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2 SUMÁRIO Capa Rosto Apresentação Capítulo 1 - A integridade da criação A integridade da criação em Gênesis 2,15 A integridade da criação na atual cosmologia O ser humano e seu papel na criação: cultivador e guardião Capítulo 2 - Crise socioambiental: degradação da natureza Crise socioambiental: degradação da dignidade humana A negação da integridade da criação como base da sociedade antropocêntrica Capítulo 3 - A necessidade de uma consciência ecológica no processo catequético Resumindo o pensamento de Boff Patriarcalismo Monoteísmo Antropocentrismo Ideologia tribalista da eleição A queda da natureza O pobre como o ser mais ameaçado da natureza Resumo do pensamento de Moltmann Análise das reflexões de Boff e Moltmann A hipótese da brutalização das relações Capítulo 4 - Espiritualidade ecológica como resposta à crise socioambiental A dimensão comunitária na responsabilidade e no cuidado da criação Capítulo 5 - Pastoral e catequese ecológica: uma resposta consciente da Igreja à crise socioambiental Perspectivas para a prática comunitária a) Ações pastoral-catequéticas b) Ações pastoral-práticas c) Ações pastorais político-sociais Apêndice: Leitura dirigida para utilizar em grupos de reflexão catequética 1. A brutalização da vida 2. A emancipação do ser humano na construção de um planeta saudável 3. É possível recuperar um cristianismo ecológico? 4. Sobre a descartabilidade humana 5. Uma ameaça paira no ar Referências bibliográficas Coleção Ficha Catalográfica Notas 3 kindle:embed:0002?mime=image/jpg kindle:embed:0002?mime=image/jpg APRESENTAÇÃO No início havia um jardim e, nele, o privilégio de habitá-lo e de cuidá-lo. Um jardim que exigiria a responsabilidade de um para com o outro, mas também dos seres humanos para com a criação de Deus. O ser humano colocado no jardim se torna o primeiro dos jardineiros. Deus cria e concede o privilégio do cuidado da sua criação ao ser humano. Nesse sentido, mais do que jardineiro, o ser humano se percebe como mordomo da criação. A imagem do jardim, portanto, traz à memória responsabilidade. A partir do jardim, da integridade da criação, somos chamados a exercer um cuidado responsável ou vivenciar uma espiritualidade concreta. Dessa forma, a espiritualidade que nasce no jardim não pode ser pensada como algo que nega a materialidade. Trata-se de uma espiritualidade ecológica, a qual assume uma relação de responsabilidade com nossos irmãos menores. Uma espiritualidade ecológica leva à construção de uma catequese responsável. Todavia, o tempo em que vivemos nos desafia com uma grande e perigosa tentação: a possibilidade de viver uma “espiritualidade de produção”, ou seja, queremos e buscamos um Deus que funcione! Certamente, deveríamos rever muitos dos nossos conceitos, e para ajudar nesse processo de bem refletir, Santo Agostinho é de uma ajuda inestimável, quando questiona: “O que buscamos quando buscamos a Deus?”. Para muitos, a espiritualidade pode estar sofrendo de uma extrema parcialidade. Apresenta-se, portanto, como uma patologia redutora e que impede de perceber a plenitude da verdadeira espiritualidade, centrada na vida de Jesus. Mas como é difícil a imitação de Cristo, seu seguimento e, muito mais, nos conformar com o Cristo na estrada do discipulado! Não haveria um Evangelho mais fácil e com menos exigência? Mais vale, para alguns, viver perdidos em simulacros de vida cristã e, assim, transformar a espiritualidade em uma teologia positiva, feito Ali Babá, que ao se expressar de forma correta fazia com que a montanha se abrisse diante de seus olhos. Na verdade, não queremos Deus, mas sim uma corporação religiosa que nos ensine os segredos da vida e nos conduza ao aburguesamento da fé. Preferimos um Deus domesticado e engaiolado que esteja sempre à nossa disposição. Não queremos Jesus com suas exigências de discipulado. Desejamos de todo o coração uma religião absolutamente pragmática e de respostas imediatas. Não queremos estudar a Bíblia e, por isso, fugimos de qualquer reflexão crítica que nos leve a qualquer tipo de compromisso que implique perda de lucros materiais. Queremos homilias bem preparadas, desde que elas afaguem nosso ego e nos lembrem, constantemente, das muitas promessas que precisamos “reivindicar” e que 4 evitem, acima de tudo, chamar nossa atenção para uma transformação interior. Não queremos discipulado. Buscamos, sim, uma graça barata! Os desafios apresentados pela atual crise socioambiental são amplos e complexos. Nesse sentido, é urgente uma nova visão das atitudes ecológicas do ser humano, levando-o a desenvolver formas de cuidado e proteção das relações de vida. É necessário resgatar a realidade da integridade e interdependência entre todos os seres vivos. Nessa dimensão, o ser humano ressignifica o seu existir e religa-se à sua missão de servo e mantenedor da vida, “cultivando” e “guardando” a criação – compreendida na sua plenitude. É preciso compreender a dimensão do cuidado e proteção como princípio da própria fé cristã, dinamizada por meio da espiritualidade ecológica e de uma catequese socialmente responsável. Catequese responsável e espiritualidade ecológica deveriam ser compreendidas como irmãs gêmeas. 5 CAPÍTULO 1 A INTEGRIDADE DA CRIAÇÃO O termo integridade pode ser definido como algo inteiro, completo; caráter daquilo a que não falta nenhuma das suas partes. A relação do ser humano com o cosmos deve ser construída a partir desse princípio de integridade, capaz de compreender a vida interligada, em que o ser humano e a criação não são partes desconexas, mas um “todo” complexo e harmônico. Segundo Dias, “a noção de integridade, isto é, o universo ajustado na sua totalidade, implica uma forte interdependência para que sejam possíveis a harmonia e a plenitude entre todos os seres, para que haja um equilíbrio de forças” (DIAS, 2012, p. 26). Assim, todos os elementos e dimensões que compreendem a criação – cosmos, elementos físico- químicos, plantas, animais e seres humanos – encontram-se intimamente integrados e, por isso, necessitam ser concebidos dentro de uma inter-relação que os une. Compreender o universo a partir do princípio da integridade não é uma novidade produzida pela sociedade atual. Tal concepção pode ser encontrada nas culturas originárias da América, da África e da Ásia. Todas elas buscam entender a vida a partir de dentro das suas diversas relações, compreendendo a natureza como uma grande família, por meio de um espírito integrador, que une todos numa única “teia da vida”, concedendo, a todas as criaturas, a dimensão de irmandade. A esse respeito, a carta do cacique Seattle para o governo dos Estados Unidos relata: Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores perfumosas são nossas irmãs; os gamos, os cavalos, a majestosa água, todos são nossos irmãos. Os picos rochosos, a fragrância dos bosques, a energia vital do pônei, o homem, tudo pertence a uma só família (FÁVERO, 1981, p. 174). A concepção de integridade da criação, reconhecida e valorizada pelos povos originários, também é encontrada na tradição cristã ao ser resgatada por São Francisco de Assis (séc. XII), que atribuía aos elementos da natureza a categoria de irmãos e irmãs, tornando toda a criação uma única família concebida por Deus, como se apresenta no Cântico à irmã mãe Terra: Irmã Mãe Terra, quero dormir em tuas entranhas. Mas antes de adormecer, escuta as batidas agradecidas de meu coração. [...] Obrigado, Irmã Terra, por teus ventos e brisas. Eles nos refrescam, no verão, esparramam, em suas asas, as sementes de vida e movem as pás dos moinhos. Obrigado, Irmã Terra, pelas hortaliças, os trigais, os pomares, as fontes de água fresca, pelas árvores onde os pássaros fazem os ninhos. Obrigado, Irmã Terra, pelo berço que emprestas para dormirmos o sono eterno (LARRAÑAGA, 1980, p. 391). Nessa mesma linha, a “Carta da Terra”[1] reforça que, “para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio de uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestrecom um destino 6 comum” (CARTA DA TERRA, 2000). Assim, o ser humano encontra-se integrado a todos os elementos naturais desde a sua origem. 7 A integridade da criação em Gênesis 2,15 Ao analisarmos o relato da criação, contido no texto de Gênesis 2,4b-25, percebemos que o ser humano dispõe de uma responsabilidade e de uma missão diante da criação, instituídas pelo próprio Criador. A missão de “cultivar e guardar o jardim” só pode ser exercida mediante a relação entre o ser humano recém-plasmado e o “jardim” criado. Assim, encontramos, no v. 15a, a dimensão integradora entre o ser humano e o jardim, constituída por Deus: “Javé Deus colocou o homem no jardim de Éden” (Gn 2,15a). Lemos no texto bíblico que o ser humano é modelado a partir do pó do solo (‘adamah), mesmo antes da formação dos demais elementos pertencentes à criação (v. 7). Quando o ser humano se torna um ser vivente, imediatamente Javé Deus planta um jardim no Éden, com o intuito de ali colocar o ser humano que havia modelado (v. 8). Após o detalhado relato da constituição desse jardim e depois de estabelecidos os primeiros elementos para sobrevivência do ser humano – águas (v. 10), árvores agradáveis e boas para comer (v. 9) –, segue o relato do v. 15, no qual Javé Deus colocou o ser humano no jardim e o apresentou à sua missão como fruto dessa integração. Notamos, assim, a intrínseca relação existente entre o ser humano e o “jardim” (com as demais criaturas). O homem é pensado na perspectiva do jardim – “e não havia ser humano que cultivasse o solo” (v. 5b) –, e o “jardim” é pensado na perspectiva do ser humano – “plantou um jardim e aí colocou o homem” (v. 8). Enfim, a criação de um acontece em perspectiva do outro; ambos se integram mutuamente. O ser humano introduzido no “jardim” passa a integrar, participando delas, suas relações e a ser responsável por elas – “cultivar e guardar”. Mesmo que no relato bíblico o ser humano e o jardim sejam concebidos em momentos distintos, desde o início permanece a expectativa da criação do outro e do momento da união entre eles, da coexistência relacional e integradora que plenifica a existência de ambos: ser humano para o jardim e jardim para o ser humano. Assim, não podemos compreender a criação do ser humano separada das demais criaturas – mesmo que isso tenha ocorrido em tempo/espaço distintos. A humanidade é concebida junto com as demais criaturas, integrada e não separada, superior ou fora da criação. Aquela compartilha a mesma origem e os mesmos elementos originários com esta, como percebemos no v. 19 referindo-se à modelagem dos animais a partir do pó do solo (‘adamah), tal como a origem do próprio ser humano, que também é modelado a partir do ‘adamah (v. 7). O relato bíblico refuta, portanto, uma visão antropocêntrica em que as criaturas existem para a satisfação da humanidade, ou seja, numa visão linear em que tudo foi criado para o usufruto do ser humano, sendo este o senhor de toda a criação. A relação de integridade entre o ser humano e o “jardim” é o que mantém a vida criada. Nessa relação, o “jardim” mantém o ser humano, provendo-lhe alimento, 8 comunidade, relação com Deus; e o ser humano mantém o “jardim” ao cultivá-lo e guardá-lo. Estão integrados, relacionam-se mutuamente e reciprocamente se mantêm. O humano criado pressupõe o “jardim” imediatamente estabelecido, e o “jardim” pressupõe a existência do humano. A relação é existencial, é pressuposto de vida. O ato original é de Deus, Ele cria o ser vivo humano e cria o ser vivo “jardim”, porém a manutenção da vida se dá na integridade da relação entre ambos, na diaconia entre a criação – entre homem e “jardim”. A diaconia se manifesta como um serviço do cuidado realizado pelo homem em prol do “jardim”, mas há também um servir cuidadoso do “jardim” para com o adam, que lhe permite existir. Portanto, é nessa relação que o ser humano mantém-se como um ser vivente, e não apenas como ‘adamah. O que conecta o homem ao “jardim” não é o pó do solo, ou seja, apenas os elementos químicos que compartilham, mas a dimensão consciente de sua existência, a missão de “cuidar” e “guardar” as relações de vida. E, nessa íntima integridade, o bem do “jardim” é o bem do ser humano, ao mesmo tempo em que o mal de um é o mal do outro. O ser humano plasmado fora do jardim é introduzido por Deus como completude da criação. É somente após a integração de ambos que o relato prossegue, passando- se para o momento da criação dos animais e da criação da mulher, ou seja, a plenificação da criação pressupõe a existência relacional e integrada entre o ser humano e o “jardim”. Somente assim a criação pode ser completada – a dimensão comunitária (animais, mulher) é pensada após o estabelecimento da relação integrante homem/jardim. A comunidade de “companheiros”/ “semelhantes” (v. 18) pressupõe a dimensão unitária e coexistencial entre o homem e o “jardim”. Nesse sentido, a humanidade participa da mesma realidade criacional, forma um continuum com todos os elementos, com o universo; participa e compartilha a mesma natureza que todo o “jardim”, sendo igualmente criaturas; integradas entre si, correlacionam-se e coexistem, salvaguardando-se mutuamente. 9 A integridade da criação na atual cosmologia A visão de uma criação integrada é parte da construção da nova cosmologia, uma cosmovisão ecológica, que sintetiza a compreensão de “um universo muito velho, incompreensivelmente grande, profundamente dinâmico e envolvente, interligado de forma complexa” (DIAS, 2012, p. 28). Boff define cosmologia como “a imagem do mundo que uma sociedade se faz, fruto da ars combinatoria dos mais variegados saberes, tradições e intuições. Essa imagem serve de re-ligação geral e confere a harmonia necessária à sociedade” (BOFF, 2015, p. 79). Na cosmologia atual, fruto das novas descobertas das ciências física (principalmente a quântica), biológica (principalmente a genética e a ecológica), cósmica e das reflexões filosóficas, compreende-se que o universo e todos os seus elementos são frutos de um longo processo de cosmogênese, no qual “todos os fatores que entram na constituição de cada ecossistema com seus seres e organismos possuem sua latência, sua ancestralidade e, em seguida, sua emergência” (BOFF, 2015, p. 53). Dias aponta que “a ciência, embora não tenha encontrado uma teoria irrefutável da origem do universo, mostra-nos a inter-relação, a interdependência, a ligação dos organismos vivos ao seu meio ambiente” (DIAS, 2012, p. 31). Nessa concepção, o ser humano também é resultado desse processo originário – a cosmogênese –, assim como todos os demais seres. O ser humano encontra-se, irrefutavelmente, numa solidariedade de origem e também de destino com todos os seres do universo, apresentando-se integrado a estes. Por essa razão, o ser humano não pode “ser visto fora do princípio cosmogênico [...], como um ser errático, enviado à Terra por alguma divindade. Todos são enviados pela Divindade, não apenas o ser humano” (BOFF, 2015, p. 54). Assim, o ser humano é compreendido como parte integrante da criação e fruto do mesmo processo originário, superando a concepção antropocêntrica que vê a humanidade de forma superior aos demais elementos da criação, os quais teriam sido criados para seu usufruto, acreditando que o ser humano é “a coroa do processo evolutivo e o centro do universo” (BOFF, 2015, p. 26). O universo inteiro foi cúmplice na produção do ser humano. Não somente dele, mas também dos outros seres (cf. BOFF, 2015, p. 55). Ou seja, todos os fatores históricos da constituição do cosmos intencionaram a emergência da vida, como um todo, inclusive do ser humano. Portanto, o universo e o ser humano se pertencem mutuamente, interagem e integram-se, atendem a uma “perfeita circularidade: o universo é direcionado para o ser humano como o ser humano é voltado para o universo de onde proveio” (BOFF, 2015, p. 55). Nessa mesma linha, o Papa Francisco ressalta que nunca é demais insistir que tudo está interligado. O tempo e o espaço não são independentes entresi; nem os próprios átomos ou as partículas subatômicas podem ser considerados separadamente. Assim como os vários componentes do planeta – físico, químico e biológico – estão relacionados entre si, assim também as espécies vivas formam uma trama que nunca acabaremos de individuar e compreender (LS 138). 10 Dessa forma, Boff (2015, p. 51) enfatiza que a mais fascinante descoberta do século XX foi a profunda unidade e harmonia do universo, e esclarece que “essa visão sustenta que o universo é constituído por uma imensa teia de relações, de tal forma que cada um vive pelo outro, para o outro e com o outro; que o ser humano é um nó de relações voltado para todas as direções” (BOFF, 2015, p. 52). Assim, tanto as culturas originárias quanto o segundo relato da criação em Gênesis e a atual cosmologia convergem ao conceber o ser humano como parte integrante da criação. Todos os elementos criados compartilham sua existência e se relacionam, a fim de se autorretromanterem, pois não são partes isoladas, mas sim uma perfeita interação de vidas que se salvaguardam mutuamente. Nesse sentido, o princípio de integridade da criação é aquilo que mantém o dinâmico equilíbrio da vida. Ao se negar essa notável integridade, corre-se o risco de se recair no mal da crise socioambiental, que hoje se abate sobre toda a criação. 11 O ser humano e seu papel na criação: cultivador e guardião De acordo com o texto de Gênesis 2,4b-25, o ser humano foi criado em uma relação de integração e de integridade com as demais criaturas. Como fruto dessa integração, o humano deveria exercer sua missão perante a criação, ou seja, cultivá-la e guardá-la. Percebemos que, quando a dimensão da integração, por meio da integridade, é negligenciada, também a missão do ser humano é corrompida. Na concepção dicotômica, o ser humano coloca-se fora da criação e em posição de superioridade a esta, fazendo com que o modo como se relaciona com o cosmos deixe de ser o de um cultivador e guardião, passando a ser o de senhor e dominador. E as consequências desse tipo de relação são visíveis nas diversas expressões da atual crise socioambiental. Para muitas pessoas, o modo de compreender e de se relacionar com a criação tem como princípio o antropocentrismo. No entanto, hoje é necessário e urgente o retorno a formas de relações mais inclusivas e integradoras. Assim, todo o conhecimento científico sobre as relações naturais, as técnicas e instrumentos desenvolvidos devem ser submetidos a uma nova ética, uma nova forma de desenvolvê-los e utilizá-los, a qual priorize o cuidado da criação, e não sua submissão em favor da sedenta busca de poder, promovida pela humanidade. O ser humano é chamado, portanto, a uma reconciliação consigo mesmo, com a criação e com sua missão. E, a partir disso, deve buscar novas formas de organização política, econômica e social, ou seja, reestruturar a sociedade a partir do princípio da integridade que leva à relação de cultivo e guarda de todas as formas de vida. São Francisco de Assis expressa que “o homem deveria usar sua superioridade intelectual para cuidar, proteger e ajudar os viventes a viverem” (apud LARRAÑAGA, 1980, p. 376). O ser humano não tem o poder de criar a vida, mas cabe a ele a responsabilidade de permitir que o que é criado permaneça existindo, guardando a vida criada e permitindo que ela se perpetue. Nesse propósito, o ser humano cultiva e guarda sua própria existência. Assim, podemos compreender a dimensão do “cultivo” como algo que leva o ser humano a ser um “promotor” da vida, que em todas as suas relações promove formas de vida, e não de destruição. E, por sua vez, a concepção de “guardião” possui a missão de “cuidar” e garantir que todas as formas de vida perpetuem ao longo do tempo e sigam seu próprio curso histórico. Desse modo, o ser humano não cultiva e guarda apenas um objeto ou uma parte do meio ambiente, mas, na visão de integração e de integridade, ele cultiva e guarda todos os elementos e todas as relações que se interconectam e estão presentes no cosmos, bem como aquelas que são promotoras de vida. O princípio de cultivar e guardar as relações de integração e de integridade, harmonia e interdependência de toda a criação é algo a ser construído no coração humano. Por isso, em sua Encíclica Laudato Si’, o Papa Francisco enfatiza a necessidade de uma conversão ecológica, ou seja, a busca de um novo modo de ser, 12 de relacionar-se e compreender-se perante toda a criação. Essa conversão demanda várias atitudes, tais como a gratidão e a gratuidade, reconhecendo a criação como “dom recebido do amor do Pai [...], [além] da consciência amorosa de não estar separado das outras criaturas, mas de formar com os outros seres do universo uma estupenda comunhão universal” (LS 220). É preciso sair do individualismo e do antropocentrismo, que colocam o ser humano no centro de tudo, e caminhar para o encontro da relação de integridade que ressignifica a existência humana a partir de um “ser com o outro”. A humanidade necessita reencontrar a dimensão do cultivo das relações. É necessário sair de si e ir em direção aos outros – humanos e natureza –, e cultivar com eles relações de respeito, harmonia, inclusão, cuidado, justiça e paz. Nas relações diárias, perdeu-se a dimensão do cultivo. Não se dedica tempo cultivando as relações de amizades, as relações de boa vizinhança, as relações de respeito e reciprocidade entre os familiares; não se cultiva mais o amor entre os seres humanos. Assim, é compreensível que também se tenha perdido a dimensão de cuidado com todo o cosmos. Boff apresenta que o dado mais grave que se encontra por detrás da falta de cuidado é a perda da conexão com o Todo; o vazio da consciência que não mais se percebe parcela do universo; a dissolução do sentimento do Sagrado face ao cosmos e a cada um dos seres; e a ausência da percepção da unidade de todas as coisas, ancoradas no ministério do Supremo Criador e Provedor de tudo (BOFF, 2012, p. 27-28). Portanto, cultivar a criação pressupõe, primeiramente, um resgate do cultivo das relações humanas, familiares e sociais. O ser humano precisa resgatar em si essa dimensão, ou seja, sair do egoísmo antropocêntrico que leva ao individualismo e ao isolamento social e abrir-se à presença, ao protagonismo e à dignidade do outro. Integrar-se novamente no cosmos e com ele estabelecer relações de cuidado e proteção demanda, primeiramente, integrações nos níveis da relação familiar e social. Nessa linha, o Papa Francisco expressa que o descuido no compromisso de cultivar e manter um correto relacionamento com o próximo, relativamente a quem sou devedor da minha solicitude e proteção, destrói o relacionamento interior comigo mesmo, com os outros, com Deus e com a Terra (LS 70). A missão de cultivador talvez seja mais bem aplicada na atualidade para o cultivo das relações harmônicas, equilibradas, de mútuo respeito que inter-relacionam tudo a todos. É necessário cultivar a dimensão humana que leva ao cuidado e à proteção das diversas formas de vida. A missão do ser humano também é a de guardião. Nessa missão, é necessário guardar as relações de vida que foram cultivadas, para que possam levar a uma mútua existência. O ser humano deve ser guardião de si mesmo, vigilante para impedir que pensamentos e ações egocêntricas e dominadoras sejam a base de suas relações humanas e com o cosmos. Deve guardar as relações sociais e, da mesma forma, impedir que o desejo por poder seja o mentor das estruturas sociais, que levam à exploração e à exclusão dos demais viventes. O ser humano também é igualmente 13 incumbido da missão de guardar a criação da subjugação e do imperativo de dominação humana, mantendo a dignidade e o direito à existência de todas as criaturas. O ser humano não é concebido como senhor sobre a vida, mas servo mantenedor. O princípio de guardar a criação é, portanto, o que preserva as relações existenciais, estabelecidas desde o princípio como meio de salvaguardar a vida. Cultivar e guardar a criação – ser humano e natureza– é um princípio de fé para os cristãos. O Papa Francisco expressa que “viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional, nem um aspecto secundário da experiência cristã, mas parte essencial de uma existência virtuosa” (LS 217). O pontífice esclarece ainda que o cristão deve cultivar e guardar as relações naturais como expressão do seu encontro com Jesus Cristo. Aos seguidores de Cristo, cabe-lhes o cumprimento do mandamento “amem-se uns aos outros, assim como eu amei vocês” (Jo 15,12). Segundo Larrañaga, percebe-se que São Francisco de Assis amplia o sentido deste mandamento, integrando também como destinatária deste amor toda a criação, e em seu leito de morte anuncia: Em toda a minha vida, a única coisa que fiz foi amar, e o primeiro mandamento do amor é deixar viver os viventes [...]. Se respeitássemos, se reverenciássemos tudo o que vive, e mesmo tudo o que é, a criação seria um lar feliz. E direi mais: respeitar principalmente o que é débil e insignificante (apud LARRAÑAGA, 1980, p. 376). Portanto, reassumir a missão de cultivador e guardião de toda a criação demanda a capacidade de cultivar um amor inclusivo, que se abre ao outro e permite sua plena existência. É a capacidade de desenvolver o amor servil que coloca a humanidade aos pés de toda a criação, para, humildemente, “lavar-lhes os pés” (Jo 13,4-11), ou seja, despojar-se de qualquer forma de autoridade e superioridade e inverter a preconcepção estabelecida – a de que é a criação que se coloca a serviço da humanidade –, e recuperar o modelo relacional gerador de vida plena, estabelecido por Jesus Cristo: o maior a serviço do menor. Assim, a humanidade reencontra-se com um princípio doador de sentido existencial – o “viver para o outro” –, e, ao ressignificar sua vida, será capaz de romper com princípios geradores de destruição e reassumir a missão de cultivá-lo em todas as relações – humanas, com a Divindade e com a criação –, permitindo-lhes que produzam frutos de vida plena, guardando estes frutos do mal resultante da segregação e desintegração de todo o cosmos. Toda a humanidade é conclamada a reassumir sua missão de cultivar e guardar a criação, e “todos podemos colaborar, como instrumentos de Deus, no cuidado da criação, cada um a partir da sua cultura, experiência, iniciativas e capacidades” (LS 14). É nossa missão e responsabilidade, mas, além de tudo, é o reencontro com o sentido de nossa existência, é o “para que” existimos: para proporcionar a vida a todos, por meio das relações de proteção e cuidado uns dos outros e com todo o cosmos. É também nosso dever suplantar, de uma vez, a concepção de superioridade, desintegração, isolamento e abrir-nos à completude da criação, ou seja, à completude de nosso próprio ser, pois não somos seres acabados se negamos a dimensão da integridade com os demais seres criados – humanos e natureza. Ao contrário, somos 14 plenificados na relação com o outro, na relação servil – livre de interesses egoístas –, e encontramos a nós mesmos quando compreendemos que o nosso ser só se realiza quando nos dispomos ao cultivo de relações com o outro. Enfim, os seres humanos não foram criados isolados e independentes, mas interconectados, interligados, integrados, formando um “todo” com a criação, e nessa unidade é que se torna possível o princípio de vida, de comunidade e de relação com Deus. A humanidade é chamada a cultivar e guardar todas essas dimensões, pois é nessa missão que ela garante a sua completa existência. 15 CAPÍTULO 2 CRISE SOCIOAMBIENTAL: DEGRADAÇÃO DA NATUREZA Estamos diante de uma realidade da qual não possuímos memória histórica: a crise ambiental. Uma crise que se apresenta como negadora da integridade da criação. A humanidade guarda memórias de vivência e sobrevivência de diferentes crises – guerras, crises políticas, econômicas –, o que faz com que, diante de uma nova realidade dessa ordem, mantenha-se a esperança, pois resgata em sua própria história a superação de algumas crises do passado. Entretanto, agora o elemento é outro. Mesmo que, historicamente, tenhamos passado por diversos distúrbios ambientais – grandes períodos de seca, inundações, tempestades, vulcões –, estes se constituíam pontuais e passageiros. O que se apresenta, no entanto, é algo novo para a realidade histórico-humana, pois se constitui como a eminente crise ou colapso do sistema natural planetário; o risco é a perda de tudo o que conhecemos como mantenedor da vida que estruturamos: perda de água potável, perda dos solos agricultáveis, perda das áreas habitáveis mais populosas do planeta, perda do equilíbrio climático, perda das reservas de matéria-prima que sustentam o atual modelo político-econômico, perda da referência de futuro. A gravidade com que isso se dará e a forma de superá-la ainda são, em parte, desconhecidas, apesar das inúmeras hipóteses e estimativas lançadas pelos diferentes campos dos saberes. Não possuímos referências que poderiam nos orientar de forma segura a maneira de superar o momento em que vivemos. O que as ciências dispõem até o momento são referências de grandes cataclismos pelos quais o planeta Terra passou ao longo de sua história geológica, de certa forma resguardando o princípio da vida, chegando até nós. Entretanto, como a humanidade passará e sobreviverá a esta crise ambiental ainda é incerto. A falta de respostas prontas e de caminhos seguros é própria da realidade da crise. E não podemos negar que estamos em meio a ela. Essa insegurança pode gerar a falta de esperança quanto à solução desse problema, ou mesmo a negação da existência dele. Mediante essa postura se apresentam duas formas de compreendermos esse evento ecológico: por um lado, há aqueles que buscam respostas no próprio planeta – atribuindo o momento que vivemos como resultado do processo evolutivo da Terra, sujeito a cíclicas catástrofes ambientais ao longo da história planetária –, atitude que exerce a função de anestesiar a mente humana, livrando-a de sua responsabilidade, pois sobre isso o ser humano não teria qualquer poder de interferência nem para agravar, nem para mitigar sua ocorrência; por outro lado, encontramos aqueles que olham para a própria humanidade e buscam em sua consciência e ação as causas para o presente mal e as luzes de esperança para superá-lo. Certamente, a humanidade tem 16 sua culpa na crise atual. Se não contribuiu para sua total ocorrência, ao menos colaborou com o seu agravamento e ampliação. Portanto, é responsabilidade daquela buscar e propor meios de possíveis soluções. A constatação das grandes alterações ambientais não é conteúdo apenas dos grandes tratados ou complicados relatórios científicos. Facilmente, percebemos que a natureza não é a mesma. Basta um diálogo com pessoas mais idosas da família ou do grupo social a que pertencemos – diálogo que certamente se iniciará com o termo “na minha época” –, para conseguirmos uma lista, às vezes bem detalhada, das mudanças ambientais que enfrentamos. Nesse diálogo, rapidamente se elencarão dezenas ou centenas de espécies da fauna e da flora extintas ou em via de extinção – enumeradas uma a uma a partir da saudosa expressão “já não vejo mais [...] o canário-da-terra, o tiziu”–; e encontraremos também as localizações geográficas das fontes de água que deixaram de existir, a alteração no regime de chuvas e no clima, seguida pela constatação da perda da produtividade do solo – introduzida ao discurso pela frase: “Antigamente, tudo que se plantava dava, hoje a semente resseca na terra e nada produz” –; e, por fim, a mudança no sabor dos alimentos – de tal forma incluída à lista de alterações ambientais por meio de uma frase quase poética: “Boa era a laranja colhida do pé que nascia sozinho no fundo do quintal, ela tinha sabor de mel”. A natureza mudou e, inegavelmente, para pior. As alterações climáticas e a degradação ambiental há tempos deixaram de ser discursos acadêmicos ou diplomáticos e ganharam a consciência popular, sem, porém, resultar numa efetiva mudança de atitude. Assim, notamos que sãoconhecidos – seja por meio de dados técnicos ou do senso comum – os diversos distúrbios ambientais, tais como a perda de biodiversidade, as alterações climáticas, o aumento da temperatura global, a poluição do solo, da água e do ar etc. Nosso objetivo não é realizar um estudo aprofundado sobre a crise socioambiental, mas apenas apontar como essas realidades de degradação se interconectam, e como a integridade de toda a criação deve ser o ponto de partida para analisá-las e compreendê-las. O paradigma científico clássico, fundamentado na física dos corpos inertes e na matemática (cf. BOFF, 2009, p. 145), desconsidera a complexidade das interações e entende que, para a análise de um objeto, é necessário subtraí-lo do todo e reduzi-lo a partes mais simples, pressupondo que, ao se conhecer as partes, conhece-se o todo. Desse modo, ao analisar um distúrbio ecológico, desconsideram-se suas inter- relações, atingindo-se, por consequência, causas simplistas, para as quais a aplicação de determinado instrumento técnico seria suficiente para solucionar o problema. Moltmann alerta que é leviana a afirmação “de que a crise ecológica pode ser tecnicamente resolvida” (MOLTMANN, 1993, p. 48). E o Papa Francisco reconhece que “os conhecimentos fragmentários e isolados podem tornar-se uma forma de ignorância, quando resistem a integrar-se em uma visão mais ampla da realidade” (LS 138). É necessário, portanto, adotar o paradigma científico que considera a 17 complexidade e integridade das relações naturais, possibilitando análises mais completas e próximas da realidade, resultando em proposições de soluções que certamente incluem as aplicações de técnicas e instrumentos, mas que consideram também outros meios e fatores que igualmente contribuirão para buscar por tais soluções. Devemos levar em conta que a crise ambiental é resultado de um complexo sistema natural, explorado e agredido, que exige análises e soluções capazes de promover mudanças nas estruturas da sociedade, a fim de reatar a integridade de toda a criação. 18 Crise socioambiental: degradação da dignidade humana A degradação ambiental não afeta somente os recursos naturais, mas também promove a degradação da qualidade de vida humana e social, penalizando os mais fracos e pobres. As razões das injustiças sociais são as mesmas que promovem as injustiças ecológicas, ou seja, a relação dominante, promovida pelo modelo político- econômico, baseado na exploração tanto dos recursos naturais quanto dos recursos humanos, privando-os de sua dignidade e existência. A negação da integridade da criação rompeu os laços de irmandade entre a humanidade e o cosmos, mas também entre os próprios seres humanos, permitindo assim a relação de dominação e exclusão. Por meio dessa relação, se denigre a imagem dos outros seres humanos, privando-os da dignidade e do respeito, negando- lhes a própria natureza humana. É como se os mais fracos e pobres não fossem humanos, e por isso pudessem ser explorados e exterminados, tal como ocorre com os elementos naturais. O empobrecimento humano e ambiental parece não afetar esta sociedade, que se apresenta, na sua grande maioria, indiferente a essas realidades. Ao perceber isso, o Papa Francisco alerta que deveriam indignar-nos, sobretudo, as enormes desigualdades que existem entre nós, porque continuamos a tolerar que alguns se considerem mais dignos do que outros. Deixamos de notar que alguns se arrastam em uma miséria degradante, sem possibilidades reais de melhorias, enquanto outros não sabem sequer o que fazer com o que têm, ostentam vaidosamente uma suposta superioridade e deixam atrás de si um nível de desperdício tal que seria impossível generalizar sem destruir o planeta. Na prática, continuamos a admitir que alguns se sintam mais humanos que outros, como se tivessem nascido com maiores direitos (LS 90). Podemos encontrar essa compreensão também em São Francisco de Assis. Ele afirmava que a degradação ambiental residia no desejo do homem de obter poder e domínio sobre todas as coisas, satisfazendo seus caprichos, e não na busca de sobrevivência digna, apontando que “os que se dedicam a caçar não são os pobres que têm fome, mas os ricos a quem não falta nada. Matam para se divertir” (apud LARRAÑAGA, 1980, p. 375). A crise socioambiental se instala a partir deste princípio de separação – desintegração –, que considera a superioridade de alguns em detrimento de outros, provendo àqueles mais direitos que a esses. Não nos faltam elementos históricos que comprovam que, em todas as vezes que negamos a humanidade do outro, instalam-se o domínio e a exploração – exterminação indígena, escravidão negra, holocaustos. Enquanto houver o princípio de superioridade, seja individual, cultural ou nacional, não encontraremos soluções para a crise socioambiental, pois esta pressupõe um diálogo de igualdade e equidade, em busca do equilíbrio planetário. É comum encontrarmos nos discursos dos países desenvolvidos o equívoco pensamento que atribui o agravamento da crise ambiental na busca dos países pobres pelo desenvolvimento, e pela melhoria no nível de consumo dos seus habitantes (cf. SUNG, 2007, p. 71-72). Entretanto, a solução da pobreza não está na maior 19 exploração dos recursos naturais, para que essa parcela da população também usufrua de vida digna, mas está na redução do consumo daqueles que hoje já detêm tal benefício, ou seja, na distribuição igualitária dos bens. Sung expressa que o problema não está em os pobres do mundo melhorarem sua condição de vida material, mas no fato de que os países ricos não querem diminuir o seu consumo para que a melhora no consumo dos pobres não faça o problema ecológico ultrapassar o ponto crítico. Isto é, os habitantes dos países ricos precisariam diminuir o seu consumo para evitar a crise. Se os ricos diminuírem o consumo, que é exagerado, e os pobres aumentarem dentro do que é razoável, o resultado final pode ser um consumo total menor do que o atual (SUNG, 2007, p. 72). A partir disso, percebemos que, mesmo dentro do atual modelo político- econômico, é possível erradicar a pobreza, desde que o discurso seja o da partilha e da igualdade dos bens produzidos, ou seja, do resgate e do reconhecimento da dignidade de todos os seres humanos. Entretanto, é notório que a atual crise exige da humanidade a busca por novos meios de organização social, que suplantem o modelo político-econômico baseado na insustentável lei da produção de bens de consumo, pois esse modelo já se mostrou insuficiente e inadequado para uma forma de vida que garanta o equilíbrio ambiental e social. Não basta acrescentar alguns elementos novos aos velhos sistemas de exploração que geram a crise em que nos encontramos, é necessária uma nova forma de viver, baseada na proteção e na dignidade de toda a criação. Como apontado, o princípio que justifica a exploração – ambiental e humana – é o mesmo; se uma sociedade permite-se explorar e dominar os recursos naturais, igualmente se dará o direito de explorar e dominar os outros seres humanos. Dentro dessa visão integrada, não é possível tratar dos assuntos ambientais e desconsiderar os temas sociais, e vice-versa, ou seja, “tudo está interligado. Por isso, exige-se uma preocupação pelo meio ambiente, unida ao amor sincero pelos seres humanos e a um compromisso constante com os problemas da sociedade” (LS 91). Somente assim, caminharemos para o encontro de possíveis meios de superação da atual crise socioambiental. 20 A negação da integridade da criação como base da sociedade antropocêntrica Todos os organismos, ao se relacionarem com seu ambiente, interferem e alteram sua condição original, ao mesmo tempo em que também são afetados por essa relação. Esse é o princípio básico da ecologia (enquanto ciência do saber biológico), que pode ser definida como “a ciência capaz de compreender a relação do organismo com o seu ambiente” (TOWNSEND, 2006, p. 24). Entretanto, essa interação resguarda um princípio fundamental: a capacidade de regeneração do ambiente – a capacidadede resistência e sua resiliência. Isso define um ambiente equilibrado, quando as interações entre os seres vivos com seu ecossistema ocorrem de tal maneira que os distúrbios causados sejam naturalmente regenerados. Quando os distúrbios extrapolam a capacidade de regeneração ambiental, ele se encontra em desequilíbrio e degradação. E é isso que a humanidade provocou no ambiente. Desde o Período Neolítico (Idade da Pedra Polida), a humanidade acrescentou o uso de instrumentos, à sua capacidade de intervenção na natureza, ampliando assim essa capacidade, chegando ao auge com a atual sociedade tecnológica. A humanidade construiu instrumentos de grande poder de intervenção: sondas que retiram petróleo a uma profundidade superior a 5.000m; tratores que retiram uma árvore inteira a cada 25 segundos; navios pesqueiros que retiram ilegalmente 26 milhões de toneladas de peixes por ano do mar; aviões que em minutos pulverizam agrotóxicos em vastas áreas; a engenharia genética que altera as moléculas de DNA, produzindo os alimentos geneticamente modificados etc. Chegamos a níveis de extrema intervenção ambiental. Boff expressa que o ser humano está sobre as coisas para fazer delas condições e instrumentos de felicidade e do progresso humano, [mas] a vontade de tudo dominar nos está fazendo dominados e assujeitados aos instrumentos técnicos que criamos e que degradaram a Terra (BOFF, 2015, p. 28). Diante dessa realidade, podemos considerar que estamos perante uma crise de um tipo de civilização, a civilização hegemônica – criada no Ocidente e globalizada nos últimos séculos. Nessa sociedade, o sentido primordial é o “progresso, a prosperidade, o crescimento ilimitado de bens materiais e de serviços, apropriados individualmente e sob o regime da competição e da mercantilização de tudo” (BOFF, 2015, p. 27). Para a obtenção do progresso, utilizam-se, sem restrições, a exploração e a potenciação dos recursos naturais e humanos; para tanto, o instrumento é a ciência e a técnica (produtoras do industrialismo, informatização e robotização). Entretanto, “esses instrumentos não surgiram por pura curiosidade, mas pela vontade de poder, de conquista e de acumulação” (BOFF, 2015, p. 27). Assim, constitui-se o paradigma da modernidade, no qual pode-se identificar uma série de movimentos e sistemas de pensamentos (Iluminismo, positivismo, evolucionismo etc.), que foram afirmando gradativamente um antropocentrismo. Isto é, fizeram surgir cada vez mais a consciência de que o ser humano está no centro dos acontecimentos globais, sendo o critério e o senhor da natureza (REIMER, 2007, p. 18). 21 A capacidade de intervenção ampliou-se inegavelmente a partir da revolução técnico-científica. Mas a técnica, os instrumentos e o conhecimento das relações naturais, por si, não são capazes de promover o mal que se aflige. A questão está no fato de que tais meios foram e são utilizados para a promoção de um domínio sobre a natureza, que se tornou sinônimo de poder político-econômico-social. Esse poder, restrito nas mãos de poucas pessoas, define as relações da civilização que hoje se apresenta em crise, pois uma nação que possui o poder técnico-científico detém o poder político-econômico sobre as demais; a empresa que detém o poder técnico- científico exerce seu poder superior no mercado, excluindo as que não o possuem; no agronegócio, da mesma forma, e assim por diante, chegando às relações pessoais, em que quem detém os instrumentos tecnológicos é elevado ao patamar de “senhor” sobre os demais, que são imediatamente rebaixados à exclusão das relações socioambientais. Isso é um princípio gerador de violência. De um lado, encontram-se os detentores do poder, que promovem meios para sua autodefesa, o que geralmente ocorre isolando-se e excluindo-se ainda mais o outro; de outro lado, encontramos os destinados à margem do poder técnico-científico que buscam meios, não menos violentos, na maioria das vezes, de assegurar para si a mesma dignidade atribuída ao outro. Assim, Moltmann afirma que a crise do mundo moderno não surgiu apenas através das tecnologias que possibilitam a exploração da natureza ou em decorrência das ciências naturais, através das quais os seres humanos se tornaram senhores da natureza. Ela se baseia muito mais na ambição que pessoas têm por poder e prepotência (MOLTMANN, 1993, p. 43). Por essa razão, não podemos atribuir a crise a um meio, o técnico-científico, mas o princípio está no ser humano que fez desse meio um gerador de destruição e exclusão para obtenção do poder que almeja. A visão que a humanidade construiu de si mesma é que lhe proporcionou legitimidade para suas ações destrutivas, ou seja, na construção de uma sociedade antropocêntrica. Para falar sobre essa realidade, Boff utiliza também o termo androcêntrica, justificando que “é o varão e macho que se autoproclama senhor da natureza, e não tanto a mulher” (BOFF, 2015, p. 147). O antropocentrismo é fruto dos pensamentos dualistas que separaram o capital do trabalho, a pessoa da natureza, o homem da mulher, o corpo do espírito, Deus do mundo, e um dos extremos tornou-se o dominador na correlação. O antropocentrismo concebe o ser humano como o centro e senhor de todas as coisas, tudo está voltado para seu uso e domínio, a relação estabelecida jamais será de igualdade e comunhão, mas sempre na dinâmica do poder exercido sobre algo ou alguém. Nessa centralidade do poder em si mesmo, a humanidade rompe sua ligação com todas as criaturas para, assim, ser capaz de exercer seu poder sobre elas; rompe sua ligação com Deus, com a natureza e com o próprio ser humano, e sobre todos esses impõe sua concepção de poder e domínio. A visão antropocêntrica não é nova, mas encontrou na sociedade moderna o seu ápice. Assim, “sempre a partir de uma posição de poder, [o ser humano] interveio tão profundamente na natureza para seu benefício exclusivo que criou uma civilização singular, a nossa civilização” (BOFF, 2015, p. 148). O tipo de 22 sociedade vigente é notoriamente antiecológica. Boff expressa que esse modelo antropocêntrico de sociedade fez com que o pior acontecesse ao ser humano que se isolou da natureza, quebrou os laços de pertença à comunidade da vida, esquecido da teia das interdependências e da sinergia de todos os elementos naturais e cósmicos, para que emergisse no processo evolucionário. Ele se encaramujou sobre si mesmo. Destruiu os símbolos de sua natureza espiritual, decretou a morte de Deus e mergulhou num incomensurável vazio, desenraizado da natureza e entregue à solidão. Daí nascem o pessimismo, a amargura e a náusea, que são a falta de alegria de viver (BOFF, 2015, p. 143). Assim, podemos compreender, portanto, que uma das razões para a atual crise socioambiental é a negação da integridade da criação, da relação do ser humano com a natureza, concebido pela sociedade antropocêntrica. Ao desvincular o ser humano das inter-relações naturais, o antropocentrismo abriu caminhos para a exploração realizada pela ciência aplicada e pela tecnologia instrumentalizada, a ponto de produzirmos o incalculável desequilíbrio ambiental em que nos encontramos. Certamente, outros fatores contribuíram para a crise atual, mas a visão que o ser humano produz de si mesmo compilada no conceito antropocêntrico garantiu-lhe a outorga para seus atos de dominação. Nesse sentido, as palavras de São Paulo à comunidade de Corinto – “Tudo é permitido para mim, mas nem tudo me convém” (1Cor 6,12) – são negadas pela sociedade antropocêntrica, pois, para esta, tudo lhe é permitido e tudo lhe convém, quando se trata de busca por poder e domínio sobre a criação. Ao buscar o senhorio sobre si, o ser humano rompe com as relações de integridade da criação, coloca-se sobre ela, e perde os laços de união, gerando o maior mal de todos os tempos: o planetário desequilíbrio ambiental. Sobre a tradição judaico-cristã também incorre o peso da acusação de favorecer, por meio da interpretação dos textos bíblicos e sua doutrina, a construção e legitimação de uma sociedade antropocêntrica.Segundo Lynn White Jr., “o cristianismo não só estabeleceu um dualismo entre homem e natureza, como também incentivou que era a vontade de Deus que o homem explorasse a natureza para seu próprio benefício”, e ressalta que “as implicações que tem o cristianismo para a conquista da natureza surgiram mais facilmente na atmosfera ocidental” (WHITE JR., 2007, p. 83-84). O autor Juan L. Ruiz de la Peña considera que tais acusações são “historicamente injustas e exegeticamente infundadas” (PEÑA, 1989, p. 158). E Moltmann esclarece que, “muitas vezes, o desejo de poder, de crescimento e progresso que caracteriza a civilização moderna foi legitimado com base na doutrina bíblica da criação, mas essa legitimação posterior não tem fundamento na própria Bíblia” (MOLTMANN, 1993, p. 55). Assim, o Papa Francisco, em sua Encíclica Laudato Si’, ressalta que, se é verdade que nós, cristãos, algumas vezes interpretamos de forma incorreta as Escrituras, hoje devemos decididamente rejeitar que, do fato de ser criados à imagem de Deus e do mandato de dominar a terra, se deduza um domínio absoluto sobre todas as criaturas (LS 67). 23 Concebemos, portanto, que todo o mal provocado na natureza tem sua origem na negação da integridade da criação, princípio da sociedade antropocêntrica. Ao confrontarmos essa sociedade com outras formas de organização social – geralmente excluídas e marginalizadas –, onde o imperativo antropocêntrico não domina, notamos uma relação muito mais harmônica, integradora e equilibrada com a natureza, mesmo fazendo uso de instrumentos de intervenção. Isso é facilmente notado nos povos originários da América, como “os povos da floresta”, que interagem intimamente com o ecossistema e, sem dúvida, tornam-se uma realidade integrada. Também notamos a consciência de integridade dos seres vivos nas culturas de origem africana, que mantêm os elementos de sua religiosidade integrados com a natureza, promovendo respeito e proteção ambientais. Dessa forma, “as culturas indígenas e afrodescendentes, mais ligadas à sacralidade da natureza, parecem haver mantido uma sabedoria que se expressa no Bem Viver como paradigma de civilização” (CNBB, 2016, p. 10). Isso contrapõe o paradigma da desintegração, do domínio e da exploração concebida pela sociedade antropocêntrica. O princípio da exclusão, da não integralidade, é, portanto, a nosso ver, o gerador da crise ecológica que se apresenta na atualidade. Entretanto, essa crise ambiental é ampla, envolvendo, além da degradação do ambiente natural, também a degradação da própria estrutura social. O ser humano não se fez senhor somente sobre a criação, mas também sobre o ser igual a si. A humanidade domina e explora os recursos naturais na mesma intensidade e forma que faz com o próprio homem. Por isso, a crise é ambiental e social, pois a raiz geradora é a mesma: a ruptura com o outro (natureza e homem) e a negação da integridade de tudo com todos. O Papa Francisco ressalta que “não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental” (LS 139). E essa realidade se impõe de forma mais drástica aos elementos da natureza e aos pobres, privando-os da sua dignidade e do direito à existência. 24 CAPÍTULO 3 A NECESSIDADE DE UMA CONSCIÊNCIA ECOLÓGICA NO PROCESSO CATEQUÉTICO Uma pergunta para estimular a reflexão: haveria uma corresponsabilidade da tradição judaico-cristã em relação à perda e à salvação do sistema-terra? A resposta à pergunta será possível ao comparar dois discursos que representam dois modos diferentes de ver a questão, assim como suas consequências sociais e teológicas. Uma primeira vertente expressa sua posição da seguinte forma: a Bíblia, por ser a revelação explícita de Deus, é válida para todos os tempos e, por isso, para todos os seres humanos. Esse tipo de atitude em relação ao texto bíblico está fortemente enraizado ao fundamentalismo protestante, um movimento que teve seu início na Inglaterra e nos Estados Unidos, no fim do século XIX. Nascia com a pretensão de ser o verdadeiro cristianismo, limitando-se exclusivamente à Bíblia e à sua interpretação literal, sem recorrer ou aceitar qualquer método extrínseco às Escrituras. Um fundamentalismo que produz uma concepção da realidade ideal (céu), que não necessita inserir-se numa realidade desfigurada (terra), a fim de transformá-la. A segunda vertente aparece em posição contrária à descrita acima. Ela sustenta que se “deve ouvir os textos na sua literalidade como lá estão designados e considerar o tipo de mentalidade que eles alimentaram e favoreceram com conotações inequivocamente antiecológicas” (BOFF, p. 122). Nesse caso, há a necessidade de se admitir uma corresponsabilidade da tradição judaico-cristã pela situação crítica atual. Dois autores guiarão nossos passos, a saber, Leonardo Boff e Jürgen Moltmann, a fim de seguirmos o caminho da integridade da criação, bem como do ser humano. 25 Resumindo o pensamento de Boff A intenção de Boff é demonstrar “os desvios de uma religião que historicamente descumpriu sua função re-ligadora, e assim ajudou no desastre que hoje padecemos” (BOFF, p. 126). Certamente, isso não significa que Boff não encontre nos relatos da criação alguns relatos que permitam observar e reforçar a perspectiva ecológica. Sem dúvida que eles existem. Contudo, ele busca desentranhar outras perspectivas da tradição judaico-cristã que não corroboram a conservação do sistema-terra. A fim de fundamentar sua posição, Boff faz uso de cinco pontos que possibilitam perceber uma forte conotação antiecológica na tradição judaico-cristã. Vamos a eles: 26 Patriarcalismo O mundo social que cerca o Antigo Testamento, bem como o Novo Testamento, é o mundo do sistema patriarcal. E é a partir desse mundo que os testamentos expressam a sua mensagem. De certa forma, essa mensagem já vem precondicionada e carregada quase que plenamente de valores masculinos. Ou seja, nos espaços sociais há uma preponderância do masculino sobre o feminino. Consequentemente, o próprio Deus passa a ser representado como Pai. Se há preponderância do masculino, há também a deslegitimação do feminino. E segundo Boff, “as características femininas e especialmente maternais das divindades anteriores ao Neolítico, que eram de versão matriarcal, são deslegitimadas” (BOFF, p. 123). Um reducionismo que representa uma agressão ao equilíbrio dos gêneros e, portanto, uma ruptura na ecologia social e religiosa. Faz-se necessário esclarecer o uso da expressão “ecologia social”, afinal de contas usamos e entendemos o termo ecologia normalmente em relação ao meio ambiente. Todavia, precisamos perceber que o ser humano e a sociedade sempre estabelecem uma relação com o meio ambiente. Nesse caso, a ecologia seria a ciência que trata do habitat humano e doméstico e, a partir dele, organizaria suas relações a fim de manter a produção e a reprodução da vida. 27 Monoteísmo Com esse tópico, nosso autor não deseja questionar o caráter profundamente monoteísta da tradição judaico-cristã e o princípio único criador e provedor universal, que é Deus. Boff reconhece que “há razões de ordem filosófica e teológica que sustentam o monoteísmo” (BOFF, p. 123). Sua preocupação reside na formulação psicológica e política que o monoteísmo recebeu historicamente. Para ele, o monoteísmo deu passos errados ao dessacralizar o mundo e distingui- lo de Deus, ao separar absurdamente criatura e Criador, mundo e Deus. Dessa forma, o monoteísmo não soube perceber que o universo é portador de mistério e de sacralidade. Seus olhos permaneceram fechados às manifestações do universo e da natureza e, consequentemente, perdeu-se a dimensão das forças do universo e da natureza que estavam substanciadas num mundo de deuses e deusas. Mas devemos ainda perceber uma formulação política quanto ao monoteísmo e suas consequências para o sistema-terra. A derivação política do monoteísmo passa pela justificação do autoritarismo e pela centralização do poder. O argumento para semelhante derivação é por demaisóbvio: assim como há um só Deus no céu, deve haver um só senhor na terra e, por conseguinte, um só chefe religioso, uma só pessoa para liderar a família etc. Segundo Boff, encontramos aqui a expressão mais redutora e exclusivista, pois afirma que somente o ser humano, homem e mulher, assumira a representação de Deus na criação. Só deles se diz que são imagem e semelhança divina (Gn 1,26). Só deles se crê que prolongam o ato criador de Deus e, por isso, possuem uma centralidade, negada aos demais seres que também são imagem e semelhança de Deus, e por sua ação evolutiva atualizam e prolongam a vontade criadora divina (BOFF, p. 125). 28 Antropocentrismo Os textos bíblicos trazem à tona um ser humano arrogante. Seu domínio sobre a Terra deve ser irrestrito e o seu crescimento demográfico ilimitado. Cito os textos: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves dos céus [...]” (Gn 1,28); “Sede fecundos, multiplicai, povoai a terra e dominai-a” (Gn 9,7); “E o fizeste pouco menos de um deus [...] para que domine as obras de tuas mãos; sob seus pés tudo colocaste: ovelhas e bois, a ave do céu e os peixes do oceano [...]” (Sl 8,6-8). 29 Ideologia tribalista da eleição Outro elemento que possibilita um discurso antiecológico a partir dos relatos bíblicos seria a absolutização de uma mensagem única por parte de um grupo, o qual se sente eleito e portador da mais pura e cristalina verdade. Nesse caso, estaríamos presentes diante de uma lógica da exclusão, gerando todo tipo de fundamentalismos e sectarismos. A partir dessa compreensão, todos os que são ou pensam de forma diferente devem ser submetidos à visão única do dogma proposto pelo grupo. Nega- se, portanto, a solidariedade universal e restringe-se o mundo a apenas alguns poucos privilegiados. 30 A queda da natureza Textos bíblicos como “maldita seja a terra por tua causa” (Gn 3,17), “decidi acabar com toda a carne porque a Terra está cheia de vícios por causa do homem” (Gn 6,13), revelam, para Boff, que o mundo perdeu seu caráter sagrado e agora vive regido pelo símbolo do que é amaldiçoado ou ainda do demônio. Por causa do pecado humano, a Terra, com tudo o que nela existe, passa a ser castigada. Seria o comportamento humano pecaminoso o responsável fundamental pela decadência, corrupção e pecaminosidade da Terra. Nada mais simplista do que esse tipo de leitura, diz Boff, pois “nem tudo o que acontece, de bom e de mau, deve ser imputado aos comportamentos do ser humano” (BOFF, p. 127). A consequência de semelhante interpretação é que acabou por levar os cristãos a valorizar muito pouco este mundo e até mesmo dificultando um projeto que compreendia o mundo a partir da beleza, do prazer e da realização da natureza. 31 O pobre como o ser mais ameaçado da natureza O ser mais ameaçado da natureza atualmente é o pobre. São milhões e milhões de pobres espalhados pelo mundo inteiro que sofrem a ação de empobrecimento e de miserabilidade, aumentando assim o rompimento do tecido social que se encontra tão fragilizado. Deve-se entender, portanto, o pobre como um membro da natureza e, consequentemente, qualquer agressão a ele representaria, também, uma agressão ecológica. Para Boff, o ser humano “mais que um ser na Terra é um ser da Terra. Ele é a expressão até hoje mais complexa e singular da Terra e do cosmo conhecido. O homem e a mulher são a Terra que pensa, que espera, que ama, que sonha e que entrou na fase de decisão não mais instintiva, mas consciente” (BOFF, p. 166). Terra e humanidade constituiriam então uma única entidade. A religião deve necessariamente vincular seu discurso e prática a partir do específico, e não do genérico. E, por isso, perceber que tem em mãos uma grande responsabilidade que funda suas raízes na ecologia social: como os seres humanos se relacionam entre si e como se organizam em suas relações com os demais seres da natureza. Não é possível fechar os olhos aos números que informam a respeito do caos ecológico, já instalado em nossa sociedade. Não há como fechar os olhos e ouvidos diante do grito de quinze milhões de crianças que morrem antes de concluir o quinto dia de vida em razão da fome ou das doenças relacionadas à fome; nem do grito mais intenso de 150 milhões de pessoas subnutridas e ainda do subgrito de 800 milhões de pessoas que vivem permanentemente com fome, segundo estatísticas da ONU (Organização das Nações Unidas). Qual a esperança para os seres mais ameaçados da criação? Qual a esperança do mundo de dois terços pobres da humanidade? De que forma nossa catequese e espiritualidade poderiam responder tais perguntas? 32 Resumo do pensamento de Moltmann Porque Deus é o Criador do mundo e o próprio autodeterminador da criação, Ele seria o maior interessado na preservação do sistema-terra. A leitura dos textos bíblicos que resulta desse tipo de compreensão faz transparecer uma interpretação que procura, a todo custo, integrar o ser humano com a criação e seu Criador. Não há, portanto, qualquer corresponsabilidade da tradição judaico-cristã diante da crise ecológica atual. Na verdade, Deus seria o primeiro ecologista do universo. Percebe-se que o nosso autor não está interessado em defender a história concreta do cristianismo. Afinal, ele mesmo percebe, em outros livros, que a interpretação que se deu aos textos bíblicos ao longo da história possui terríveis deformações. Segundo Moltmann, Deus criou o mundo por causa do amor e a partir de sua liberdade. Portanto, Deus criou o mundo por um ato de vontade. Consequentemente, o mundo não se identifica com Deus, mas sim dele é diferenciado. A criação torna-se decisão soberana de Deus que cria tudo a partir do nada. Contudo, Moltmann faz questão de destacar que o fato de Deus criar algo que é diferente dele não impede que a criação tenha com Ele correspondência. Na verdade, segundo o autor, essa correspondência está fundamentada no amor de Deus que o leva a dar algo de si para o seu projeto criacional. Há uma relação intrínseca de Deus com o mundo. A causa primeira do mundo é Deus e, por isso, Deus está vinculado ao mundo. O mundo não seria mera causalidade, mas sim destino de Deus. Portanto, nas relações e inter-relações entre ambos, Deus se encontra obrigado a manter o sistema-terra. As indagações de Moltmann merecem ser registradas: “Como poderia o Deus criador, que cria do nada, ser desviado do seu propósito e do seu amor pelos crimes que ocorrem na sua criação?”, e continua: “Quem, qualquer que seja o seu temor apocalíptico, espera a destruição do mundo, nega o Criador do mundo” (MOLTMANN, p. 144). A indagação do autor nos leva a concluir que o próprio Deus toma parte no destino de sua criação e Ele mesmo experimenta as destruições que nela acontecem. Há em Deus uma expectativa por redenção e liberdade pela natureza. E diante da dor da natureza, o Criador se compromete com a sua criação. Ele é capaz de sofrer por aquilo que criou. Ele deseja, a partir do amor, preservar o sistema-terra. Sem sombra de dúvida, nesse ato criacional de Deus, o ser humano tem seu lugar específico. Todavia, a especificidade do lugar não o leva a ter preeminência em relação às demais coisas criadas. O ser humano vive em inter-relações e contextos num ambiente de troca socioambiental. A partir desse aspecto, pode-se falar como “criatura na comunhão da criação” (MOLTMANN, p. 273). Isso nos leva a perceber que o ser humano, longe de se entender como imagem de Deus, deve antes ser percebido como imagem do mundo em estreita relação com todas as outras criaturas. De fato, não se busca potencializar o antropocentrismo, mas sim perceber os aspectos relacionais de estreita dependência do ser humano com todas as outras criaturas. 33 Ao evitar a potencialização acima referida, descobre-se que o ser humano é uma criatura entre tantas outras. Na comunidade da criação, o ser humano está inserido; é membro dela, e não seu senhor. Não exerce domínio senhorial sobre o sistema-terra, mas dele é dependente em suas relações detrocas e sobrevivência. Não está acima, mas lado a lado. Não é diferente, mas igual. O pensamento ecoteológico de Moltmann reflete a plena consciência ecológica que está latente no ser humano. Esse é, sim, imagem de Deus, mas também imagem do mundo. E é nesse encontro, nessa síntese de imagens que prevalece a opção ecológica inevitável a todo ser humano. Ele vive, fala e age pelo mundo. Ele é sacerdote para o sistema-terra e dele faz o seu sacramento. Percebe-se que a natureza, nesse caso, surge como uma extensão do corpo físico e também do corpo social, onde vive o ser humano em suas relações comunitárias com outros seres humanos e, logicamente, com as outras criações, e em estreita interdependência. 34 Análise das reflexões de Boff e Moltmann Afinal, existiria ou não uma corresponsabilidade do cristianismo para a perdição do sistema-terra? Nesse caso, qual autor está correto em sua análise? Provavelmente, ambos estão certos, apenas partem de um referencial socioecológico distinto. É imprescindível destacar que a crise ecológica instalada em nosso mundo deve-se muito ao caráter cristão, o que é claro nos dois autores. Entretanto, parece que os dois autores começam a trilhar caminhos separados em duas questões fundamentais: a primeira diz respeito à noção de “ecologia social”, muito utilizada por Boff. É a partir da ecologia social que ele insere a questão do pobre. Nesse caso, o autor passa a trabalhar com conceitos mais específicos e colocando os mais gerais à margem. Assim, ele passa a falar do “pobre”, e não mais do “ser humano” ou “pessoa”. Ao que parece, a noção de ecologia social não está presente no pensamento de Moltmann e, por isso, a questão do pobre como a criatura mais ameaçada do planeta torna-se uma questão mais secundária. A segunda questão fundamental diz respeito ao tipo de leitura que os autores estão realizando: ambos conseguem perceber que há relatos bíblicos da criação que possibilitam uma leitura antiecológica, e outros que possibilitam uma leitura da funcionalidade do ser humano enquanto guardião da criação. A questão prende-se, portanto, ao modo como eles leem o texto bíblico. Boff, percebendo que a história produzida pela tradição judaico-cristã em relação à ecologia produziu graves consequências para a natureza, faz uma leitura histórica de como os textos bíblicos foram interpretados, produzindo assim a corresponsabilidade do judeu-cristianismo na crise do sistema-terra; Moltmann, por sua vez, lê os relatos da criação a partir do ideal que já está presente nos próprios relatos. Não busca averiguar as interpretações ocorridas no processo histórico e suas possíveis consequências. Ambos os autores estão certos, porque partem de premissas diferentes: o ponto de partida de Moltmann é Deus, enquanto o ponto de partida de Boff é o judeu-cristianismo histórico. Enquanto um parte do ideal (Moltmann), outro lê a precariedade do real através dos óculos do ideal (Boff). Chegamos a um impasse: afinal, se ambos os autores estão certos, como explicar uma forte tendência presente no cristianismo contemporâneo de menosprezo pelo sistema-terra? 35 A hipótese da brutalização das relações Na verdade, estamos num impasse acerca de duas visões a respeito de cristianismo e de ecologia. O impasse se fundamenta principalmente numa questão: Por que um ideário belo como do cristianismo, apresentado por Moltmann, pôde gerar um cristianismo histórico tão brutalizado e antiecológico? Sem dúvida que, no processo de cristalização do cristianismo nas mais diversas comunidades, aconteceu uma apropriação indevida dos textos bíblicos. Deve-se notar que o ideal foi trocado pela construção do utópico, através das práticas das comunidades cristãs. As comunidades procuraram a intermediação do ideal a partir da “negação do mundo” e, consequentemente, de sua substituição. Procura-se destruir para, enfim, se possível, reconstruir. Destruir... nada mais antiecológico, nada mais brutal e destrutivo para as relações socioecológicas. Mas como entender esse processo brutalizador da vida e do cristianismo? Uma possível resposta é a da brutalização ou da destrutividade, presente nos discursos de muitos cristãos, ou seja, um menosprezo indisfarçável pelo “mundo”= sistema-terra que terá um fim catastrófico. Enfim, de que vale cuidar de um sistema que está condenado pelo próprio Deus à destruição total? De que valem ações que possibilitem salvaguardar o grito da terra e o grito do pobre se a história caminha para o seu fim? Perguntas que refletem e postulam um suicídio coletivo da natureza. Busca-se encontrar na destruição a solução dos conflitos que se fazem permanentes. E, enquanto tal situação vai se postergando, todo ato de socorro é completamente desnecessário. Todavia, como podemos perceber a gênese da brutalização em ambiente cristão? Percebe-se a partir da brutalização das relações humanas e da natureza. De certa forma, a brutalização nas/das relações humanas desencadeia um processo de destruição da natureza. Parece que a violência está impregnada na vida humana. É necessário ser agressivo para sobreviver e a violência só deixaria de ser necessária a partir de novos atos de violência. Certamente, esse tipo de relação é recorrente: combate-se a brutalização através de atos brutais para que não haja, algum dia, atos brutais nas relações humanas e ecológicas. Hinkelammert nos ajuda a entender melhor nossa hipótese. A partir do mito grego de Ifigênia, ele elabora a importância do mito para a autoconsciência da sociedade burguesa. A situação fundamental do sacrifício de Ifigênia é a seguinte: Ifigênia é filha de Agamenão, rei grego, e de sua esposa Clitemnestra. Agamenão é comandante do exército grego, que se reunira em Áulide para sair para a conquista de Troia. Não obstante, produziu-se uma calmaria dos ventos, de tal maneira que o exército não pôde partir nos navios. Perguntando aos deuses pela razão, a deusa Minerva comunica que somente o sacrifício de Ifigênia, a filha de Agamenão, pode apaziguar sua fúria. O exército exige que se faça esse sacrifício. Em consequência, Agamenão traz Ifigênia a Áulide, enganando Clitemnestra para que a esposa entregue a filha. 36 Chegando a Áulide, ele oferece em sacrifício sua filha, a primogênita de seus filhos, à deusa Minerva. Realizado o sacrifício, o vento volta, o exército parte, conquista e destrói Troia. Percebe-se que a relação entre o sacrifício e a vitória passa pela violência legitimada pela religião: a fúria da deusa somente pode ser apaziguada através de uma vítima sacrificial. Não importando se a vítima, no caso em questão, é a própria filha do comandante do exército. O resultado do sacrifício da vítima é infinitamente maior do que o não sacrifício. Na ordem do dia está o próprio comandante: se ele voltar de Troia derrotado, também será julgado por assassinato, mas voltando vitorioso estará isento de toda e qualquer culpa. A violência em relação à vítima sacrificial deu resultado! Nesse caso, a brutalização das relações não somente tem lugar a partir das relações religiosas, mas também com a modernidade. Ou seja, o discurso religioso aos poucos acaba por ser substituído pelo discurso social da modernidade. Se o paradigma das relações sociais e ecológicas é o céu, se faz necessário “construir” efetivamente o céu na terra, mesmo que para isso seja necessário o sacrifício brutal de seres humanos. Afinal, o sacrifício é por uma boa causa. Sacrifica-se por uma causa nobre. Sacrifica-se para que não haja mais sacrifícios. Mas, até quando? O círculo é vicioso. É um círculo sacrificial. A construção de um mundo sem sacrifícios é ininterrupta. Todo aquele que manipula a violência acaba, fatalmente, sendo manipulado por ela. Enquanto o céu não se instalar plena e totalmente, o círculo sacrificial continua a rodar pela história da humanidade. Mas ainda se faz necessário responder a mais uma pergunta: seria possível recuperar um cristianismo ecológico? A resposta, decididamente, é sim! O próprio Boff nos ajuda nessa questão ao apresentar São Francisco deAssis como um modelo de postura ecológica e contrário à brutalização da vida. Afinal, não cabe em seu pensamento e também não deveria caber no nosso a concepção de comprar ou vender o céu ou ainda o calor da terra. A relação com a natureza não é de caráter mercantil, mas sim de cumplicidade na sobrevivência. Francisco de Assis nos apresenta um paradigma que nos coloca com a natureza como irmãos e irmã, em contraposição ao paradigma da brutalização que nos coloca sobre a natureza como senhores. Assim, diante da brutalização da vida, São Francisco nos apresenta uma atitude alternativa e de recuperação do cristianismo: uma atitude que se confraterniza, se enche de compaixão e respeito diante de cada representante da comunidade cósmica e planetária. Procura-se resgatar a centralidade do sentimento e a importância da ternura nas relações humanas e cósmicas. São Francisco é, na verdade, o paradigma que nos ensina a viver adequadamente numa casa planetária comum, mas também a viver bem com todos os existentes nessa casa comum! A brutalização leva-nos ao distanciamento do grito da terra, bem como do grito dos pobres, e faz com que as relações entre as criaturas sejam de dominação, e não de ajuda; cria mundos diferentes, para que na diferenciação haja a possibilidade de domínio do ser humano sobre outros iguais e sobre a própria natureza. 37 Começa desse modo uma ruptura na maneira de se perceberem as relações necessárias para a sobrevivência do sistema-terra: a natureza deixa de ser tratada como “tu” e passa a ser tratada como “isso”. Perde-se o diálogo pessoal e próximo com a natureza, bem como o que está por detrás dela e a sustenta. Quebra-se um trinômio que deveria ser indissolúvel para a promoção da vida: Deus, o ser humano e a terra. E enquanto o trinômio estiver partido, somente se poderá falar da “falta de vida” ou ainda de vida “infra-humana”. Não se poderá ver a vida como plenitude, mas sim enquanto imagem pálida de homens, mulheres e meio ambiente que persistem em sobreviver. Torna-se necessário assumir de forma coletiva nossa responsabilidade pela criação do mundo e de nós mesmos. Caso contrário, corremos o sério risco de manter o espírito de brutalização presente em nós. Não podemos nos esquecer de que a urgente necessidade de sobreviver é universal: e as necessidades fundamentais de sobrevivência, liberdade, justiça e respeito são comuns a todas as pessoas, e também à natureza. Devemos nos ver como expressões de um mesmo corpo vivo comum, com toda a terra, as estrelas, as galáxias, enfim, com todo o cosmos. Precisamos reconhecer que o social, o ecológico e o religioso se encontram cada vez mais intimamente ligados. A consequência de tal percepção nos levará a reconhecer como um único e mesmo corpo, em uma profunda interdependência, de tal forma que, se eliminarmos uma parte, todo o corpo se sentirá agredido. 38 CAPÍTULO 4 ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICA COMO RESPOSTA À CRISE SOCIOAMBIENTAL A superação da crise socioambiental transpõe a mera promoção de ações desintegradas que visam à preservação ou recuperação ambiental, ou mesmo à aplicação de nova tecnologia menos invasiva ou poluente. É necessária uma nova forma de autocompreensão do ser humano junto à criação, capaz de ressignificar sua existência e promover as transformações necessárias em prol de uma nova sociedade integrada – homem e criação. Para isso, são necessários não só conceitos teóricos, normativos ou mesmo o conhecimento sobre tal necessidade, mas sim uma nova espiritualidade capaz de movimentar todas essas transformações, pois “não é possível empenhar-se em coisas grandes apenas com doutrinas, sem uma mística que nos anima, sem ‘uma moção interior que impele, motiva, encoraja e dá sentido à ação pessoal e comunitária’” (LS 216). Assim, é necessária uma espiritualidade que corresponda aos desafios atuais de envolver, na compreensão do ser humano, toda a dimensão da ecologia integral. Segundo a interpretação grega neoplatônica, que dualiza corpo e espírito, a espiritualidade era compreendida como uma dimensão extracorpórea. A partir da maior valorização do espírito sobre o corpo, via-se neste apenas uma matéria à qual o espírito estava momentaneamente preso e que alcançaria a liberdade após a morte. O corpo seria, portanto, algo a ser superado e a plenitude do ser estava em sua dimensão espiritual. Ventura expressa que “o pensamento dualista é polarizado e excludente; não apenas fragmenta a pessoa em si mesma, mas também impede os vínculos, a afetividade, os intercâmbios” (VENTURA, 2010, p. 65). A segregação dessas duas dimensões, corpo/espírito, resultou num desgaste da dimensão espiritual, pela manipulação teórica e prática que a reduziu a “uma esfera distante da vida real, espiritualismo desencarnado, e fuga do compromisso” (CASALDÁLIGA, 2003, p. 7). Essa visão é contrária à concepção da cultura semita, apresentada nos textos bíblicos, constituindo-se mais integradora que a visão grega (cf. CASALDÁLIGA, 2003, p. 7). A cultura semita compreende o ser humano em uma unidade, referindo-se a ele como basar (carne, corpo), nefesh (vida) e ruah (espírito), entendendo “unitariamente o ser humano como ‘espírito corpóreo’ ou como ‘carne espiritual’, que vive e tem nome” (SCHWANTES et al., 1991, p. 61). Nas cartas paulinas, encontramos referências ao “homem espiritual” (cf. 1Cor 3,1-2), mas, de acordo com a mentalidade do Novo Testamento, o termo “espiritual” não pode ser entendido como o oposto ao material. Assim, o conceito da dimensão espiritual do ser humano corresponde a 39 um dinamismo de existência pela qual a pessoa toma decisões, faz escolhas motivadas e positivas [...], é o homem no seu dinamismo decisorial, animado e especificado, transformado e potencializado pelo Espírito de Deus, que entra na comunicação criativa e oblativa (SECONDIN, 2002, p. 35). A visão dualística entre as dimensões corporal e espiritual tem sido substituída por uma visão “holística de espiritualidade”, como apresentada por Boff (2002, p. 52- 56), que reconhece múltiplas dimensões do ser humano, que coexistem e se interpenetram, apresentando três dimensões: a exterioridade (corpo), a interioridade (mente) e a profundidade (espírito). Em termos cristãos, a espiritualidade diz respeito a como as pessoas se apropriam de modo subjetivo de crenças tradicionais sobre Deus, a pessoa humana, a criação e seu inter-relacionamento, e então as expressam na adoração, nos valores básicos e no estilo de vida. Assim a espiritualidade é o todo da vida humana visto em termos de uma relação consciente com Deus, em Jesus Cristo, por meio da morada interior do Espírito e dentro da comunidade de crentes (SHELDRAKE, 2005, p. 53). Desse modo, a espiritualidade envolve toda a dimensão humana, seu pleno existir, e não está meramente relacionada a práticas de ritos ou regras normativas religiosas, mas compreende a forma como o ser humano se apresenta perante sua própria existência, suas práticas, valores e modos de se organizar socialmente. Entretanto, a espiritualidade não pode ser compreendida apenas como uma manifestação de uma realidade religiosa, pois, “antes de ser uma expressão das religiões ou dos caminhos espirituais instituídos, é uma dimensão do ser humano” (BOFF, 2002, p. 53). A espiritualidade compõe a plenitude do ser humano, é o sentido que o anima e impele para a busca de um existir significante, fazendo com que “homens e mulheres possam encontrar sentido e valor naquilo que fazem e experimentam” (VENTURA, 2010, p. 67). Assim, é possível dialogar sobre uma espiritualidade dinamizadora das transformações necessárias em prol do bem comum, pois a crise socioambiental exige o comprometimento de todos os seres humanos, e todos somos seres espirituais. Nesse sentido, é preciso reinventar a humanidade, articular uma nova experiência fundacional e desenvolver uma nova espiritualidade que permita uma singular e surpreendente nova re-ligação de todas as nossas dimensões com as mais diversas instâncias da realidade planetária, cósmica, histórica, psíquica
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