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AULA 1 GÊNEROS DISCURSIVOS NO ENSINO DE LÍNGUA Profª Daíne Cavalcanti da Silva 02 CONVERSA INICIAL Olá, seja bem-vindo à primeira aula da disciplina Gêneros discursivos no ensino de língua. Nesta aula estudaremos a teoria bakhtiniana dos gêneros do discurso. Mikhail Mikhailovich Bakhtin, filósofo russo, é a maior referência quando se fala em gêneros do discurso. Sua teoria tem sido estudada ao longo dos anos por diferentes pesquisadores no mundo e é base teórica de muitos documentos que norteiam o ensino na área de linguagem no Brasil. Para termos uma visão ampla da teoria bakhtiniana estudaremos nesta aula um pouco sobre nosso autor-base, Bakhtin, e também o que foi o chamado Círculo de Bakhtin. Em um segundo momento, estudaremos, especificamente, a teoria dos gêneros do discurso e os conceitos de enunciado, discurso e dialogismo. E finalizaremos nossa aula com uma aplicação prática acerca dos diferentes gêneros com que nos deparamos no dia a dia. CONTEXTUALIZANDO Os estudos sobre Bakhtin têm ganhado cada vez mais força. São pesquisadores, professores, professores-pesquisadores e documentos oficiais que o trazem como constructo teórico, porém, vale trazer a visão do professor José Luiz Fiorin: “Bakhtin é um autor que está moda”, mas veremos o que mais o autor tem a dizer sobre isso. Fiorin, no seu livro Introdução ao pensamento de Bakhtin (2016), diz que existem duas vertentes de estudiosos: os que têm a teoria como única verdade, algo quase como religioso, e aqueles que a simplificam excessivamente. Então, o que devemos seguir? Nas palavras do professor Fiorin: Nosso propósito é fugir de uma e outra posição. Bakhtin apresenta um pensamento absolutamente original sobre a linguagem e podemos continuar a desenvolver sobre seu projeto, seja operacionalizando melhor seus conceitos, seja refinando-os cada vez mais. Nada mais antibakhtiniano do que a compreensão passiva ou a aplicação mecânica de uma teoria. (Fiorin, 2016, p. 8) É importante que você, professor de língua portuguesa, tenha o propósito indicado pelo professor Fiorin em mente, pois é esse propósito que será adotado nesta disciplina e é dessa forma que se espera o uso da teoria bakhtiniana em sala de aula. Esclarecida a proposta da disciplina e o posicionamento que se espera a partir da teoria de Bakhtin, vamos aos conceitos e aplicações? 03 TEMA 1 – BAKHTIN E O CÍRCULO Como já dito, Bakhtin tornou-se um nome de referência quando se fala em estudos da linguagem no Brasil, principalmente quando o tema são os gêneros do discurso. Os estudos acerca do pensamento bakhtiniano, em um primeiro olhar, são muito complexos e podem causar certo receio. Tal sentimento pode estar atrelado às diversas ramificações de estudos tanto de Bakhtin como do Círculo. Você deve estar se perguntando: “O que foi o Círculo de Bakhtin?”, não é? O chamado Círculo de Bakhtin, formado por intelectuais de diferentes áreas, se reuniu de 1919 a 1929, discutindo conceitos em áreas como a linguagem e a literatura. Esse grupo multidisciplinar era assim formado, de acordo com Faraco (2009): Matvei I. Kagan (filósofo); Ivan I. Kanaev (biólogo); Maria V. Iudina (pianista); Lev V. Pumpianski (professor e estudioso de literatura); Mikhail M. Bakhtin (professor e pesquisador de história e filologia); Valentin N. Volóchinov (professor, pesquisador de história da música e estudos linguísticos); Pavel N. Medvedev (formado em direito, educador, jornalista, professor de literatura); entre outros. Bakhtin, Volóchinov e Medvedev serão os pensadores a quem daremos destaque, uma vez que Volóchinov e Medvedev são os seguidores que eram mais próximos a Bakhtin. Ainda além, tem-se a dúvida acerca da autoria de certos textos de Bakhtin, os quais são atribuídos a tais intelectuais. A dúvida acerca da autoria dos textos do Círculo surgiu quando o linguista Viatcheslav V. Ivanov afirmou que o livro Marxismo e filosofia da linguagem, publicado com a autoria de Volóchinov, e o livro O método formal nos estudos literários, publicado com autoria de Medvedev, eram, na verdade, livros escritos por Bakhtin. A afirmação de Ivanov até hoje não foi comprovada, sendo assim, tem-se três vertentes acerca da autoria de tais textos. Elas são apresentadas por Faraco (2009) e Fiorin (2016) da seguinte maneira: 04 a) a primeira é a daqueles que respeitam as autorias das edições originais e, por consequência, só reconhecem como autoria do próprio Bakhtin os textos publicados sob seu nome ou encontrado nos seus arquivos. b) A segunda direção é a daqueles que atribuem a Bakhtin todos os textos disputados. c) Há, por fim, uma solução de compromisso que inclui dois nomes na autoria. Assim, Freudismo e Marxismo e filosofia da linguagem são atribuídos a Bakhtin/Voloshinov; e O método formal nos estudos literários, a Bakhtin/Medvedev. (Faraco, 2009, p. 12. Grifo do autor) Tanto Faraco (2009) como Fiorin (2016) adotam a postura de reconhecer Bakhtin como autor dos textos que foram publicados em seu nome ou foram encontrados em seus arquivos, e esta será também a postura adotada para esta disciplina. A vida do filósofo russo foi de vários escritos, prisão e exílio, findando-se em 1975. Bakhtin casou-se, e sua carreira como professor não teve vínculos institucionais, pois além de ter sido preso, sua saúde era debilitada. O nome Círculo de Bakhtin não foi uma denominação adotada pelo próprio grupo, foi escolhido posteriormente. De acordo com Faraco (2012), a escolha do nome de Bakhtin deu-se por ser ele autor de obra “de maior envergadura”. A dificuldade nos estudos das obras bakhtinianas se dá, entre outras coisas, pela não linearidade em que as obras chegaram ao conhecimento da sociedade – não só no Brasil, mas também na Rússia. Além de os textos não terem sido conhecidos em uma ordem cronológica, muitos deles são textos inacabados, rascunhos que foram reunidos, publicados e traduzidos para outras línguas. O fato é que os estudos do Círculo tiveram grande contribuição para os estudos da linguagem. A linguagem aqui é vista atrelada aos sujeitos, a ideologias e à relação entre o eu e o outro. De acordo com Faraco (2009), ideologia é o que o Círculo de Bakhtin designa como uma gama de atividades que envolvem manifestações superestruturais. Essas manifestações seriam: a arte, a ciência, a política etc. Não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que aprendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida. (Volóchínov, 2014, p. 98-99. Grifo do autor.) Para o Círculo, a palavra é um meio de interação social. Nessa interação social tem-se a enunciação, em que há um emissor e um receptor, sujeitos da interação verbal: “toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal” (Volóchinov, 2014, p. 101). 05 Essa atitude responsiva indicada pelos estudos do círculo é premissa para compreensão dos temas seguintes, principalmente ao falarmos dos gêneros do discurso. De acordo com Silva (2017, p. 31), para se afirmar que a palavra procede de alguém e para alguém deve-se considerar que os sujeitos dessa interação adequam seu discurso de acordo com o falante ou ouvinte, o campo discursivo em que emite seu enunciado, o gênero discursivo esperado para tal discurso etc. Nesse caso, cabe dizer que todo discurso prevê uma atitude responsiva, que o ouvinte se torna interlocutor e que sua atitude responsiva pode não ser imediata ao ato de fala. O fato é que a palavra, aindaque seja produto interativo entre sujeitos, compõe uma estrutura maior que é o enunciado, a enunciação, que veremos a seguir. TEMA 2 – ENUNCIADO Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante. Bakhtin Para iniciarmos nossos estudos sobre enunciado, consideremos os seguintes trechos: A enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor: ela é função da pessoa desse interlocutor: variará se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for de inferior ou superior hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido, etc.). Não pode haver interlocutor abstrato. (Volóchinov, 2014, p. 116) E ainda: Enunciado é o elo essencial da cadeia de comunicação, e é dotado de uma tridimensionalidade comunicativa histórica e cultural que reúne passado (o antecedente), presente (o continuum) e futuro (o consequente) do processo de comunicação como um fenômeno da cultura perene em sua substancialidade e aberto como forma de existência e comunicação entre os homens no devir histórico e na unidade aberta de cultura e história. (Bezerra, 2016 citado por Bakhtin, p. 153) 06 O primeiro destaque que se faz é do termo enunciação, que foi substituído por enunciado na última tradução de Paulo Bezerra para o texto Os gêneros do discurso (2016). Considerando as duas citações trazidas no início deste tópico deve-se entender que as atitudes responsivas estão atreladas às fronteiras do enunciado. Para Bakhtin (2011), trata-se de um começo absoluto e um fim absoluto. Essa afirmação evidencia a alternância de falantes, já que um emissor tem seu enunciado precedido de enunciados de outros e, ao finalizar, terá uma atitude responsiva, mesmo que não seja proferida. Para exemplificar tal conceito, traz-se a analogia estabelecida por Bakhtin entre o enunciado e o eco. Segundo o autor, os enunciados estão repletos de “ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera da comunicação discursiva” (Bakhtin, 2011, p. 297). Dessa forma, aquilo que dizemos, que mencionamos, é resultado dos campos das atividades pelos quais circulamos, das vozes que ouvimos e que fazem parte da nossa constituição enquanto sujeitos. Então, quando nos referimos aos campos da atividade humana, estamos nos referindo também “à orientação cultural e identitária de uma sociedade, em que cada enunciado é uma resposta a outros enunciados” (Silva, 2017, p. 34). Quando Bakhtin afirma que o enunciado tem um início e um fim, deve-se ter em mente que as fronteiras entre os enunciados dos sujeitos de um discurso são apresentadas por meio do diálogo, que, segundo Bakhtin (2011, p. 279), é “a forma mais simples e clássica da comunicação discursiva”. A compreensão do conceito de enunciado ficará mais clara ao discutirmos discurso e dialogismo, e principalmente os gêneros do discurso. Sendo assim, passemos para o nosso próximo tema: discurso e dialogismo. TEMA 3 – DISCURSO E DIÁLOGO A vida [...] não afeta um enunciado de fora; ela penetra e exerce influência num enunciado de dentro, enquanto unidade e comunhão da existência que circunda os falantes e unidade e comunhão de julgamentos de valor essencialmente sociais, nascendo deste todo sem o qual nenhum enunciado intelegível é possível. A enunciação está na fronteira entre a vida e o aspecto verbal do enunciado; ela, por 07 assim dizer, bombeia energia de uma situação da vidada para o discurso do verbal, ela dá a qualquer coisa linguisticamente estável o seu momento histórico vivo, o seu caráter único. Finalmente, o enunciado reflete a interação social do falante, do ouvinte e do herói como o produto e a fixação, no material verbal, em um ato de comunicação viva entre eles. Volóchinov/Bakhtin Os estudos bakhtinianos nos permitem afirmar uma característica dialógica da língua. O diálogo, portanto, constitui-se como uma das formas mais importantes de interação verbal. Cabe aqui destacar, como cita Faraco (2012), que a palavra diálogo tem como um dos significados a conversa de personagens em uma narrativa ou a interação entre falantes em uma conversa. No constructo teórico da teoria bakhtiniana, tem-se outro conceito para a palavra diálogo. Como vimos no tema anterior, o enunciado é um dos conceitos centrais do Círculo de Bakhtin. Ele está associado à interação verbal que discute a participação dos sujeitos em um discurso na sociedade. Para entender a relação entre enunciado, discurso e diálogo, trazem-se alguns conceitos do livro Marxismo e filosofia da linguagem: “a unidade real da língua que é realizada na fala não é a enunciação monológica individual e isolada, mas a interação de pelo menos duas enunciações, isto é, o diálogo” (Volóchinov, 2014, p. 127). O diálogo, por sua vez, é assim descrito: O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja. (Volóchinov, 2014, p. 127) As duas afirmações e os conceitos vistos anteriormente nos levam a ratificar a ideia de que todo diálogo é uma interação verbal e que todo diálogo é resultado de outros discursos, ecos de enunciados de outro. Para Bakhtin, o falante não é um Adão bíblico, aquele que falou a primeira vez sem que tivesse circulado por diversos campos da atividade humana e sem estabelecer uma relação dialógica com outros discursos: 08 o falante não é um Adão bíblico, só relacionado com objetos virgens ainda não nomeados, aos quais dá o nome pela primeira vez. As concepções simplificadas sobre comunicação como fundamento lógico- psicológico da oração lembram obrigatoriamente esse Adão mítico. (Bakhtin, 2011, p. 300) Pelo que vimos até agora, você deve estar pensando: “Em que os gêneros do discurso, o diálogo e o discurso impactam na vida desses falantes? Há diferentes formas de impacto em diferentes falantes?”. Para iniciarmos a discussão sobre os sujeitos é necessário relembrar que os enunciados e gêneros do discurso são meio de interação social. Precisamos pensar nos sujeitos como falantes oriundos de culturas diferentes, as quais se cruzam e entram em interação. Ao se pensar em diferentes culturas, também se pensa em diversidade de vozes que se encontram, gerando discursos em variados campos e tempos. As vozes que são encontradas são as mais diversas possíveis. Tais vozes são retratos das experiências vividas, dos campos pelos quais os sujeitos do processo circularam. Essas vozes se juntam a outros discursos que o falante já carrega e formam, novamente, um outro discurso, permeado de vozes de diferentes falantes. Nesse momento é válido retomarmos o conceito de atitude responsiva, pois um sujeito pode, por exemplo, ler um livro hoje e daqui a dez anos elaborar um discurso que traga a voz desse texto. Nesse processo, houve uma interação entre os interlocutores, ainda que tardia. Quando falamos em sujeito, precisamos também considerar que todo enunciado é escrito para um sujeito, ainda que não seja um sujeito único e definido. Nesse caso, teríamos o representante médio de um grupo social, eleito a partir da ideia que se tem do grupo que ele representa. A fala de um sujeito pode, ainda, ter como interlocutorum superdestinatário. Isso ocorre quando temos um sujeito elaborando seus enunciados para uma pessoa que não é exatamente o seu interlocutor – seria uma terceira pessoa para quem ele fala. De acordo com Emerson e Morson (2008, p. 151), às vezes, falamos a alguém como se nossa verdadeira preocupação fosse um possível ouvinte não-presente, alguém, cujo juízo importasse de fato ou cujo conselho nos ajudasse efetivamente. Para dizê-lo mais positivamente: o superdestinatário incorpora um princípio de esperança. Ele está presente, mais ou menos, em qualquer enunciado. (Grifo dos autores.) 09 Talvez você esteja pensando que são muitas informações e não consegue colocá-las em um plano que faça sentido na realidade. Pensemos então em uma situação prática, em um campo da atividade humana e em sujeitos que conhecemos. No nosso exemplo, o campo da atividade humana será a escola e os sujeitos serão os que compõem a comunidade escolar, alunos, professores e pais, principalmente. Na escola temos o sujeito aluno, que traz as vozes da sua família, da sua religião, da comunidade em que vive, dos programas televisivos a que assiste etc.; o professor, por sua vez, também traz suas vozes que também são oriundas dos diferentes campos da atividade humana pelos quais ele circulou e circula. Pensemos em uma proposta de atividade na aula de língua portuguesa: O professor solicita aos alunos que escrevam um texto que fale sobre amor. O aluno Pedro escolhe o gênero discursivo poesia e fala sobre o abandono da família. O aluno do nosso exemplo é filho adotivo e foi deixado pelos pais biológicos em um abrigo, sem que ele soubesse o motivo. Nesse caso, Pedro traz para o seu discurso a voz dos abrigos, lares de apoio, voz de outras crianças e adolescentes que foram abandonados. Ele escolhe o gênero discursivo poesia porque sabe que esse gênero permite a expressão de sentimentos. Como interlocutor do seu texto temos o professor, pois foi ele quem solicitou o texto e será ele quem o lerá. Temos ainda o superdestinatário que, nesse caso, podem ser os pais biológicos de Pedro, pois ainda que os pais sejam ouvintes não presentes, a mensagem do discurso da poesia foi direcionada para eles. Ao longo da disciplina veremos outros conceitos e teremos outros exemplos que permitirão a ampla compreensão sobre o tema, mas, para exemplificar os conceitos até então discutidos, observe a imagem a seguir: 010 Figura 1 – Conceitos discutidos na aula Na imagem pode-se ver que determinado sujeito circula por diferentes campos da atividade humana – por exemplo, família, escola, Estado, igreja –, e nesses diferentes campos há diferentes vozes e discursos com os quais esse sujeito tem contato. A partir desse contato, relações dialógicas são estabelecidas, e as tais vozes resultam em um discurso desse sujeito, que, ainda que seja um novo discurso, um novo enunciado, está permeado de diversas outras vozes e discursos do outro. Sendo assim, aos pensadores do Círculo interessavam “as forças que se mantêm constantes em todos os planos da interação social, desde os eventos mais banais e fugazes do cotidiano, até as obras mais elaboradas do vasto espectro da criação dialógica” (Faraco, 2009, p. 61). Ao se falar em relações dialógicas, entende-se que quaisquer enunciados que sejam comparados terão uma relação dialógica, independentemente do tempo ou espaço que haja entre eles. Proferimos diferentes enunciados organizados de acordo com escolhas do falante, e dentre tais escolhas tem-se a opção por um gênero discursivo. Ao falarmos sobre a escolha de um gênero do discurso, chegamos à principal discussão desta disciplina, conforme propôs Bakhtin: os gêneros do discurso. Veremos então o que são os gêneros do discurso. Igreja Estado Família Escola Campos da atividade humana D is cu rs o s/ vo ze s Su je it o Sujeito e Discurso; Enunciados Relações dialógicas 011 TEMA 4 – O QUE SÃO OS GÊNEROS DO DISCURSO? Como já foi dito no início desta aula, Fiorin afirmou que Bakhtin é um "autor da moda". Vale ressaltar que a fala do professor Fiorin não tem, de forma alguma, o intuito de menosprezar os estudos bakhtinianos, e sim levar à compreensão correta das propostas apresentadas pelo autor russo. Diz-se um autor da moda pois, no Brasil, a partir de 1998 (quando foram publicados os Parâmetros Curriculares Nacionais, em que há a indicação do ensino a partir dos gêneros discursivos), muitos livros e professores passaram a seguir os PNC como regra, quando, na verdade, os estudos do Círculo de Bakhtin levam a uma proposta de entendimento como processo, não como mero produto. Para compreendermos o que são os gêneros discursivos recorremos ao próprio Bakhtin (2016, p. 11-12): o emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo de atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso. (Grifo do autor.) Já vimos no tema anterior o que são enunciados e também já falamos sobre os campos da atividade humana. Mas o que são tais campos, exatamente? De acordo com Fiorin (2016, p. 68), os seres humanos agem em determinadas esferas de atividades, as da escola, as da igreja, as do trabalho num jornal, as do trabalho numa fábrica, as da política, as das relações de amizade e assim por diante. Essas esferas de atividades implicam a utilização na forma de enunciados. Unindo esses dois trechos, temos a informação de que não há produção de enunciados fora dos campos/esferas de atividade humana. Sabendo que os enunciados são organizados em gêneros do discurso, logo, cada campo de atividade humana também tem seus enunciados e gêneros mais típicos. É importante que você, professor, tenha em mente que sempre nos comunicamos por meio de gêneros discursivos e fazemos nossas escolhas de acordo com o campo da atividade humana, com os interlocutores, com o conteúdo 012 temático do nosso discurso e assim por diante. Devido a este esse fato – a comunicação por meio dos gêneros do discurso – é que se trabalha o ensino de línguas a partir dos gêneros. Segundo Bakhtin (2011, p. 282), a vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de um gênero de discurso. Essa escolha é determinada pela especificidade de um dado campo da comunicação discursiva, por considerações semântico-objetais (temáticas), pela situação concreta da comunicação discursiva, pela composição pessoal dos seus participantes, etc. A “vontade discursiva do falante” na escolha do gênero no seu momento enunciativo não é uma escolha aleatória, mas também não se pode dizer que é consciente, uma vez que as informações que temos sobre os gêneros nos é passada desde o início da nossa vida de forma natural, pois, como já dito, comunicamo-nos por meio de gêneros. Cabe aqui destacar que, ao afirmarmos que a escolha do gênero discursivo não é sempre consciente, considera-se que, segundo Bakhtin (2011, p. 282), “em termos práticos, nós os empregamos de forma segura e habilidosa, mas em termos teóricos pode-se desconhecer inteiramente a sua existência" (grifos do autor). Retomando a definiçãode gênero do discurso em que os elementos conteúdo temático, estilo, e construção composicional estão ligados ao enunciado e à especificidade de um campo da atividade humana, convém detalhá-los. O conteúdo temático diz respeito ao sentido de um gênero e não ao assunto específico de um texto. O professor Fiorin (2016) nos traz o exemplo das cartas de amor: nesse caso, as relações amorosas são o conteúdo temático, mas as cartas podem ter diferentes assuntos específicos. O estilo está relacionado à escolha dos meios linguísticos. São escolhas lexicais, gramaticais e fraseológicas, ou seja, é a utilização da linguagem pelo falante. A construção composicional diz respeito à organização do texto . Seria uma estrutura geral, um “formato” prévio para composição de enunciados. É importante que você compreenda que embora sejam amplos os estudos acerca dos gêneros discursivos e que se tenha estudos acerca da estrutura e até mesmo dicionários que abordam o tema, os estudos bakhtinianos não têm interesse em classificar e catalogar os diferentes gêneros existentes, até porque nos comunicamos por meio de gêneros, e as mudanças sociais que acontecem na linguagem e na sociedade podem resultar no surgimento de novos gêneros, 013 na modificação de gêneros existentes e até mesmo em gêneros que caem em desuso de acordo com a necessidade imposta pela sociedade. Sendo assim, destaca-se que os enunciados se organizam em tipos relativamente estáveis, logo, isso não significa em estrutura fixa e estanque, e sim estrutura reconhecida, mas que passa por mudanças. Dentro dos estudos sobre gêneros do discurso, há a divisão proposta por Bakhtin, que separou os gêneros em primários e secundários. Essa divisão é o que veremos a seguir. TEMA 5 – GÊNEROS DISCURSIVOS PRIMÁRIOS E SECUNDÁRIOS Como dito anteriormente, comunicamo-nos por meio de gêneros discursivos, que são organizados a partir de enunciados que estabelecem uma relação dialógica com outros discursos. Bakhtin, em seu livro Estética da criação verbal (2011, p. 263) assim dividiu os gêneros discursivos: Os gêneros discursivos secundários (complexos – romances, dramas, pesquisas científicas de toda espécie, os grandes gêneros publicísticos, etc.) surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o escrito) – artístico, científico, sociopolítico, etc. No processo de sua formação eles incorporam e reelaboram diversos gêneros primários (simples), que se formaram nas condições da comunicação discursiva imediata. Diante de tal afirmação, temos gêneros discursivos em diferentes campos da atividade humana, que podem ser primários ou secundários. Uma comunicação mais direta faz uso dos gêneros primários, pois é vista em situações do cotidiano, enquanto os gêneros secundários retratam uma situação mais complexa, mais organizada (Bakhtin, 2016). Dentre os gêneros primários usados na sociedade atual, de acordo com Silva (2017), pode-se citar: os bilhetes, os e-mails, áudios e mensagens de texto suportados pela tecnologia, uma roda de conversa entre amigos. Já para os gêneros secundários, que são mais formais, destacamos os romances, os textos científicos, as leis. Enfim, todos os gêneros, sejam orais ou escritos, são considerados diálogos porque promovem a interação entre sujeitos, sejam eles primários ou secundários. Veremos ao longo de toda essa disciplina que a variedade de gêneros discursivos é premissa para o ensino de línguas. Quando se fala em tal variedade, espera-se que você, professor, leve para a sala de aula gêneros discursivos 014 primários e secundários, orais e escritos, que sejam de diferentes campos de atividade humana e que não sejam vistos apenas como estrutura, tampouco como pretexto para o ensino de outras temáticas, desconsiderando todo o discurso presente no conceito de gêneros do discurso. FINALIZANDO Nesta aula discutimos o que são os gêneros discursivos e quais os conceitos que os cercam. Vimos que nos comunicamos por meio de gêneros discursivos e que a escolha de um gênero não é feita de forma aleatória, mas também não é consciente, no sentido de que não fazemos uma grande reflexão acerca da escolha do gênero. É importante que você tenha em mente as relações dialógicas que permeiam os gêneros do discurso e considere os campos da atividade humana pelos quais circularam os sujeitos do discurso. Na escola, como professor, você precisa compreender o sujeito aluno, saber quais são os campos pelos quais ele circula para que entenda o discurso dialógico por ele utilizado e, assim, faça boas escolhas de gêneros para o ensino de língua portuguesa. Compreendido o que são os gêneros do discurso, retomaremos na próxima aula o que são os campos, quem são os sujeitos da escola e a diversidade de gêneros nos mais diferentes campos da atividade humana. 015 REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. ______. Os gêneros do discurso. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016. BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2014. ______. Bakhtin: outros conceitos-chave. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2012. FARACO, C. A. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009. FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Contexto, 2016. MORSON, G. S.; EMERSON, C. Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: EDUSP, 2008. SILVA, D. C. Os gêneros discursivos digitais no livro didático de língua portuguesa: um possível campo de hibridação. 144 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2017. Disponível em: <http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/49091/R%20-%20D%20- %20DAINE%20CAVALCANTI%20DA%20SILVA.pdf?sequence=1&isAllowed=y> . Acesso em: 28 dez. 2017. VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2014.
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