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Catequese e ecologia_ espiritualidade ecológica e catequese responsável - Érica Daine Mauri

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2
SUMÁRIO
Capa
Rosto
Apresentação
Capítulo 1 - A integridade da criação
A integridade da criação em Gênesis 2,15
A integridade da criação na atual cosmologia
O ser humano e seu papel na criação: cultivador e guardião
Capítulo 2 - Crise socioambiental: degradação da natureza
Crise socioambiental: degradação da dignidade humana
A negação da integridade da criação como base da sociedade antropocêntrica
Capítulo 3 - A necessidade de uma consciência ecológica no processo catequético
Resumindo o pensamento de Boff
Patriarcalismo
Monoteísmo
Antropocentrismo
Ideologia tribalista da eleição
A queda da natureza
O pobre como o ser mais ameaçado da natureza
Resumo do pensamento de Moltmann
Análise das reflexões de Boff e Moltmann
A hipótese da brutalização das relações
Capítulo 4 - Espiritualidade ecológica como resposta à crise socioambiental
A dimensão comunitária na responsabilidade e no cuidado da criação
Capítulo 5 - Pastoral e catequese ecológica: uma resposta consciente da Igreja à crise socioambiental
Perspectivas para a prática comunitária
a) Ações pastoral-catequéticas
b) Ações pastoral-práticas
c) Ações pastorais político-sociais
Apêndice: Leitura dirigida para utilizar em grupos de reflexão catequética
1. A brutalização da vida
2. A emancipação do ser humano na construção de um planeta saudável
3. É possível recuperar um cristianismo ecológico?
4. Sobre a descartabilidade humana
5. Uma ameaça paira no ar
Referências bibliográficas
Coleção
Ficha Catalográfica
Notas
3
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APRESENTAÇÃO
No início havia um jardim e, nele, o privilégio de habitá-lo e de cuidá-lo. Um
jardim que exigiria a responsabilidade de um para com o outro, mas também dos
seres humanos para com a criação de Deus. O ser humano colocado no jardim se
torna o primeiro dos jardineiros. Deus cria e concede o privilégio do cuidado da sua
criação ao ser humano. Nesse sentido, mais do que jardineiro, o ser humano se
percebe como mordomo da criação.
A imagem do jardim, portanto, traz à memória responsabilidade. A partir do
jardim, da integridade da criação, somos chamados a exercer um cuidado responsável
ou vivenciar uma espiritualidade concreta. Dessa forma, a espiritualidade que nasce
no jardim não pode ser pensada como algo que nega a materialidade. Trata-se de uma
espiritualidade ecológica, a qual assume uma relação de responsabilidade com nossos
irmãos menores. Uma espiritualidade ecológica leva à construção de uma catequese
responsável.
Todavia, o tempo em que vivemos nos desafia com uma grande e perigosa
tentação: a possibilidade de viver uma “espiritualidade de produção”, ou seja,
queremos e buscamos um Deus que funcione! Certamente, deveríamos rever muitos
dos nossos conceitos, e para ajudar nesse processo de bem refletir, Santo Agostinho é
de uma ajuda inestimável, quando questiona: “O que buscamos quando buscamos a
Deus?”.
Para muitos, a espiritualidade pode estar sofrendo de uma extrema parcialidade.
Apresenta-se, portanto, como uma patologia redutora e que impede de perceber a
plenitude da verdadeira espiritualidade, centrada na vida de Jesus. Mas como é difícil
a imitação de Cristo, seu seguimento e, muito mais, nos conformar com o Cristo na
estrada do discipulado! Não haveria um Evangelho mais fácil e com menos
exigência?
Mais vale, para alguns, viver perdidos em simulacros de vida cristã e, assim,
transformar a espiritualidade em uma teologia positiva, feito Ali Babá, que ao se
expressar de forma correta fazia com que a montanha se abrisse diante de seus olhos.
Na verdade, não queremos Deus, mas sim uma corporação religiosa que nos ensine os
segredos da vida e nos conduza ao aburguesamento da fé. Preferimos um Deus
domesticado e engaiolado que esteja sempre à nossa disposição.
Não queremos Jesus com suas exigências de discipulado. Desejamos de todo o
coração uma religião absolutamente pragmática e de respostas imediatas. Não
queremos estudar a Bíblia e, por isso, fugimos de qualquer reflexão crítica que nos
leve a qualquer tipo de compromisso que implique perda de lucros materiais.
Queremos homilias bem preparadas, desde que elas afaguem nosso ego e nos
lembrem, constantemente, das muitas promessas que precisamos “reivindicar” e que
4
evitem, acima de tudo, chamar nossa atenção para uma transformação interior. Não
queremos discipulado. Buscamos, sim, uma graça barata!
Os desafios apresentados pela atual crise socioambiental são amplos e complexos.
Nesse sentido, é urgente uma nova visão das atitudes ecológicas do ser humano,
levando-o a desenvolver formas de cuidado e proteção das relações de vida. É
necessário resgatar a realidade da integridade e interdependência entre todos os seres
vivos. Nessa dimensão, o ser humano ressignifica o seu existir e religa-se à sua
missão de servo e mantenedor da vida, “cultivando” e “guardando” a criação –
compreendida na sua plenitude. É preciso compreender a dimensão do cuidado e
proteção como princípio da própria fé cristã, dinamizada por meio da espiritualidade
ecológica e de uma catequese socialmente responsável.
Catequese responsável e espiritualidade ecológica deveriam ser compreendidas
como irmãs gêmeas.
5
CAPÍTULO 1
A INTEGRIDADE DA CRIAÇÃO
O termo integridade pode ser definido como algo inteiro, completo; caráter
daquilo a que não falta nenhuma das suas partes. A relação do ser humano com o
cosmos deve ser construída a partir desse princípio de integridade, capaz de
compreender a vida interligada, em que o ser humano e a criação não são partes
desconexas, mas um “todo” complexo e harmônico. Segundo Dias, “a noção de
integridade, isto é, o universo ajustado na sua totalidade, implica uma forte
interdependência para que sejam possíveis a harmonia e a plenitude entre todos os
seres, para que haja um equilíbrio de forças” (DIAS, 2012, p. 26). Assim, todos os
elementos e dimensões que compreendem a criação – cosmos, elementos físico-
químicos, plantas, animais e seres humanos – encontram-se intimamente integrados e,
por isso, necessitam ser concebidos dentro de uma inter-relação que os une.
Compreender o universo a partir do princípio da integridade não é uma novidade
produzida pela sociedade atual. Tal concepção pode ser encontrada nas culturas
originárias da América, da África e da Ásia. Todas elas buscam entender a vida a
partir de dentro das suas diversas relações, compreendendo a natureza como uma
grande família, por meio de um espírito integrador, que une todos numa única “teia
da vida”, concedendo, a todas as criaturas, a dimensão de irmandade. A esse respeito,
a carta do cacique Seattle para o governo dos Estados Unidos relata:
Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores perfumosas são nossas irmãs; os gamos, os cavalos,
a majestosa água, todos são nossos irmãos. Os picos rochosos, a fragrância dos bosques, a energia vital
do pônei, o homem, tudo pertence a uma só família (FÁVERO, 1981, p. 174).
A concepção de integridade da criação, reconhecida e valorizada pelos povos
originários, também é encontrada na tradição cristã ao ser resgatada por São
Francisco de Assis (séc. XII), que atribuía aos elementos da natureza a categoria de
irmãos e irmãs, tornando toda a criação uma única família concebida por Deus, como
se apresenta no Cântico à irmã mãe Terra:
Irmã Mãe Terra, quero dormir em tuas entranhas. Mas antes de adormecer, escuta as batidas agradecidas
de meu coração. [...] Obrigado, Irmã Terra, por teus ventos e brisas. Eles nos refrescam, no verão,
esparramam, em suas asas, as sementes de vida e movem as pás dos moinhos. Obrigado, Irmã Terra,
pelas hortaliças, os trigais, os pomares, as fontes de água fresca, pelas árvores onde os pássaros fazem os
ninhos. Obrigado, Irmã Terra, pelo berço que emprestas para dormirmos o sono eterno (LARRAÑAGA,
1980, p. 391).
Nessa mesma linha, a “Carta da Terra”[1] reforça que, “para seguir adiante,
devemos reconhecer que, no meio de uma magnífica diversidade de culturas e formas
de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestrecom um destino
6
comum” (CARTA DA TERRA, 2000). Assim, o ser humano encontra-se integrado a
todos os elementos naturais desde a sua origem.
7
A integridade da criação em Gênesis 2,15
Ao analisarmos o relato da criação, contido no texto de Gênesis 2,4b-25,
percebemos que o ser humano dispõe de uma responsabilidade e de uma missão
diante da criação, instituídas pelo próprio Criador. A missão de “cultivar e guardar o
jardim” só pode ser exercida mediante a relação entre o ser humano recém-plasmado
e o “jardim” criado. Assim, encontramos, no v. 15a, a dimensão integradora entre o
ser humano e o jardim, constituída por Deus: “Javé Deus colocou o homem no jardim
de Éden” (Gn 2,15a).
Lemos no texto bíblico que o ser humano é modelado a partir do pó do solo
(‘adamah), mesmo antes da formação dos demais elementos pertencentes à criação
(v. 7). Quando o ser humano se torna um ser vivente, imediatamente Javé Deus planta
um jardim no Éden, com o intuito de ali colocar o ser humano que havia modelado (v.
8). Após o detalhado relato da constituição desse jardim e depois de estabelecidos os
primeiros elementos para sobrevivência do ser humano – águas (v. 10), árvores
agradáveis e boas para comer (v. 9) –, segue o relato do v. 15, no qual Javé Deus
colocou o ser humano no jardim e o apresentou à sua missão como fruto dessa
integração.
Notamos, assim, a intrínseca relação existente entre o ser humano e o “jardim”
(com as demais criaturas). O homem é pensado na perspectiva do jardim – “e não
havia ser humano que cultivasse o solo” (v. 5b) –, e o “jardim” é pensado na
perspectiva do ser humano – “plantou um jardim e aí colocou o homem” (v. 8).
Enfim, a criação de um acontece em perspectiva do outro; ambos se integram
mutuamente. O ser humano introduzido no “jardim” passa a integrar, participando
delas, suas relações e a ser responsável por elas – “cultivar e guardar”. Mesmo que no
relato bíblico o ser humano e o jardim sejam concebidos em momentos distintos,
desde o início permanece a expectativa da criação do outro e do momento da união
entre eles, da coexistência relacional e integradora que plenifica a existência de
ambos: ser humano para o jardim e jardim para o ser humano.
Assim, não podemos compreender a criação do ser humano separada das demais
criaturas – mesmo que isso tenha ocorrido em tempo/espaço distintos. A humanidade
é concebida junto com as demais criaturas, integrada e não separada, superior ou fora
da criação. Aquela compartilha a mesma origem e os mesmos elementos originários
com esta, como percebemos no v. 19 referindo-se à modelagem dos animais a partir
do pó do solo (‘adamah), tal como a origem do próprio ser humano, que também é
modelado a partir do ‘adamah (v. 7). O relato bíblico refuta, portanto, uma visão
antropocêntrica em que as criaturas existem para a satisfação da humanidade, ou seja,
numa visão linear em que tudo foi criado para o usufruto do ser humano, sendo este o
senhor de toda a criação.
A relação de integridade entre o ser humano e o “jardim” é o que mantém a vida
criada. Nessa relação, o “jardim” mantém o ser humano, provendo-lhe alimento,
8
comunidade, relação com Deus; e o ser humano mantém o “jardim” ao cultivá-lo e
guardá-lo. Estão integrados, relacionam-se mutuamente e reciprocamente se mantêm.
O humano criado pressupõe o “jardim” imediatamente estabelecido, e o “jardim”
pressupõe a existência do humano. A relação é existencial, é pressuposto de vida. O
ato original é de Deus, Ele cria o ser vivo humano e cria o ser vivo “jardim”, porém a
manutenção da vida se dá na integridade da relação entre ambos, na diaconia entre a
criação – entre homem e “jardim”.
A diaconia se manifesta como um serviço do cuidado realizado pelo homem em
prol do “jardim”, mas há também um servir cuidadoso do “jardim” para com o adam,
que lhe permite existir. Portanto, é nessa relação que o ser humano mantém-se como
um ser vivente, e não apenas como ‘adamah. O que conecta o homem ao “jardim”
não é o pó do solo, ou seja, apenas os elementos químicos que compartilham, mas a
dimensão consciente de sua existência, a missão de “cuidar” e “guardar” as relações
de vida. E, nessa íntima integridade, o bem do “jardim” é o bem do ser humano, ao
mesmo tempo em que o mal de um é o mal do outro.
O ser humano plasmado fora do jardim é introduzido por Deus como completude
da criação. É somente após a integração de ambos que o relato prossegue, passando-
se para o momento da criação dos animais e da criação da mulher, ou seja, a
plenificação da criação pressupõe a existência relacional e integrada entre o ser
humano e o “jardim”. Somente assim a criação pode ser completada – a dimensão
comunitária (animais, mulher) é pensada após o estabelecimento da relação integrante
homem/jardim. A comunidade de “companheiros”/ “semelhantes” (v. 18) pressupõe a
dimensão unitária e coexistencial entre o homem e o “jardim”.
Nesse sentido, a humanidade participa da mesma realidade criacional, forma um
continuum com todos os elementos, com o universo; participa e compartilha a mesma
natureza que todo o “jardim”, sendo igualmente criaturas; integradas entre si,
correlacionam-se e coexistem, salvaguardando-se mutuamente.
9
A integridade da criação na atual cosmologia
A visão de uma criação integrada é parte da construção da nova cosmologia, uma
cosmovisão ecológica, que sintetiza a compreensão de “um universo muito velho,
incompreensivelmente grande, profundamente dinâmico e envolvente, interligado de
forma complexa” (DIAS, 2012, p. 28). Boff define cosmologia como “a imagem do
mundo que uma sociedade se faz, fruto da ars combinatoria dos mais variegados
saberes, tradições e intuições. Essa imagem serve de re-ligação geral e confere a
harmonia necessária à sociedade” (BOFF, 2015, p. 79).
Na cosmologia atual, fruto das novas descobertas das ciências física
(principalmente a quântica), biológica (principalmente a genética e a ecológica),
cósmica e das reflexões filosóficas, compreende-se que o universo e todos os seus
elementos são frutos de um longo processo de cosmogênese, no qual “todos os fatores
que entram na constituição de cada ecossistema com seus seres e organismos
possuem sua latência, sua ancestralidade e, em seguida, sua emergência” (BOFF,
2015, p. 53). Dias aponta que “a ciência, embora não tenha encontrado uma teoria
irrefutável da origem do universo, mostra-nos a inter-relação, a interdependência, a
ligação dos organismos vivos ao seu meio ambiente” (DIAS, 2012, p. 31).
Nessa concepção, o ser humano também é resultado desse processo originário – a
cosmogênese –, assim como todos os demais seres. O ser humano encontra-se,
irrefutavelmente, numa solidariedade de origem e também de destino com todos os
seres do universo, apresentando-se integrado a estes. Por essa razão, o ser humano
não pode “ser visto fora do princípio cosmogênico [...], como um ser errático,
enviado à Terra por alguma divindade. Todos são enviados pela Divindade, não
apenas o ser humano” (BOFF, 2015, p. 54).
Assim, o ser humano é compreendido como parte integrante da criação e fruto do
mesmo processo originário, superando a concepção antropocêntrica que vê a
humanidade de forma superior aos demais elementos da criação, os quais teriam sido
criados para seu usufruto, acreditando que o ser humano é “a coroa do processo
evolutivo e o centro do universo” (BOFF, 2015, p. 26). O universo inteiro foi
cúmplice na produção do ser humano. Não somente dele, mas também dos outros
seres (cf. BOFF, 2015, p. 55). Ou seja, todos os fatores históricos da constituição do
cosmos intencionaram a emergência da vida, como um todo, inclusive do ser
humano. Portanto, o universo e o ser humano se pertencem mutuamente, interagem e
integram-se, atendem a uma “perfeita circularidade: o universo é direcionado para o
ser humano como o ser humano é voltado para o universo de onde proveio” (BOFF,
2015, p. 55). Nessa mesma linha, o Papa Francisco ressalta que
nunca é demais insistir que tudo está interligado. O tempo e o espaço não são independentes entresi;
nem os próprios átomos ou as partículas subatômicas podem ser considerados separadamente. Assim
como os vários componentes do planeta – físico, químico e biológico – estão relacionados entre si,
assim também as espécies vivas formam uma trama que nunca acabaremos de individuar e compreender
(LS 138).
10
Dessa forma, Boff (2015, p. 51) enfatiza que a mais fascinante descoberta do
século XX foi a profunda unidade e harmonia do universo, e esclarece que “essa
visão sustenta que o universo é constituído por uma imensa teia de relações, de tal
forma que cada um vive pelo outro, para o outro e com o outro; que o ser humano é
um nó de relações voltado para todas as direções” (BOFF, 2015, p. 52).
Assim, tanto as culturas originárias quanto o segundo relato da criação em
Gênesis e a atual cosmologia convergem ao conceber o ser humano como parte
integrante da criação. Todos os elementos criados compartilham sua existência e se
relacionam, a fim de se autorretromanterem, pois não são partes isoladas, mas sim
uma perfeita interação de vidas que se salvaguardam mutuamente. Nesse sentido, o
princípio de integridade da criação é aquilo que mantém o dinâmico equilíbrio da
vida. Ao se negar essa notável integridade, corre-se o risco de se recair no mal da
crise socioambiental, que hoje se abate sobre toda a criação.
11
O ser humano e seu papel na criação: cultivador e guardião
De acordo com o texto de Gênesis 2,4b-25, o ser humano foi criado em uma
relação de integração e de integridade com as demais criaturas. Como fruto dessa
integração, o humano deveria exercer sua missão perante a criação, ou seja, cultivá-la
e guardá-la. Percebemos que, quando a dimensão da integração, por meio da
integridade, é negligenciada, também a missão do ser humano é corrompida. Na
concepção dicotômica, o ser humano coloca-se fora da criação e em posição de
superioridade a esta, fazendo com que o modo como se relaciona com o cosmos deixe
de ser o de um cultivador e guardião, passando a ser o de senhor e dominador. E as
consequências desse tipo de relação são visíveis nas diversas expressões da atual crise
socioambiental.
Para muitas pessoas, o modo de compreender e de se relacionar com a criação
tem como princípio o antropocentrismo. No entanto, hoje é necessário e urgente o
retorno a formas de relações mais inclusivas e integradoras. Assim, todo o
conhecimento científico sobre as relações naturais, as técnicas e instrumentos
desenvolvidos devem ser submetidos a uma nova ética, uma nova forma de
desenvolvê-los e utilizá-los, a qual priorize o cuidado da criação, e não sua submissão
em favor da sedenta busca de poder, promovida pela humanidade.
O ser humano é chamado, portanto, a uma reconciliação consigo mesmo, com a
criação e com sua missão. E, a partir disso, deve buscar novas formas de organização
política, econômica e social, ou seja, reestruturar a sociedade a partir do princípio da
integridade que leva à relação de cultivo e guarda de todas as formas de vida. São
Francisco de Assis expressa que “o homem deveria usar sua superioridade intelectual
para cuidar, proteger e ajudar os viventes a viverem” (apud LARRAÑAGA, 1980, p.
376). O ser humano não tem o poder de criar a vida, mas cabe a ele a
responsabilidade de permitir que o que é criado permaneça existindo, guardando a
vida criada e permitindo que ela se perpetue. Nesse propósito, o ser humano cultiva e
guarda sua própria existência. Assim, podemos compreender a dimensão do “cultivo”
como algo que leva o ser humano a ser um “promotor” da vida, que em todas as suas
relações promove formas de vida, e não de destruição. E, por sua vez, a concepção de
“guardião” possui a missão de “cuidar” e garantir que todas as formas de vida
perpetuem ao longo do tempo e sigam seu próprio curso histórico. Desse modo, o ser
humano não cultiva e guarda apenas um objeto ou uma parte do meio ambiente, mas,
na visão de integração e de integridade, ele cultiva e guarda todos os elementos e
todas as relações que se interconectam e estão presentes no cosmos, bem como
aquelas que são promotoras de vida.
O princípio de cultivar e guardar as relações de integração e de integridade,
harmonia e interdependência de toda a criação é algo a ser construído no coração
humano. Por isso, em sua Encíclica Laudato Si’, o Papa Francisco enfatiza a
necessidade de uma conversão ecológica, ou seja, a busca de um novo modo de ser,
12
de relacionar-se e compreender-se perante toda a criação. Essa conversão demanda
várias atitudes, tais como a gratidão e a gratuidade, reconhecendo a criação como
“dom recebido do amor do Pai [...], [além] da consciência amorosa de não estar
separado das outras criaturas, mas de formar com os outros seres do universo uma
estupenda comunhão universal” (LS 220). É preciso sair do individualismo e do
antropocentrismo, que colocam o ser humano no centro de tudo, e caminhar para o
encontro da relação de integridade que ressignifica a existência humana a partir de
um “ser com o outro”.
A humanidade necessita reencontrar a dimensão do cultivo das relações. É
necessário sair de si e ir em direção aos outros – humanos e natureza –, e cultivar com
eles relações de respeito, harmonia, inclusão, cuidado, justiça e paz. Nas relações
diárias, perdeu-se a dimensão do cultivo. Não se dedica tempo cultivando as relações
de amizades, as relações de boa vizinhança, as relações de respeito e reciprocidade
entre os familiares; não se cultiva mais o amor entre os seres humanos. Assim, é
compreensível que também se tenha perdido a dimensão de cuidado com todo o
cosmos. Boff apresenta que o dado mais grave que se encontra por detrás da falta de
cuidado é
a perda da conexão com o Todo; o vazio da consciência que não mais se percebe parcela do universo; a
dissolução do sentimento do Sagrado face ao cosmos e a cada um dos seres; e a ausência da percepção
da unidade de todas as coisas, ancoradas no ministério do Supremo Criador e Provedor de tudo (BOFF,
2012, p. 27-28).
Portanto, cultivar a criação pressupõe, primeiramente, um resgate do cultivo das
relações humanas, familiares e sociais. O ser humano precisa resgatar em si essa
dimensão, ou seja, sair do egoísmo antropocêntrico que leva ao individualismo e ao
isolamento social e abrir-se à presença, ao protagonismo e à dignidade do outro.
Integrar-se novamente no cosmos e com ele estabelecer relações de cuidado e
proteção demanda, primeiramente, integrações nos níveis da relação familiar e social.
Nessa linha, o Papa Francisco expressa que
o descuido no compromisso de cultivar e manter um correto relacionamento com o próximo,
relativamente a quem sou devedor da minha solicitude e proteção, destrói o relacionamento interior
comigo mesmo, com os outros, com Deus e com a Terra (LS 70).
A missão de cultivador talvez seja mais bem aplicada na atualidade para o cultivo
das relações harmônicas, equilibradas, de mútuo respeito que inter-relacionam tudo a
todos. É necessário cultivar a dimensão humana que leva ao cuidado e à proteção das
diversas formas de vida.
A missão do ser humano também é a de guardião. Nessa missão, é necessário
guardar as relações de vida que foram cultivadas, para que possam levar a uma mútua
existência. O ser humano deve ser guardião de si mesmo, vigilante para impedir que
pensamentos e ações egocêntricas e dominadoras sejam a base de suas relações
humanas e com o cosmos. Deve guardar as relações sociais e, da mesma forma,
impedir que o desejo por poder seja o mentor das estruturas sociais, que levam à
exploração e à exclusão dos demais viventes. O ser humano também é igualmente
13
incumbido da missão de guardar a criação da subjugação e do imperativo de
dominação humana, mantendo a dignidade e o direito à existência de todas as
criaturas. O ser humano não é concebido como senhor sobre a vida, mas servo
mantenedor. O princípio de guardar a criação é, portanto, o que preserva as relações
existenciais, estabelecidas desde o princípio como meio de salvaguardar a vida.
Cultivar e guardar a criação – ser humano e natureza– é um princípio de fé para
os cristãos. O Papa Francisco expressa que “viver a vocação de guardiões da obra de
Deus não é algo de opcional, nem um aspecto secundário da experiência cristã, mas
parte essencial de uma existência virtuosa” (LS 217). O pontífice esclarece ainda que
o cristão deve cultivar e guardar as relações naturais como expressão do seu encontro
com Jesus Cristo. Aos seguidores de Cristo, cabe-lhes o cumprimento do
mandamento “amem-se uns aos outros, assim como eu amei vocês” (Jo 15,12).
Segundo Larrañaga, percebe-se que São Francisco de Assis amplia o sentido deste
mandamento, integrando também como destinatária deste amor toda a criação, e em
seu leito de morte anuncia:
Em toda a minha vida, a única coisa que fiz foi amar, e o primeiro mandamento do amor é deixar viver
os viventes [...]. Se respeitássemos, se reverenciássemos tudo o que vive, e mesmo tudo o que é, a
criação seria um lar feliz. E direi mais: respeitar principalmente o que é débil e insignificante (apud
LARRAÑAGA, 1980, p. 376).
Portanto, reassumir a missão de cultivador e guardião de toda a criação demanda
a capacidade de cultivar um amor inclusivo, que se abre ao outro e permite sua plena
existência. É a capacidade de desenvolver o amor servil que coloca a humanidade aos
pés de toda a criação, para, humildemente, “lavar-lhes os pés” (Jo 13,4-11), ou seja,
despojar-se de qualquer forma de autoridade e superioridade e inverter a
preconcepção estabelecida – a de que é a criação que se coloca a serviço da
humanidade –, e recuperar o modelo relacional gerador de vida plena, estabelecido
por Jesus Cristo: o maior a serviço do menor. Assim, a humanidade reencontra-se
com um princípio doador de sentido existencial – o “viver para o outro” –, e, ao
ressignificar sua vida, será capaz de romper com princípios geradores de destruição e
reassumir a missão de cultivá-lo em todas as relações – humanas, com a Divindade e
com a criação –, permitindo-lhes que produzam frutos de vida plena, guardando estes
frutos do mal resultante da segregação e desintegração de todo o cosmos.
Toda a humanidade é conclamada a reassumir sua missão de cultivar e guardar a
criação, e “todos podemos colaborar, como instrumentos de Deus, no cuidado da
criação, cada um a partir da sua cultura, experiência, iniciativas e capacidades” (LS
14). É nossa missão e responsabilidade, mas, além de tudo, é o reencontro com o
sentido de nossa existência, é o “para que” existimos: para proporcionar a vida a
todos, por meio das relações de proteção e cuidado uns dos outros e com todo o
cosmos. É também nosso dever suplantar, de uma vez, a concepção de superioridade,
desintegração, isolamento e abrir-nos à completude da criação, ou seja, à completude
de nosso próprio ser, pois não somos seres acabados se negamos a dimensão da
integridade com os demais seres criados – humanos e natureza. Ao contrário, somos
14
plenificados na relação com o outro, na relação servil – livre de interesses egoístas –,
e encontramos a nós mesmos quando compreendemos que o nosso ser só se realiza
quando nos dispomos ao cultivo de relações com o outro.
Enfim, os seres humanos não foram criados isolados e independentes, mas
interconectados, interligados, integrados, formando um “todo” com a criação, e nessa
unidade é que se torna possível o princípio de vida, de comunidade e de relação com
Deus. A humanidade é chamada a cultivar e guardar todas essas dimensões, pois é
nessa missão que ela garante a sua completa existência.
15
CAPÍTULO 2
CRISE SOCIOAMBIENTAL: DEGRADAÇÃO DA NATUREZA
Estamos diante de uma realidade da qual não possuímos memória histórica: a
crise ambiental. Uma crise que se apresenta como negadora da integridade da criação.
A humanidade guarda memórias de vivência e sobrevivência de diferentes crises –
guerras, crises políticas, econômicas –, o que faz com que, diante de uma nova
realidade dessa ordem, mantenha-se a esperança, pois resgata em sua própria história
a superação de algumas crises do passado. Entretanto, agora o elemento é outro.
Mesmo que, historicamente, tenhamos passado por diversos distúrbios ambientais –
grandes períodos de seca, inundações, tempestades, vulcões –, estes se constituíam
pontuais e passageiros. O que se apresenta, no entanto, é algo novo para a realidade
histórico-humana, pois se constitui como a eminente crise ou colapso do sistema
natural planetário; o risco é a perda de tudo o que conhecemos como mantenedor da
vida que estruturamos: perda de água potável, perda dos solos agricultáveis, perda das
áreas habitáveis mais populosas do planeta, perda do equilíbrio climático, perda das
reservas de matéria-prima que sustentam o atual modelo político-econômico, perda
da referência de futuro.
A gravidade com que isso se dará e a forma de superá-la ainda são, em parte,
desconhecidas, apesar das inúmeras hipóteses e estimativas lançadas pelos diferentes
campos dos saberes. Não possuímos referências que poderiam nos orientar de forma
segura a maneira de superar o momento em que vivemos. O que as ciências dispõem
até o momento são referências de grandes cataclismos pelos quais o planeta Terra
passou ao longo de sua história geológica, de certa forma resguardando o princípio da
vida, chegando até nós. Entretanto, como a humanidade passará e sobreviverá a esta
crise ambiental ainda é incerto.
A falta de respostas prontas e de caminhos seguros é própria da realidade da crise.
E não podemos negar que estamos em meio a ela. Essa insegurança pode gerar a falta
de esperança quanto à solução desse problema, ou mesmo a negação da existência
dele. Mediante essa postura se apresentam duas formas de compreendermos esse
evento ecológico: por um lado, há aqueles que buscam respostas no próprio planeta –
atribuindo o momento que vivemos como resultado do processo evolutivo da Terra,
sujeito a cíclicas catástrofes ambientais ao longo da história planetária –, atitude que
exerce a função de anestesiar a mente humana, livrando-a de sua responsabilidade,
pois sobre isso o ser humano não teria qualquer poder de interferência nem para
agravar, nem para mitigar sua ocorrência; por outro lado, encontramos aqueles que
olham para a própria humanidade e buscam em sua consciência e ação as causas para
o presente mal e as luzes de esperança para superá-lo. Certamente, a humanidade tem
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sua culpa na crise atual. Se não contribuiu para sua total ocorrência, ao menos
colaborou com o seu agravamento e ampliação. Portanto, é responsabilidade daquela
buscar e propor meios de possíveis soluções.
A constatação das grandes alterações ambientais não é conteúdo apenas dos
grandes tratados ou complicados relatórios científicos. Facilmente, percebemos que a
natureza não é a mesma. Basta um diálogo com pessoas mais idosas da família ou do
grupo social a que pertencemos – diálogo que certamente se iniciará com o termo “na
minha época” –, para conseguirmos uma lista, às vezes bem detalhada, das mudanças
ambientais que enfrentamos. Nesse diálogo, rapidamente se elencarão dezenas ou
centenas de espécies da fauna e da flora extintas ou em via de extinção – enumeradas
uma a uma a partir da saudosa expressão “já não vejo mais [...] o canário-da-terra, o
tiziu”–; e encontraremos também as localizações geográficas das fontes de água que
deixaram de existir, a alteração no regime de chuvas e no clima, seguida pela
constatação da perda da produtividade do solo – introduzida ao discurso pela frase:
“Antigamente, tudo que se plantava dava, hoje a semente resseca na terra e nada
produz” –; e, por fim, a mudança no sabor dos alimentos – de tal forma incluída à
lista de alterações ambientais por meio de uma frase quase poética: “Boa era a laranja
colhida do pé que nascia sozinho no fundo do quintal, ela tinha sabor de mel”. A
natureza mudou e, inegavelmente, para pior. As alterações climáticas e a degradação
ambiental há tempos deixaram de ser discursos acadêmicos ou diplomáticos e
ganharam a consciência popular, sem, porém, resultar numa efetiva mudança de
atitude.
Assim, notamos que sãoconhecidos – seja por meio de dados técnicos ou do
senso comum – os diversos distúrbios ambientais, tais como a perda de
biodiversidade, as alterações climáticas, o aumento da temperatura global, a poluição
do solo, da água e do ar etc. Nosso objetivo não é realizar um estudo aprofundado
sobre a crise socioambiental, mas apenas apontar como essas realidades de
degradação se interconectam, e como a integridade de toda a criação deve ser o ponto
de partida para analisá-las e compreendê-las.
O paradigma científico clássico, fundamentado na física dos corpos inertes e na
matemática (cf. BOFF, 2009, p. 145), desconsidera a complexidade das interações e
entende que, para a análise de um objeto, é necessário subtraí-lo do todo e reduzi-lo a
partes mais simples, pressupondo que, ao se conhecer as partes, conhece-se o todo.
Desse modo, ao analisar um distúrbio ecológico, desconsideram-se suas inter-
relações, atingindo-se, por consequência, causas simplistas, para as quais a aplicação
de determinado instrumento técnico seria suficiente para solucionar o problema.
Moltmann alerta que é leviana a afirmação “de que a crise ecológica pode ser
tecnicamente resolvida” (MOLTMANN, 1993, p. 48). E o Papa Francisco reconhece
que “os conhecimentos fragmentários e isolados podem tornar-se uma forma de
ignorância, quando resistem a integrar-se em uma visão mais ampla da realidade” (LS
138). É necessário, portanto, adotar o paradigma científico que considera a
17
complexidade e integridade das relações naturais, possibilitando análises mais
completas e próximas da realidade, resultando em proposições de soluções que
certamente incluem as aplicações de técnicas e instrumentos, mas que consideram
também outros meios e fatores que igualmente contribuirão para buscar por tais
soluções.
Devemos levar em conta que a crise ambiental é resultado de um complexo
sistema natural, explorado e agredido, que exige análises e soluções capazes de
promover mudanças nas estruturas da sociedade, a fim de reatar a integridade de toda
a criação.
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Crise socioambiental: degradação da dignidade humana
A degradação ambiental não afeta somente os recursos naturais, mas também
promove a degradação da qualidade de vida humana e social, penalizando os mais
fracos e pobres. As razões das injustiças sociais são as mesmas que promovem as
injustiças ecológicas, ou seja, a relação dominante, promovida pelo modelo político-
econômico, baseado na exploração tanto dos recursos naturais quanto dos recursos
humanos, privando-os de sua dignidade e existência.
A negação da integridade da criação rompeu os laços de irmandade entre a
humanidade e o cosmos, mas também entre os próprios seres humanos, permitindo
assim a relação de dominação e exclusão. Por meio dessa relação, se denigre a
imagem dos outros seres humanos, privando-os da dignidade e do respeito, negando-
lhes a própria natureza humana. É como se os mais fracos e pobres não fossem
humanos, e por isso pudessem ser explorados e exterminados, tal como ocorre com os
elementos naturais. O empobrecimento humano e ambiental parece não afetar esta
sociedade, que se apresenta, na sua grande maioria, indiferente a essas realidades. Ao
perceber isso, o Papa Francisco alerta que
deveriam indignar-nos, sobretudo, as enormes desigualdades que existem entre nós, porque continuamos
a tolerar que alguns se considerem mais dignos do que outros. Deixamos de notar que alguns se
arrastam em uma miséria degradante, sem possibilidades reais de melhorias, enquanto outros não sabem
sequer o que fazer com o que têm, ostentam vaidosamente uma suposta superioridade e deixam atrás de
si um nível de desperdício tal que seria impossível generalizar sem destruir o planeta. Na prática,
continuamos a admitir que alguns se sintam mais humanos que outros, como se tivessem nascido com
maiores direitos (LS 90).
Podemos encontrar essa compreensão também em São Francisco de Assis. Ele
afirmava que a degradação ambiental residia no desejo do homem de obter poder e
domínio sobre todas as coisas, satisfazendo seus caprichos, e não na busca de
sobrevivência digna, apontando que “os que se dedicam a caçar não são os pobres
que têm fome, mas os ricos a quem não falta nada. Matam para se divertir” (apud
LARRAÑAGA, 1980, p. 375). A crise socioambiental se instala a partir deste
princípio de separação – desintegração –, que considera a superioridade de alguns em
detrimento de outros, provendo àqueles mais direitos que a esses. Não nos faltam
elementos históricos que comprovam que, em todas as vezes que negamos a
humanidade do outro, instalam-se o domínio e a exploração – exterminação indígena,
escravidão negra, holocaustos. Enquanto houver o princípio de superioridade, seja
individual, cultural ou nacional, não encontraremos soluções para a crise
socioambiental, pois esta pressupõe um diálogo de igualdade e equidade, em busca do
equilíbrio planetário.
É comum encontrarmos nos discursos dos países desenvolvidos o equívoco
pensamento que atribui o agravamento da crise ambiental na busca dos países pobres
pelo desenvolvimento, e pela melhoria no nível de consumo dos seus habitantes (cf.
SUNG, 2007, p. 71-72). Entretanto, a solução da pobreza não está na maior
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exploração dos recursos naturais, para que essa parcela da população também usufrua
de vida digna, mas está na redução do consumo daqueles que hoje já detêm tal
benefício, ou seja, na distribuição igualitária dos bens. Sung expressa que
o problema não está em os pobres do mundo melhorarem sua condição de vida material, mas no fato de
que os países ricos não querem diminuir o seu consumo para que a melhora no consumo dos pobres não
faça o problema ecológico ultrapassar o ponto crítico. Isto é, os habitantes dos países ricos precisariam
diminuir o seu consumo para evitar a crise. Se os ricos diminuírem o consumo, que é exagerado, e os
pobres aumentarem dentro do que é razoável, o resultado final pode ser um consumo total menor do que
o atual (SUNG, 2007, p. 72).
A partir disso, percebemos que, mesmo dentro do atual modelo político-
econômico, é possível erradicar a pobreza, desde que o discurso seja o da partilha e
da igualdade dos bens produzidos, ou seja, do resgate e do reconhecimento da
dignidade de todos os seres humanos. Entretanto, é notório que a atual crise exige da
humanidade a busca por novos meios de organização social, que suplantem o modelo
político-econômico baseado na insustentável lei da produção de bens de consumo,
pois esse modelo já se mostrou insuficiente e inadequado para uma forma de vida que
garanta o equilíbrio ambiental e social. Não basta acrescentar alguns elementos novos
aos velhos sistemas de exploração que geram a crise em que nos encontramos, é
necessária uma nova forma de viver, baseada na proteção e na dignidade de toda a
criação.
Como apontado, o princípio que justifica a exploração – ambiental e humana – é
o mesmo; se uma sociedade permite-se explorar e dominar os recursos naturais,
igualmente se dará o direito de explorar e dominar os outros seres humanos. Dentro
dessa visão integrada, não é possível tratar dos assuntos ambientais e desconsiderar
os temas sociais, e vice-versa, ou seja, “tudo está interligado. Por isso, exige-se uma
preocupação pelo meio ambiente, unida ao amor sincero pelos seres humanos e a um
compromisso constante com os problemas da sociedade” (LS 91). Somente assim,
caminharemos para o encontro de possíveis meios de superação da atual crise
socioambiental.
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A negação da integridade da criação como base da sociedade antropocêntrica
Todos os organismos, ao se relacionarem com seu ambiente, interferem e alteram
sua condição original, ao mesmo tempo em que também são afetados por essa
relação. Esse é o princípio básico da ecologia (enquanto ciência do saber biológico),
que pode ser definida como “a ciência capaz de compreender a relação do organismo
com o seu ambiente” (TOWNSEND, 2006, p. 24). Entretanto, essa interação
resguarda um princípio fundamental: a capacidade de regeneração do ambiente – a
capacidadede resistência e sua resiliência. Isso define um ambiente equilibrado,
quando as interações entre os seres vivos com seu ecossistema ocorrem de tal
maneira que os distúrbios causados sejam naturalmente regenerados. Quando os
distúrbios extrapolam a capacidade de regeneração ambiental, ele se encontra em
desequilíbrio e degradação. E é isso que a humanidade provocou no ambiente. Desde
o Período Neolítico (Idade da Pedra Polida), a humanidade acrescentou o uso de
instrumentos, à sua capacidade de intervenção na natureza, ampliando assim essa
capacidade, chegando ao auge com a atual sociedade tecnológica. A humanidade
construiu instrumentos de grande poder de intervenção: sondas que retiram petróleo a
uma profundidade superior a 5.000m; tratores que retiram uma árvore inteira a cada
25 segundos; navios pesqueiros que retiram ilegalmente 26 milhões de toneladas de
peixes por ano do mar; aviões que em minutos pulverizam agrotóxicos em vastas
áreas; a engenharia genética que altera as moléculas de DNA, produzindo os
alimentos geneticamente modificados etc. Chegamos a níveis de extrema intervenção
ambiental. Boff expressa que
o ser humano está sobre as coisas para fazer delas condições e instrumentos de felicidade e do progresso
humano, [mas] a vontade de tudo dominar nos está fazendo dominados e assujeitados aos instrumentos
técnicos que criamos e que degradaram a Terra (BOFF, 2015, p. 28).
Diante dessa realidade, podemos considerar que estamos perante uma crise de um
tipo de civilização, a civilização hegemônica – criada no Ocidente e globalizada nos
últimos séculos. Nessa sociedade, o sentido primordial é o “progresso, a
prosperidade, o crescimento ilimitado de bens materiais e de serviços, apropriados
individualmente e sob o regime da competição e da mercantilização de tudo” (BOFF,
2015, p. 27). Para a obtenção do progresso, utilizam-se, sem restrições, a exploração
e a potenciação dos recursos naturais e humanos; para tanto, o instrumento é a ciência
e a técnica (produtoras do industrialismo, informatização e robotização). Entretanto,
“esses instrumentos não surgiram por pura curiosidade, mas pela vontade de poder,
de conquista e de acumulação” (BOFF, 2015, p. 27). Assim, constitui-se o paradigma
da modernidade, no qual
pode-se identificar uma série de movimentos e sistemas de pensamentos (Iluminismo, positivismo,
evolucionismo etc.), que foram afirmando gradativamente um antropocentrismo. Isto é, fizeram surgir
cada vez mais a consciência de que o ser humano está no centro dos acontecimentos globais, sendo o
critério e o senhor da natureza (REIMER, 2007, p. 18).
21
A capacidade de intervenção ampliou-se inegavelmente a partir da revolução
técnico-científica. Mas a técnica, os instrumentos e o conhecimento das relações
naturais, por si, não são capazes de promover o mal que se aflige. A questão está no
fato de que tais meios foram e são utilizados para a promoção de um domínio sobre a
natureza, que se tornou sinônimo de poder político-econômico-social. Esse poder,
restrito nas mãos de poucas pessoas, define as relações da civilização que hoje se
apresenta em crise, pois uma nação que possui o poder técnico-científico detém o
poder político-econômico sobre as demais; a empresa que detém o poder técnico-
científico exerce seu poder superior no mercado, excluindo as que não o possuem; no
agronegócio, da mesma forma, e assim por diante, chegando às relações pessoais, em
que quem detém os instrumentos tecnológicos é elevado ao patamar de “senhor”
sobre os demais, que são imediatamente rebaixados à exclusão das relações
socioambientais. Isso é um princípio gerador de violência. De um lado, encontram-se
os detentores do poder, que promovem meios para sua autodefesa, o que geralmente
ocorre isolando-se e excluindo-se ainda mais o outro; de outro lado, encontramos os
destinados à margem do poder técnico-científico que buscam meios, não menos
violentos, na maioria das vezes, de assegurar para si a mesma dignidade atribuída ao
outro. Assim, Moltmann afirma que
a crise do mundo moderno não surgiu apenas através das tecnologias que possibilitam a exploração da
natureza ou em decorrência das ciências naturais, através das quais os seres humanos se tornaram
senhores da natureza. Ela se baseia muito mais na ambição que pessoas têm por poder e prepotência
(MOLTMANN, 1993, p. 43).
Por essa razão, não podemos atribuir a crise a um meio, o técnico-científico, mas
o princípio está no ser humano que fez desse meio um gerador de destruição e
exclusão para obtenção do poder que almeja. A visão que a humanidade construiu de
si mesma é que lhe proporcionou legitimidade para suas ações destrutivas, ou seja, na
construção de uma sociedade antropocêntrica. Para falar sobre essa realidade, Boff
utiliza também o termo androcêntrica, justificando que “é o varão e macho que se
autoproclama senhor da natureza, e não tanto a mulher” (BOFF, 2015, p. 147).
O antropocentrismo é fruto dos pensamentos dualistas que separaram o capital do
trabalho, a pessoa da natureza, o homem da mulher, o corpo do espírito, Deus do
mundo, e um dos extremos tornou-se o dominador na correlação. O antropocentrismo
concebe o ser humano como o centro e senhor de todas as coisas, tudo está voltado
para seu uso e domínio, a relação estabelecida jamais será de igualdade e comunhão,
mas sempre na dinâmica do poder exercido sobre algo ou alguém. Nessa centralidade
do poder em si mesmo, a humanidade rompe sua ligação com todas as criaturas para,
assim, ser capaz de exercer seu poder sobre elas; rompe sua ligação com Deus, com a
natureza e com o próprio ser humano, e sobre todos esses impõe sua concepção de
poder e domínio. A visão antropocêntrica não é nova, mas encontrou na sociedade
moderna o seu ápice. Assim, “sempre a partir de uma posição de poder, [o ser
humano] interveio tão profundamente na natureza para seu benefício exclusivo que
criou uma civilização singular, a nossa civilização” (BOFF, 2015, p. 148). O tipo de
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sociedade vigente é notoriamente antiecológica. Boff expressa que esse modelo
antropocêntrico de sociedade fez com que o pior acontecesse ao ser humano que
se isolou da natureza, quebrou os laços de pertença à comunidade da vida, esquecido da teia das
interdependências e da sinergia de todos os elementos naturais e cósmicos, para que emergisse no
processo evolucionário. Ele se encaramujou sobre si mesmo. Destruiu os símbolos de sua natureza
espiritual, decretou a morte de Deus e mergulhou num incomensurável vazio, desenraizado da natureza
e entregue à solidão. Daí nascem o pessimismo, a amargura e a náusea, que são a falta de alegria de
viver (BOFF, 2015, p. 143).
Assim, podemos compreender, portanto, que uma das razões para a atual crise
socioambiental é a negação da integridade da criação, da relação do ser humano com
a natureza, concebido pela sociedade antropocêntrica. Ao desvincular o ser humano
das inter-relações naturais, o antropocentrismo abriu caminhos para a exploração
realizada pela ciência aplicada e pela tecnologia instrumentalizada, a ponto de
produzirmos o incalculável desequilíbrio ambiental em que nos encontramos.
Certamente, outros fatores contribuíram para a crise atual, mas a visão que o ser
humano produz de si mesmo compilada no conceito antropocêntrico garantiu-lhe a
outorga para seus atos de dominação.
Nesse sentido, as palavras de São Paulo à comunidade de Corinto – “Tudo é
permitido para mim, mas nem tudo me convém” (1Cor 6,12) – são negadas pela
sociedade antropocêntrica, pois, para esta, tudo lhe é permitido e tudo lhe convém,
quando se trata de busca por poder e domínio sobre a criação. Ao buscar o senhorio
sobre si, o ser humano rompe com as relações de integridade da criação, coloca-se
sobre ela, e perde os laços de união, gerando o maior mal de todos os tempos: o
planetário desequilíbrio ambiental.
Sobre a tradição judaico-cristã também incorre o peso da acusação de favorecer,
por meio da interpretação dos textos bíblicos e sua doutrina, a construção e
legitimação de uma sociedade antropocêntrica.Segundo Lynn White Jr., “o
cristianismo não só estabeleceu um dualismo entre homem e natureza, como também
incentivou que era a vontade de Deus que o homem explorasse a natureza para seu
próprio benefício”, e ressalta que “as implicações que tem o cristianismo para a
conquista da natureza surgiram mais facilmente na atmosfera ocidental” (WHITE JR.,
2007, p. 83-84). O autor Juan L. Ruiz de la Peña considera que tais acusações são
“historicamente injustas e exegeticamente infundadas” (PEÑA, 1989, p. 158). E
Moltmann esclarece que, “muitas vezes, o desejo de poder, de crescimento e
progresso que caracteriza a civilização moderna foi legitimado com base na doutrina
bíblica da criação, mas essa legitimação posterior não tem fundamento na própria
Bíblia” (MOLTMANN, 1993, p. 55). Assim, o Papa Francisco, em sua Encíclica
Laudato Si’, ressalta que,
se é verdade que nós, cristãos, algumas vezes interpretamos de forma incorreta as Escrituras, hoje
devemos decididamente rejeitar que, do fato de ser criados à imagem de Deus e do mandato de dominar
a terra, se deduza um domínio absoluto sobre todas as criaturas (LS 67).
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Concebemos, portanto, que todo o mal provocado na natureza tem sua origem na
negação da integridade da criação, princípio da sociedade antropocêntrica. Ao
confrontarmos essa sociedade com outras formas de organização social – geralmente
excluídas e marginalizadas –, onde o imperativo antropocêntrico não domina,
notamos uma relação muito mais harmônica, integradora e equilibrada com a
natureza, mesmo fazendo uso de instrumentos de intervenção. Isso é facilmente
notado nos povos originários da América, como “os povos da floresta”, que
interagem intimamente com o ecossistema e, sem dúvida, tornam-se uma realidade
integrada. Também notamos a consciência de integridade dos seres vivos nas culturas
de origem africana, que mantêm os elementos de sua religiosidade integrados com a
natureza, promovendo respeito e proteção ambientais. Dessa forma, “as culturas
indígenas e afrodescendentes, mais ligadas à sacralidade da natureza, parecem haver
mantido uma sabedoria que se expressa no Bem Viver como paradigma de
civilização” (CNBB, 2016, p. 10). Isso contrapõe o paradigma da desintegração, do
domínio e da exploração concebida pela sociedade antropocêntrica.
O princípio da exclusão, da não integralidade, é, portanto, a nosso ver, o gerador
da crise ecológica que se apresenta na atualidade. Entretanto, essa crise ambiental é
ampla, envolvendo, além da degradação do ambiente natural, também a degradação
da própria estrutura social. O ser humano não se fez senhor somente sobre a criação,
mas também sobre o ser igual a si. A humanidade domina e explora os recursos
naturais na mesma intensidade e forma que faz com o próprio homem. Por isso, a
crise é ambiental e social, pois a raiz geradora é a mesma: a ruptura com o outro
(natureza e homem) e a negação da integridade de tudo com todos. O Papa Francisco
ressalta que “não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma
única e complexa crise socioambiental” (LS 139). E essa realidade se impõe de forma
mais drástica aos elementos da natureza e aos pobres, privando-os da sua dignidade e
do direito à existência.
24
CAPÍTULO 3
A NECESSIDADE DE UMA CONSCIÊNCIA ECOLÓGICA NO
PROCESSO CATEQUÉTICO
Uma pergunta para estimular a reflexão: haveria uma corresponsabilidade da
tradição judaico-cristã em relação à perda e à salvação do sistema-terra? A resposta à
pergunta será possível ao comparar dois discursos que representam dois modos
diferentes de ver a questão, assim como suas consequências sociais e teológicas. Uma
primeira vertente expressa sua posição da seguinte forma: a Bíblia, por ser a
revelação explícita de Deus, é válida para todos os tempos e, por isso, para todos os
seres humanos. Esse tipo de atitude em relação ao texto bíblico está fortemente
enraizado ao fundamentalismo protestante, um movimento que teve seu início na
Inglaterra e nos Estados Unidos, no fim do século XIX. Nascia com a pretensão de
ser o verdadeiro cristianismo, limitando-se exclusivamente à Bíblia e à sua
interpretação literal, sem recorrer ou aceitar qualquer método extrínseco às Escrituras.
Um fundamentalismo que produz uma concepção da realidade ideal (céu), que não
necessita inserir-se numa realidade desfigurada (terra), a fim de transformá-la.
A segunda vertente aparece em posição contrária à descrita acima. Ela sustenta
que se “deve ouvir os textos na sua literalidade como lá estão designados e considerar
o tipo de mentalidade que eles alimentaram e favoreceram com conotações
inequivocamente antiecológicas” (BOFF, p. 122). Nesse caso, há a necessidade de se
admitir uma corresponsabilidade da tradição judaico-cristã pela situação crítica atual.
Dois autores guiarão nossos passos, a saber, Leonardo Boff e Jürgen Moltmann, a fim
de seguirmos o caminho da integridade da criação, bem como do ser humano.
25
Resumindo o pensamento de Boff
A intenção de Boff é demonstrar “os desvios de uma religião que historicamente
descumpriu sua função re-ligadora, e assim ajudou no desastre que hoje padecemos”
(BOFF, p. 126). Certamente, isso não significa que Boff não encontre nos relatos da
criação alguns relatos que permitam observar e reforçar a perspectiva ecológica. Sem
dúvida que eles existem. Contudo, ele busca desentranhar outras perspectivas da
tradição judaico-cristã que não corroboram a conservação do sistema-terra. A fim de
fundamentar sua posição, Boff faz uso de cinco pontos que possibilitam perceber uma
forte conotação antiecológica na tradição judaico-cristã. Vamos a eles:
26
Patriarcalismo
O mundo social que cerca o Antigo Testamento, bem como o Novo Testamento, é
o mundo do sistema patriarcal. E é a partir desse mundo que os testamentos
expressam a sua mensagem. De certa forma, essa mensagem já vem precondicionada
e carregada quase que plenamente de valores masculinos. Ou seja, nos espaços
sociais há uma preponderância do masculino sobre o feminino. Consequentemente, o
próprio Deus passa a ser representado como Pai. Se há preponderância do masculino,
há também a deslegitimação do feminino. E segundo Boff, “as características
femininas e especialmente maternais das divindades anteriores ao Neolítico, que eram
de versão matriarcal, são deslegitimadas” (BOFF, p. 123). Um reducionismo que
representa uma agressão ao equilíbrio dos gêneros e, portanto, uma ruptura na
ecologia social e religiosa. Faz-se necessário esclarecer o uso da expressão “ecologia
social”, afinal de contas usamos e entendemos o termo ecologia normalmente em
relação ao meio ambiente. Todavia, precisamos perceber que o ser humano e a
sociedade sempre estabelecem uma relação com o meio ambiente. Nesse caso, a
ecologia seria a ciência que trata do habitat humano e doméstico e, a partir dele,
organizaria suas relações a fim de manter a produção e a reprodução da vida.
27
Monoteísmo
Com esse tópico, nosso autor não deseja questionar o caráter profundamente
monoteísta da tradição judaico-cristã e o princípio único criador e provedor universal,
que é Deus. Boff reconhece que “há razões de ordem filosófica e teológica que
sustentam o monoteísmo” (BOFF, p. 123). Sua preocupação reside na formulação
psicológica e política que o monoteísmo recebeu historicamente.
Para ele, o monoteísmo deu passos errados ao dessacralizar o mundo e distingui-
lo de Deus, ao separar absurdamente criatura e Criador, mundo e Deus. Dessa forma,
o monoteísmo não soube perceber que o universo é portador de mistério e de
sacralidade. Seus olhos permaneceram fechados às manifestações do universo e da
natureza e, consequentemente, perdeu-se a dimensão das forças do universo e da
natureza que estavam substanciadas num mundo de deuses e deusas.
Mas devemos ainda perceber uma formulação política quanto ao monoteísmo e
suas consequências para o sistema-terra. A derivação política do monoteísmo passa
pela justificação do autoritarismo e pela centralização do poder. O argumento para
semelhante derivação é por demaisóbvio: assim como há um só Deus no céu, deve
haver um só senhor na terra e, por conseguinte, um só chefe religioso, uma só pessoa
para liderar a família etc. Segundo Boff, encontramos aqui a expressão mais redutora
e exclusivista, pois
afirma que somente o ser humano, homem e mulher, assumira a representação de Deus na criação. Só
deles se diz que são imagem e semelhança divina (Gn 1,26). Só deles se crê que prolongam o ato criador
de Deus e, por isso, possuem uma centralidade, negada aos demais seres que também são imagem e
semelhança de Deus, e por sua ação evolutiva atualizam e prolongam a vontade criadora divina (BOFF,
p. 125).
28
Antropocentrismo
Os textos bíblicos trazem à tona um ser humano arrogante. Seu domínio sobre a
Terra deve ser irrestrito e o seu crescimento demográfico ilimitado. Cito os textos:
“Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes
do mar, as aves dos céus [...]” (Gn 1,28); “Sede fecundos, multiplicai, povoai a terra e
dominai-a” (Gn 9,7); “E o fizeste pouco menos de um deus [...] para que domine as
obras de tuas mãos; sob seus pés tudo colocaste: ovelhas e bois, a ave do céu e os
peixes do oceano [...]” (Sl 8,6-8).
29
Ideologia tribalista da eleição
Outro elemento que possibilita um discurso antiecológico a partir dos relatos
bíblicos seria a absolutização de uma mensagem única por parte de um grupo, o qual
se sente eleito e portador da mais pura e cristalina verdade. Nesse caso, estaríamos
presentes diante de uma lógica da exclusão, gerando todo tipo de fundamentalismos e
sectarismos. A partir dessa compreensão, todos os que são ou pensam de forma
diferente devem ser submetidos à visão única do dogma proposto pelo grupo. Nega-
se, portanto, a solidariedade universal e restringe-se o mundo a apenas alguns poucos
privilegiados.
30
A queda da natureza
Textos bíblicos como “maldita seja a terra por tua causa” (Gn 3,17), “decidi
acabar com toda a carne porque a Terra está cheia de vícios por causa do homem”
(Gn 6,13), revelam, para Boff, que o mundo perdeu seu caráter sagrado e agora vive
regido pelo símbolo do que é amaldiçoado ou ainda do demônio. Por causa do pecado
humano, a Terra, com tudo o que nela existe, passa a ser castigada. Seria o
comportamento humano pecaminoso o responsável fundamental pela decadência,
corrupção e pecaminosidade da Terra. Nada mais simplista do que esse tipo de
leitura, diz Boff, pois “nem tudo o que acontece, de bom e de mau, deve ser imputado
aos comportamentos do ser humano” (BOFF, p. 127). A consequência de semelhante
interpretação é que acabou por levar os cristãos a valorizar muito pouco este mundo e
até mesmo dificultando um projeto que compreendia o mundo a partir da beleza, do
prazer e da realização da natureza.
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O pobre como o ser mais ameaçado da natureza
O ser mais ameaçado da natureza atualmente é o pobre. São milhões e milhões de
pobres espalhados pelo mundo inteiro que sofrem a ação de empobrecimento e de
miserabilidade, aumentando assim o rompimento do tecido social que se encontra tão
fragilizado. Deve-se entender, portanto, o pobre como um membro da natureza e,
consequentemente, qualquer agressão a ele representaria, também, uma agressão
ecológica. Para Boff, o ser humano “mais que um ser na Terra é um ser da Terra. Ele
é a expressão até hoje mais complexa e singular da Terra e do cosmo conhecido. O
homem e a mulher são a Terra que pensa, que espera, que ama, que sonha e que
entrou na fase de decisão não mais instintiva, mas consciente” (BOFF, p. 166). Terra
e humanidade constituiriam então uma única entidade.
A religião deve necessariamente vincular seu discurso e prática a partir do
específico, e não do genérico. E, por isso, perceber que tem em mãos uma grande
responsabilidade que funda suas raízes na ecologia social: como os seres humanos se
relacionam entre si e como se organizam em suas relações com os demais seres da
natureza. Não é possível fechar os olhos aos números que informam a respeito do
caos ecológico, já instalado em nossa sociedade. Não há como fechar os olhos e
ouvidos diante do grito de quinze milhões de crianças que morrem antes de concluir o
quinto dia de vida em razão da fome ou das doenças relacionadas à fome; nem do
grito mais intenso de 150 milhões de pessoas subnutridas e ainda do subgrito de 800
milhões de pessoas que vivem permanentemente com fome, segundo estatísticas da
ONU (Organização das Nações Unidas). Qual a esperança para os seres mais
ameaçados da criação? Qual a esperança do mundo de dois terços pobres da
humanidade? De que forma nossa catequese e espiritualidade poderiam responder tais
perguntas?
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Resumo do pensamento de Moltmann
Porque Deus é o Criador do mundo e o próprio autodeterminador da criação, Ele
seria o maior interessado na preservação do sistema-terra. A leitura dos textos
bíblicos que resulta desse tipo de compreensão faz transparecer uma interpretação que
procura, a todo custo, integrar o ser humano com a criação e seu Criador. Não há,
portanto, qualquer corresponsabilidade da tradição judaico-cristã diante da crise
ecológica atual. Na verdade, Deus seria o primeiro ecologista do universo. Percebe-se
que o nosso autor não está interessado em defender a história concreta do
cristianismo. Afinal, ele mesmo percebe, em outros livros, que a interpretação que se
deu aos textos bíblicos ao longo da história possui terríveis deformações.
Segundo Moltmann, Deus criou o mundo por causa do amor e a partir de sua
liberdade. Portanto, Deus criou o mundo por um ato de vontade. Consequentemente,
o mundo não se identifica com Deus, mas sim dele é diferenciado. A criação torna-se
decisão soberana de Deus que cria tudo a partir do nada. Contudo, Moltmann faz
questão de destacar que o fato de Deus criar algo que é diferente dele não impede que
a criação tenha com Ele correspondência. Na verdade, segundo o autor, essa
correspondência está fundamentada no amor de Deus que o leva a dar algo de si para
o seu projeto criacional.
Há uma relação intrínseca de Deus com o mundo. A causa primeira do mundo é
Deus e, por isso, Deus está vinculado ao mundo. O mundo não seria mera
causalidade, mas sim destino de Deus. Portanto, nas relações e inter-relações entre
ambos, Deus se encontra obrigado a manter o sistema-terra.
As indagações de Moltmann merecem ser registradas: “Como poderia o Deus
criador, que cria do nada, ser desviado do seu propósito e do seu amor pelos crimes
que ocorrem na sua criação?”, e continua: “Quem, qualquer que seja o seu temor
apocalíptico, espera a destruição do mundo, nega o Criador do mundo”
(MOLTMANN, p. 144). A indagação do autor nos leva a concluir que o próprio Deus
toma parte no destino de sua criação e Ele mesmo experimenta as destruições que
nela acontecem. Há em Deus uma expectativa por redenção e liberdade pela natureza.
E diante da dor da natureza, o Criador se compromete com a sua criação. Ele é capaz
de sofrer por aquilo que criou. Ele deseja, a partir do amor, preservar o sistema-terra.
Sem sombra de dúvida, nesse ato criacional de Deus, o ser humano tem seu lugar
específico. Todavia, a especificidade do lugar não o leva a ter preeminência em
relação às demais coisas criadas. O ser humano vive em inter-relações e contextos
num ambiente de troca socioambiental. A partir desse aspecto, pode-se falar como
“criatura na comunhão da criação” (MOLTMANN, p. 273). Isso nos leva a perceber
que o ser humano, longe de se entender como imagem de Deus, deve antes ser
percebido como imagem do mundo em estreita relação com todas as outras criaturas.
De fato, não se busca potencializar o antropocentrismo, mas sim perceber os aspectos
relacionais de estreita dependência do ser humano com todas as outras criaturas.
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Ao evitar a potencialização acima referida, descobre-se que o ser humano é uma
criatura entre tantas outras. Na comunidade da criação, o ser humano está inserido; é
membro dela, e não seu senhor. Não exerce domínio senhorial sobre o sistema-terra,
mas dele é dependente em suas relações detrocas e sobrevivência. Não está acima,
mas lado a lado. Não é diferente, mas igual. O pensamento ecoteológico de
Moltmann reflete a plena consciência ecológica que está latente no ser humano. Esse
é, sim, imagem de Deus, mas também imagem do mundo. E é nesse encontro, nessa
síntese de imagens que prevalece a opção ecológica inevitável a todo ser humano. Ele
vive, fala e age pelo mundo. Ele é sacerdote para o sistema-terra e dele faz o seu
sacramento. Percebe-se que a natureza, nesse caso, surge como uma extensão do
corpo físico e também do corpo social, onde vive o ser humano em suas relações
comunitárias com outros seres humanos e, logicamente, com as outras criações, e em
estreita interdependência.
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Análise das reflexões de Boff e Moltmann
Afinal, existiria ou não uma corresponsabilidade do cristianismo para a perdição
do sistema-terra? Nesse caso, qual autor está correto em sua análise? Provavelmente,
ambos estão certos, apenas partem de um referencial socioecológico distinto. É
imprescindível destacar que a crise ecológica instalada em nosso mundo deve-se
muito ao caráter cristão, o que é claro nos dois autores. Entretanto, parece que os dois
autores começam a trilhar caminhos separados em duas questões fundamentais: a
primeira diz respeito à noção de “ecologia social”, muito utilizada por Boff. É a partir
da ecologia social que ele insere a questão do pobre. Nesse caso, o autor passa a
trabalhar com conceitos mais específicos e colocando os mais gerais à margem.
Assim, ele passa a falar do “pobre”, e não mais do “ser humano” ou “pessoa”. Ao que
parece, a noção de ecologia social não está presente no pensamento de Moltmann e,
por isso, a questão do pobre como a criatura mais ameaçada do planeta torna-se uma
questão mais secundária. A segunda questão fundamental diz respeito ao tipo de
leitura que os autores estão realizando: ambos conseguem perceber que há relatos
bíblicos da criação que possibilitam uma leitura antiecológica, e outros que
possibilitam uma leitura da funcionalidade do ser humano enquanto guardião da
criação. A questão prende-se, portanto, ao modo como eles leem o texto bíblico. Boff,
percebendo que a história produzida pela tradição judaico-cristã em relação à
ecologia produziu graves consequências para a natureza, faz uma leitura histórica de
como os textos bíblicos foram interpretados, produzindo assim a corresponsabilidade
do judeu-cristianismo na crise do sistema-terra; Moltmann, por sua vez, lê os relatos
da criação a partir do ideal que já está presente nos próprios relatos. Não busca
averiguar as interpretações ocorridas no processo histórico e suas possíveis
consequências. Ambos os autores estão certos, porque partem de premissas
diferentes: o ponto de partida de Moltmann é Deus, enquanto o ponto de partida de
Boff é o judeu-cristianismo histórico. Enquanto um parte do ideal (Moltmann), outro
lê a precariedade do real através dos óculos do ideal (Boff).
Chegamos a um impasse: afinal, se ambos os autores estão certos, como explicar
uma forte tendência presente no cristianismo contemporâneo de menosprezo pelo
sistema-terra?
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A hipótese da brutalização das relações
Na verdade, estamos num impasse acerca de duas visões a respeito de
cristianismo e de ecologia. O impasse se fundamenta principalmente numa questão:
Por que um ideário belo como do cristianismo, apresentado por Moltmann, pôde
gerar um cristianismo histórico tão brutalizado e antiecológico?
Sem dúvida que, no processo de cristalização do cristianismo nas mais diversas
comunidades, aconteceu uma apropriação indevida dos textos bíblicos. Deve-se notar
que o ideal foi trocado pela construção do utópico, através das práticas das
comunidades cristãs. As comunidades procuraram a intermediação do ideal a partir da
“negação do mundo” e, consequentemente, de sua substituição. Procura-se destruir
para, enfim, se possível, reconstruir. Destruir... nada mais antiecológico, nada mais
brutal e destrutivo para as relações socioecológicas. Mas como entender esse
processo brutalizador da vida e do cristianismo?
Uma possível resposta é a da brutalização ou da destrutividade, presente nos
discursos de muitos cristãos, ou seja, um menosprezo indisfarçável pelo “mundo”=
sistema-terra que terá um fim catastrófico. Enfim, de que vale cuidar de um sistema
que está condenado pelo próprio Deus à destruição total? De que valem ações que
possibilitem salvaguardar o grito da terra e o grito do pobre se a história caminha para
o seu fim? Perguntas que refletem e postulam um suicídio coletivo da natureza.
Busca-se encontrar na destruição a solução dos conflitos que se fazem permanentes.
E, enquanto tal situação vai se postergando, todo ato de socorro é completamente
desnecessário. Todavia, como podemos perceber a gênese da brutalização em
ambiente cristão?
Percebe-se a partir da brutalização das relações humanas e da natureza. De certa
forma, a brutalização nas/das relações humanas desencadeia um processo de
destruição da natureza. Parece que a violência está impregnada na vida humana. É
necessário ser agressivo para sobreviver e a violência só deixaria de ser necessária a
partir de novos atos de violência. Certamente, esse tipo de relação é recorrente:
combate-se a brutalização através de atos brutais para que não haja, algum dia, atos
brutais nas relações humanas e ecológicas.
Hinkelammert nos ajuda a entender melhor nossa hipótese. A partir do mito grego
de Ifigênia, ele elabora a importância do mito para a autoconsciência da sociedade
burguesa. A situação fundamental do sacrifício de Ifigênia é a seguinte: Ifigênia é
filha de Agamenão, rei grego, e de sua esposa Clitemnestra. Agamenão é comandante
do exército grego, que se reunira em Áulide para sair para a conquista de Troia. Não
obstante, produziu-se uma calmaria dos ventos, de tal maneira que o exército não
pôde partir nos navios. Perguntando aos deuses pela razão, a deusa Minerva
comunica que somente o sacrifício de Ifigênia, a filha de Agamenão, pode apaziguar
sua fúria. O exército exige que se faça esse sacrifício. Em consequência, Agamenão
traz Ifigênia a Áulide, enganando Clitemnestra para que a esposa entregue a filha.
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Chegando a Áulide, ele oferece em sacrifício sua filha, a primogênita de seus filhos, à
deusa Minerva. Realizado o sacrifício, o vento volta, o exército parte, conquista e
destrói Troia. Percebe-se que a relação entre o sacrifício e a vitória passa pela
violência legitimada pela religião: a fúria da deusa somente pode ser apaziguada
através de uma vítima sacrificial. Não importando se a vítima, no caso em questão, é
a própria filha do comandante do exército. O resultado do sacrifício da vítima é
infinitamente maior do que o não sacrifício. Na ordem do dia está o próprio
comandante: se ele voltar de Troia derrotado, também será julgado por assassinato,
mas voltando vitorioso estará isento de toda e qualquer culpa. A violência em relação
à vítima sacrificial deu resultado!
Nesse caso, a brutalização das relações não somente tem lugar a partir das
relações religiosas, mas também com a modernidade. Ou seja, o discurso religioso
aos poucos acaba por ser substituído pelo discurso social da modernidade. Se o
paradigma das relações sociais e ecológicas é o céu, se faz necessário “construir”
efetivamente o céu na terra, mesmo que para isso seja necessário o sacrifício brutal de
seres humanos. Afinal, o sacrifício é por uma boa causa. Sacrifica-se por uma causa
nobre. Sacrifica-se para que não haja mais sacrifícios. Mas, até quando? O círculo é
vicioso. É um círculo sacrificial. A construção de um mundo sem sacrifícios é
ininterrupta. Todo aquele que manipula a violência acaba, fatalmente, sendo
manipulado por ela. Enquanto o céu não se instalar plena e totalmente, o círculo
sacrificial continua a rodar pela história da humanidade.
Mas ainda se faz necessário responder a mais uma pergunta: seria possível
recuperar um cristianismo ecológico? A resposta, decididamente, é sim! O próprio
Boff nos ajuda nessa questão ao apresentar São Francisco deAssis como um modelo
de postura ecológica e contrário à brutalização da vida. Afinal, não cabe em seu
pensamento e também não deveria caber no nosso a concepção de comprar ou vender
o céu ou ainda o calor da terra. A relação com a natureza não é de caráter mercantil,
mas sim de cumplicidade na sobrevivência. Francisco de Assis nos apresenta um
paradigma que nos coloca com a natureza como irmãos e irmã, em contraposição ao
paradigma da brutalização que nos coloca sobre a natureza como senhores.
Assim, diante da brutalização da vida, São Francisco nos apresenta uma atitude
alternativa e de recuperação do cristianismo: uma atitude que se confraterniza, se
enche de compaixão e respeito diante de cada representante da comunidade cósmica e
planetária. Procura-se resgatar a centralidade do sentimento e a importância da
ternura nas relações humanas e cósmicas. São Francisco é, na verdade, o paradigma
que nos ensina a viver adequadamente numa casa planetária comum, mas também a
viver bem com todos os existentes nessa casa comum!
A brutalização leva-nos ao distanciamento do grito da terra, bem como do grito
dos pobres, e faz com que as relações entre as criaturas sejam de dominação, e não de
ajuda; cria mundos diferentes, para que na diferenciação haja a possibilidade de
domínio do ser humano sobre outros iguais e sobre a própria natureza.
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Começa desse modo uma ruptura na maneira de se perceberem as relações
necessárias para a sobrevivência do sistema-terra: a natureza deixa de ser tratada
como “tu” e passa a ser tratada como “isso”. Perde-se o diálogo pessoal e próximo
com a natureza, bem como o que está por detrás dela e a sustenta. Quebra-se um
trinômio que deveria ser indissolúvel para a promoção da vida: Deus, o ser humano e
a terra. E enquanto o trinômio estiver partido, somente se poderá falar da “falta de
vida” ou ainda de vida “infra-humana”. Não se poderá ver a vida como plenitude,
mas sim enquanto imagem pálida de homens, mulheres e meio ambiente que
persistem em sobreviver.
Torna-se necessário assumir de forma coletiva nossa responsabilidade pela
criação do mundo e de nós mesmos. Caso contrário, corremos o sério risco de manter
o espírito de brutalização presente em nós. Não podemos nos esquecer de que a
urgente necessidade de sobreviver é universal: e as necessidades fundamentais de
sobrevivência, liberdade, justiça e respeito são comuns a todas as pessoas, e também
à natureza. Devemos nos ver como expressões de um mesmo corpo vivo comum,
com toda a terra, as estrelas, as galáxias, enfim, com todo o cosmos.
Precisamos reconhecer que o social, o ecológico e o religioso se encontram cada
vez mais intimamente ligados. A consequência de tal percepção nos levará a
reconhecer como um único e mesmo corpo, em uma profunda interdependência, de
tal forma que, se eliminarmos uma parte, todo o corpo se sentirá agredido.
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CAPÍTULO 4
ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICA COMO RESPOSTA À CRISE
SOCIOAMBIENTAL
A superação da crise socioambiental transpõe a mera promoção de ações
desintegradas que visam à preservação ou recuperação ambiental, ou mesmo à
aplicação de nova tecnologia menos invasiva ou poluente. É necessária uma nova
forma de autocompreensão do ser humano junto à criação, capaz de ressignificar sua
existência e promover as transformações necessárias em prol de uma nova sociedade
integrada – homem e criação. Para isso, são necessários não só conceitos teóricos,
normativos ou mesmo o conhecimento sobre tal necessidade, mas sim uma nova
espiritualidade capaz de movimentar todas essas transformações, pois “não é possível
empenhar-se em coisas grandes apenas com doutrinas, sem uma mística que nos
anima, sem ‘uma moção interior que impele, motiva, encoraja e dá sentido à ação
pessoal e comunitária’” (LS 216). Assim, é necessária uma espiritualidade que
corresponda aos desafios atuais de envolver, na compreensão do ser humano, toda a
dimensão da ecologia integral.
Segundo a interpretação grega neoplatônica, que dualiza corpo e espírito, a
espiritualidade era compreendida como uma dimensão extracorpórea. A partir da
maior valorização do espírito sobre o corpo, via-se neste apenas uma matéria à qual o
espírito estava momentaneamente preso e que alcançaria a liberdade após a morte. O
corpo seria, portanto, algo a ser superado e a plenitude do ser estava em sua dimensão
espiritual. Ventura expressa que “o pensamento dualista é polarizado e excludente;
não apenas fragmenta a pessoa em si mesma, mas também impede os vínculos, a
afetividade, os intercâmbios” (VENTURA, 2010, p. 65). A segregação dessas duas
dimensões, corpo/espírito, resultou num desgaste da dimensão espiritual, pela
manipulação teórica e prática que a reduziu a “uma esfera distante da vida real,
espiritualismo desencarnado, e fuga do compromisso” (CASALDÁLIGA, 2003, p. 7).
Essa visão é contrária à concepção da cultura semita, apresentada nos textos bíblicos,
constituindo-se mais integradora que a visão grega (cf. CASALDÁLIGA, 2003, p. 7).
A cultura semita compreende o ser humano em uma unidade, referindo-se a ele como
basar (carne, corpo), nefesh (vida) e ruah (espírito), entendendo “unitariamente o ser
humano como ‘espírito corpóreo’ ou como ‘carne espiritual’, que vive e tem nome”
(SCHWANTES et al., 1991, p. 61). Nas cartas paulinas, encontramos referências ao
“homem espiritual” (cf. 1Cor 3,1-2), mas, de acordo com a mentalidade do Novo
Testamento, o termo “espiritual” não pode ser entendido como o oposto ao material.
Assim, o conceito da dimensão espiritual do ser humano corresponde a
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um dinamismo de existência pela qual a pessoa toma decisões, faz escolhas motivadas e positivas [...], é
o homem no seu dinamismo decisorial, animado e especificado, transformado e potencializado pelo
Espírito de Deus, que entra na comunicação criativa e oblativa (SECONDIN, 2002, p. 35).
A visão dualística entre as dimensões corporal e espiritual tem sido substituída
por uma visão “holística de espiritualidade”, como apresentada por Boff (2002, p. 52-
56), que reconhece múltiplas dimensões do ser humano, que coexistem e se
interpenetram, apresentando três dimensões: a exterioridade (corpo), a interioridade
(mente) e a profundidade (espírito). Em termos cristãos, a espiritualidade
diz respeito a como as pessoas se apropriam de modo subjetivo de crenças tradicionais sobre Deus, a
pessoa humana, a criação e seu inter-relacionamento, e então as expressam na adoração, nos valores
básicos e no estilo de vida. Assim a espiritualidade é o todo da vida humana visto em termos de uma
relação consciente com Deus, em Jesus Cristo, por meio da morada interior do Espírito e dentro da
comunidade de crentes (SHELDRAKE, 2005, p. 53).
Desse modo, a espiritualidade envolve toda a dimensão humana, seu pleno existir,
e não está meramente relacionada a práticas de ritos ou regras normativas religiosas,
mas compreende a forma como o ser humano se apresenta perante sua própria
existência, suas práticas, valores e modos de se organizar socialmente. Entretanto, a
espiritualidade não pode ser compreendida apenas como uma manifestação de uma
realidade religiosa, pois, “antes de ser uma expressão das religiões ou dos caminhos
espirituais instituídos, é uma dimensão do ser humano” (BOFF, 2002, p. 53). A
espiritualidade compõe a plenitude do ser humano, é o sentido que o anima e impele
para a busca de um existir significante, fazendo com que “homens e mulheres possam
encontrar sentido e valor naquilo que fazem e experimentam” (VENTURA, 2010, p.
67). Assim, é possível dialogar sobre uma espiritualidade dinamizadora das
transformações necessárias em prol do bem comum, pois a crise socioambiental exige
o comprometimento de todos os seres humanos, e todos somos seres espirituais.
Nesse sentido, é preciso
reinventar a humanidade, articular uma nova experiência fundacional e desenvolver uma nova
espiritualidade que permita uma singular e surpreendente nova re-ligação de todas as nossas dimensões
com as mais diversas instâncias da realidade planetária, cósmica, histórica, psíquica

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