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1 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 Anestesiologia ANESTESIA GERAL III Introdução: Farmacocinética: - Descreve a relação entre a dose da droga e a sua concentração no plasma sanguíneo e/ou no sítio de ação ao longo do tempo. - Simplificadamente, a farmacocinética descreve o que o corpo faz com a droga. - Compreende a absorção, a distribuição, o metabolismo e a excreção do fármaco. - Na anestesia, não há absorção da droga, uma vez que ela é administrada diretamente na circulação sanguínea (infusão endovenosa). - Modelo tricompartimental de infusão endovenosa: explica que a droga, ao ser administrada, é distribuída para 3 compartimentos (V1, V2 e V3). → V1: representa os tecidos ricamente vascularizados. → V2: representa o tecido muscular. → V3: representa o tecido adiposo/gorduroso. - O Ke0 é definido como a velocidade com que a droga se distribui do compartimento central (plasma sanguíneo) para o seu sítio de ação, representado pelos tecidos V1, V2 e V3. O Ke0 varia dependendo da droga. Quanto maior é o Ke0 da droga, maior é a velocidade de início de ação da droga. - O compartimento central representa o local onde o fármaco é inicialmente depositado. No caso dos anestésicos de infusão endovenosa, o compartimento central é representado pelo plasma sanguíneo. - O compartimento central, portanto, determina a concentração plasmática da droga. Quanto maior o compartimento central (maior o volume de plasma sanguíneo), menor a concentração final da droga (maior a diluição no plasma sanguíneo). - O segundo compartimento é aquele que se equilibra mais rapidamente com o plasma sanguíneo. O segundo compartimento é representado pelo músculo. - O terceiro compartimento é aquele responsável pela captação e impregnação do anestésico no organismo. O terceiro compartimento é representado pela gordura. Ela é responsável por acumular o fármaco no organismo após a sua infusão. - Assim, quanto maior é a lipossolubilidade de uma droga anestésica, maior é a sua capacidade de se difundir para o cérebro e maior é a sua capacidade de se acumular no organismo por meio do tecido adiposo. Portanto, a lipossolubilidade de um anestésico está diretamente relacionada à sua potência. - Biofase: representa o sítio de ação da droga, local onde estão localizados os receptores aos quais a droga se liga; na anestesia geral, o sítio de ação da droga geralmente é o cérebro. - Ke0: velocidade com a qual um fármaco deixa o compartimento central e entra no compartimento de ação (sítio de ação). - T1/2Ke0: tempo para que a droga atinja metade de sua concentração de equilíbrio com o compartimento de ação (sítio de ação). - Histerese: tempo para que a droga atinja o equilíbrio entre a sua concentração plasmática e a sua concentração no sítio de ação (biofase); corresponde a 4,32 x T1/2Ke0. - Distribuição: capacidade de um fármaco de alcançar os capilares sanguíneos teciduais por meio do fluxo sanguíneo; refere-se à passagem da droga do compartimento central (plasma sanguíneo) para o tecido. - Volume de distribuição: avalia o quanto o fármaco acumula-se nos tecidos; calculado pela relação dose do fármaco / concentração plasmática do fármaco. 2 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 - Redistribuição: refere-se à passagem da droga do tecido de volta ao compartimento central (plasma sanguíneo). - Janela terapêutica: concentração plasmática na qual o fármaco encontra-se entre 50 e 95%. - Meia vida contexto sensitiva: tempo para que a concentração da droga no plasma sanguíneo seja reduzida à metade após o término de sua infusão; quanto menor a meia vida contexto sensitiva da droga, mais rápido o tempo para o término do seu efeito, ou seja, no caso de drogas anestésicas, mais rápido o tempo para o paciente acordar após a anestesia, visto que sua concentração no plasma sanguíneo diminui rapidamente. - As drogas que apresentam menor meia vida contexto sensitiva são remifentanil e propofol. A droga que apresenta maior meia vida contexto sensitiva é o diazepam. - As drogas com meia vida contexto sensitiva favorável são as mais utilizadas para a indução e/ou a manutenção da anestesia geral, visto que, uma vez interrompida a sua infusão, o seu efeito desaparece rapidamente e o paciente acorda mais rapidamente da anestesia geral. Assim, as drogas mais utilizadas na anestesia geral são remifentanil e propofol. - O diazepam é uma droga muito pouco utilizada na anestesia geral, uma vez que a sua meia vida contexto sensitiva é alta e, portanto, o seu efeito anestésico permanece ativo por um longo tempo mesmo após o término da infusão da droga, demorando para o paciente acordar da anestesia geral. Farmacodinâmica: - Descreve o que a droga faz no corpo, ou seja, os efeitos do fármaco no organismo. Anestésicos Venosos: Opioides: - Ligação a receptores acoplados à proteína G presentes na superfície celular. - Mecanismo de Ação: → Diminuição da formação de AMPc. → Alteração na permeabilidade dos canais de membrana. → Hiperpolarização celular, principalmente de células do corno dorsal da medula espinhal, que são ricas em receptores de opioides. → Bloqueio da liberação de glutamato (neurotransmissor excitatório). → Desinibição dos interneurônios das vias inibitórias do encéfalo. - Os principais efeitos dos opioides na prática clínica são: → Alterações psicomotoras, principalmente sedação. → Miose, devido à ação direta sobre o núcleo do nervo oculomotor. → Depressão ventilatória, redução da resposta à hipoxemia e à hipercapnia nos centros respiratórios do bulbo e da ponte. → Inibição dos reflexos de via aérea, principalmente da tosse. → Broncoconstrição, devido à liberação de histamina por mastócitos. 3 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 → Prurido, devido à ação direta sobre receptores M nos neurônios da medula espinhal. O prurido, principalmente na face, é comum em pacientes gestantes submetidas à anestesia raquimedular na qual há uso de opioides. → Hipotensão arterial, devido ao efeito simpaticolítico e à vasodilatação histamínica, e bradicardia, devido à ação direta sobre o nervo vago. → Trato gastrointestinal: náuseas, vômitos, aumento do tônus do piloro, retardo do esvaziamento gástrico, diminuição da peristalse (podendo causar constipação), aumento do tônus do esfíncter de Oddi. → Trato urinário: retenção urinária. - A morfina é o principal opioide utilizado para analgesia. A dose indicada é de até 0,1 mg/kg. A morfina utilizada em doses usuais para analgesia tem baixo risco de causar intoxicação. Não Opioides: - Barbitúricos, benzodiazepínicos, etomidato e propofol: → Ligação aos receptores do neurotransmissor GABA. → Aumento da permeabilidade dos íons Cl-, resultando em hiperpolarização celular. → Causam mais alterações hemodinâmicas, como hipotensão arterial e bradicardia. - Cetamina: → Ligação aos receptores de glutamato (receptores NMDA). → Produção de anestesia dissociativa por desorganização funcional do tálamo e do mesencéfalo. → Pode causar alucinações e medo, efeitos que são atenuados com a associação de outros hipnóticos, como benzodiazepínicos e propofol. → Causa menos alterações hemodinâmicas. → Pode ser utilizada em pacientes chocados e politraumatizados pois causa hipertensão arterial e taquicardia. → Pode ser utilizada em subdoses para analgesia. - Para alcançarem o SNC, dependem principalmente da lipossolubilidade e da ligação proteica. → Quanto maior a lipossolubilidade, maior a facilidade de entrada no SNC. → Quanto maior a ligação proteica, menor a facilidade de entrada no SNC. Morfina: - Opioide natural, agonista puro, de potência forte. - Base fraca, apresenta-se 79% sob forma ionizada em pH fisiológico. - Ligação proteica de 35%. - Volume de distribuição de 224 L. - Meia vida deeliminação de 1,7 a 3,3 horas. - O tempo para atingir a concentração plasmática máxima depende da via de administração: → Via oral: 60 minutos. → Via subcutânea: 30 minutos. → Via endovenosa: 6 minutos. - Metabolização hepática. - Excreção urinária. - Produz depressão respiratória dose- dependente, por redução da resposta do centro respiratório ao aumento da PaCO2 (hipercapnia). - Em doses analgésicas, não apresenta repercussão hemodinâmica. Fentanil: - Opioide sintético, agonista puro, de potência forte (50 a 100 vezes mais forte que a morfina). - Base fraca, apresenta-se 93,5% sob forma ionizada em pH fisiológico. - Pico de ação de 3 a 5 minutos após a administração. - Volume de distribuição de 335 L. - Meia vida de redistribuição rápida de 1,2 a 1,9 minutos. - Meia vida de redistribuição lenta de 9,2 a 19 minutos. - Meia vida de eliminação de 3,1 a 6,6 horas. 4 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 - Produz analgesia profunda dose- dependente. - Produz perda de consciência (hipnose) e sedação. - Produz depressão respiratória. - Redução da CAM dose-dependente: quanto maior a dose de fentanil utilizada, menor a concentração de anestésico inalatório necessária para a anestesia geral. - Inibição dos reflexos de via aérea durante a IOT, principalmente da tosse. - Utilizado como adjuvante na indução da anestesia geral para diminuir as respostas hemodinâmicas da laringoscopia e da IOT. Remifentanil: - Características peculiares que o diferencia dos demais opioides. - Presença de ligação éster em sua molécula, tornando-a suscetível à degradação por enzimas plasmáticas. - Metabolização plasmática. - Grande lipossolubilidade, pequena ligação proteica, alta afinidade pelo receptor, volume de distribuição muito pequeno (restrito ao compartimento central/plasma sanguíneo). - O tempo para atingir a concentração plasmática máxima é de aproximadamente 1,5 minutos após sua administração. - Deve ser sempre administrado em infusão contínua, devido à sua rápida metabolização ainda no plasma sanguíneo. - Apresenta meia vida contexto sensitiva independente, ou seja, a concentração plasmática da droga diminui rapidamente, não dependendo do tempo de infusão. - Droga de curta latência, fácil titulação e grande previsibilidade, sendo muito utilizada na anestesia geral. - Não produz analgesia pós-operatória. Por isso, geralmente associa-se o remifentanil com o fentanil de forma a promover analgesia pós-operatória. - Devido ao fato de induzir alterações nos receptores, com risco de hiperalgesia, não se recomenda doses de manutenção maiores que 0,5 mcg/kg/min por períodos de tempo prolongados. - Causa hipotensão arterial e bradicardia importantes. - Podem causar rigidez torácica. Alfentanil: - Droga pouco lipossolúvel, com baixo volume de distribuição, permanecendo mais restrita ao compartimento central (plasma sanguíneo) e sendo metabolizada rapidamente. - Metabolização hepática. - Apresenta-se 90% sob forma não ionizada em pH fisiológico. - Droga de curta latência. - Pico de ação em aproximadamente 2 minutos. - Pode ser utilizada em infusão contínua, devido à sua rápida metabolização e à sua baixa meia vida contexto sensitiva. - Meia vida contexto sensitiva maior que a do remifentanil. Sulfentanil: - Droga 2 vezes mais lipossolúvel que o fentanil. - Apresenta-se 20% sob forma não ionizada em pH fisiológico. - Maior taxa de ligação proteica entre todos os opioides, apresentando volume de distribuição reduzido. - Metabolização hepática. - Devido ao menor volume de distribuição e à maior taxa de metabolização, pode ser administrado em infusão contínua ou em bolus repetidamente. - Meia vida contexto sensitiva favorável. - A dose de indução é de 0,5 a 1,0 mcg/kg. Doses adicionais podem ser associadas ao longo da cirurgia, sem comprometimento da recuperação do paciente. Antagonista dos opioides: - Naloxona. - Utilizada em casos de intoxicação por opioides. Em resumo, os opioides são utilizados principalmente para analgesia e para inibição 5 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 dos reflexos de via aérea de forma a possibilitar a IOT. Em pacientes com cirrose ou insuficiência hepática, devemos evitar administrar anestésicos venosos que apresentam metabolização hepática. Assim, devemos preferir a utilização de anestésicos com metabolização extra-hepática, como remifentanil, que é metabolizado no plasma sanguíneo. Propofol: - Droga de alta lipossolubilidade, curta latência e grande volume de distribuição, resultando em término de ação rápido. - O equilíbrio da droga entre o compartimento central (plasma sanguíneo) e a biofase é atingido em 8 a 10 minutos após o início da infusão. - Metabolização hepática e extra-hepática (principalmente pulmonar). - Devido à sua importante metabolização extra-hepática, o propofol não apresenta grandes riscos de ser administrado em pacientes com cirrose hepática. - Apresenta meia vida contexto sensitiva favorável à infusão contínua. - Produz rápido despertar, ausência de confusão mental, sensação de bem estar e de sono fisiológico e reparador, ausência de náuseas e vômitos (apresenta efeito antiemético). - Induz hipnose (perda de consciência e amnésia) sem analgesia. - Reduz o fluxo sanguíneo e o metabolismo cerebral. - Promoção de vasodilatação arterial e venosa e diminuição da PAM, da pré-carga e da pós-carga, causando hipotensão arterial e bradicardia. - Causa depressão respiratória. - Apresenta efeito antiemético e antipruriginoso. - A dose de indução em adultos é de 2 a 3 mg/kg, em idosos é de 1 a 2 mg/kg e em crianças é de 4 mg/kg, devido ao maior volume do compartimento central, à maior metabolização plasmática e hepática e à maior ligação proteica em crianças. Benzodiazepínicos: - Utilizado como ansiolítico em baixas doses, para promover amnésia em doses intermediárias e para promover hipnose em altas doses (necessárias para a ocupação de todos os receptores do neurotransmissor GABA). - Ligam-se ao receptor do GABA, resultando em hiperpolarização dos neurônios. - Rápido início de ação devido à sua alta lipossolubilidade. - A redistribuição da droga é responsável pelo término de sua atividade. - Metabolização hepática. - Promovem redução do fluxo sanguíneo e do metabolismo cerebral. - Apresentam efeito anticonvulsivante e de relaxamento muscular. - Promovem depressão respiratória dose- dependente e relaxamento muscular das vias aéreas superiores, facilitando a IOT. - Causam alterações hemodinâmicas devido ao seu efeito central, mas não periférico. - Apresentam grande sinergismo se administrados em associação com opioides e propofol. - São classificados em fármacos de ação curta, como midazolam, de ação intermediária, como lorazepam, ou de ação longa, como diazepam. - O benzodiazepínico mais utilizado na anestesiologia é o midazolam. → Induz amnésia e hipnose. → Apresenta meia vida contexto sensitiva favorável para ser utilizado na anestesia geral. → Utilizado principalmente na anestesia geral de cirurgias cardíacas em substituição ao propofol, pois causa menos repercussões hemodinâmicas. → Fármaco rapidamente distribuído, com meia vida de distribuição de 6 a 15 minutos. → Apresenta alta ligação proteica (95%). → Droga com menor meia vida contexto sensitiva entre todos os benzodiazepínicos. 6 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 → Meia vida de eliminação de 1,7 a 2,6 horas. - O flumazenil é o antagonista dos benzodiazepínicos. Ele remove os benzodiazepínicos do receptor do GABA por competição e não produz efeitos clínicos quando utilizado em doses habituais. Apresenta meia vida de eliminação aproximadamente 1 hora. Barbitúricos: - Pouco utilizados atualmente. - Apresentam alta lipossolubilidade e grande acumulação no tecido adiposo. - Promovem diminuição acentuadado fluxo sanguíneo e do metabolismo cerebral. - Promovem diminuição do retorno venoso por vasodilatação. - Promovem redução da PAM, do débito cardíaco e da resistência vascular periférica, resultando em hipotensão arterial e bradicardia. - Causam depressão respiratória dose- dependente. Etomidato: - Hipnótico com melhor estabilidade hemodinâmica. - Apresenta rápido início e término de ação. - É o fármaco de escolha para pacientes com menor reserva cardiovascular, sendo vantajoso para uso em pacientes cardiopatas devido à menor probabilidade de causar instabilidade hemodinâmica. - Apresenta alta metabolização plasmática. - Volume de distribuição baixo. - Promove redução do fluxo sanguíneo e do metabolismo cerebral. - A dose de indução é de 0,2 a 0,3 mg/kg. - Os principais efeitos adversos são: → Náuseas e vômitos. → Supressão da atividade da glândula suprarrenal. → Dor à punção e tromboflebite. → Movimentos tônico-clônicos após administração de bolus de indução. Cetamina: - Único hipnótico que não atua em receptores do aminoácido GABA. - Liga-se aos receptores do glutamato (NMDA), inibindo a transmissão neuronal excitatória. - Meia vida de redistribuição de 9 minutos. - Meia vida de eliminação de 158 minutos. - Ligação proteica de 27 a 47%. - Na dose de 0,5 a 2 mg/kg, apresenta pico de concentração plasmática de 1 minuto. - Apresenta alta lipossolubilidade e grande volume de distribuição. - O desaparecimento de seus efeitos é de aproximadamente 15 minutos. Entretanto, a recuperação completa da anestesia com cetamina pode chegar a 90 minutos. - A diminuição da concentração plasmática da droga apresenta característica bifásica, uma vez que a sua distribuição é rápida, mas a sua eliminação é lenta. - Único anestésico venoso que estimula o sistema cardiovascular, por meio de ativação simpática, resultando em aumento da FC, da PAM e da resistência vascular periférica, podendo causar hipertensão arterial e taquicardia. - Causa mínima depressão respiratória. - Promove broncodilatação. - Aumenta o fluxo sanguíneo e o metabolismo cerebral, além da pressão intracraniana. - Promove amnésia intensa, potencializa a analgesia causada pelos opioides e diminui a hiperalgesia. - Inibe os reflexos de via aérea. - Utilizada quase que exclusivamente para analgesia. - Contraindicações: → Hipertensão intracraniana. → Coronariopatias. → Doenças psiquiátricas (pode causar agitação e confusão mental). Em resumo, os anestésicos hipnóticos são utilizados principalmente para induzir 7 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 amnésia e hipnose. A grande maioria liga-se aos receptores do neurotransmissor GABA, causando hipotensão arterial e bradicardia, exceto a cetamina, que se liga aos receptores NMDA e causa hipertensão arterial e taquicardia.