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Descartes e a Invenção do Sujeito - Joceval Andrade Bittencourt

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2
SUMÁRIO
Capa
Rosto
Introdução
Primeiro Capítulo - Da verdade sem sujeito ao sujeito da verdade
Segundo Capítulo - A metafísica do sujeito
Terceiro Capítulo - A subjetividade no pensamento Cartesiano
Conclusão
Referências Bibliográficas
Coleção
Ficha Catalográfica
Notas
3
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INTRODUÇÃO
Que Descartes é um filósofo do século XVII; que é ele quem inaugura o
pensamento moderno; que, na cronologia do pensamento ocidental, ele se
tornou o último dos antigos e o primeiro dos modernos; parece existir,
entre todos os historiadores da filosofia, unanimidade em aceitar e tomar
essas referências como verdadeiras.
Essa unanimidade deixa de ser plena quando se trata de interpretar o
pensamento de Descartes como um todo, ou um tema no interior de seu
sistema filosófico. Existem divergências, entre seus intérpretes, quanto à
possibilidade, ou não, de se justificar, no interior da metafísica cartesiana,
o conceito de subjetividade. Não privilegiaremos, nesse trabalho, uma
reflexão em torno dessas contendas filosóficas entre os diversos
comentadores, ao contrário, buscaremos identificar e apresentar o
racionalismo cartesiano como o lugar onde se inaugura, para o
pensamento ocidental, o conceito de subjetividade e, como consequência,
a invenção do sujeito moderno.
Sabemos, desde há muito, que o consenso, ou mesmo a unanimidade,
nunca foi, para o seu próprio bem, uma característica da filosofia. Se for
possível estabelecer uma “natureza” para o discurso filosófico, ela só pode
ser a da diferença, da ruptura, da quebra da unanimidade, subordinado às
suas contigencialidades, essa é sua natureza, condição própria para o seu
desenvolvimento.
O conceito de subjetividade tornou-se presença comum no discurso do
pensamento contemporâneo. Recorre-se a ele para fundamentar, a partir
do sujeito, qualquer forma de discurso. Quando não para fundamentar,
recorre-se a ele para refutar, o que é mais frequente, ou para criticar a sua
natureza subjetiva e as possíveis consequências nos diversos campos do
saber. Entretanto, não é muito frequente encontrarmos uma análise da
origem desse conceito e do momento em que ele se constitui e se
fundamenta no pensamento filosófico ocidental. O nosso objetivo é
demonstrar que é na filosofia de Descartes que o conceito de
subjetividade se constitui, pela primeira vez, no pensamento filosófico
ocidental, enquanto fundamento e procedência da verdade.
Justificar e fundamentar o conceito de subjetividade na filosofia de
Descartes é tarefa excessivamente ampla, cuja extensão abarcaria toda a
sua filosofia, já que é sobre a subjetividade, fundada a partir da
autonomia racional do sujeito, que Descartes erguerá todo o seu projeto
filosófico. Por isso mesmo, sabendo do porte de tal tarefa, optamos por
privilegiar uma das suas obras, as Meditações. A escolha dessa obra se
justifica por ser, segundo os maiores estudiosos do pensamento
cartesiano, a obra na qual Descartes fundamenta, de forma definitiva, a
metafísica do sujeito. Esclarecemos, no entanto, que esta necessária
delimitação não nos impede que recorramos, sempre que necessário, a
outras obras de Descartes, ou mesmo às suas correspondências, tendo
4
sempre em mira as Meditações, como referência primeira de investigação.
Em torno de Descartes e de sua obra existem comentadores, tais como:
F. Alquié, J. Laporte, O. Hamelin, M. Gueroult, E. Gilson., J-M. Beyssade
e Michelle Beyssade, A. Koyré, P. Valery, G. Rodis-Lewis; no Brasil, Livio
Teixeira, F. Leopoldo, R. Landim, entre tantos outros, que elaboraram,
cada um segundo sua linha de interpretação, obras que se tornaram
referência obrigatória para todo aquele que pretende conhecer ou estudar
o pensamento de Descartes. Entretanto, aqui, não tomaremos – como
forma de privilegiar uma determinada linha de interpretação – nenhum
intérprete ou linha de interpretação como fio condutor. Assim, esses
intérpretes do pensamento de Descartes se farão presentes na medida em
que, na dinâmica da elaboração do próprio texto, a interpretação de um
ou outro se fizer necessária, para que possamos ter uma melhor
compreensão na exegese do pensamento cartesiano. No último capítulo,
será dado destaque à interpretação de Heidegger, autor a quem
recorreremos como referência, para justificar e fundamentar a construção
do conceito de subjetividade no interior da metafísica cartesiana. Para
tanto, quando necessário, recorreremos ao ensaio: L’époque des
“conceptions du monde”, incluído no volume Chemins qui ne ménent nulle
part Holzwege, traduzido para a língua portuguesa como: Caminhos de
Floresta. A escolha deste texto se justifica porque nele, partindo do
conceito de representação, Heidegger identificará Descartes (e o
Descartes das Meditações), como o filósofo que institui, de forma
definitiva, o conceito de subjetividade no pensamento filosófico ocidental.
Este trabalho é composto de três capítulos. No primeiro capítulo,
intitulado: da verdade sem sujeito, ao sujeito da verdade, mostraremos
que o sujeito – enquanto sujeito a partir do qual se funda e fundamenta a
verdade no processo do filosofar – é uma conquista da filosofia
cartesiana. Antes de Descartes, todo o filosofar se inicia tendo uma
verdade já dada como pressuposta, a partir da qual se ordena todo o
processo do filosofar. Daí a necessidade de fazermos uma breve visita aos
principais representantes do pensamento antigo e medieval, para mostrar
que, neles, em suas mais diversas perspectivas - e interesses -, a verdade
antecede ao sujeito e o filosofar passa a ser o processo pelo qual o
homem, em sua racionalidade, identifica, descobre, desvela, traz à razão a
verdade, a essência, a causa originária da qual cada coisa é constituída.
Essa causa originária pode ser Natureza, Ideia, Substância ou Deus. A
ruptura com essa antiga forma de filosofar se inicia com o ceticismo, mas
principalmente com o nascimento da ciência moderna, e realiza-se
plenamente na filosofia cartesiana. Em Descartes, pela primeira vez, a
verdade passa a ser uma construção originária do sujeito. Como
consequência, a verdade sem sujeito é superada pelo sujeito da verdade.
Se no primeiro capítulo o nosso olhar foi de exterioridade, buscando,
através de uma perspectiva mais horizontal, panorâmica da história da
filosofia, entender o surgimento e a novidade do pensamento filosófico de
5
Descartes; no segundo capítulo, intitulado: A metafísica do sujeito, nosso
olhar verticaliza-se, vai em direção ao interior da filosofia cartesiana,
mais precisamente para as Meditações, lugar em que Descartes demonstra
a fundamentação da metafísica do sujeito.
Além da reconstituição propriamente dita do texto, esta reconstrução
comportará o acréscimo de comentários ou observações selecionadas a
partir de dois critérios: que sejam capazes de esclarecer questões do
próprio texto ou que sejam relevantes para o realce do tema que
escolhemos priorizar.
Se no segundo capítulo trabalhamos os pressupostos gnoseológicos da
metafísica do sujeito, no terceiro capítulo, intitulado: A construção da
subjetividade no pensamento cartesiano, concentraremos a nossa reflexão
em torno do conceito de subjetividade. Tendo como apoio a interpretação
de Heidegger, buscaremos mostrar que o conceito de subjetividade,
enquanto instância fundadora da verdade, é uma construção originária da
filosofia cartesiana. Ao falarmos em construção da subjetividade (como
primado e procedência da verdade), queremos dizer que ela não é uma
descoberta, um pressuposto dado e descoberto pelo sujeito no processo
do filosofar; pelo contrário, queremos dizer que ela é uma invenção, uma
construção e que é na metafísica cartesiana que este conceito se constrói,
pela primeira vez, e afirma-se como paradigma inaugural do pensamento
moderno.
6
PRIMEIRO CAPÍTULO
7
DA VERDADE SEM SUJEITO AO SUJEITO DA
VERDADE
“Du siècle d’Aristote à celui de Descartes, j’apperçois un vide de deux mille ans. Dans cet
engourdissement général, il falloit un homme qui remontât l’espèce humaine; qui ajoutât de
nouveauxressorts à l’entendement; un homme qui eût assez d’audace pour renverser, assez de
génie pour reconstruire; un homme...” (M. THOMAS, Éloge de Descartes)
O objetivo, neste capítulo, é apresentar o conceito de sujeito enquanto
sujeito que fundamenta, a partir de sua autoconsciência, o conhecimento
da verdade, como uma construção originária da filosofia de Descartes.
Isto significa mostrar que Descartes rompe com o pensamento tradicional
– Platão, Aristóteles, a Patrística, a Escolástica, o Ceticismo vigente até o
século XVII, a cultura e a tradição –, indo em busca de uma nova forma
de fazer filosofia, fundada unicamente na ordem racional do sujeito,
tendo na razão o lugar originário do conhecimento verdadeiro sobre
todas as coisas.
Não trataremos, de forma direta (ou interna), nesse primeiro capítulo,
da filosofia de Descartes, mas buscaremos identificar e acentuar a crítica
e a ruptura feitas por Descartes a toda a filosofia e às formas de
pensamento que o antecederam, como momento necessário no processo
de construção da sua própria filosofia. O nosso olhar, de certa forma, será
de exterioridade, através do qual mostraremos, tendo como referência a
crítica de Descartes ao pensamento antigo, que o sujeito, a partir do qual
a verdade se constitui, não antecede a sua filosofia, mas tem nela o seu
lugar originário. Neste primeiro momento não será feito uma análise
sistemática da metafísica cartesiana (tema do segundo capítulo), mas
uma reflexão acerca do processo de transição entre o pensamento antigo
e o pensamento moderno e, neste, a novidade da filosofia cartesiana.
O projeto cartesiano é construir um conhecimento que abarque todos
os saberes, mas que tenha no sujeito a causa originária da sua verdade.
Essa característica de tomar o homem, o sujeito, como instância a partir
da qual o conhecimento da verdade vem ao mundo, é uma característica
que identifica e diferencia a filosofia de Descartes de todo o pensamento
filosófico que o antecedeu. É a partir deste “lugar” (do sujeito da verdade)
que Descartes erguerá todo o seu projeto filosófico. Ao anunciar ao
mundo uma nova filosofia, tendo o sujeito como causa originária da
verdade, Descartes anuncia, ao mesmo tempo, o “fim” do mundo antigo, e
o nascimento do mundo moderno.
Mesmo não sendo Descartes um revolucionário, essa não é a sua
natureza, não podemos deixar de reconhecer que as suas ideias – a sua
filosofia – adquirem um caráter revolucionário. Aqui, as ideias são mais
revolucionárias que o espírito de seu criador:
... a mensagem que ele traz ao mundo é bem mais perigosa (...) que a
do matemático florentino. A ciência nova (que Galileu acabara de
8
criar), essa ciência de que os Ensaios nos trazem amostra, não se
contenta em tirar o homem, e a Terra, do centro do Cosmo: esse
Cosmo, quebra-o destrói-o, aniquila-o ao abrir em seu lugar a
imensidade sem limites do espaço ilimitado. E quanto ao Método,
empreendimento de revisão sistemática e crítica de todas as nossas
ideias, que todas são chamadas por ele a justificarem-se diante do
tribunal da razão, Descartes por mais que queira – muito
sinceramente, sem dúvida – restringir-lhe o alcance, por mais que nos
assegure que nunca quis fazer outra coisa senão reformar as suas
próprias ideias, com as quais, no fim de contas, é livre de fazer o que
lhe apetecer, não pode deixar de se dar conta que acaba de aperfeiçoar
a mais formidável máquina de guerra – guerra contra a autoridade e a
tradição – que o homem alguma vez possuiu [1].
Essa revolução de mentalidade, cujo resultado é a afirmação do projeto
cartesiano de construir uma razão livre que não esteja, em hipótese
alguma, submetida a nenhuma autoridade ou à tradição, mas que se
fundamente unicamente na ordem racional do sujeito, passa por uma
rigoros a crítica a toda uma tradição filosófica e cultural que a antecedeu.
É singular o projeto cartesiano – Eu, primeira pessoa do singular –, é a
partir de si mesmo que ele pretende construir essa “formidável máquina
de guerra” [2]. Descartes “descobre a filosofia por um movimento
próprio” [3], é este movimento próprio e singular que o leva a fazer uma
completa suspensão de juízo, negando os hábitos, a tradição filosófica, os
conhecimentos adquiridos na escola, fechando o livro do passado,
abrindo um novo livro, escrito em uma nova linguagem, no qual revelará
uma nova configuração para o mundo.
Ao iniciar o Discurso do Método, bem como as Meditações, Descartes
anuncia a necessidade de romper com a tradição cultural e filosófica que
o antecedeu, de desfazer-se de todas as opiniões a que até então dera
crédito, por não reconhecer nelas nenhuma base sólida que lhe
possibilitasse um conhecimento seguro e certo sobre coisa alguma. Assim,
Descartes quer retomar o processo do filosofar a partir de novas bases,
novas referências, distintas daquelas – as da filosofia antiga – que lhe
foram ensinadas, no seu processo de formação, no colégio La Fléche, dos
jesuítas, onde estudou de 1906 a 1916, tendo acesso ao que de melhor
tinha no mundo acadêmico da época.
Fui nutrido nas letras (...) estivera numa das mais célebres escolas da
Europa, onde pensava que deviam existir homens sapientes, se é que
existem em algum lugar da Terra [4].
No retrato de Descartes, gravado por Cornelis A, Hellemans [5], 1687-
1691, encontramos uma imagem significativa, que bem ilustra a relação
de negação de Descartes para com toda a filosofia tradicional,
principalmente contra a filosofia de Aristóteles e de seus herdeiros. Nesta
9
obra, Descartes encontra-se posicionado majestosamente em sua
escrivaninha, escrevendo um livro, tendo à mão uma pena e com o seu pé
direito repousado sobre um livro fechado, onde se ler claramente o nome
de seu autor: Aristóteles. Nessa imagem, vê-se, de forma ilustrativa, a
afirmação de Descartes sobre aquele que foi o pensador símbolo do
pensamento antigo. O livro de Aristóteles representa o passado filosófico,
bem como toda a tradição dele derivada, que deve manter-se fechado,
pois nada mais tem a ensinar. É preciso cerrar as portas do passado,
silenciá-lo, ignorá-lo por completo – excetuando Deus e a Matemática
que, mais tarde, depois de serem repensados, subordinados a um mesmo
tratamento metodológico, serão incorporados ao seu sistema filosófico. O
velho mundo precisa ser substituído. Descartes tem um novo mundo para
apresentar ao mundo, ele sabe que chegou o momento de seu mundo ver
o mundo.
Se essa postura crítica de Descartes se apresenta, disseminada em toda
a sua obra – principalmente em sua vasta correspondência, é na Carta-
Prefácio – Princípios da Filosofia, escrita em 1647 e enviada ao editor,
como sugestão para prefácio ao seu livro: Princípios da Filosofia – que, de
forma direta, até demais, Descartes indica os motivos que o levaram a
negar o passado e construir, no seu lugar, um mundo novo. A importância
dessa carta (quase que uma carta testamento de ruptura com a tradição
filosófica) justifica a longa citação que se segue:
Ora, através de todos os tempos houve grandes homens que se
esforçaram por encontrar [...] as primeiras causas e os verdadeiros
Princípios donde se podem deduzir as razões de tudo quanto pode ser
conhecido; e os que se chamam filósofos são exatamente os que
trabalham para isso. Todavia, não conheço quem haja, até agora,
alcançado este objetivo. Os primeiros e os principais de que temos
notícia são os escritos de Platão e Aristóteles, entre os quais apenas
existe esta diferença: o primeiro seguiu as pisadas de seu mestre
Sócrates e confessou, genuinamente, que ainda não encontrara nada de
certo, contentando-se com escrever as coisas que lhe parecem
verossímeis e imaginando alguns princípios com que procurava
explicar outras coisas. Quanto a Aristóteles, teve menos franqueza, e
embora se mantivesse durante vinte anos como seu discípulo e não
tivessem outros princípios senão os do seu mestre, alterou
completamente a forma de os divulgar e propô-los como verdadeiros e
seguros, embora não haja qualquer indício de os ter considerado como
tais. Ora, esses dois homenstinham muito mais espírito e Sabedoria do
[...], o lhes conferia muita autoridade. Assim, aqueles que vieram
depois limitaram-se mais a seguir as suas opiniões do que a investigar
alguma coisa melhor. A principal disputa que os seus discípulos
tiveram foi tratar de saber se deviam por todas as coisas em dúvida ou
então se havia alguma que fossem certas. Isso arrastou a uns e a
outros, a extravagantes erros: aqueles que defendiam a dúvida logo a
10
tornavam extensiva às ações da vida, de tal maneira que desprezavam o
uso da prudência para se conduzirem; e os que sustentavam a certeza,
supondo que devia depender dos sentidos. [...] Mas o erro dos que
pendiam demasiado para o lado da dúvida não foi seguido durante
muito tempo e o dos outros foi corrigido, pois reconheceu-se que os
sentidos nos enganam acerca de muitas coisas. No entanto, que eu
saiba, o erro ainda não foi completamente eliminado, pois não basta
dizer que a certeza não se encontra nos sentidos: a certeza provém
somente do entendimento quando este tem percepções evidentes. [...]
Quem não conhecer tal verdade, ou se alguém a conhecer e não a
utilizar, então a maior parte daqueles que nos últimos séculos
quiseram ser filósofos seguiram Aristóteles cegamente, deturpando o
sentidos dos seus escritos e atribuindo-lhe opiniões que ele próprio não
a reconheceria como suas se voltasse ao mundo. No número dos que o
seguiram incluem-se alguns dos melhores espíritos cuja juventude foi
influenciada pelas suas opiniões, porque são as únicas que se ensinam
nas escolas, o que os preocupou de tal maneira que não lograram
chegar ao conhecimento dos verdadeiros princípios.[...] Depois de ter
explicado tudo isso, gostaria de expor as razões que servem para provar
que os verdadeiros princípios que permitem alcançar o mais algo grau
da sabedoria, que consiste no soberano bem da vida, são aqueles que
expus neste livro [6].
A crítica de Descartes não tem como único alvo as filosofias de Platão
ou de Aristóteles, incluindo as filosofias deles derivadas, dirige-se também
a diversos outros campos do saber, buscando sempre afirmar a razão, e
somente a razão, como causa originária de todo conhecimento possível.
Não só isso, Descartes quer mostrar que, em seu processo de construção,
a razão encontra-se sozinha, não contando com nenhuma forma de
conhecimento que a ela antecede, através do qual possa fundamentar a
sua ordem de verdade [7].
Na primeira parte do Discurso do Método, Descartes, de forma direta,
retira seu crédito à possibilidade de encontrar na Teologia, nas coisas que
estão acima da inteligência humana, o lugar a partir do qual possa o
homem construir as verdades da razão natural. Assim, para manter a
razão no território do humano, sem se comprometer em demasia diante
das autoridades eclesiásticas, mesmo recorrendo a certa ironia, dizendo
que “para se ter acesso às verdades reveladas é preciso ser mais que
humano”, Descartes demarca a diferença da natureza da verdade
originária de sua filosofia, daquela produzida pela teologia, indicando que
todo o seu projeto filosófico encontra-se subordinado nos limites da razão
natural. “Eu reverenciava a nossa Teologia e pretendia, como qualquer
outro, ganhar o céu; mas, tendo aprendido, como coisa muito segura, que
o seu caminho não está menos aberto aos mais ignorantes do que aos
mais doutos e que as verdades reveladas que para lá conduzem estão
11
acima da nossa inteligência, não ousaria submetê-las à fraqueza de meu
raciocínio, e pensava que, para empreender o seu exame e lograr êxito,
era necessário ter alguma assistência do céu e ser mais do que homem” [8].
Descartes deixa as coisas da Teologia para os teólogos. Isso não quer
dizer que as coisas da Teologia estarão fora da reflexão cartesiana, muito
pelo contrário, elas serão contempladas, e muito, mas a diferença é que
quando Descartes volta-se para estas questões as trata unicamente à luz
natural da razão, nunca pela luz sobrenatural da fé. Se o caminho para o
conhecimento das coisas de Deus é, segundo os teólogos, a fé, Descartes
inverte esse caminho e busca o conhecimento das coisas de Deus pelos
caminhos da pura racionalidade.
Não só a teologia é excluída, enquanto arcabouço teórico, na
fundamentação da razão que quer conhecer verdadeiramente as coisas,
como também a ciência antiga e as demais doutrinas, na medida em que
ainda eram herdeiras da filosofia e da cultura antigas, são excluídas por
não se fundamentarem em nenhum conhecimento claro e distinto.
“Depois, quanto às ciências, na medida em que tomam seus princípios da
Filosofia, julgava que nada de sólido se podia construir sobre
fundamentos tão pouco firmes. E nem a hora, nem o ganho que elas
prometem, eram suficientes para me incitar a aprendê-las; pois não me
sentia, de modo algum, graças a Deus, numa condição que me obrigasse a
converter a ciência num mister, para alívio de minha fortuna; e
conquanto não fizesse profissão de desprezar a glória como um cínico,
fazia, entretanto, muito pouco questão daquela que eu só podia esperar
adquirir com falso título. E enfim, quanto às más doutrinas, pensava já
conhecer bastante o que valiam, para não mais estar exposto a ser
enganado, nem pelas promessas de um alquimista, nem pela predição de
um astrólogo, nem pelas imposturas de um mágico, nem pelos artifícios
ou jactâncias de qualquer dos que fazem profissão de saber mais do que
sabem” [9].
Rompendo com o passado, fazendo tábula rasa de toda a herança
cultural, seja ela filosófica, teológica, da ciência vigente em seu tempo,
bem como de todas as doutrinas místicas ou delas derivadas, só resta a
Descartes fechar os livros do passado e buscar a verdade na ciência que se
encontra nele mesmo ou, então, “no grande livro do mundo”. “Eis porque,
tão logo a idade me permitiu sair da sujeição de meus preceptores, deixei
inteiramente o estudos das letras. E resolvendo-me não mais procurar
outras ciências, além daquela que se podia achar em mim próprio, ou
então no grande livro do mundo[...]” [10].
Até Descartes, o filosofar parte de um pressuposto dado como
verdadeiro, seja ele a physis, dos pré-socráticos, a Ideia, em Platão, a
Substância, em Aristóteles e Deus, na filosofia cristã. Antes de
começarmos a análise dos pressupostos filosóficos do pensamento antigo,
esclarecemos que não é nossa pretensão abarcar toda a história da
filosofia anterior a Descartes. O que queremos é extrair sumárias
12
referências filosóficas, através das quais possamos tornar visível o fio
condutor que explicita e evidencia a impossibilidade de se pensar a
verdade, no interior dessas representações filosóficas, como uma
construção do sujeito, para que possamos, então, a partir daí, mostrar
como o conceito de sujeito, enquanto sujeito que se afirma como causa
originária da verdade, é uma conquista da filosofia cartesiana; que
Descartes, ao romper com a tradição filosófica, está rompendo com essa
razão dependente, dela derivada, e construindo, em seu lugar, uma nova
razão, toda ela fundamentada e garantida na autonomia do sujeito
pensante.
Toda a metafísica antiga está preocupada em compreender o ser, dizer
o que ele é, defini-lo, conceituá-lo. É da superação dessa metafísica do
ser, que nasce a filosofia de Descartes. Como superação dessa metafísica
do ser, Descartes constrói uma nova metafísica: a metafísica do sujeito.
Se em Parmênides e Heráclito já se elabora a definição de ser (a partir
de uma cosmologia física – physis, característica, aliás, não só desses dois
filósofos, mas de todos os pré-socráticos que elaboram, a partir do mundo
natural, os primeiros fundamentos filosóficos da racionalidade ocidental),
é com Platão e Aristóteles que a definição de ser irá assumir a maturidade
conceitual. Com eles o ser abandona definitivamente o mundo físico, dos
pré-socráticos, para reinar definitivamente no plano metafísico [11]. Esses
dois pensadores, sem esquecer a contribuição de Sócrates que, mesmo
dizendo não conhecer a verdade, dedicou toda a sua vida a procurá-la,
tornaram-se os primeiros fabricadores de conceitosno pensamento
ocidental. Com eles o conceito institucionaliza-se, afirma-se como
referência, torna-se o modelo através do qual a razão adquire sua
maioridade, abandonando o mundo da doxa e elevando-se ao nível da
episteme.
Platão, com a teoria dos dois lugares (topos), acabou por retirar da
realidade sensível qualquer possibilidade de um conhecimento verdadeiro
acerca do ser, deslocando para um mundo supra-sensível, a morada
primeira e última do ser [12]. Só o exercício da pura racionalidade pode
nos conduzir à morada do ser. Toda a filosofia de Platão é um
ensinamento para que possamos (através do puro exercício da razão) sair
do lugar da caverna (realidade sensível) e contemplarmos (com os olhos
da razão) a luminosidade do sol (fora da caverna) que nos revelará o
verdadeiro conhecimento do ser, como Ideia originária [13]. Este lugar,
onde eternamente repousa a Ideia originária do verdadeiro, do belo, do
bem, do justo, referência modelar para todas as coisas, preexiste ao
sujeito. Isso quer dizer que, para Platão, ao sujeito cabe apenas, pelo
processo de reminiscência, reconhecer a verdade que a ele preexiste, com
a qual, sua alma, um dia, no mundo das ideias, teria conhecido e
convivido.
Se, na filosofia de Platão, a verdade repousa eternamente no mundo
supra-sensível, no mundo das ideias, isenta de qualquer representação
13
sensível, em Aristóteles, é justamente o mundo sensível, melhor dizendo,
a partir dele que serão fundamentadas as condições e possibilidades de
todo conhecimento que busca afirmar-se como saber verdadeiro.
Em Aristóteles, ao contrário de seu Mestre, a compreensão e definição
do ser dar-se-á a partir da realidade concreta, do mundo real no qual
vivemos. O realismo aristotélico nos conduz a dizer o que o ser é, tendo
como referência a multiplicidade e a mutabilidade dos seres reais e dos
seus significados, a partir dos quais cabe à filosofia (que é a ciência que
conhece pelas causas), através da experiência, buscar a unidade
identitária dessa multiplicidade de representações sensíveis: a ousía, a
substância [14]. Conhecer é conhecer a causa intrínseca de cada ser, a sua
causa constitutiva e a sua finalidade, aquilo que faz do ser, ser o que ele é,
a sua essência, a sua substância.
Até agora estamos no interior de filosofias sem sujeito. Seja na filosofia
cosmológica dos pré-socráticos, seja no lugar supra-sensível de Platão,
seja no mundo substancializado de Aristóteles, conhecer é desvelar ou
reconhecer uma verdade que, independentemente de um sujeito pensante,
a ele preexiste de forma eterna e absoluta. Nessas filosofias, a verdade é
uma descoberta do sujeito, diferentemente da filosofia de Descartes, em
que a verdade será uma invenção, uma construção originária do sujeito.
A concepção da metafísica antiga, na qual a verdade do ser, a sua
essência, encontra-se na Ideia ou na unidade substantiva de cada coisa,
será retomada pelas filosofias patrística e escolástica, principalmente
através de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, dois dos pensadores
mais representativos desse período. Com eles se processa a cristianização
da ontologia platônica e aristotélica. A essência do ser, a sua verdade,
chama-se agora, Deus.
Santo Agostinho compreende a verdade como preexistente ao sujeito,
portanto, não é a razão que a produz, já que a verdade (em seu sentido já
divinizado) antecede ontologicamente à razão. Essa preexistência da
verdade em relação à razão, ao sujeito pensante, corresponde
perfeitamente bem aos interesses da teologia agostiniana e à sua
concepção cristã de mundo, para as quais a ordem do universo e o
princípio que a rege, independem do homem, que é, previamente, antes
de ser criado, pensado na mente divina. Para Agostinho, a verdade é Deus,
o sujeito não tem nenhuma autonomia diante dessa verdade, ela existe
independentemente da existência do homem; melhor dizendo, mesmo que
o homem não existisse, a verdade continuaria existindo. Não é o
pensamento que cria a verdade, o homem apenas descobre a verdade, ela
existe e existirá sempre, independentemente da existência do homem, ela
é eterna.
Se a tradição platônica nos deu Santo Agostinho que, mais preocupado
em salvar a alma do homem, do que conhecer as coisas terrenas,
conduziu a sua filosofia na mesma direção de sua teologia, para a busca e
o conhecimento de Deus, a tradição aristotélica nos deu São Tomás de
14
Aquino que, partindo de referências filosóficas distintas das de Santo
Agostinho, tem, como ele, o mesmo – e único – objetivo: salvar a alma
humana, conduzi-la para Deus.
Depois de Aristóteles, segundo São Tomás, só no plano da fé, no
conhecimento da revelação, poder-se-á encontrar novas verdades. Tal
confiança na filosofia de Aristóteles justifica que São Tomás tenha feito
dele a autoridade maior na interpretação das possibilidades do
conhecimento humano, e o tenha incorporado completamente à
fundamentação racional de sua teologia cristã [15].
Em São Tomás, a razão terá um papel auxiliar, sempre subordinada às
verdades da fé, de esclarecimento e de defesa das verdades da revelação,
que são as verdades por excelência [16].
Remetendo à Suma contra os gentios de São Tomás de Aquino,
escrevem Boehner e Gilson:
A teologia se vê amplamente compensada pelos serviços prestados pela
filosofia. Antes de mais nada, a filosofia assegura os fundamentos da
fé, e a defende contra toda a sorte de ataques. Além disso, ela patenteia
a racionalidade da fé e prova certos artigos de fé acessíveis a ela. E, a
seguir, afirma: o conhecimento das coisas naturais é de grande
utilidade para a teologia, porquanto elas nos anunciam a sabedoria de
Deus e nos concitam à admiração, à reverência ao seu amor [17].
Mesmo no que diz respeito ao conhecimento das coisas naturais, a
razão jamais poderá ter absoluta liberdade no ato do conhecimento, isso
porque, mesmo quando ela conhece a verdade, essa verdade lhe fora
infundida por Deus, que é o autor da verdade e a condição originária de
sua existência, por ser ele, o “autor da própria natureza humana”. Logo,
conhecer, nos limites da razão natural, é descobrir, na realidade do
mundo sensível, a natureza divina de Deus, que se encontra como causa
originária, e final, de todas as coisas.
Segundo Laporte, a religião cristã (aqui compreendida como a religião
que incorporou a filosofia a partir de uma perspectiva teológica) oferece
ao filósofo uma dupla descoberta:
fora dele, de uma realidade que parece ultrapassar à razão, que é o
mistério; nele, de um modo de conhecimento que parece heterogêneo à
razão e que tem sua raiz no coração [18].
A filosofia de Descartes não será contra Deus, nem tão pouco contra a
fé, muito pelo contrário, a sua metafísica será a prova da sua aceitação,
tanto de Deus, como da fé. Seu pensamento será contrário à divinização
do mundo, que tira do sujeito a autonomia no processo de construção da
verdade e o submete às estruturas de uma verdade que dele independe e
que a ele antecede. Sua luta não será contra Deus ou a fé, mas contra um
realismo envelhecido, fundado no senso comum, que não mais
corresponde às necessidades de seu tempo.
15
Se na filosofia Escolástica Deus é o ponto de partida para o
conhecimento da verdade, no pensamento cartesiano, esse ponto de
partida é o sujeito pensante. E quanto a Deus? Ele será o ponto de
chegada. Deus garante o conhecimento, mas não o funda. Segundo
Descartes, todas as verdades, inclusive sobre a existência de Deus,
encontram-se subordinadas à ordem lógica do método, são dados da
razão natural, cujos postulados apresentam-se e são confirmados sem
nenhuma assistência fora de seus domínios.
Pode-se dizer, de modo genérico, que o “realismo”, em seus diversos
matizes, é a forma mais completa da filosofia antiga (principalmente da
Patrística e da Escolástica). Mas isto não significa que essa seja a única
forma do pensamento antigo, senão uma das formas preponderantes, que
se afirma com maior abrangência, e se faz presente em quase todas as
manifestações do pensamento. Poderíamos até dizer que, no que
concerne à possibilidadede um conhecimento que fundamenta a verdade,
o realismo, em suas diversas tonalidades, afirma-se como única
autoridade. Mas, paralelamente a esse realismo “otimista”, que acredita
na possibilidade do conhecimento da verdade e a afirma como anterior e
independente do sujeito que a pensa, existem posições filosóficas que lhe
são diametralmente opostas, e uma das mais representativas é o
ceticismo. Se para os realistas o homem pode descobrir a verdade das
coisas, para os céticos, se existe a verdade ou a essência última das coisas,
o homem não pode conhecê-la, não pode atingi-la, logo, não é possível ao
homem descobrir ou inferir qualquer verdade inegável e irrefutável. Se
Descartes rompe com o otimismo ingênuo do realismo, irá romper,
também, com o pessimismo dos céticos, irá romper com toda forma de
filosofia negativa. A essas duas formas de pensamento (de naturezas
distintas), Descartes apresentará o “otimismo da razão”, como instância
fundadora da verdade, através da qual o homem proclama o seu reinado
sobre a natureza.
O século XVI é essencialmente um século de crise, período em que o
antigo mundo está sendo desconstruido e superado, e um novo mundo,
ainda sem ter suas configurações claras e bem definidas, começa
anunciar-se. No interior dessa crise, duas possibilidades se apresentam:
de uma lado, a “crença” na impossibilidade de, através da razão, se obter
um conhecimento verdadeiro e certo sobre qualquer coisa, estamos diante
do ceticismo; do outro lado, o nascimento de uma nova forma de
pensamento, que busca novas referências, distintas das referências
aristotélicas, ou mesmo cristãs, para interpretar e dar conta do real,
estamos diante do início da ciência moderna. Faremos uma breve
apreciação desses dois momentos: o ceticismo e a ciência moderna, para
buscarmos um terceiro momento: o racionalismo cartesiano que,
superando o ceticismo, subordinando a ciência mecanicista do século
XVII à sua metafísica, redireciona o olhar do espírito em direção a um
novo tempo, a um novo mundo.
16
O ceticismo é a típica filosofia de um período de crise, em que certezas
e verdades perdem o domínio sobre a representação do mundo real ou
espiritual; em que a verdade, ordenadora do real, com a qual se constrói
uma determinada imagem do mundo, perde a sua força, tornando-se
vulnerável às críticas e às incertezas. Quando a verdade é afetada pelo
germe da dúvida e da incerteza, é sinal que ela já não é mais uma
referência segura e certa para se pensar e se ordenar o mundo. Onde se
instala a dúvida e a incerteza, tudo torna-se incerto, nada é mais seguro, o
pensamento perde seu domínio sobre o real, torna-se prisioneiro do
território demarcado pela dúvida.
O ceticismo que renasce no entardecer da Idade Média tem como seus
mais ilustres representantes: Agrippa (1485-153 ), Sanchez (1523-1601),
Charron (1541-1603) e Montaigne (1533-1592). Mantendo as suas
distintas diferenças, têm uma orientação comum: negar, não só as
verdades das filosofias dogmáticas, como também, negar a própria
possibilidade de se conhecer a verdade sobre qualquer coisa.
Nosso interesse é mostrar como, também na filosofia negativa do
ceticismo – aqui lustrada pelo pensamento de Montaigne – não é possível
uma filosofia que fundamente a sua verdade no sujeito. Lá,
principalmente lá, de maneira mais radical, sequer a verdade é possível.
O discurso de Montaigne volta-se contra toda filosofia, contra
Aristóteles e a Escolástica, de forma mais acentuada, mas, também, volta-
se contra todo o preconceito, a superstição, o erro, o fanatismo, e, acima
de tudo, contra uma razão que se outorga o direito de conhecer e
anunciar a verdade.
Segundo Montaigne, não há nenhuma existência constante, nem do
nosso ser, nem das coisas; e nós, e o nosso raciocínio, e todas as coisas
mortais, todos correm e rolam sem cessar: assim não se pode estabelecer
nada de certo, de uma ou de outra coisa, e julgado e julgador estão em
contínua mutação e oscilação. Assim, é inútil a busca do conhecimento da
verdade. O homem não tem e não poderá ter nenhuma garantia da
verdade que fundamenta o seu conhecimento. Está sempre condenado ao
conhecimento da aparência, da sombra, nunca da verdade.
O homem é capaz de tudo e de nada. Se confessa, como Teofrasto, sua
ignorância, das causas primeiras e dos princípios, que renuncie à
ciência, pois, em lhe faltando a base, seu raciocínio ruirá por terra.
Discutir e investigar não tem outro objetivo senão os princípios; se não
os atinge, tudo redunda em incerteza: ‘uma coisa não pode ser mais
compreendida do que outra, porque a compreensão é uma só para
todos’ (Cícero). Se a alma tivesse conhecimento de alguma coisa, é
provável que seria primeiramente dela mesma; se conhecesse algo
exterior a ela, seria antes de tudo seu corpo, seu estojo; e, no entanto,
até agora os deuses da medicina ainda lhe discutem a anatomia. [...]
Até quando deveremos esperar que se ponham de acordo! Estamos
mais próximo de nós que a brancura da neve ou o peso da pedra; se o
17
homem não se conhece a si mesmo, como poderá conhecer sua força e
porque se encontra na terra? É por acaso que temos alguma noção da
verdade, e como é igualmente por acaso que o erro penetra nossa alma,
não somos capazes de distinguir o certo do errado, nem escolher entre
um e outro [19].
Há entre o pensamento de Descartes e o pensamento de Montaigne
vasos comunicantes. Descartes concorda e incorpora à sua forma de
pensar, toda a crítica que Montaigne faz ao preconceito, aos falsos juízos,
às crenças, aos fanatismos, às verdades, quase sempre afirmadas com a
chancela de uma autoridade, e, principalmente, à filosofia aristotélica
que, com sua verdade, sustenta a pretensa racionalidade da escolástica.
Um e outro têm o mesmo objetivo, e Descartes escolhe, provisoriamente,
o mesmo caminho de Montaigne, assumindo por inteiro o ceticismo.
Descartes inicia sua caminhada filosófica fazendo uma total suspensão de
juízo:
[...] que, no tocante a todas as opiniões que até então acolhera em meu
crédito, o melhor a fazer seria dispor-me, de uma vez para sempre, e
retira-lhes essa confiança, a fim de substituí-las em seguida ou por
outras melhores, ou então pelas mesmas, depois de tê-las ajustado ao
nível da razão [20].
Se, nesse primeiro momento, Descartes se aproxima de Montaigne,
tendo-o quase como um mestre, por encontrar em seu ceticismo uma
arma eficiente para combater o pensamento que o antecedeu, dele irá se
afasta, tornando-se seu opositor, ao perceber que o ceticismo de
Montaigne conduz a uma filosofia negativa, sobre a qual nada pode ser
criado, não indicando nenhuma alternativa para a caminhada do Espírito,
levando-o a assumir, como resultado do processo, a derrota da razão.
Caminho oposto tomará Descartes.
Não que imitasse, para tanto os céticos, que duvidam apenas por
duvidar e afetam ser sempre irresolutos: pois, ao contrário, todo o meu
intuito tendia tão somente a me certificar, e remover a terra movediça
e a areia, para encontrar a rocha ou a argila [21].
Descartes faz da dúvida um instrumento, um método eficaz de crítica,
o caminho para o discernimento entre o verdadeiro e o falso. A utilidade
da dúvida é breve, o destino da dúvida é ser superada, a sua superação é a
conquista da verdade indubitável. Tal conquista resgatará o pensamento
do reino das incertezas, levando-o à vitória da razão e, como
consequência, impondo, de forma definitiva, a derrota à filosofia
negativa, aquela que se encontrava perdida no pântano da imprecisão
conceitual. Todo esforço intelectual de Descartes é para encontrar um
caminho, um método, capaz de produzir uma nova verdade com força
suficiente para resgatar a razão do caos das incertezas na qual se
18
encontrava.
Não é no ceticismo, apesar da sua importância para a filosofia
cartesiana, que Descartes encontrará as bases seguras para fundar a
ordem da razão no processo de construção do conhecimento. Se ele quer
encontrar bases mais sólidas para seu empreendimento, terá que mudar a
direção de seu olhar e voltar-se para outro lado, diametralmenteoposto
ao dos céticos, bem como de toda a filosofia que o antecedeu, um lado
que demarcará, de forma definitiva, a separação entre o mundo antigo e o
mundo moderno, lugar a partir do qual a nova razão alça voo,
anunciando o nascimento de um novo homem, de uma nova ciência, de
um novo mundo.
O processo de superação do paradigma da filosofia antiga (aqui não só
entendida a metafísica, mas, também, a física antiga) não se realiza de
forma abrupta, muito pelo contrário, a superação das antigas verdades vai
acontecendo de maneira compassada, mas progressiva. Três séculos é o
tempo de maturação, de preparação para a superação completa entre o
antigo e o novo paradigma. Tal transição tem seu início – se é que é
possível, com precisão e sem divergências hermenêuticas, estabelecer este
início – com Copérnico (1473-1543) e atinge a sua plena maturidade com
Newton (1642-1727). Se, como dissemos acima, verdades novas
estabelecem-se quase sempre sobre o túmulo das antigas, que verdades
são essas que começam a nascer no interior do antigo paradigma,
gerando uma crise de tal ordem que o próprio paradigma já não pode dar
conta e, como que minado por todos os lados, perde a sua força, sua
resistência, o seu poder de representação, gerando em seu interior as
contradições que o conduzirá à sua própria negação e superação? Muitas
são as novas verdades que desestruturam o antigo paradigma, mas, com
certeza, a mais importante delas, e que em si suporta todas as outras, é a
mudança metodológica de ver e interpretar o mundo. Pouco a pouco, o
antigo modelo de observação, descrição e classificação do real vai sendo
substituído pelo método de investigação, experimentação, tendo na
matemática o modelo de referência para o conhecimento da verdade.
Copérnico rompe com a velha imagem do cosmo (naturalmente
ordenado e tendo a terra como o seu centro) e apresenta, em seu lugar,
uma nova ordem do universo, ordem esta que irá se afirmar como a
imagem moderna do cosmo. Copérnico demonstra, em sua tese
(heliocentrismo), que a terra não é o centro do universo, mas, pelo
contrário, que ela se encontra, como todos os outros planetas, girando,
movimentando-se em torno do Sol.
...eu sabia que a outros antes de mim fora concedida a liberdade de
imaginar os círculos que quisessem para explicar os fenômenos
celestes, pensei que também me fosse facilmente permitido
experimentar se, uma vez admitido algum movimento da Terra,
poderia encontrar demonstrações mais seguras do que as deles para as
revoluções das esferas celestes. E deste modo, admitindo os
19
movimentos que eu à Terra atribuo (...), com perguntas e longas
observações, descobri que, se estabelecermos relação entre a rotação
da terra e os movimentos dos restantes astros, e os calcularmos em
conformidade com a revolução de cada um deles, não só se hão-de
deduzir daí os seus fenômenos mas até se hão-de interligar as ordens e
grandezas de todas as esferas e astros assim como o próprio céu, de
modo que, em parte nenhuma, nada de si se possa deslocar sem a
confusão das restantes partes e de toda a universalidade [22].
Essa tese vai de encontro a toda a física tradicional, para a qual a Terra
encontrava-se no centro do universo, em estado de absoluto repouso,
obedecendo à ordem natural do cosmo. Agora, a Terra perde seu centro e
como um outro astro qualquer, percorre a órbita em torno do Sol.
Pergunta Copérnico: “Que outra coisa é a Terra, continente ou globo
terrestre, senão uma ilha maior que as outras?”. São ilustrativas as
palavras de Galileu nesse breve diálogo de seu livro: Diálogo sobre os dois
máximos sistemas do mundo – ptolomaico & copernicano:
Salviati – Será, portanto, necessário que vós, como o fizemos até
aqui, apresenteis ordenadamente as razões contrárias, seja de
Aristóteles como de outros antigos, o que também eu farei, para que
não fique nada para trás sem ter sido atentamente considerado e
examinado; e o Sr. Sagrado, com a vivacidade do seu engenho,
apresentará do mesmo modo seus pensamentos à medida que forem
sendo despertados.
Sagrado – Fá-lo-ei com a minha liberdade habitual; e posto que, vós
assim o ordenais, tereis também a obrigação de desculpar-me.
Salviati – O obséquio obrigar-me-á a agradecer-vos, e não a
desculpar-vos. Mas que comece logo o Sr. Simplício a apresentar
aquelas dificuldades que o impedem de poder acreditar que a Terra, do
mesmo modo que os outros planetas, possa movimentar-se em torno
de um centro estável.
Simplício – A primeira e máxima dificuldade é a aversão e
incompatibilidade existente entre o estar no centro e o estar afastado
do centro: porque, quando o globo terrestre tivesse que mover-se em
um ano pela circunferência de um círculo, ou seja, pelo zodíaco, é
impossível que, ao mesmo tempo, ele esteja no centro do zodíaco; mas
que a Terra esteja em tal centro, é de muitos modos provado por
Aristóteles, por Ptolomeu e por outros.
Salviati – Argumentais muito bem; e, sem dúvida, quem quiser fazer
mover a Terra pela circunferência de um círculo precisará antes provar
que ela não está no centro daquele tal círculo. Segue-se, portanto, que
vejamos agora se a Terra está ou não naquele centro em torno do qual
eu digo que ela gira, e no qual vós dizeis que está situada; e, antes
disso, é necessário ainda que declaremos se a propósito desse tal centro
20
temos vós e eu o mesmo conceito ou não. Por isso, dizei-me o que
entendeis por centro e onde ele está.
Simplício – Entendo por centro aquele do universo, aquele do
mundo, aquele da esfera estelar, aquele do céu.
Salviati – Ainda que eu pudesse muito razoavelmente colocar em
controvérsia se existe na natureza um tal centro, posto que nem vós
nem outro jamais provaram se o mundo é finito ou possui uma forma
ou infinito ou ilimitado; todavia, concedendo-vós por ora que ele seja
finito e limitado pela figura esférica, e que, por isso mesmo, tenha o
seu centro, será conveniente ver quanto se possa acreditar que a Terra,
e não outro corpo, encontra-se nesse centro.
Simplício – Que o mundo seja finito e limitado e esférico, prova-o
Aristóteles com centenas de demonstrações.
Salviati – As quais se reduzem todas a uma só, e aquela só a nada;
porque se eu negar o que ele assume, ou seja, que o universo seja
móvel, todas as suas demonstrações caem por terra, porque ele não
prova que é finito e limitado senão aquilo que no universo é móvel.
Mas para não multiplicar as disputas, conceda-se por ora que o mundo
seja finito, esférico, e tenha o seu centro: e uma vez que tal figura e
centro concluem-se a partir da mobilidade, não será senão muito
razoável que a partir dos próprios movimentos circulares dos corpos
do mundo cheguemos até a investigação particular da localização
apropriada de tal centro; pois, o próprio Aristóteles, também ele, dessa
mesma maneira argumentou e determinou, fazendo centro do universo
aquilo mesmo em torno do qual giram todas as celestes esferas e no
qual acreditou estar colocando o globo terrestre. Dizei-me agora, Sr.
Simplício: quando Aristóteles fosse obrigado por experiências
evidentíssimas a mudar em parte esta sua disposição e ordem do
universo, e a confessar ter-se enganado em uma destas duas
proposições, ou seja, ou ao colocar a Terra no centro, ou ao afirmar
que as esferas celestes movem-se em torno desse centro, qual das duas
confissões acreditais que ele escolhesse?
Simplício – Acredito que, se isso acontecesse, os peripatéticos...
Salviati – Não pergunto aos peripatéticos, pergunto ao próprio
Aristóteles; porque quanto àqueles sei muito bem o que responderiam.
Eles, como reverendíssimos e humilíssimos servos de Aristóteles,
negariam todas as experiências e todas as observações do mundo, e
recusar-se-iam até em vê-las, para não ter que reconhecê-las, e diriam
que o mundo é como escreveu Aristóteles, e não como quer a natureza;
porque, retirando-lhes o apoio daquela autoridade, como queríeis, que
viessem a campo? E por isso dizei-me o que vós estimais que faria o
próprio Aristóteles.
Simplício – Não consigo verdadeiramente decidir qual dos dois
inconvenientesele reputaria menor.
21
Salviati – Não empregueis, por favor, esse termo inconveniente para
designar aquilo que poderia ser necessário que fosse assim.
Inconveniente foi querer pôr a Terra no centro das revoluções celestes.
Mas já que não sabia para que parte ele se inclinaria, como eu o
considero um homem de grande engenho, examinemos qual das duas
escolhas seria a mais razoável, e consideremos que aquela fosse a
escolhida por Aristóteles. Retomando, portanto, o nosso raciocínio do
princípio, e supondo, por deferência a Aristóteles, que o mundo (de
cuja grandeza não temos notícia sensível além das estrelas fixas), como
aquilo que é de figura esférica e que se move circularmente, tenha
necessariamente, seja com respeito à figura, seja com respeito ao
movimento, um centro e como, além disso, temos certeza de que
dentro da esfera estelar existem muitos orbes, um dentro do outro,
com suas estrelas, que também se movem circularmente, procura-se o
que seja mais razoável acreditar e dizer: que estes orbes que se
compreendem movem-se em torno do mesmo centro do mundo, ou
antes, em torno outro bastante mais afastado que aquele. Dai-me
então, Sr. Simplício, vossa opinião acerca desse particular.
Simplício – Quando pudéssemos apoiar-nos sobre este único
pressuposto, e estivéssemos certos de não poder encontrar alguma
outra coisa que nos perturbasse, eu diria que é muito mais razoável
dizer que o continente e as partes contidas movem-se todos em torno
de um centro comum, que dizer que se movem em torno de centros
diferentes.
Salviati – Ora, quando seja verdade que o centro do mundo é o
mesmo que aquele em torno do qual se movem os orbes dos corpos do
mundo, ou seja, os planetas, então não é certamente a Terra, mas antes
o Sol, que se encontra colocado no centro do mundo: de modo que,
quanto a esta primeira apreensão simples e geral, o lugar do meio é do
Sol, e a terra encontra-se tão afastada do centro, quanto do mesmo Sol.
Simplício – Mas a partir do que concluís que não é a Terra, mas o
Sol que está no centro das revoluções dos planetas?
Salviati – Conclui-se a partir de observações evidentíssimas, e por
isso mesmo necessariamente concludentes; dos quais as mais
palpáveis, para excluir a Terra desse centro e colocar nele o Sol, são o
encontrarem-se todos os planetas ora mais próximos e ora mais
afastados da Terra, com diferenças tão grandes que, por exemplo,
Vênus, quando afastadíssima, encontra-se seis vezes mais distante de
nós que quanto está mais próxima, e Marte eleva-se quase oito vezes
mais numa posição que em outra. Vede, portanto, se Aristóteles se
enganou pouco ao acreditar que eles estivessem sempre igualmente
distante de nós.
Simplício – Mas quais são os indícios de que eles se movem em
torno do Sol?
22
Salviati – Isso se conclui, para os três planetas superiores, Marte,
Júpter e Saturno, a partir deles se encontrarem sempre muito
próximos à Terra quando estão em oposição ao Sol, e muito distantes
quando estão em conjunção; e esta aproximação e afastamento tem
tanta importância que, quando Marte está próximo, vê-se 60 vezes
maior que quando está afastadíssimo. De Vênus e de Mercúrio tem-se
certeza de que giram em torno do Sol, porque nunca se afastam muito
dele e porque os vemos ora acima, ora abaixo, como se conclui
necessariamente da mudança de figura de Vênus. Quanto à Lua, é
verdade que ela não pode de modo algum separar-se da Terra, pelas
razões que apresentaremos mais distintamente a seguir.
Sagrado – Já me preparo para ouvir coisas ainda mais maravilhosas
acerca desse movimento anual da Terra, que as que dependiam da
rotação diurna” [23].
Se o modelo matemático de interpretação do real já se anuncia, pelo
menos enquanto possibilidade, na teoria de Copérnico, é em Galileu que
esse modelo adquire a sua plena maturidade e se afirma, definitivamente,
como o modelo paradigmático da ciência na interpretação do Universo.
A partir de Galileu, temos uma nova imagem do mundo,
completamente diferente da imagem do mundo hierarquizado, finito,
finalista, compreendido e interpretado no interior de uma lógica
puramente dedutiva aristotélico-escolástica. Com Galileu, conhecemos,
pela primeira vez, a imagem do mundo moderno: um mundo aberto,
indefinido, infinito, um mundo desdivinizado, constituído unicamente
por uma ordem mecânica, que pode ser traduzido e interpretado a partir
de uma linguagem puramente matemática.
A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se
abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode
compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com
os quais está escrito. Ele está escrito em linguagem matemática, os
caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas,
sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras; sem
elas nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto [24].
A matemática, mesmo antes de Galileu ou Descartes, mesmo com seu
uso bastante limitado, sempre teve uma forte presença na vida prática dos
homens. Descartes se surpreende que uma tal ciência, tão importante
para o desenvolvimento do espírito humano, tenha sido tão subutilizada,
servido quase que exclusivamente para atender às demandas dos
trabalhos mecânicos desenvolvidos pelo homem.
Comprazia-me sobretudo com as Matemáticas, por causa da certeza e
da evidência de suas razões, mas não notava ainda seu verdadeiro
emprego, e, pensando que serviam apenas às artes mecânicas,
23
espantava-me de que, sendo seus fundamentos tão firmes e tão sólidos,
não se tivesse edificado sobre eles nada de mais elevado [25].
Com Galileu e Descartes, a matemática assume seu trono, torna-se
bitola de validação para todo conhecimento que, tendo a razão natural
como solo de sustentação, busque afirmar-se como ciência. A
matemática, além de habilitar o homem no “reto uso da razão”, prepra-o
para a conquista da natureza, tornado-o seu Senhor.
É para essa linguagem (a físico-matemática, principalmente aquela
pensada a partir de Galileu) e a sua nova possibilidade de aplicabilidade,
que o olhar de Descartes estará voltado. Ao romper com todas as certezas
adquiridas do pensamento antigo, Descartes preserva, como já
enunciamos, duas certezas, que não pertencem à filosofia: a matemática e
Deus. Duas certezas que, depois de reelaboradas, serão de fundamental
importância na construção da filosofia cartesiana.
Duas ciências: uma dá conta do mundo material: a física; a outra, do
mundo imaterial: a metafísica. Onde se encontra o ponto de convergência
entre o pensamento de Descartes e Galileu? Galieu é um cientista, sua
preocupação encontra-se voltado para a ciência, seu olhar não tem
nenhuma intenção de alcançar à metafísica. Descartes, ao contrário,
sendo também um filósofo, busca uma ciência unificadora, uma ciência
universal, capaz de subordinar todas as formas de saber a um mesmo
procedimento metodológico, a uma mesma raiz metafísica. A combinação
entre filosofia e ciência, subordinando uma à outra, é uma conquista de
Descartes, ninguém, antes dele, foi despertado para essa possibilidade. Na
Carta Prefácio, aos Princípios da Filosofia, descreve a filosofia como uma
árvore, sendo a raiz, a metafísica, o tronco, a física e os galhos, as outras
ciências: a moral, a medicina, a mecânica, etc. Entretanto, apesar desse
passo além, dado por Descartes, em relação a Galileu, ambos têm um
projeto comum, poder-se-ia dizer, um ponto de convergência. Qual seria?
Fundar uma nova ciência, que dê conta de um novo mundo, infinito ou –
por precaução, como diz Descartes –, indefinido, um mundo que é pura
matéria e extensão, desprovido de qualquer finalidade, regido por uma
estrutura puramente mecanicista, inteiramente subordinando à uma
física quantitativa, em substituição àquela mundo infinito, teleológico,
qualitativo que oferece o realismo aristotélico, que, mais tarde, depois de
cristianizada, tanto serviço prestou à teologia.
Essa ciência, comum tanto a Descartes quanto a Galileu, é
excessivamente perigosa, ela subverte a ordem do cosmo, apresentaum
novo mundo, um mundo aberto, em substituição a um mundo fechado.
Essa travessia não é feita com calmaria, o mar é revolto, o perigo é
eminente, cada passo deve ser dado com cuidado, os defensores do velho
mundo estão à espreita para fazer silenciar qualquer um que queira abrir
as portas para um novo mundo.
Descartes sabe dos perigos que representa essas novas ideias. Tal risco
faz com que Descartes recolha-se, mantenha-se nas sombras, evitando,
24
com isso, que suas ideias sejam associadas às de Galileu, que ele traga
para si os perigosos olhares que, naquele momento, encontravam-se
voltados para Galileu.
Em carta dirigida à Mersenne, escrita em 22 de julho de 1633,
Descartes demonstra-se preocupado com as perseguições contra Galileu, e
evidencia, acima de tudo, a importância e a influência das teses de
Galileu, na construção de sua própria obra. Em 1633, seu livro Le monde
ou le traité de la lumière [26] é escrito e nele Descartes acolhe, fazendo-as
suas, as principais teses defendidas por Gelileu: justifica a formação do
sol, a composição das estrelas, a descentralização da terra – o
heliocentrismo –, apresenta um mundo infinito – que por prudência,
indica-o como indefinido.
[...] Achava-me eu neste encargo quando recebi vossa última carta do
dia onze deste mês, e queria fazer como os maus pagadores que soem
pedir a seus credores que lhe concedam um pouco de prazo tão logo
sentem se aproximar o vencimento da dívida. De fato eu me propusera
vos enviar o meu Mundo como brinde para estas festas; e, não há ainda
quinze dias, eu estava resolvido deveras a vos remeter ao menos uma
parte se a obra toda não pudesse ser transcrita nesse tempo. Dir-vos-ei,
porém, que tendo mandado me informar, estes dias em Leyde e em
Amsterdão, se aí se acharia o sistema do Mundo de Galileu por me
parecer constar que ele fora impresso na Itália no ano passado, me
responderam que era verdade que tinha sido impresso, mas que todos
os exemplares haviam sido queimados em Roma ao mesmo tempo, e o
autor condenado a certa penalidade. Ora, isso me surpreendeu tanto
que resolvi quase queimar todos os meus papéis ou, pelo menos, não os
mostrar a ninguém. Pois não posso imaginar que ele, que é italiano e
mesmo bem querido do Papa, segundo me consta, tenha sido
considerado criminoso apenas pelo fato de ter desejado estabelecer o
movimento da Terra, o que sei bem haver sido outrora censurado por
alguns cardeais. Mas eu cuidava ter ouvido dizer, mais tarde, que isso
não deixava de ser ensinado publicamente, até mesmo em Roma; e
confesso que se isso é falso, todos os fundamentos da minha filosofia
também o são pois se demonstram por eles, evidentemente. E se acha de
tal forma ligado com todas as partes do meu Tratado, que eu não poderia
destacá-lo sem tornar defeituoso todo o resto. [...] peço-vos também que
me informeis o que souberdes a respeito do caso de Galilei [27].
Tal prudência leva Descartes a hibernar suas ideias, evitando que elas
venham à luz, afastando o risco de ter suas teses associadas às de Galileu
e, ao mesmo tempo, eliminando a possibilidade de estabelecer qualquer
relação conflituosa com a Igreja. Mesmo tendo conhecimento das
perseguições sofridas por Galileu, mesmo reconhecendo como
verdadeiras as suas teses, incorporando-as à sua concepção de ciência, em
nenhum momento Descartes vem a público em sua defesa, ao contrário,
25
recolhe-se, silencia-se, evitando que tais ideias possam gerar qualquer
conflito com a Igreja, trazendo-lhe consequências indesejáveis. A Igreja,
através de decreto, já proibira a divulgação de qualquer ideia contrária
àquelas reveladas pela Bíblia [28].
(...) Assim, pelo presente decreto, condena-os e proíbe-os inteiramente,
quer já impressos, quer a serem-no em qualquer lugar e não importa
em qual idioma”. A Sagrada Congregação, depois de listar uma série de
livros que estão proibidos pelo presente Decreto, diz, sobre Copérnico e
sua teoria: ‘Chegou também ao conhecimento da supracitada Sagrada
Congregação que a falsa doutrina pitagórica da mobilidade da Terra e
imobilidade do Sol, totalmente contrária à Divina Escritura, que As
revoluções dos orbes celestes, de Nicolau Copérnico e o Comentário
sobre Jó, de Diego de Zúñiga ensinam, já se propaga e é aceito por
muitos. Isto pode ser verificado por uma carta impressa por um certo
padre carmelita cujo título é Carta do Reverendo Padre Mestre Paolo
Antônio Foscarini Carmelita, sobre a opinião dos Pitagóricos e de
Copérnico a respeito da mobilidade da Terra e estabilidade do Sol e o
novo sistema Pitagórico do mundo (Nápoles, Lázzaro Scoriggio, 1615),
na qual o referido padre se esforça por mostrar que a mencionada
doutrina sobre a imobilidade do Sol no centro do mundo e a
mobilidade da Terra concorda com a verdade e não se opõe à Sagrada
Escritura. Assim, para que esta opinião não medre mais, destruindo a
verdade católica, declaro que As revoluções dos orbes, de Nicolau
Copérnico, e o Comentário sobre Jó, de Diego de Zúñiga, devem ser
suspensos até que sejam corrigidos; (...); que todos os demais que
ensinam o mesmo devem ser igualmente proibidos. De conformidade
com o que, pelo presente Decreto, proíbe, condena e suspende a todos
respectivamente. Em fé do que o presente Decreto foi assinado
pessoalmente pelo Ilustríssimo e Reverendíssimo Sr. Cardeal de Santa
Cecília, Bispo de Alba, e munido de seu selo no dia 5 de março de
1616. [29]
Diante de tal cerco, novas ideias não tem como suspirar, estão
sufocadas, cercadas e perseguidas por todos os cantos, seus autores estão
correndo risco de vida, é preciso ter cuidado. Seja por prudência, por
medo ou por uma atitude política, cuidado é o que não falta a Descartes:
“Desejo viver em paz” [30].
... ora, faz agora três anos que chegara ao fim do tratado que contém
todas essas coisas, e que começara a revê-lo, a fim de pô-lo em mãos de
um impressor, quando soube que pessoas, a quem respeito e cuja
autoridade sobre minhas ações quase não é menor que minha própria
razão sobre meus pensamentos, haviam desaprovado uma opinião de
Física, publicada pouco antes por alguém, opinião que não quero dizer
que a partilhasse, mas que nada reparara nela, antes de a censurarem,
26
que pudesse imaginar ser prejudicial ou à Religião ou ao Estado, nem,
por conseguinte, que me impedisse de escrevê-la, se a razão mo
houvesse persuadido, e isso me fez recear que se encontrasse, do
mesmo modo alguma entre as minhas, na qual me tivesse enganado,
não obstante o grande cuidado que sempre tomei em não acolher
novas em minha confiança, das quais não tivesse demonstrações muito
certas, e de não escrever nenhuma que pudesse resultar em
desvantagem para qualquer pessoa. O que bastou para me obrigar a
mudar a resolução que eu tomara de publicá-las. Pois, embora as
razões, pelas quais eu a adotara anteriormente, fossem muito fortes,
minha inclinação, que sempre me movera a detestar o mister de fazer
livros, me levou incontinente a achar muitas outras para me escusar
dela. E essas razões de uma parte e de outra são tais, que não só tenho
aqui algum interesse em dizê-las, como talvez o público também o
tenha em conhecê-las [31].
Apesar da prisão de Galileu, apesar de Descartes ter se recolhido às
sombras, ambos continuam, cada qual em sua prisão, trabalhando com o
Novo Mundo, àquele que, subordinando-se à bitola do métodos, deixa-se
traduzir pela nova linguagem de decifração do real: a matemática.
A matemática transforma-se na linguagem de representação do
universo. Esse novo modelo de representação do real é o início do
processo de construção da imagem do homem como sujeito que, a partir
da sua autonomia puramente racional, é capaz de compreender e fazer
falar as verdades do mundo.
Se esse processo de independência do homem, na construção da
verdade e das representações do mundo, já se anuncia em Copérnico e
Galileu, é em Descartes que ele encontrará a sua forma acabada,
plenamente amadurecida. Em Descartes, consuma-se o processo que, em
Copérnico e Galileu, só embrionariamente se anunciava: a afirmação do
sujeitocognoscente.
O sujeito, que é puro pensamento, constitui, em Descartes, fundamento
de todo conhecimento possível, afirma-se como base na qual será
assentado todo o saber do homem, não só sobre ele mesmo, como
também um saber do mundo e, no limite, um saber sobre Deus. Essa será
a função da filosofia cartesiana: garantida pela ordem racional de um
sujeito pensante, fundar uma filosofia que dê conta da totalidade do
conhecimento e que, ao mesmo tempo, ultrapasse o seu plano meramente
especulativo das antigas formas de se pensar, efetivando-se como uma
filosofia prática, útil à vida. Este é o projeto pessoal de Descartes:
Mas, tão logo adquiri algumas noções gerais relativas à Física, e,
começando a comprová-las em diversas dificuldades particulares, notei
até onde podiam conduzir, e o quanto diferem dos princípios que
foram utilizados até o presente, julguei que não podia mantê-las
ocultas, sem pecar grandemente contra a lei que nos obriga a procurar
27
no que depende de nós, o bem geral de todos os homens. Pois elas me
fizeram ver que é possível chegar a conhecimentos que sejam muito
úteis à vida, e que, em vez dessa Filosofia especulativa que se ensina
nas escolas, se pode encontrar uma outra prática, pela qual,
conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos
céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente
como conhecemos os diversos misteres de nossos artifícios,
poderíamos empregá-los da mesma maneira em todos os usos para os
quais são próprios, e assim nos tornar como que senhores e
possuidores da natureza [32].
Essa filosofia, que toma o sujeito, na sua pura autonomia racional,
como procedência da verdade, constrói e valida o saber verdadeiro sobre
todas as coisas, tornando o sujeito senhor e possuidor da natureza, só
aparece, de forma definitivamente elaborada, ao final do Renascimento,
mais especificamente, no racionalismo cartesiano [33]. Com Descartes, o
espírito conquista sua autonomia, tomando consciência de si, cria as
condições necessárias para que o sujeito possa afirmar o conhecimento
verdadeiro sobre todas as coisas. No teatro do conhecimento, Descartes
abre as cortinas do mundo moderno, inicia seu espetáculo, apresentando
o seu ator principal: o Sujeito. Diferentemente de toda filosofia que o
antecedeu, onde a verdade antecede e determina o sujeito – como vimos
no percurso feito até aqui –, com Descartes, o sujeito torna-se o sujeito da
verdade, o espírito saiu de sua adolescência, alcançou sua maioridade,
tornou-se independente, trouxe para a si a total responsabilidade de
produzir a verdade no mundo.
Afirmando o entendimento como procedência da verdade, Descartes
supera toda a metafísica do ser, derivada de uma filosofia que partia do
pressuposto de que a verdade é anterior e independente do sujeito que a
pensa, e, em seu lugar, apresenta ao mundo uma nova metafísica: a
metafísica do sujeito. Uma metafísica onde toda sua estrutura lógica, todo
seu critério de validação, encontra-se subordinada ao cogito, ao sujeito
pensante. Tal deslocamento gnoseológico altera por completo a ordem do
mundo. Com a conquista do cogito para o conhecimento, Descartes fecha
as portas do passado e anuncia ao mundo o nascimento de um novo
mundo: O Mundo moderno.
28
SEGUNDO CAPÍTULO
29
A METAFÍSICA DO SUJEITO
Fecharei agora os olhos, tamparei meus ouvidos, desviar-me-ei de todos os meus sentidos,
apagarei mesmo de meu pensamento todas as imagens de coisas corporais, ou, ao menos, uma
vez que mal se pode fazê-lo, reputá-las-ei como vãs e como falsas; e assim, entretendo-me apenas
comigo mesmo e considerando meu interior, empreenderei tornar-me pouco a pouco mais
conhecido e mais familiar a mim mesmo. (Descartes – Meditações)
No capítulo anterior, demonstramos a ruptura, feita por Descartes,
com toda a filosofia que o antecedeu, buscando, através dessa ruptura, a
construção de uma nova razão, fundada na ordem racional do sujeito
pensante. Neste capítulo, o que pretendemos demonstrar é a ordem
interna desta nova razão, os fundamentos filosóficos que garantem os
pressupostos da metafísica racional cartesiana. Se no primeiro capítulo a
visão era de horizontalidade, neste, a visão será de verticalidade.
Voltaremos o nosso olhar para o interior da filosofia de Descartes para
que possamos, a partir deste olhar de interioridade, melhor contemplar e
compreender a trama conceitual urdida na construção de sua metafísica.
Com isso não pensamos abarcar todo o pensamento cartesiano,
focaremos o nosso olhar principalmente sobre sua metafísica. Para isto,
escolhemos nos deter na sua obra Meditationes de prima philosophia, na
qual estão expostos, já plenamente desenvolvidos, todos os temas que
compõem sua metafísica: O Eu, Deus e o Mundo. Ao longo das seis
meditações: 1ª - Das coisas que se podem colocar em dúvida; 2ª - Da
natureza do espírito humano; e de como ele é mais fácil de conhecer do que
o corpo; 3ª - De Deus; que Ele existe; 4ª - Do verdadeiro e do falso; 5ª - Da
essência das coisas materiais; e, novamente, de Deus, que Ele existe; 6ª - Da
existência das coisas materiais e da distinção real entre a alma e o corpo do
homem.
Nesta obra, Descartes constrói o itinerário da razão, no qual justifica
como os diversos momentos intelectuais vão se articulando, em um
encadeamento estritamente lógico, onde cada conceito encontra sua
justificação no nexo de efeito em relação ao que lhe precede e de causa,
ao que lhe segue, com a intenção de fundar uma metafísica subordinada à
ordem da razão.
Em carta enviada “Aos Senhores Deão e Doutores da Sagrada
Faculdade de Teologia de Paris [1]”, onde apresenta sua obra, Meditationes
de prima philosophia, e alimenta uma grande expectativa de obter, destes
decanos e doutores, aprovação para as suas ideias, Descartes, apesar do
excesso de cuidado com as palavras – não quer assustar seus leitores,
correndo o risco de tê-los contra o seu projeto filosófico –, deixa claro sua
intenção em substituir a velha metafísica, colocando em seu lugar uma
nova metafísica que encontra na razão natural sua base de sustentação.
A razão que me leva a apresentar-vos esta obra é tão justa – e, quando
conhecerdes seu desígnio, estou certo de que tereis o também justo
desígnio de tomá-la sob vossa proteção – que penso nada melhor poder
30
fazer, para torná-la de algum modo recomendável a vossos olhos, do
que dizer-vos, em poucas palavras, o que me propus nela. Sempre
estimei que estas duas questões, de Deus e da alma, eram as principais
entre as que devem ser demonstradas mais pelas razões da Filosofia
que da Teologia: pois, embora nos seja suficiente, a nós outros que
somos fiéis, acreditar pela fé que há um Deus e que a alma humana
não morre com o corpo, certamente não parece possível poder jamais
persuadir os infiéis de religião alguma, nem quase mesmo de qualquer
virtude moral, se primeiramente não se lhe provarem essas duas coisas
pela razão natural. (...) Eis por que, Senhores, qualquer que seja a força
que possam ter minhas razões, posto que pertencem à Filosofia, não
espero que exerçam grande efeito sobre os espíritos se não as tomardes
sob vossa proteção. Mas, sendo tão grande a consideração de todos por
vossa companhia, e sendo o nome da Sorbonne de tal autoridade que
não somente no que concerne à Fé, depois dos Sagrados Concílios,
jamais se deu tanto crédito ao juízo de qualquer outra companhia, mas
também no que se refere à humana Filosofia, cada um crendo que não
é possível encontrar alhures mais solidez e conhecimento, nem mais
prudência e integridade para formular seu juízo; não duvido, se vos
dignardes a tanto cuidar deste escrito, a ponto de querer
primeiramente corrigi-la (pois, tendo conhecimento não só de minha
imperfeição como também de minha ignorância, não ousaria eu
assegurar que não haja nele quaisquer erros) e, depois, após
acrescentar as coisas que lhe faltam, arrematar as que não estão
perfeitas e tomar, vós mesmos, o cuidado de fornecer uma explicação
mais ampla às que dela necessitem, ou, ao menos, disso meadvertir a
fim de que nisso trabalhe, e, enfim, depois que as razões pelas quais eu
provo que há um Deus e que a alma humana difere do corpo tiverem
sido levadas ao ponto de clareza e evidência a que eu tenho certeza ser
possível conduzi-las, que deverão ser tomadas como demonstrações
muito exatas, e quiserdes declarar isto mesmo e testemunhá-la
publicamente: eu não duvido, digo, que, se isto for feito, todos os erros
e falsas opiniões que jamais existiram no tocante a essas duas questões
sejam em breve expungidas do espírito dos homens. Pois a verdade
fará que todos os doutos e pessoas de espírito subscrevam vosso
julgamento e vossa autoridade, de tal modo que os ateus, que são de
ordinário mais arrogantes que doutos e judiciosos, se despojem de seu
espírito de contradição ou talvez sustentem, eles próprios, as razões
que verão serem recebidas por todas as pessoas de espírito como
demonstrações, temendo parecerem não possuir inteligência; e, enfim,
todos os outros facilmente se renderão ante tantos testemunhos que
não haverá mais ninguém que ouse duvidar da existência de Deus e da
distinção real e verdadeira da alma humana em relação ao corpo.
Compete a vós, agora, julgar o fruto que proviria dessa crença, se ela
fosse uma vez bem estabelecida, vós que vedes as desordens que sua
31
dúvida produz; mas não seria gentil de minha parte recomendar ainda
mais a causa de Deus e da Religião àqueles que sempre foram seus
mais firmes esteios” [2].
Percebe-se que essa carta de apresentação das Meditações traz duas
intenções: primeiro conquistar para as suas ideias, o apoio e a proteção
da Igreja; segundo, apresentar suas ideias filosóficas de forma tal que não
transpareça seu verdadeiro sentido revolucionário. É preciso cuidado, não
se deve assustar a quem se deseja ter como aliado. A aprovação da
Sorbone para as suas ideias, seria a garantia de que outras universidades
– tomando conhecimento deste reconhecimento – seguissem os mesmos
caminhos, levando sua filosofia a se afirmar nos mais diversos meios
acadêmicos, alcançado, no limite, toda a cristandade, como o novo
modelo de racionalidade, em substituição ao modelo derivado da filosofia
de Aristóteles, subordinada aos fundamentos da teologia, adotada por
toda a Escolástica, encontrando na Universidade da Sorbone, que
afirmava-se como referência de validação do conhecimento verdadeiro [3].
Tal panorama justifica que Descartes seja moderado em suas palavras,
que a apresentação dos princípios de sua filosofia não se revelasse por
inteiro, assim, quem sabe, não escandalizando seus possíveis leitores com
suas ideias revolucionárias, mais facilmente poderia conquistá-los e tê-los
como protetores e divulgadores de suas ideias. A moderação sempre foi
uma característica da personalidade de Descartes, que sempre busca não
se expor, não colocar em risco, nem sua obra, nem ele próprio. Não seria
agora, que está lutando para levar ao mundo a sua filosofia, que irá correr
riscos. Entretanto, apesar de todo cuidado e moderação, o que ele está
apresentando nestes princípios, é uma filosofia perigosa, com uma
densidade explosiva que pode implodir e eliminar toda estrutura
cosmológica do Mundo antigo, colocando em seu lugar uma nova
cosmologia sobre a qual será construída a imagem de um novo Mundo, a
imagem do Mundo moderno.
Como se vê, não é pouca coisa o que quer e pretende Descartes. Sua
pretensão é muito maior, bem maior do que os seus leitores pudessem
supor ou mesmo suportar. A intenção de Descartes vai muito mais além
do que oferecer uma fundamentação racional para que a Igreja possa
justificar a existência de Deus, da alma e de sua imortalidade. Isso é
verdade, mas é só uma parte da verdade. Essa é a parte que a sua carta
não revela. Ele pretende construir uma nova ciência, uma ciência
universal, tendo como modelo o rigor da matemática, subordinada, toda
ela, à razão natural, que dê conta da totalidade do conhecimento. Essa
ciência se chama metafísica. É ela que, segundo Descartes, todas as
outras ciências terão que ter como fundamento, como causa primeira,
através da qual será construída “uma ordem única do saber”. Essa
intenção de fazer da metafísica a base para a fundamentação do saber,
fica bastante clara quando Descartes nos apresenta a imagem da sua
32
famosa árvore do conhecimento:
A filosofia é como uma árvore, cujas raízes são a metafísica, o tronco a
física e os ramos que saem do tronco são todas as outras ciências, que
se reduzem a três principais: a medicina, a mecânica e a moral,
entendendo por moral a mais elevada e mais perfeita, porque
pressupõe um conhecimento integral das outras ciências, e é o último
grau da sabedoria [4].
Apresentaremos, a seguir, uma síntese reconstrutiva das seis
Meditações. Tomando o cuidado de atender a uma solicitação que
Descartes faz questão de enfatizar em seus escritos: no Discurso do
Método - Sexta Parte: “... muito estimo pedir aqui, aos nossos vindouros,
que jamais creiam nas coisas que lhes forem apresentadas como vindas de
mim, se eu próprio não as tiver divulgado”; na Carta-Prefácio dos
Princípios da Filosofia: “rogo aqui aos leitores que nunca me atribuam
qualquer opinião que não encontrem expressamente nos meus escritos, e
que não aceitem nenhuma como verdadeira, quer nos meus escritos quer
em outro lugar, se não verificarem que é claramente deduzidas dos meus
princípios” [5].
Além da reconstituição propriamente dita do texto, comportará o
acréscimo de comentários ou observações selecionadas a partir de dois
critérios: que sejam capazes de esclarecer questões do próprio texto ou
que sejam relevantes para o realce do tema a ser trabalhado.
Se a metafísica é a raiz que sustenta e nutre a árvore da sabedoria,
tendo a física como o seu tronco, e as outras ciências: medicina, mecânica
e moral, como seus galhos, é nas Meditações que essas raízes encontra
seus fundamentos para justificar e validar o conhecimento verdadeiro
sobre todas as coisas.
Descartes inicia a Primeira Meditação fazendo uma suspensão de juízo
sobre todos os conhecimentos adquiridos no seu período de formação.
“Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos,
recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que
depois eu fundei em princípios tão mal assegurados, não podia ser senão
mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar
seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a
que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os
fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas
ciências” [6].
Aqui, a dúvida se instala, e se instala de maneira radical. A suspensão
do juízo é total e absoluta, nada está fora do seu alvo. É preciso duvidar
de tudo, até que seja possível encontrar algo tão verdadeiro que resista à
própria possibilidade da dúvida, que seja uma verdade indubitável.
A dúvida é a pedra de toque da verdade, o ácido que dissolve os erros.
Por isso ser-nos-á necessário torná-la tão forte quanto possível e
33
duvidar de tudo sempre que possível. Só então teremos a certeza de
apenas conservar o ouro da pura verdade [7].
Agora, pois, que meu espírito está livre de todos os cuidados, e que
consegui um repouso assegurado numa pacífica solidão, aplicar-me-ei
seriamente e com liberdade em destruir em geral todas as minhas
antigas opiniões [8].
Sabe Descartes que é impossível, e mesmo desnecessário, analisar
“todas” as opiniões. Basta, então, e é isso que ele fará, tomar como falsas,
não dar “crédito às coisas que não são inteiramente certas e
indubitáveis” [9]. E, segundo ele, bastará encontrar “o menor motivo de
dúvida” nas coisas, para poder rejeitar todas elas como falsas: “para isso,
não é necessário que examine cada uma em particular, isso seria um
trabalho infinito; mas, visto que a ruína dos alicerces carrega
necessariamente consigo todo o resto do edifício, dedicar-me-ei
inicialmente aos princípios sobre os quais todas as minhas antigas
opiniões estavam apoiadas” [10].
A dúvida aqui é “hiperbólica” - exagerada -, porque

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