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FILOSOFIA GERAL E JURÍDICA Cássio Vinícius Steiner de Sousa Filosofia e Direito Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Estabelecer a relação entre filosofia e Direito. � Apresentar as diversas acepções da palavra Direito. � Explicar os campos temáticos e os períodos da história da filosofia do Direito. Introdução O Direito sem a filosofia é cego. Não como a representação da justiça, cujos olhos estão vendados e enfeita o pátio do nosso Poder Judiciário em Brasília, mas como algo incapaz de reconhecer o seu próprio objeto e as suas finalidades. Pois se é verdade que a venda nos olhos da Justiça apoia-se na ideia de que a lei deve ser aplicada para todos sem privilégios ou distinções, o Direito sem a filosofia não sabe o que foi, o que é e o que pode e deve ser. Neste capítulo, você vai descobrir a importância da filosofia para o Direito, alguns dos seus significados mais usuais e os questionamentos que sempre vão acompanhá-lo enquanto um operador do Direito. A relação entre a filosofia e o Direito Imagine um juiz do Trabalho de primeira instância julgando um caso de despedida arbitrária ou sem justa causa de uma mulher grávida. Caso fácil? Muito! Basta recorrer à Constituição Federal e à jurisprudência assentada do Tribunal Superior para decidir a causa em favor dela. Agora vislumbre o tempo em que o Direito não assegurava à gestante a estabilidade provisória ou sequer a indenização pecuniária. Você é o juiz que deve julgar a causa, e há inclusive jurisprudência definida em favor do empregador. Nessa situação — que por sinal não é um caso muito distante na história de nosso ordenamento jurídico —, há, de um lado, a letra fria da lei, que impõe determinada decisão, e de outro algo em seu interior, uma sensação de que a lei fere o seu senso básico de justiça. Como proceder? Você aplicaria a lei (em detrimento do sentido geral do que é justo), ou — ferindo o princípio da legalidade — decidiria contra a lei (em nome de um ideal de justiça)? Na prática jurídica, quero alertar que você, invariavelmente, vai enfrentar situações similares a essa. Casos nos quais a lei e os princípios basilares do Direito vão se mostrar insatisfatórios. Situações que vão fazer você ficar angustiado, desesperado, indignado e sem saber exatamente como proceder. Momentos em que vai se perguntar: para que, afinal de contas, existe o Direito? O Direito não deveria sempre andar de mãos dadas com a justiça? Mudando de caso, suponha agora que você é um burocrata nazista em plena Segunda Guerra Mundial — aquele responsável por carimbar todos os dias o passaporte de milhares de judeus que serão conduzidos para a morte certa em um dos muitos campos de concentração. A lei é clara e você não pode desobedecê-la sob pena de insubordinação. Além disso, se não fizer o serviço que lhe foi designado, certamente alguém o fará. Digamos que carimbe os passaportes. Nesse caso, você se sentiria culpado? Deveria ser de algum modo responsabilizado? Talvez justifique o seu ato em nome da sua nação, diga para si mesmo que, em tempos de guerra, vale tudo, ou que os verdadeiros responsáveis são aqueles que dão as ordens obedecidas cegamente. Talvez esteja inclinado a pensar que nada pode justificar essa hedionda ação burocrática. Ninguém deveria seguir ordens cega e irrefle- tidamente, não é? Embora eu concorde em tese com você, na prática as coisas são muito mais complicadas. Existem inúmeras técnicas empregadas para que você perca por completo a sua capacidade de distinguir o certo do errado. Se tais recursos são bem executados, você sequer será capaz de perceber que suas ações envolvem questionamentos e escolhas fundamentalmente morais. Enquanto operador do Direito, é preciso estar preparado para agir em situações-limite. Casos em que possivelmente não haverá uma resposta pronta — ou pior, que sequer pareça existir uma questão a ser respondida. Talvez você venha a ser um servidor público sentindo-se culpado por ter sido responsável por “carimbar o passaporte” de um ladrão de galinhas para uma cela repleta de homicidas. Quem sabe será o advogado ou o defensor público em crise por ter sido designado para defender em juízo um pedófilo ou um serial killer, ou até seja o juiz responsável por julgar um caso em que a lei e a justiça estejam em confronto direto. Por fim, talvez seja você mesmo e esteja se perguntando Filosofia e Direito2 por que, afinal de contas, estou tentando colocá-lo em uma crise existencial e aonde quero chegar com isso tudo. Ora, quero alertá-lo para um dos maiores riscos que corre o estudante do curso de Direito: tornar-se um mero operador dessa profissão. Você será treinado dia e noite para pensar e ver o mundo com base em certos pressupos- tos (leis, doutrinas, jurisprudência, costumes, etc.). Vai aprender um grande número de termos e técnicas jurídicas que servirão como ponto de partida de raciocínios dessa ordem. Com eles, vai reconhecer, compreender e solucionar diversos problemas jurídicos (como, por exemplo, transitar pelos vários códigos do nosso ordenamento jurídico, escrever petições iniciais e recursos, calcular a dosimetria de uma pena). É claro que isso por si só não é ruim, mas sempre existe a possibilidade de que a rotina do Direito acabe por transformá-lo em uma espécie de máquina, incapaz de refletir ou ir além do sistema jurídico posto. Assim, é importante lembrar: antes de ser um operador do Direito, você é e sempre será um ser humano. Mas como evitar de se tornar um operador mecânico do Direito? Acredito que a resposta para essa questão está, sobretudo, no olhar crítico e curioso da filosofia. Termo cunhado inicialmente por Pitágoras, na Grécia Antiga, para designar aqueles que tinham “amor pela sabedoria” (os filósofos), a filosofia é algo natural, espontâneo e inevitável em nossas vidas. Surgiu como um movimento do pensamento que — insatisfeito, crítico, rebelde — visa se emancipar de uma visão mitológica da realidade. A filosofia nasceu quando o homem começou a desconfiar que certo eco ouvido em uma floresta não vinha de uma ninfa punida pelos deuses. Assim, passou a procurar por outras explicações menos fantásticas. Perguntas como “o que é o conhecimento?”, “o que é a verdade?”, “o que é a justiça?” serviram de motor propulsor para o desen- volvimento das mais variadas áreas dos saberes naturais e humanos. Ainda nos dias de hoje é muito difundida a visão da filosofia como res- ponsável pela investigação das bases, princípios e condições do conhecimento em geral. Nesse contexto, a filosofia é apresentada em função do seu caráter 3Filosofia e Direito arquitetônico ante as ciências. Nessa linha, segundo Michel Villey, em Filo- sofia do Direito: Toda ciência, (...), constitui-se a partir de certos axiomas, princípios, noções fundamentais. Ela mesma não os “tematiza”, o que significa que não os toma como objeto de estudo; é condicionada por eles, devendo-lhes a própria con- sistência, a coerência e o rigor; aceita-os como dados cuja constituição está a cargo de uma outra disciplina” (VILLEY, 2008, p. 14). Nesse contexto, entre outras coisas, cumpre a filosofia o papel de esta- belecer, questionar e transformar os pressupostos sob os quais os sistemas de pensamento estão assentados. Com a ciência jurídica, é claro, isso não seria diferente. Miguel Reale, em Lições Preliminares de Direito, afirma que “a definição do Direito só pode ser obra da Filosofia do Direito. A nenhuma Ciência Jurídica particular é dado definir o Direito, pois é evidente que a espécie não pode abranger o gênero” (REALE, 2001, p. 15). Questões como “existe o Direito?”, “se ele existe, é possível defini-lo?”, “o que é e qual é a sua finalidade?”, “qual é a relação entre Direito e justiça?”, “qual é a relação entre Direito e Moralidade?”, embora essenciais para a prática jurídica, não pertencem propriamente ao Direito, mas são objeto de reflexão da filosofiado Direito. Tendo isso em mente, se você estiver acompanhando a linha do raciocínio, vai perceber que a pergunta sobre o Direito pode ser suscitada de dois modos distintos. De um lado, há a questão sobre a aplicação do Direito nos casos concretos; de outro, aparece a questão filosófica sobre a definição e a fina- lidade do Direito. Enquanto operador do Direito, você vai se deparar com problemas do primeiro tipo, questões que cabem especificamente à ciência do Direito — neste ou naquele processo, o que diz a lei e a jurisprudência? Com base no texto legal, qual é a solução aplicável para tal e tal caso concreto? Agora, quando você questiona e reflete sobre as próprias bases nas quais a prática jurídica é construída, não está mais cumprindo o papel que cabe ao mero operador do Direito, mas ocupa o território destinado ao filósofo do Direito. Filosofia e Direito4 Nessa altura do argumento, acredito que você ainda esteja um tanto quanto relutante, achando que isso tudo parece muito complicado. É possível que se pergunte: “mas se nunca precisei parar para refletir sobre o que é número para saber calcular, se nunca necessitei definir o que é o pensamento para ser capaz de pensar, se não é necessário entender como funciona o motor de um carro para saber dirigir, por que preciso saber o que é Direito para ser capaz de aplicá-lo ou operar com ele?”. Embora não seja um raciocínio que possa ser descartado sem maiores re- flexões, convido-o a imaginar a atividade jurídica como algo próximo daquela de um arqueiro. De que adianta ficar anos e anos aprendendo a atirar se não houver clareza sobre em que mirar? Não acha que se soubesse qual é o alvo, seria mais fácil acertá-lo? Portanto, voltando ao caso inicial do juiz julgando a demissão de uma mulher grávida, se não fosse por certo ideal de justiça, pelo desejo de que o Direito não seja apenas o que a lei diz, nunca seríamos capazes de fazer com que ele se torne aquilo que ele deveria ser. O conceito e as acepções da palavra direito É inegável que dependemos das palavras para nos comunicarmos uns com os outros, para enunciar fatos (como, por exemplo, “o livro está sobre a mesa”), expressar pedidos ou ordens (“traga-me o livro que está sobre a mesa”), proclamar opiniões (“gosto muito deste livro”), defender valores (“matar é errado”), manifestar sentimentos (“amo você”), etc. Em geral, entendemo- -nos muito bem com as palavras. Porém, não é incomum que as palavras nos preguem peças. A comunicação nem sempre é tão transparente quanto gostaríamos que ela fosse. Por acaso já lhe aconteceu de estar debatendo com alguém sobre um assunto qualquer em que, aparentemente, há um completo desacordo de opiniões, e vocês acabam se dando conta de que, na verdade, pensavam exatamente do mesmo modo? Nesse caso, o problema não estava no que quer que vocês estivessem pensando, mas no modo utilizado para se expressarem sobre isso. Ajustar o vocabulário é uma tarefa muito mais difícil do que poderia parecer à primeira vista. Em primeiro lugar, há o problema da definição das palavras. Se é verdade que não é difícil entrar em acordo sobre o significado de palavras como cadeira, mesa ou livro, o mesmo não acontece com palavras como direito. A propósito, é celebre a provocação feita por Santo Agostinho sobre a palavra tempo: “O que é, pois, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se desejar explicá-lo àquele que me pergunta, não sei” (Confissões, XIV, 5Filosofia e Direito 17). Nessa conjuntura, não é à toa que mesmo juristas e filósofos consagrados evitem enfrentar tal tipo de questionamento. Em segundo lugar, há um problema da polissemia do significado das palavras. Nesse contexto, é muito comum que as palavras do nosso vocabulá- rio possuam uma multiplicidade de sentidos que só possam ser reconhecidos no cenário em que são utilizadas. Quanto a isso, no caso do termo direito é fundamental que você seja capaz de reconhecer e distinguir, em alguns contextos específicos, qual o significado que está sendo atribuído à palavra. Por exemplo, se lhe pergunto “já que você é um estudante de Direito, diga-me: se o Direito brasileiro assegura o direito ao salário mínimo, você acharia direito que alguém trabalhasse sem recebê-lo?”. Além de saber que cada uma das ocorrências da palavra direito não possui o mesmo significado, você deverá ser capaz de diferenciar qual é o sentido específico em cada uma delas. De um ponto de vista etimológico, a palavra “direito”, que foi cunhada na Idade Média, possivelmente deriva da palavra latina directus, que tem por significado aquilo que está “reto”, “sem curvaturas”. Já para os romanos, que desconheciam tal palavra, a expressão latina utilizada para designar o fenômeno do direito era o termo jus. De um ponto de vista semântico, embora não haja acordo entre os pensadores do Direito acerca do tema, a título de ideia norteadora, podemos citar a definição pro- posta por Paulo Nader: “Direito é um conjunto de normas de conduta social, imposto coercitivamente pelo Estado, para a realização da segurança, segundo os critérios de justiça” (NADER, 2004, p. 74). Com base na definição no quadro anterior, muitas consequências podem ser extraídas. Em primeiro lugar, é importante entender que o Direito está essencialmente preocupado com a questão da ordem social. Para que nós possamos conviver em sociedade, precisamos dispor de uma série de regras de conivência. Existem normas de como devemos nos vestir em determinadas situações, condutas para que possamos manter uma conversa coerente e civilizada, regras de etiqueta, etc. Em geral, tais diretrizes seguem a máxima “quem não obedece é excluído do grupo”. Em segundo lugar, perceba que nem todas as orientações de conduta social são consideradas normas jurídicas. Por exemplo, as regras de etiqueta não Filosofia e Direito6 são uma imposição estatal sobre nós. Isto é, mesmo que você vista camiseta e bermuda para ir a um casamento (embora vá receber muitos olhares de desagrado), ninguém poderá prendê-lo por isso. Assim, para que uma norma qualquer seja considerada parte do Direito, ela deve ser imposta de modo coercitivo pelo Estado. Ou seja, normas que é obrigado a seguir sob pena de sofrer sanção (como, por exemplo, ter que pagar uma multa quando violar uma lei civil ou ir para prisão quando transgredir um código penal). Em terceiro lugar, cabe destacar que as normas jurídicas têm por finalidade a segurança e a manutenção da ordem social. Por fim, destaca-se a importância da justiça como um critério norteador a ser seguido na elaboração e na execução das leis. Além disso, como lhe disse anteriormente, a palavra direito é utilizada cotidianamente em nosso discurso de vários modos distintos. Entre as muitas acepções possíveis, proponho que você guarde pelo menos cinco: Direito enquanto um fato social complexo, ciência do Direito, Direito como justiça, Direito Objetivo e Direito Subjetivo. Vejamos cada uma delas em separado: 1. Fato social complexo — o Direito denota um fato social complexo. Quanto a isso, é fundamental que você perceba que o fenômeno do Direito é composto por uma série de valores, normas e princípios que são estudados fundamentalmente por uma ciência chamada de Direito (e subsidiariamente pela história e pela sociologia). Nesse contexto, o Direito é um fato social que, junto com acontecimentos políticos, eco- nômicos, culturais, artísticos, etc., definem as bases de uma sociedade. 2. Ciência do Direito — quando você diz que estuda Direito, o significado da palavra Direito denota a área do saber ou o ramo do conhecimento que tem como objeto de estudo normas, princípios e interpretação de institutos jurídicos. É com essa acepção que o Direito é considerado uma entre outras ciências humanas como a psicologia e a sociologia. 3. Direito Objetivo — quando você diz que o Direito brasileiro assegura o salário mínimo, o termo Direito é sinônimo de legislação, lei, norma ou ordenamento jurídico.Ou seja, é possível substituir o termo Direito por qualquer um deles sem qualquer perda de significado. Nesse contexto, quando nos referimos ao Direito em sentido objetivo, sempre estaremos nos reportando ao conjunto de normas vigentes em um país em um determinado momento histórico. Assim, o Direito Objetivo é entendido sempre de modo abstrato e de forma independente em qualquer caso particular em que ele possa ser aplicado concretamente. 4. Direito Subjetivo — sempre que são satisfeitas factualmente as condições previstas na norma jurídica em sentido objetivo ou abstratamente, surge 7Filosofia e Direito em nome de alguém um direito subjetivo exigível. Quando, por exemplo, você presta determinado serviço e afirma que tem o direito de ser pago, o termo direito significa um poder ou faculdade individual previsto em lei. Com efeito, você tem o direito subjetivo garantido pelo Estado para exigir o pagamento pelo serviço, podendo, em caso de descumprimento, acionar o Estado via ação judicial para fazer valer esse direito. Assim, na base do Direito Subjetivo está a ideia segundo a qual um direito subjetivo de x acarreta ou implica uma obrigação subjetiva para y. Enquanto você tem o direito subjetivo previsto em lei ao pagamento pelo serviço, aquele para quem você prestou o serviço tem o dever ou a obrigação jurídica de pagar. 5. Direito como justiça — o Direito enquanto justiça é geralmente identi- ficado como uma espécie de critério norteador ou ideal a ser alcançado pelo ordenamento jurídico. Quando perguntadas sobre as razões que levam alguém a estudar Direito, não é raro que as pessoas respondam dizendo que escolheram o Direito porque querem fazer do mundo um lugar melhor ou mais justo. Apesar disso, não parece adequado identificar o Direito com a justiça; caso contrário, não faria qualquer sentido afirmar que uma decisão judicial foi justa ou injusta. Direito Natural versus Direito Positivo A distinção entre Direito Natural e Direito Positivo surge no contexto do debate sobre qual é a fonte do Direito. Isto é, qual é a base ou o fundamento de legitimidade do Direito? Com relação a esse questionamento há, em linhas gerais, duas posições que predominam no curso da história da filosofia do Direito, a saber, a posição jusnaturalista e a posição juspositivista. Para entender ambas as posições, é necessário introduzir a diferença entre Direito natural e Direito positivo. O Direito natural é aquele considerado dado por uma ordem superior, possuindo como características ser necessário, eterno e imutável. Já o Direito positivo é aquele posto pelos homens para regular a vida em sociedade, sendo mutável e temporal, pois varia de acordo com a sociedade e o tempo. Em linhas gerais, a posição jusnaturalista está comprometida com a tese segundo a qual o Direito positivo retira sua legitimidade do Direito natural. Já a posição juspositivista, que recusa a própria existência de um Direito natural, está comprometida com a ideia de que o fundamento de validade do Direito é retirado da própria norma positivada. Filosofia e Direito8 Linha do tempo da história da filosofia do Direito Seguindo a máxima de Confúcio, “se queres prever o futuro, estuda o passado”, conhecer a história da filosofia do Direito é fundamental não apenas para que possa compreender como e por que o Direito é atualmente como ele é, mas também por oferecer uma série de insights sobre aquilo que ele pode vir a ser. Enquanto um fenômeno social, o Direito está condicionado e é determinado pelo contexto histórico-cultural em que está inserido. Com efeito, não é difícil inferir que o Direito e o entendimento filosófico do mesmo sofreram diversas modificações ao longo dos séculos. Para que você tenha uma ideia da importância do estudo da história da filosofia, basta perceber que é no curso histórico que encontramos o sur- gimento, o desaparecimento, a formulação e a reformulação dos principais problemas filosóficos acerca do Direito. Por exemplo, se hoje entendemos o Direito como uma ciência entre outras, a própria questão filosófica sobre se o Direito é ou não uma ciência sequer foi levantada antes do século XIX. Dessa forma, o Direito era considerado uma espécie de anexo de disciplinas como teologia, ética ou política. A história da filosofia do Direito geralmente é dividida em quatro períodos: a Antiguidade, a Idade Média, a Idade Moderna e a Idade Contemporânea. Antiguidade — de um ponto de vista histórico, a principal marca do período antigo é o método de produção escravagista. Isto é, a força dos donos dos escravos garantia a ordem e a manutenção de toda a estrutura social da Antiguidade. No que diz respeito à filosofia do Direito, embora seja possível afirmar que tenha nascido na Grécia Antiga, é importante destacar que ela não possuía a autonomia que possui nos dias de hoje. Isto é, reflexões sobre filosofia do Direito apareciam comumente vinculadas a outros temas como justiça, política ou ética. Atribui-se ao período antigo o germe da posição jusnaturalista com relação ao Direito. De um lado, há a distinção entre a natureza (physis) e as leis (nomos); de outro, a ideia de que as leis devem espelhar a natureza. Em última análise, é com base na observação das leis universais do cosmos, eternas e imutáveis da natureza que as leis retiram a sua legitimidade. 9Filosofia e Direito Além da figura dos sofistas, os grandes nomes desse período são Sócrates, Platão e Aristóteles. É com estes últimos que surge a ideia de que a justiça serve como ponte ou critério de avaliação das leis. Assim, uma lei era considerada justa se estivesse de acordo com a natureza. Por fim, é possível encontrar em Aristóteles a ideia de que o Direito não é uma ciência, mas está ligado à arte da prudência (sabedoria prática). E o justo ou correto é uma equidade, devendo ser reconhecido e aplicado pelo legislador levando em conta as peculiaridades de cada caso concreto. Período Medieval — o traço fundamental da estrutura social do período medieval é o feudalismo (embasado numa noção absolutista de poder). Isto é, as relações de poder são determinadas com base na relação entre senhores feudais (suseranos) e servos. No que concerne à história da fi- losofia do Direito, é importante destacar que, embora o período medieval seja igualmente marcado pelas ideias de que o Direito não é uma ciência e que se fundamenta, em última análise, no Direito natural, há algumas diferenças significativas. Nesse período, o Direito é entendido como uma espécie de dádiva divina. Ou seja, algo criado por Deus que deve ser re- conhecido pelo homem. Assim, embora o Direito continue não possuindo autonomia (pois ele é considerado algo dependente da igreja e da teologia), a fundamentação da lei com base no cosmos dá lugar para a fundamentação da lei com base na vontade de Deus. Entre outros, os principais pensadores da filosofia do Direito no período são Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e Guilherme de Ockham. Período Moderno — o período moderno é o marco inicial do capitalismo. A estrutura da sociedade (da relação entre senhores feudais e servos) passa a ser considerada em termos de burgueses e proletários. Nesse contexto, há tanto um abandono da visão absolutista do período medieval quanto uma separação entre o Estado e a Igreja. Se a história da filosofia do Direito medieval foi definida em função da relação entre o Direito e a ordem divina, a filosofia do Direito moderno é marcada pela vinculação do Direito à razão. Em função disso, há uma passagem da ideia de que a legitimidade da lei repousa nas mãos de Deus, para a noção de que devemos encontrar no interior do próprio homem os fundamentos de validação das leis, dando origem à noção de jusnaturalismo racional ou antropocêntrico. Filosofia e Direito10 É nesse período que surgem as famosas doutrinas contratualistas (ideia de que o Direito e o Estado são formados pelo acordo de homens autônomos), cujos principais expoentes são ThomasHobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau. Além disso, há as contribuições inestimáveis de filósofos como Immanuel Kant, Georg W. F. Hegel e Karl Marx para a filosofia do Direito. Em essência, Kant pretende explicar o fundamento da validade do Direito com base na moral, Hegel procura embasar o Direito nos desenvolvimentos dialéticos da história, e Marx, na economia. Período Contemporâneo — o período contemporâneo tem como marco inicial a Revolução Francesa. É nessa época que surge a noção dos Direitos humanos e uma preocupação cada vez mais crescente com a eliminação das desigualdades historicamente estabelecidas. Do ponto de vista da história da filosofia do Direito, há uma grande ruptura com os demais períodos históricos. Na base de tal cisão está o crescente repúdio da ideia jusnaturalista como fundamentadora do Direito e o surgimento das escolas de orientação juspositivista. Com efeito, abandona-se a visão de que o Direito retira sua validade de elementos externos como justiça, moral ou economia, dando lugar à noção de que a legitimidade do Direito vem da norma posta pelos governantes. É apenas nesse momento da história que, em função das grandes contribuições de Hans Kelsen, o Direito passa a ser efetivamente considerado uma ciência autônoma (com objeto próprio – a norma jurídica – e um método de investigação passível de geração de conhecimento – a dogmática jurídica). A importância do juspositivismo para a história da filosofia contempo- rânea comprova-se no fato de que a maioria dos debates atuais o leva em consideração como ponto de partida. Se antes havia sempre um critério de correção ou validação da norma (o cosmos, deus, a razão), e com o juspositivismo esse raciocínio deve ser encontrado no próprio ordenamento jurídico, qual é a importância do conteúdo da norma? À primeira vista, o juspositivismo parece implicar que, para o Direito, é irrelevante levantar a questão sobre se a lei é ou não justa. E mesmo que você se sinta autorizado a dizer algo como “nesse caso, seria melhor fazer de tal e tal modo, pois é mais justo”, isso não poderia mais servir de embasamento ou justificativa para uma decisão judicial. Caso contrário, estaríamos novamente recorrendo a uma espécie de jusnaturalismo. A rigor, o correto seria apenas investigar 11Filosofia e Direito o que está dito na lei e aplicá-la sem pestanejar. Porém, se esse é o caso, como proceder nos exemplos em que a lei não é clara ou parece estar em contradição? Isso não acabaria comprometendo a segurança jurídica que o Direito supostamente deveria manter? No contexto da resolução de questões como essas, começam a surgir escolas ditas pós-positivistas, positivistas moderadas ou que pregam um retorno ao jusnaturalismo. Pensadores como Dworkin, Rawls, Habermas, Alexy e Hart aparecem engajados na busca por novos caminhos para o Direito. Campos temáticos da filosofia do Direito Os campos temáticos da filosofia do Direito se distinguem em pelo menos quatro grandes eixos: ontologia jurídica, epistemologia jurídica, axiologia jurídica e história da filosofia jurídica. A ontologia jurídica geralmente aborda questões ligadas à existência e à definição do Direito enquanto um fenômeno social. São perguntas típicas da ontologia jurídica: existe o Direito? Qual a finalidade do Direito? Há um conjunto de condições necessárias e suficientes para que algo seja considerado Direito? Se sim, quais são elas? Se não existe, por quê? Qual é o fundamento de validade do Direito? A epistemologia jurídica estuda as condições e os critérios necessários para que algo possa ser considerado conhecimento jurídico, bem como o tipo de Filosofia e Direito12 sabedoria produzida pelo Direito. Uma das grandes questões epistemológicas da filosofia do Direito é saber se o Direito é ou não uma ciência. A axiologia jurídica trata da relação entre o Direito e os valores morais. As principais questões desse campo temático indagam sobre a relação entre o Direito e a moral, o Direito e a justiça. O Direito é dependente da moral? Qual é o vínculo entre o Direito e a justiça? O Direito se impõe? A história da filosofia do Direito, além de servir como fio condutor para a apresentação dos desdobramentos históricos da disciplina, coloca-se em uma série de questões. Entre elas, se existe ou não progresso no Direito. NADER, P. Introdução ao estudo do Direito. 24. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. REALE, M. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2001. VILLEY, M. Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2008. Leituras recomendadas FERRAZ JÚNIOR, T. S. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão dominação. São Paulo: Atlas, 1990. MASCARO, A. L. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2016. MORRIS, C. Os grandes filósofos do Direito: leituras escolhidas em Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002. REALE, M. Introdução à filosofia. São Paulo: Saraiva, 2015. 13Filosofia e Direito
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