos para se lembrar de um local de trabalho sem janelas - por justos e ponderáveis motivos, naturalmente - damos o braço a torcer de que esta discussão é perda de tempo. Se não quiser perder tempo, então basta lembrar o trabalho dos ascensoristas dos prédios de qualquer grande cidade. Concordamos com Fischer (1994), em sua perspectiva sociológica e antropológica, de considerar o espaço como um campo de leitura da realidade social. Particularizando para os espaços de produção - sejam eles agrícolas, industriais, terciários ou militares -, devemos orientarmo-nos para que neles sejam exclusivamente exercidas atividades produtivas - ambientes profissionais construídos - ou ainda ambientes construídos para o trabalho. Este tipo de ambiente, dada a sua especificidade e complexidade, requer um tratamento teórico interdisciplinar, tarefa para a qual buscaremos contribuir com alguns elementos a nosso alcance. 14 ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho A idéia da constituição de uma teoria do ambiente construído para o trabalho tem várias vertentes. A primeira delas advém da noção de ‘ambiente construído’, ela mesma uma derivação do conceito de cadre bâti, que pode ser bem entendida como a produção e construção de um contexto espacial. A segunda delas, bem mais virtual, já se origina de uma inexistente ‘teoria da engenharia do trabalho’ – em cujo conjunto de disciplinas a ergonomia se insere – inscritas numa igualmente inexistente, porém, polêmica ‘teoria da engenharia de produção’. Tudo isso se traduz em uma idéia de que a organização espacial, a organização do trabalho e a organização da produção se integram na concepção e no projeto de um local de trabalho, espaço construído para a consecução de atividades econômicas por pessoas. A terceira finalmente busca se vincular à ‘teoria da arquitetura’, através de dois aspectos importantes: a distinção tipológica e a psicologia do espaço. No primeiro destes aspectos, não se trata de incorporar elementosda atividade humana como componente de todo e qualquer projeto - o que levaria, por exemplo, a estudar um subconjunto do espaço residencial como cozinha, escritório e oficina/atelier de forma distinta do que seria feito na concepção de salas, quartos, pérgulas e jardins - mas sim de toda uma abordagem específica de concepção, própria a esta tipologia, e que naturalmente leva a uma forma de projeto diferente, onde ao arquiteto não cabe a proposta final. O segundo destes aspectos parte da premissa de que os espaços geométrico, geográfico, social e cultural são sempre a matéria prima de uma experiência individual de ancoragem do cotidiano, de referência cultural, de apropriação da territorialidade existente e de autogestão clandestina, terreno de embate entre as concepções de cidadania e de convívio diferentemente professadas e atuadas por indivíduos e suas associações em coletivos, grupos, categorias e esquemas de poder e sobrevivência. Para além de uma inscrição da ação das pessoas num ambiente físico - cujas características ambientais têm, até aqui, sido bem traduzidas pelas disciplinas de conforto ambiental e até avaliáveis por métodos como o da avaliação pós-ocupação, deve-se buscar elementos para subsidiar na psicologia social (e suas variantes, inclusive a ambiental), na sociologia do trabalho e na ergonomia contemporânea. Uma proposta que ambiciona a criação de uma disciplina específica para dar conta da concepção e execução de espaços de trabalho, deve cercar-se de cuidados para que o nosso esperado ‘arquiteto(a) de produção’ mantenha o charme e a elegância da arquitetura que, a nosso ver, busca materializar uma intangibilidade, mantendo-a abstrata, mas eficaz como a arte que se funde na técnica. Ao pene- trarmos numa residência projetada por arquiteto(a), embora não existam aspectos concretos que assim o estabeleçam, sente-se que aquele espaço foi arquitetonica- mente projetado - o que significa ter sido previamente concebido e posteriormente 15ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho construído. E é isto que desejaríamos que se mantivesse na arquitetura de locais – e de ambientes – de trabalho. O mundo do trabalho e sua instância espacial - as implantações de empresas - têm sido considerados como um mundo da razão, deliberadamente inscrito no universo da racionalidade, da funcionalidade, como se materializassem uma razão pura da produção, como se a anima faber das pessoas requeressem a condição de vida subsumida ao capital em prol de um bem comum e maior que seria a produção social. Até mesmo as noções de trabalho e pausas se traduzem por locais geralmente inconcebíveis para o uso pessoal: refeitórios, banheiros, vestiários desagradáveis ou, no máximo funcionais ao extremo para que a estadia neles não seja uma incitação ao ócio, toda e qualquer forma de bem estar sendo sub- repticiamente escamoteada e severamente penalizada nos orçamentos espaciais, que prevêem uma razão de 0,18 m2 / pessoa para cálculos de banheiros masculinos2 . A racionalidade é a própria marca da engenharia, e portanto da engenharia de produção, e não poderíamos propor a arquitetos que buscassem se situar numa perspectiva que inviabilizasse o diálogo na seqüência do projeto de sistemas de produção. Na mesma linha de pensamento, a funcionalidade é o espaço comum entre as artes da engenharia e da arquitetura e exatamente por isso não deve ser descartada, principalmente em se tratando de projetos voltados para atividades de trabalho, onde a função é uma exigência dos meios de trabalho e do modo de produção. Devemos também ter em mente que o racional nem sempre corresponde ao real no mundo profissional, por mais que isso esteja expresso nos contratos de trabalho e nas diversas regras, regulamentos e normas profissionais. O seu teor formal estabelece uma locação do tempo pessoal para exercer uma atividade de- terminada num espaço estabelecido, todos os elementos formados a partir de uma visão do mundo, das pessoas e do trabalho. Uma visão onde a produção é vista para responder à sociedade sem questionamentos e a qualquer preço, das pessoas que são consideradas como meros apêndices funcionais da base técnica da produ- ção, desprovidas de sentido espiritual e simbólico e disponíveis a corresponder àquilo que se espera delas com presteza maquinal e automática; uma visão do trabalho onde não existem variabilidades, imprevistos e incidentes e inscritas num mundo estável onde inexistem contingências e outros fatores exógenos que reper- cutam no cotidiano. Historicamente, isto se traduziu numa expressão arquitetônica de aliena- ção das pessoas com relação à produção, mas que ainda prevalece hoje nos espaços destinados ao grande público e na maior parte dos ambientes profissi- 2 Dados do código de obras do município de Cabo Frio. 16 ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho onais construídos. Esta expressão oriunda de uma representação equivocada do objeto de projeto, da constituição de seu programa, e do resultado projetual, que desconsidera a própria vida no ambiente profissional construído. Esta vida não é apreendida pela representação do ambiente que apenas nele vê o seu lado prescritivo, o desejo de como as coisas deveriam ser no plano da racionalidade e da objetividade da produção. Os ambientes profissionais, ou seja, os locais, espaços e circunstâncias onde se trabalha, são o resultado de uma edificação particular que foi projetada (ou adaptada) e construída (ou reformada) para esta finalidade (a princípio). Em outros termos, nada impede de pensarmos que a atividade humana de transformação da natureza, com vistas à satisfação de desejos e necessidades, sempre passou pela construção de ambientes, artificializando-a – a natureza – instrumentalizando suas propriedades e impactando sua ecologia. Podemos igual- mente observar que alguns desses ambientes foram realizados com o propósito de ali serem realizadas atividades de sobrevivência imediata, evoluindo para ambien- tes de execução de tarefas profissionais. Por construção entendemos não apenas os atos executivos, operatórios e concretos de realização da obra, mas igualmente suas dimensões abstratas e sim- bólicas. A construção de um ambiente profissional é um processo que resulta das tensões entre as concepções pré-existentes dos empreendedores e usuários, a capacidade de sua compreensão e tradução executiva por parte dos projetistas e as contingências de realização do processo construtivo. A competência necessária para projetar um ambiente profissional requer um pouco de conhecimento destas concepções em sua historicidade, assim como um sistema cognitivo que antecipe os problemas contingências presumíveis em cada contexto de construção, além, é claro, de uma abordagem projetual ampliada com relação à arquitetura convencional. A historicidade a que nos referimos pode ser tomada em vários cortes temporais, e se adotarmos o conceito de história imediata, aí encontraremos a expressão mais próxima de nosso pensar: A ergonomia tem como fundamento filosófico a busca do entendimento das determinações de um status quo no que tange ao trabalho e nisto consiste a essência da Análise Ergonômica do Trabalho (AET) - sua metodologia básica. A partir do entendimento das determinações básicas da atividade de trabalho - ou seja, porque razões relevantes as pessoas fazem isso ou aquilo durante a execução de suas tarefas - a ergonomia vai buscar transformar estes elementos em esquemas, sínteses, enfim, em modelos operantes da atividade de trabalho para uso projetual. A ergonomia, por conter as atitudes de observação, escuta e reflexão no âmago de sua prática, entrou em choque com as estruturas de poder nas empresas, 17ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho defrontou-se com os vários fenômenos descritos na literatura acerca da teoria das organizações, deparou-se com dilemas análogos aos da clínica médica (onde o paciente embora solicite ajuda em quase todos os casos esconde boa parte de suas verdadeirasintenções), enfim, teve a oportunidade de vivenciar, de testemunhar de perto as dificuldades de transformar a realidade dos ambientes de trabalho. Sucedeu-se, em seu breve histórico, portanto, a construção de uma sistemática própria de projeto, a construção social de projeto. Esta sistemática apresenta um quadro participativo onde se busca esclare- cer, mediante os elementos obtidos na análise do trabalho, os termos do debate entre os diversos agentes sociais contidos no projeto. A busca de síntese negoci- ada nas análises do trabalho recorre a esquemas, maquetes e modelagens ver- bais constituído em grande parte pelos recursos sobejamente conhecidos pelas artes de projeto (arquitetura, engenharia e design). Em seguida, procura-se ins- truir com os conteúdos dos momentos precedentes para então passar às especificações de transformação. Trata-se, pois, de um processo complexo que requer uma contínua co-construção ao longo do processo. A ergonomia, portanto, tem possibilidades de contribuir com a metodologia de avaliação pós-ocupação à qual propomos uma metodologia complementar, a análise de pré-ocupação, baseada no modelo FOCA que discorreremos ao longo deste texto. Essa metodologia não tem a pretensão de competir com a APO – que têm seguramen- te sua validade comprovada – mas em se tornar um conjunto de técnicas ou ferramentas que se agrega e enriquece a própria APO. (Santos, 2003) Já há mais de uma década a ergonomia contemporânea vem trazendo à baila um importante discernimento entre a prescrição e a realidade, distinguindo as ações humanas entre o trabalho prescrito - que corresponde ao que deveria ser feito - e o trabalho real - que corresponde ao que é efetivamente realizado nas condições e no contexto onde as coisas acontecem. Ora, este é o próprio desafio da arquitetura de ambientes de trabalho - o de conceber e projetar para o trabalho real - produzindo uma concepção e um projeto centrados sobre a vida, privilegiando o ponto de vista da atividade humana em situação real de trabalho, ou simplesmente, projetando a partir de uma modelagem da atividade situada. Nesse itinerário, certamente pouco original na prática, mas ausente das teorias de arquitetura e de engenharia de produção, propomos uma outra atitude “conceptiva” e projetual que se desmarque de uma filosofia “desumanizada” da produção e busque a identificação do ser trabalhador e seu espaço imediato de expressão, seu local de trabalho, integre os conteúdos simbólicos e ergonômicos num mesmo programa e permita às pessoas valorá-lo. Como uma abordagem que se pretende ergonômica e que se fundamenta na análise ergonômica, a proposta da arquitetura de ambientes de trabalho é a da construção de um conceito de status espacial para o trabalhador em contraposição 18 ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho à alienação espacial de que se revestem as atuais existências de ambientes profissionais construídos. Este conceito a ser constituído pelo exame da realidade aborda os microcomportamentos, as microdecisões. as microansiedades e os microprazeres da vida no trabalho, buscando uma expressão que favoreça a espontaneidade criativa e informal do trabalho, uma forma eficaz para se dar conta das dificuldades de complexidade crescente que se apresentam no mundo do trabalho. Este novo mundo informatizado, automatizado, virtual e on-line, exercido a partir de gamas de responsabilidade cada vez maiores e exercidos em volumes de liberdade cada vez mais restritos, esconde restrições nunca antes vistas para o desempenho de atividades de trabalho. Se além dos produtos comercializáveis acrescentarmos as seqüelas do viver produtivo, a predição do insucesso já é uma realidade, face aos quadros de estresse, lesões por esforços repetitivos (LER), absenteísmos por doença que se juntaram aos clássicos e permanentes acidentes típicos de origem industrial. Mas será que podemos realmente aprender a projetar um local para trabalhar onde ganharemos a vida ao invés de perdê-la de forma súbita (acidente), gradual (adoecimento), psíquica (estresse, depressão) ou infecciosa (a vida no trabalho que contamina sua vida fora do trabalho)? Modifiquemos a dureza da pergunta para outra, mais simples, e que tentaremos responder na seqüência dos trabalhos de pesquisa, dos estudos e intervenções em situação real: como projetar um ambiente profissional construído? Nossa resposta, por ora, será naturalmente parcial e limitada, razão pela qual estamos à disposição, especialmente de arquitetos (as) designers e projetistas. A perspectiva básica é a de que o espaço, através da noção de ambiente profissional construído, seja visto e percebido como uma dimensão da atividade em si e não como preconizam os métodos de engenharia de produção – apenas o leiaute -, um resultado do componente temporal da produção, a determinação do espaço a partir do tempo-padrão das operações de fabricação e montagem e da quantidade de peças a produzir, da capacidade de atendimento por tipo de enfermidade, dos processos estocásticos de Poisson e da teoria das filas. O lugar do trabalho sendo determinado na produção pelo dispositivo, máquina simples, automatizada, bancada de montagem ou célula automatizada, faz com que o espaço venha se constituindo em objeto marginal, residual da produção. Nesta perspectiva perguntamos que valor se dá ao espaço e como isto é levado em conta na concepção e no projeto de locais de trabalho? Analisar o espaço nesta perspectiva de elemento vital da existência é uma forma privilegiada de acessar o conhecimento das pessoas, da sua vida pessoal e da sua cultura, colocando-nos na perspectiva tanto sociológica como antropológica, com a modesta, porém, firme contribuição da ergonomia situada: o que realmente se faz num espaço 19ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho determinado? A estrutura deste texto comporta em primeiro lugar uma problematização sobre a produção do espaço. Em seguida, vamos tecer alguns comentários sobre a lógica taylorista dos espaços industriais - despovoados consideravelmente pela modernidade tecnológica -, para em seguida passear sobre algumas noções libertárias engendradas pelo espaço e sua poética. Misturando Bachelard, Foucault e Gataria, falaremos de pessoas que se enraízam nos locais de trabalho, se apro- priam do espaço profissional e o administram como síndicos secretos de um con- domínio de locatários, numa dissimulada, porém, cotidiana resistência aos ditames dos proprietários de seus “imóveis”. Esta poética nos permitirá observar as coisas de outro ângulo, e é por este caminho que pretendemos conduzir parte deste trabalho. A seguir, a estruturação do material de estudo de acordo com os tópicos abordados. No capítulo 1 abordaremos alguns princípios da ‘teoria da percepção’ e suas variantes, discorrendo brevemente acerca da natureza biomecânica – fisioló- gica – e fenomenológica da percepção visual. Faremos um enquadramento conceitual apropriado à utilização prática destes conceitos em ações ergonômicas, definindo limites e objetivos. Uma ênfase especial será dada à fenomenologia da percepção visual com seus princípios básicos e teorias. Entre as teorias, a Gestalt, chamada de “teoria da forma”, receberá um tratamento diferenciado. No capítulo 2 apresentaremos conceitos e técnicas de representação de formas - das mais simples às mais complexas. Algumas noções de geometria des- critiva e de perspectiva também serão abordadas. Essas noções, que abordam a questão da tridimensionalidade à tona, são fundamentais nas etapas de observa- ção, confrontação e validação de dados coletados em campo durante as ações ergonômicas. Profissionais treinados para “assimilar” o espaço tridimensional po- dem interpretar e registrar as suas sensações em relação a um ambiente ou ação observável. Ou ainda, detalhar em uma abordagem recorrente, pelos modelos esquemáticos e mapofluxogramas, por exemplo, aspectos imprescindíveis para o encaminhamento de um diagnóstico de forma a auxiliar processos de tomada de decisão.No capítulo 3 apresentaremos conceitos e teorias que procuram unificar linguagens profissionais, métodos e ferramentas utilizados na análise, avaliação, design e utilização de ambientes de trabalho construídos. Neste capítulo são des- critos elementos de design importantes como definição de programa, enquadramento normativo e técnico, antropometria, conforto ambiental, etc. No capítulo 4, discutiremos formas de promover a integração participativa entre abordagens diversas que lidam com o planejamento, concepção, execução e 20 ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho utilização de ambientes profissionais. Neste escopo, abordaremos algumas pro- postas existentes e outras de ação colaborativa e co-participativa de design. Será elaborado e substancializado o conceito de padrão e o próprio método Pattern Language, Também exploraremos alguns conceitos preliminares relativos e ao gerenciamento de projetos de , ou seja, avaliaremos uma metodologia abrangente de gestão – mais especificamente o conceito PMBOK – e sua aplicabilidade na gestão de projetos de arquitetura e de ergonomia de concepção. No capítulo 5 apresentaremos alguns estudos de casos de projetos de melhoria, análises de pré-ocupação (que alguns chamam de estudos pré-projeto) e avaliações de ambientes de trabalho sistematizadas, com exemplos de interven- ções participativas no ambiente de trabalho construído. 21ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho Quadro 3 - Contextualização filosófica da Percepção Segundo Descartes, a percepção aplica-se a todos os atos da inteligência; a percepção (no sentido de assimilação do que está ao redor) e a determinação pela vontade se constituem nas duas maneiras de pensar. Denominou-se então de percepção interna o conhecimento consciente que o eu adquire de seus estados. Por sua vez, os psicólogos envolvidos na compreensão e no estudo da percepção entendem-na como o ato pelo qual a mente organiza suas sensações e reconhece um objeto externo (agente da ação). Por conseqüência, designa também o resultado desse ato (percepção da ação). As noções de corpo (forma e função), espaço e tempo têm que estar intimamente ligadas para que possamos entender o movimento. O corpo se coordena e movimenta dentro de um espaço determinado, em função do tempo, e em relação Capítulo 1 Introdução á Percepção Artísitca e Arquitetônica 1.1 - Percepção no contexto da ciência e filosofia. No “Aurélio”, perceber está ligado à aquisição de conhecimento por meio dos sentidos, com ênfase no ver. Há, ainda pela definição léxica, a idéia de percep- ção como discernimento por via intelectiva. O senso comum, inclusive aquele im- pregnado nas ciências, trabalha com essas concepções e as tem como seu funda- mento na busca de modelos explicativos de mundo. Nos estudos de filosofia - da antiguidade aos tempos modernos - a percepção já se apresenta com um conceito mais amplo e atrelado a um sentido não apenas mais importante como mais abrangente. A importância da percepção para o pensamento moderno pode ser melhor visualizada e compreendida pelo esquema a seguir: 22 ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho a um sistema de referências. Estas referências são “percebidas” por todos os nossos sentidos, porém a visão possui a capacidade de síntese perceptiva que outros sentidos carecem. Ainda que a influência dos outros sentidos seja importante no processo percepto-cognitivo, é através da visão que estas referências literalmente tomam corpo e representatividade. Mas o que a visão projeta em nossas mentes só adquire um significado maior se contextualizado. Ou seja, o que observamos precisa estar situado no tempo e no espaço para se tornar plenamente assimilado pelos sentidos (cenário observável). Enquanto sou no mundo, ele se manifesta em minhas experiências. Vivo minhas experiências sempre a partir de meu corpo, que é histórico e cuja história carrega os invariantes dessas experiências. Minha experiência é multiperspectiva e não se reduz a nenhum momento efetivo. As coisas me oferecem suas faces e eu as percebo de diversos pontos de vista espaciais e temporais... seu presente não apaga seu passado, seu futuro não apagará seu presente. (Merleau-Ponty, 1994) Qualquer teoria da arte3 (o que vale para qualquer aspecto mecânico envol- vido em fenômenos de estimulação humana) deve ter idealmente três componen- tes. (a) a lógica da arte: se existem regras ou princípios universais; (b) a razão evolutiva: por que essas regras evoluíram e por que elas têm essa forma; (c) qual seria o mecanismo ou o circuito cerebral envolvido. (Goguen, 1999) Partindo da distinção clássica, a arte é essencialmente relacionada às hu- manidades. Por sua vez, o cérebro, é objeto de estudo das ciências. Por esta ótica, a experiência estética seria um subconjunto da consciência. A arte para o ergonomista é, portanto, de importância limitada, mas certamente não excludente. Entretanto, devido à característica de observador externo a uma realidade, deve-se fixar a relevância do que os psicólogos (sobretudo os que lidam com a psicologia ambiental) chamam de “boa Gestalt”4 (ver figura 2), também chamada de Gestalt articulada porque une (ou transforma) os elementos “abstratos” ou soltos em formas mais reais, na compreensão dos fenômenos ligados à percepção visual e artística. O processo de assimilação da percepção e sua aplicabilidade na análise ergonômica, passa necessariamente pela compreensão do mecanismo de percep- ção como fenômeno resultante de combinações essencialmente orgânicas. O con- tato do homem com o seu ambiente (aqui num sentido mais amplo, não apenas o 3 Arte aqui transcende o “artístico” e refere-se a toda expressão gráfica e observação do mundo exterior. 4 De uma maneira geral, a Gestalt que nos interessa é a que conduz às formas mais articuladas, precisas, compactas, simples, facilitando, assim, a compreender o “todo” mais complexo. 23ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho Figura 2 - O princípio associativo de Gestalt (Retirado da internet, sem autor definido) ambiente construído) só é possível porque canais receptores especificamente sen- síveis a certas formas de energia processam e decodificam dados externos perce- bidos em códigos assimiláveis pelo organismo. Esta recepção, transformação e codificação constituem o primeiro estágio do processo perceptivo. Os cones e bastonetes dos olhos são sensíveis à luz incidente provocadas por mudanças fotoquímicas. O ouvido interno reage a movimentos de vibração a que somos submetidos e por sua vez a pele responde a estímulos de mudanças de pressão e temperatura. Até mesmo o olfato e paladar podem ser acionados no processo perceptivo através da sensibilidade a gases e partículas voláteis que agem sobre as fossas nasais, língua e boca, sensíveis a alterações na composição quími- ca dos líquidos que as envolvem. As características de intensidade e amplitude (tempo de exposição, brilho, etc.) dos impulsos externos podem provocar alterações diversas no comportamen- to dos canais receptores. Estas alterações podem confundir um ou mais órgão sensorial, modificando uma determinada codificação e, por conseqüência, o resul- tado de uma representação mental. Ainda que as formas que nos cercam sejam realmente caóticas, o cérebro projeta-nos uma ordem decodificada em uma ima- gem mais clara. De uma miscelânea de pontos, o olho capta e remete ao cérebro aqueles que se enquadram em alguma estrutura, sejam objetos, formas humanas ou animais. Quando contemplamos nuvens, ou formações rochosas, facilmente projetamos estas “fantasias” de forma, recriando objetos que sabemos não estão exatamente ali. A complexidade do mecanismo de percepção é proporcional à quantidade de centros de pesquisa dedicados à abordagem do tema. Teorias tradicionais em percepção visual da forma geralmente acreditam que o processamento visual é servido por canais ou filtros de banda-estreita que respondem seletivamente para freqüências e orientaçõesespaciais (Manahilov & Simpson, 2001). A noção de canal ou filtro supõe que um estímulo apresentado no campo visual não estimula todos os neurônios corticais que recebem informações daquela área da retina, mas 24 ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho A percepção possui diferentes significados e importância distinta conforme as áreas de estudo. Nos estudos de filosofia, por exemplo, a percepção é vista como um sistema de conhecimento humano engendrado a partir de reações senso- riais. Na prática projetual arquitetônica, a percepção pode circular em uma espécie de fronteira onírica, talvez oriunda da própria formação acadêmica. Enquanto vivencia experiências ambíguas de arte e técnica, o arquiteto “confunde-se” entre forma e função, muitas vezes desconhecendo os limites entre ambas. Assim, se vê muitas vezes na fronteira entre o determinismo de um programa-conjunto pré- estabelecido de diretrizes técnicas, sociais e organizacionais que devem ser segui- das no projeto de uma determinada edificação - ou de um partido – a resultante formal de um conjunto de fatores determinantes, como o programa, o sistema cons- trutivo, as características físicas do terreno, a paisagem do entorno, a legislação vigente e a intenção plástica do autor. Descartes afirmava, pela observação empírica, que não há percepção for- mal sem a inteligência. Apenas homens, de forma natural, ou alguns animais bem treinados, podem associar sinais a ações a tomar. Portanto, podemos assumir que 1.2 - O formalismo antropotécnico apenas um grupo de neurônios seletivos para uma determinada dimensão do estí- mulo. Ou seja, para a percepção de um estímulo determinante de freqüência espa- cial são alocados um agrupamento de neurônios. Assim, se um segundo estímulo que difere do primeiro ao longo da faixa de freqüência (ou outra dimensão qual- quer) é apresentado na mesma área, ele ativará um grupo de neurônios diferente do primeiro. Em outras palavras, estímulos diferentes são processados por grupos ou subgrupos de neurônios diferentes. Estes agrupamentos, por sua vez, formam a base dos canais ou filtros. A grande maioria de nossas idéias sobre o mundo é baseada na visão. A filtragem espacial tem aparentemente uma função crucial, pois permite ao sistema visual lidar de forma seletiva com uma diversidade muito grande de características simples e complexas de objetos. Estes objetos são captados em estágios anteriores que possivelmente são em seguida integrados em estágios posteriores. Isto permi- te à mente a reconstrução e interpretação do objeto ou de um determinado cenário composto, em movimento ou estacionário. Este processo intrincado, mas de certa forma articulado, resulta naquilo que denominamos de percepção visual da forma. Um dos objetivos principais do sistema visual humano é representar o ambi- ente visual da maneira mais clara possível para as circunstâncias na qual o sistema é utilizado. Muitos acreditam que o sistema visual exista principalmente para ex- trair da imagem a informação que nós precisamos para a compreensão do nosso entorno e não simplesmente como um meio de recriar a imagem projetada na retina (Braddick, Campbell & Atkinson, 1978, citado por Santos, 2002). 25ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho na vida e na arquitetura a percepção deva assumir diversos aspectos relevantes e indissociáveis. Cada agente de um determinado processo produtivo, da concepção até a utilização, reage diferentemente aos estímulos disparados pela interação com seus ambientes de trabalho. E estas interações diferem também em função da natureza destes estímulos. Um ambiente interno provoca diferentes sensações em um indivíduo situado em seu exterior, uma vez que implica em considerar, por exemplo, a influência que um detalhe de fachada, um jardim ou qualquer elemento da paisagem podem produzir em sua percepção. E cada ambiente interno, por sua vez, varia em sua amplitude de resposta, em função do grau de importância do ambiente para cada indivíduo – o que irá variar em função dos seus valores cultu- rais, psicológicos, do seu gosto, bem como da sua experiência de vida. Uma sala sem janelas provoca uma sensação desagradável a qualquer indi- víduo que freqüente o local, mas ela tende a ser mais intensa nos usuários deste ambiente. Ehrenzweig, (1977) utiliza uma analogia bem apropriada para a nossa abordagem. Segundo ele, uma casa é vista por nós de todos os lugares e de ne- nhum lugar em especial. Aquilo que vemos é uma síntese de todas as observações focadas que empreendemos de vários pontos e em vários momentos. E, mesmo que tenhamos formado o conceito de “casa”, ela não é uma síntese intelectual, mas uma síntese perceptiva. A característica temporal dessa síntese desdobra a concepção de percepção na fenomenologia: a percepção também é uma abertura ao futuro. Em Merleau-Ponty (apud Chauí, 2002), reside a noção de projeto na qual a edificação permanece como possibilidade para outras sínteses. A constru- ção (edificação) só é uma determinação quando já se está numa atitude predicativa, tal como quando seu projetista tem de afirmar sua objetividade. Esse não é, senão, o espírito de uma ciência em que a determinação é também a morte do objeto, ou melhor, o esgotamento de suas possibilidades. Arquitetos, engenheiros e projetistas, em geral, têm o poder de interferir positiva ou negativamente na qualidade de vida no trabalho5 de indivíduos. Estes indivíduos, por sua vez, têm pouco ou nenhuma influência/participação neste pro- cesso. Ainda que ações projetuais participativas6 sejam relativamente práticas comuns em alguns países e definitivamente adotadas em alguns setores (na cons- trução naval, por exemplo), no Brasil esta tendência ainda é muito incipiente e desarticulada, ou seja, existe vontade e reconhece-se a necessidade, mas faltam 5 Obviamente a qualidade de vida não está restrita ao trabalho, apenas ressaltamos o que interessa aqui, ou seja, o ambiente de trabalho construído. 6 Participatory Design traduz-se melhor por ‘projeto participativo’, mas como é um termo ainda pouco utilizado no Brasil, preferimos chamar de design participativo para diferenciá-lo de processos não organizados de ação participativa em projetos. Ações participativas podem até existir em maiores empresas, mas não seguem uma metodologia organizada, contínua e eficaz na concepção e execução de ambientes construídos para o trabalho. 26 ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho determinação e sistematização para o seu desenvolvimento. Em uma sociedade em transformação, indivíduos seguros de seus direitos passam a exigi-los e o fazem pelo questionamento de paradigmas em várias esfe- ras do pensamento. Seria natural que os tecidos sociais, em um primeiro estágio, tenham sede de mudanças elementares e, em seguida adquiram também o desejo de participar nas decisões que irão afetar a sua vida. Aqui também deve ser inclu- ída a escolha do ambiente (entorno e construído) em que vivem e trabalham estes indivíduos. Nos primeiros anos do movimento “behaviorista”, os novos “psicólogos ambientalistas”, que passaram a interagir com arquitetos em ações projetuais e outras abordagens participativas, acreditavam ser preciso que arquitetos “ensinas- sem” aos usuários e clientes como enxergar seus projetos. Hoje aumenta o enten- dimento de que este aprendizado deva ser mútuo, recorrente e caracterizado pelo dinamismo na aplicação de métodos e ferramentas. Além disso, é preciso explorar as fronteiras do imaginário, da realidade virtual e da simulação, libertando-se da análise de plantas baixas e cortes. Os ambientes devem ser de alguma forma analisados em uma dimensão “volumétrica”, que permita aos indivíduos conhece- rem, previamente, não somente seus cantos, mas também o vaso de plantas que estará ali, abrir as janelas, bem como “ver” as paisagens que poderá usufruir; andar pelos pisos sem deixar de sentir os fluxos e as distâncias a percorrer. É possível notar ainda que a percepção visual7 ,não materializada no plano real, adquire um simbolismo próprio do projetista que pensa antever as sensações e anseios de usuários que ele não conhece e executando atividades que ele não domina. Esta “imposição” projetual é uma atitude inconsciente, em que pese cer- tos projetistas realmente “pensarem” que são capazes de promover e produzir o melhor para as pessoas. Como os “resultados” das escolhas projetuais - tanto em termos de aplicação do programa como do partido adotado - dificilmente serão conhecidos pelos autores8 , estes (arquitetos e projetistas em geral) são excluídos da oportunidade do aprendizado proveniente da utilização dos ambientes de traba- lho. Assim, deficiências e incompatibilidades tenderão a se perpetuar no ciclo projetual, ou ainda, assimiladas culturalmente.9 7 Em se tratando de uma contextualização específica à arquitetura, ainda que outros sentidos sejam acionados, utilizaremos o termo “percepção visual” por este ser mais representativo da prática em questão. 8 A menos que os mesmos estejam envolvidos em processos que contemplem a realização de uma APO (avaliação pós-ocupação) após a entrega das respectivas obras aos usuários finais. 9 Psicólogos ambientais relatam estudos desde a década de 70 onde características desaconselháveis são aceitas como “única solução possível” ou “sempre foi feito assim”. Assim, toda fábrica tem que parecer pesada e forte da mesma forma que certas áreas não tem janelas para não “tirar a concentração das pessoas”. 27ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho 10 Para ilustrar, citamos os processos de implantação de projetos industriais onde há décadas se utilizam métodos de controle cuja orientação é fundamentalmente “controlativa”. Como exemplo, temos a utilização de métodos como PERT-COM e MRP-ERP, sistemas de planejamento e controle pouco flexíveis, que não admitem a ocorrência de variabilidade e têm abordagem pouco participativa. Segundo Sommer (1972), não se deve flagelar os arquitetos pelas desconformidades e anomalias em seus projetos (ou no resultado deles). Embora possam ser criticados até por feiúra e desumanidade, ele acredita só cabe a eles pequena parte na responsabilidade. As boas coisas que fizeram, fazem e irão fazer sem dúvida superam as más. Seus pecados são mais de omissão do que por inten- ção ou perpetração. Devemos ter em mente também que designers e projetistas são, de certa forma, limitados em suas ações pelos seus clientes. Estes stakeholders têm o poder de acatar ou recusar soluções, chegando mesmo a ponto de impor suas próprias metodologias para o gerenciamento de projetos10. A forma e o conteúdo dos programas dos edifícios sofrem modificações tão logo começam a serem detalhados pelos arquitetos. Designers que se interessam pelo tipo de comportamento do usuário devem procurar elaborar programas que possibilitem uma avaliação em termos deste comportamento. Não é uma meta fácil de cumprir, uma vez que o universo sociológico pode ser tão vago e ambíguo quanto o da arquitetura. Mas ao menos devemos ter projetos onde os programas podem ser aprovados ou rejeitados, total ou parcialmente, em futuros empreendimentos. A pouca atenção dada aos projetos depois de inaugurada a obra, aliada a ao aparente descaso com a participação dos usuários nas decisões desde a concepção até a construção, dificulta o atendimento pleno da função social de um ambiente construído para o trabalho. Como conseqüência, a inadequação ou a incompatibilidade em um ambiente de trabalho poderá afetar os níveis de produtividade e de qualidade de vida dos seus usuários. Em última análise, o mais importante não é exatamente o que consta do programa, nem o sucesso ou fracasso do arquiteto em alcançar seus objetivos. O mais importante é buscar, a partir da observação dos ambientes em uso, uma metodologia que seja mais adequada para gerar informações válidas e dissemináveis para projetos. Paralelamente, as abordagens participativas para a concepção, o projeto e a construção de ambientes de trabalho devem ser incentivadas e disseminadas. Mas, para que estas abordagens possam ser bem sucedidas, é necessário que todos os níveis decisórios, em uma empresa ou instituição, encontrem formas de participar deste processo. Como sugestão, seria interessante estabelecer um plano de ação participativa como parte de um processo maior de gerenciamento de projetos (da concepção à execução), integrando ferramentas, metas, níveis e limites de responsabilidade, normas e exigências técnicas, etc. 28 ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho O homem e suas extensões constituem um sistema inter- relacionado. É um erro agir como se os homens fossem uma coisa e sua casa, suas cidades, sua tecnologia, ou sua língua, fosse algo diferente. Devido à inter-relação entre o homem e suas extensões é conveniente prestarmos uma atenção bem maior ao tipo de extensões que criamos (...). Como as extensões são inanimadas, é preciso alimentá-las com feedback (pesquisa), para sabermos o que está acontecendo, em particular no caso das extensões modeladoras ou substitutivas do meio ambiente natural. (E.Hall, 1966) Um interessante ponto de partida poderia ser o estabelecimento de um “guia de referência projetual”. Existem propostas para uma sistematização básica em forma de um modelo que contemple, em uma linguagem simples e “universal”, as diferentes fases do processo de concepção, tornando-o palatável e adequado para fazer frente à multidisciplinaridade inerente à ação ergonômica, seja ela direta, via os atores envolvidos em um determinado processo de intervenção (i.e: os membros de um comitê ou grupo de suporte , ou vicariamente, a partir do envolvimento de todo e qualquer agente participante. Christopher Alexander11 , é o autor de uma teoria onde elementos que compõem diferentes projetos possam ser “padronizados” para que sejam utilizados de forma recorrente em situações que se repetem. Essa “linguagem de padrões” encontrou campo fértil de aplicação na ciência de computação, uma vez que o processo de construção de algoritmos presentes na criação de softwares depende de um encadeamento lógico de códigos conhecidos e aceitos. Há controvérsias na viabilidade de utilização de padrões de projeto no processo criativo em arquitetura. Porém, acreditamos que essa teoria pode vir a atender uma premente “carência simbiótica” no enquadramento conceitual interdisciplinar, mais especificamente no campo da ação ergonômica, auxiliando assim projetistas, usuários, clientes e ergonomistas na busca por mecanismos eficientes de gestão de projetos e na negociação de soluções necessárias para ambientes de trabalho. Além disso, a ergonomia apropria-se constantemente de referenciais que são utilizados para enquadramento normativo (NR’s, ABNT, etc), adoção de boas práticas – advindas de projetos análogos– e conceitos extraídos de bancos de dados diversos – em forma de ilustrações ou descrição de especificações de produtos. Esses elementos se constituem em dados de projeto para a ergonomia e, dessa forma, podemos inferir que o projeto ergonômico possa ser conduzido a partir de métodos que estimulem a ação participativa e que essa ação também possa se utilizar de dados repetitivos e recorrentes. 11 Alexander é arquiteto por formação. Entretanto, pode-se dizer que a teoria da Pattern Language é hoje bem mais aceita no mundo do software do que na arquitetura, de onde se originou. 29ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho A percepção visual é uma função complexa e objeto de um campo de estudo extremamente vasto, o que nos obriga a apresentá-la de maneira sintetizada. O processo de percepção visual ocorre em três fases: primária, secundária e terciária. Na fase primária, há a captação da imagem pelos receptores fotossensíveis localizados na retina. Essa imagem é então projetada no lobo occipital, onde se dá a recepção do estímulo visual. Na fase secundária, ocorre o reconhecimento da imagem projetada, ou seja, a mente atribui à imagem um significado.Nossa mente interpreta tudo aquilo que observamos e contextualiza estas imagens em relação às suas dimensões físicas no tempo e no espaço. Além disso, instantaneamente e inconscientemente, atribuímos certas características nem sempre “reais” ao que registramos visualmente baseados em nossas experiências individuais. Na última fase ocorre uma integração cortical desta imagem “reconhecida” com todos os outros sentidos (olfato, tato, audição, etc.). Consequentemente, mesmo sendo a visão o sentido determinante para o processo de percepção, as outras atividades sensoriais, particularmente o tato e a cinestesia, desempenham um papel que não deve ser desprezado. A visão não é uma função que ocorre de modo totalmente independente de nossa vontade. Ela está profundamente integrada ao desenvolvimento psicossomático do indivíduo. Nossa postura, coordenação, inteligência e personalidade, irão afetar e serem afetadas pelos mecanismos da percepção visual. Sendo a visão o mais sofisticado e objetivo dos sentidos, esta permite a assimilação e o reconhecimento do mundo externo, fornecendo um relato minucioso e registrando simultaneamente posição, forma, cor, tamanho e distância no tempo e no espaço. Para o estudo da ergonomia, ou na ação ergonômica, a noção de percepção voltada para as formas geométricas soltas ou modelos de representação mental fora de um contexto espacial e temporal, é pouco producente. Por outro lado, não é apenas a imagem (ou cenário) decodificada que tem importância nos estudos e na prática da ergonomia. A aceitação de que princípios óticos (distorção, alongamento, miragem, etc) estão presentes no cotidiano de observadores (e observados) e que estes fenômenos podem ser orientativos e não somente desorientativos são fundamentais para a percepção e representação de formas e cenários observáveis. Estudos demonstram que existe uma correlação entre processos neurais e fenômenos perceptivos. A diferença projetada entre imagens das retinas direita e esquerda, por exemplo, são responsáveis pela noção de profundidade12 . A profundidade, por sua vez, produz a chamada constância perceptiva, propriedade fundamental da percepção espacial e base para a prática de representação gráfica. Entretanto, o processamento das imagens no homem adulto depende 1.3 - A percepção dos espaços e formas 30 ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho fundamentalmente da experiência adquirida no seu desenvolvimento mental. Se ao caminharmos na rua e olharmos em fração de segundos por entre um muro ou uma cerca para um cachorro latindo, nossa mente é capaz de reconstruir este animal de forma clara ainda que os olhos não tenham sido rápidos o bastante para perceberem todas as suas características. Outro exercício interessante é sentar-se numa sala com uma porta entreaberta para um corredor onde passem um grande número de pessoas. Vemos vultos passando e sabemos que são pessoas, mas somente podemos “inferir” certas características individuais a elas. Isto ocorre porque nosso cérebro cria imagens genéricas baseadas nos poucos dados fornecidos. Em alguns casos, se as características percebidas forem traços individuais marcantes – um cabelo tingido de cor diferente – podemos até mesmo “identificar” certos indivíduos a partir de micro-segundos de observação. É importante ainda citar uma das propriedades do processo perceptivo (ou estímulo): a percepção de movimento. Em linguagem simples, o movimento ocorre quando existe uma mudança no espaço (deslocamento) em função do tempo. Para que ocorra a percepção deste movimento é preciso que o deslocamento tenha uma intensidade mínima. Se o intervalo é longo demais, a percepção de imagens determinadas por movimentos (como no caso dos vultos nas portas) é dificultada ou até impossibilitada. Outra questão importante diz respeito à percepção do espaço tridimensional (deve-se enfatizar a diferença entre forma e espaço tridimensional). A importância do processo de percepção em ergonomia é evidenciada pela apropriação de uma ferramenta presente na análise ergonômica do trabalho. As observações situadas são como registros instantâneos de uma realidade que demanda alguma forma de intervenção. Existe aí certa ambigüidade (arte e técnica, tal como a arquitetura) de função em cada observação de um ambiente profissional. De cada um destes “cenários observáveis” podemos extrair diferentes facetas ou grupamentos. Um primeiro grupamento se mostra (ou percebe-se) de forma estática, tal como uma fotografia. Este fotograma formado em nossa mente é uma representação concreta do cenário e seu determinismo formal. O segundo grupamento é mais complexo e rico de significação tal como uma imagem dinâmica ou um filme, com princípio (gatilho da ação), meio (desenvolvimento da ação) e fim (resolução da ação). Entretanto, estes grupamentos ainda que combinados são insuficientes para a “compreensão” global de um cenário pois dependem única e exclusivamente da nossa visão. Esta ordenação óbvia parece subverter o princípio do que mencionamos anteriormente como “boa Gestalt”, onde o objeto deve ser articulado e principalmente “completo”. Por que “enxergamos” o mundo diferentemente dependendo da música que escutamos? Ou por que certas vibrações provocam desconforto em ambientes anteriormente agradáveis? Seria razoávelafirmar que também possam existir reações inexplicáveis 31ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho de bem estar ou desconforto percebidos inconscientemente pelo nosso corpo? Se abstrairmos na análise de atividades de trabalho, podemos captar muito mais que “fotogramas ou filmes”. Poderíamos respirar, tocar, escutar aquele ambiente e as pessoas que dele se utilizam em toda a sua plenitude. Naturalmente, existem outros componentes necessários para uma compreensão plena de um “cenário” profissional em movimento. São componentes adquiridos a partir da comunicação com as pessoas no exercício de suas atividades de trabalho. Um importante aspecto a considerar é que ao observarmos uma situação, inadvertidamente incorporamos elementos exógenos àquele cenário. Joyce cunhou um termo para caracterizar esta ocorrência. Ele diz que ao “fotografar” uma cena criamos “fadographs” (corruptela dos termos em inglês fotograph ou fotografia e fade ou dissipar) desta cena, sendo que certos fadographs insistem em se manter mais nítidos enquanto outros desaparecem rapidamente. Complementando, em nossa vivência até aquele instante nós acumulamos “templates” (gabaritos) de objetos que inconscientemente utilizamos para compor a “Gestalt” de um objeto real. Quando dirigimos por uma fazenda e olhamos o gado no pasto, não temos como registrar mentalmente todo o rebanho. Entretanto, conseguimos claramente “perceber” não somente vários animais (inclusive com variações) como também compor cada animal em toda sua integridade, com chifres, rabo, cores e tudo mais. Ainda segundo Ehrenzweig (1977), qualquer experiência consciente contém processos complexos inconscientes perscrutando diversas “camadas” (sistemas de diferenciação) dentro de nossa mente e desse modo movimentaria ou manteria suprimidos outros diversos elementos em diferentes níveis da mente. Os olhos muitas vezes vêem apenas aquilo que a pessoa quer ver. Eles são atuantes e procuram estímulos que possam apoiar certos conceitos. (Sommer, 1976) Alguns psicólogos ambientais13 chegam a propor exercícios onde as pessoas têm os olhos vendados e são convidadas a “perceber” o ambiente, estimulando assim outros sentidos. Estes experimentos, em sua maioria, têm um alcance estritamente acadêmico, mas poderiam ser expandidos para o campo profissional com algumas adaptações. Para a percepção de formas aplicadas sobre um plano qualquer existe uma série de princípios oriundos de experimentos diversos, em campos do conhecimento distintos. As ciências biomecânicas estudam a mecânica da visão, enquanto que as ciências sociais concentram-se no estudo do comportamento do homem como observador do mundo que o cerca. Analisaremos aqui somentealguns princípios14 que são fundamentais para a representação da forma e, por conseguinte para a ação projetual. Consequentemente torna-se 13 A psicologia ambiental é uma corrente da psicologia surgida entre 1960 e 1970 que se propõe a analisar a influência dos espaços construídos ou urbanizados na vida do homem moderno. 14 A organização desses princípios baseia-se na estruturação proposta por Ehrenzwejg e Day. 32 ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho necessário compreendê-los para uma melhor abordagem dos aspectos relacionados à concepção de ambientes de trabalho construídos. 1.3.1 - Princípio da constância da forma Devido à constância da forma reconhecemos instantaneamente uma determinada qualidade (por exemplo, uma forma circular idêntica dentre objetos com texturas ou posicionados em ângulos diferentes) e escolhemos aquela que possui uma forma mais real. A “constância da forma” automaticamente despreza todas aquelas distorções da forma constante. Isso torna nosso reconhecimento da coisa mais rápido e mais seguro. É fácil imaginar como se tornaria difícil nosso reconhecimento de coisa se tivéssemos que desprezar conscientemente as distorções perspectivas e as diferentes formas de representação. Somente as operações matemáticas complexas que levam em consideração os dados trigonométricos de visão e as distâncias poderiam calcular a forma “constante” real de um objeto em um dado foco perspectivo. Portanto, a repressão das distorções representa um passo muito importante tornando a percepção útil ao reconhecimento da realidade. 1.3.2 - Princípio da constância de tom A constância do tom (claridade) serve para equilibrar as distorções do tom local através das excentricidades da iluminação (claro/escuro). Um livro preto sob a luz plena do sol se tornará mais claro, ou adquirirá um tom acinzentado tal qual um papel branco teria sobre uma sombra negra perto da claridade, ou seja, ambos refletem a mesma quantidade de luz cinza na retina. Uma fotografia torta, que não leva em consideração os possíveis efeitos de uma iluminação diferente, poderia mostrar o livro alvejado de branco e o papel em cinza manchado. Em nossa experiência normal da realidade, entretanto, não percebemos os “verdadeiros” valores das tonalidades do claro/escuro. Ao contrário, a constância do tom automaticamente despreza as distorções do tom e nós tendemos a perceber imediatamente os valores do tom realmente constante, tanto do preto como do branco. 1.3.3 - Outros aspectos da observação e interpretação de formas Existem princípios envolvidos na percepção visual que são decorrentes da fisiologia humana. O olho humano (ou o mecanismo de visão) é capaz de reconhecer distorções perspectivas e criar distorções da realidade cujas dimensões ainda intrigam a ciência. Se confiarmos na análise da percepção artística (formas, objetos, edificações, etc.) como um guia seguro para os territórios desconhecidos da percepção inconsciente, é fácil aceitar, então, de que somos capazes de interpretar 33ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho os fatos pouco conhecidos da visão periférica sob o ponto de vista psicológico como, por exemplo, a de que o campo periférico que circunda o foco visual possui muitas qualidades da percepção inconsciente. Para começar, ele resiste à introspecção em um grau extraordinário; é quase impossível deslocar nossa atenção do foco em direção à periferia. Se tivéssemos sucesso em assimilar essas formas periféricas elas pareceriam vagas e disformes; na maioria das vezes elas aparecem instáveis. Suas distorções não se deslocam apenas rasticamente a cada movimento do olho, como observamos em diversos experimentos com diferentes pontos de fixação, mas estão sujeitas também à influência de imaginação. Observaram-se através de processos investigativos que para uma percepção ser retirada da percepção consciente para a região inconsciente da mente era suficiente dominá-la por sua própria expressão irracional. A visão periférica, por ser retirada do “foco” de atenção consciente, estaria igualmente sujeita ao jogo de nossa imaginação (inconsciente) e conseqüentemente também sua influência no processo de criação. Certas diferenças fisiológicas na função das células visuais centrais e periféricas da retina (as células cones centrais e as células bastonetes periféricas) permitem-nos isolar fantasias periféricas da forma sem que nossa atenção seja constantemente desviada para o foco do campo visual. A visão periférica, imperfeita como pode parecer em outros aspectos, supera a visão central por sua acuidade superior sob condições crepusculares. Alguns observadores vêem nessa surpreendente característica da visão humana uma habilidade anacrônica herdada de um ancestral animal que vagueava na escuridão. Quando no crepúsculo nossa visão central começa a falhar, já que aos poucos perdemos as cores e a nitidez, os “fantasmas do devaneio” escondidos na visão periférica invadem nossa consciência. É bem provável que todos já tenhamos experimentado medos repentinos quando na penumbra nos encontramos em lugares desconhecidos entre esquinas escuras e inexploradas. Ao vislumbrar na periferia alguma forma inarticulada podemos, em nosso esforço de identificá-la, transformar esta imagem em alguma forma fantástica aterrorizante uma vez que nossa visão central é impotente para torná-la mais nítida na penumbra. Quando focalizamos automaticamente nossa visão central limitada nessa forma a fim de discerni-la mais claramente, ou apontamos uma lanterna na direção da mesma, ela se dissolve imediatamente, reaparecendo em uma forma diferente mais próxima da sua imagem real. Desse modo, certas condições revelam o mundo onírico vagando na orla periférica de nossa visão à luz do dia. Durante a luz do dia, o campo periférico não tem outro propósito senão o de atrair nossa atenção para algum objeto sobre o qual nossos olhos não se fixam inteiramente15. Ehrenzweig (1977), cita pesquisas que procuram demostrar existir uma fração de segundo de dúvida e ambigüidade que 34 ERGONOMIA DE CONCEPÇÃO - Ambientes Construídos para o Trabalho se atribui a qualquer ato da percepção em seu estágio inicial ainda inarticulado. Nós tendemos a esquecer aquele segundo de ambigüidade assim que nossa imagem mnêmica final é formada. Assim, portanto, também a aparência inicial e ambígua de algum novo objeto na orla periférica de nossa visão não é retida pela nossa memória depois que ela é identificada do modo normal. O aspecto psicológico aqui presente é que nem a flexibilidade da visão periférica, isto é, a sua facilidade em ser moldada pela nossa imaginação, nem mesmo sua incerteza, podem ser explicadas por fatores fisiológicos (como se fosse uma “função” imperfeita das células periféricas da retina). As células responsáveis pela visão periférica encontram-se esparsamente distribuídas na retina e mais estreitamente comprimidas do que as células centrais. Isso explicaria sua reduzida acuidade. Poderíamos comparar a imprecisão da visão comum com uma fotografia manchada. Examinaríamos essa fotografia despreocupadamente e daríamos palpites adequados sobre o que ela representa, do mesmo modo que uma pessoa míope, por exemplo, teria que recorrer a adivinhações. A fotografia manchada ou uma visão ordinariamente manchada são rapidamente identificadas e, apesar de sua imprecisão, não prejudicam nossa atenção consciente. Se quisermos fazer isso, podemos examinar com exatidão científica seus graus variáveis de imprecisão, sua boa ou má definição. A imprecisão da visão periférica, entretanto, está inseparavelmente ligada à sua qualidade evasiva. Uma forma não parecerá muito vaga se já a tivermos focalizada plenamente e também nos assegurarmos de sua configuração correta, permitindo assim que esta deslize pelo campo visual periférico. Mas se desconhecemos totalmente em nossa memória o que determinadas formas periféricas representam, então um estonteante jogo de adivinhação se iniciará produzindo resultados surpreendentes. Quando
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