Buscar

Lendo o livro dos Salmos - Frei Carlos Mesters

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 131 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 131 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 131 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

2
SUMÁRIO
Capa
Rosto
Introdução | Rezar os Salmos hoje
Capítulo 1 | O lugar do livro dos Salmos na Bíblia
Capítulo 2 | Origem e formação do livro dos Salmos
1. Um processo de formação que durou quase 800 anos
2. Preces vindas de todo canto e lugar
3. Oração dos pobres nos centros de romaria
4. Cânticos populares
5. Coleções de Salmos
6. Canto repetido, canto modificado
7. Davi, o autor dos Salmos
8. Os cinco livros dos Salmos: a Lei orante do povo de Deus
9. Enumeração confusa dos Salmos
10. O conteúdo final do livro dos Salmos
Capítulo 3 | O jeito de o povo da Bíblia rezar os seus Salmos
1. Instruções para o povo
2. Instrumentos musicais
3. Participação do povo
4. Expressão corporal
5. Espelho para todo sofredor
6. Um retrato da vida de todos
7. Ambiente organizado da comunidade
Capítulo 4 | Salmo 1 e Salmo 150: observância e gratuidade
Salmo 1: observância e luta
Salmo 150: gratuidade e festa
Os dois perigos que ameaçam a prece
Capítulo 5 | A poesia dos Salmos
Poesia: o lado de dentro das coisas
Alma e corpo da poesia
O jeito como a poesia dos Salmos arruma as palavras e as frases
O desafio da poesia
Capítulo 6 | A raiz dos Salmos
1. Deus ouve o nosso clamor
2. O Nome dele é YHWH
3. A invocação do Nome de Deus
4. Celebrar o Nome
Capítulo 7 | Portas de entrada para o mundo dos Salmos
1. A porta da memória do passado
2. A porta da contemplação da natureza
3. A porta da busca da face de Deus
4. A porta da busca da felicidade
5. A porta da observância da Lei de Deus
6. A porta da certeza do pobre em ser atendido
7. A porta da oração a Deus na solidão da noite
Capítulo 8 | A oração dos Salmos na vida de Jesus e de Maria sua Mãe
3
kindle:embed:0002?mime=image/jpg
1. A escola de oração de Jesus
2. O tríplice ritmo da oração na vida do povo no tempo de Jesus
3. Jesus convivendo no ambiente de oração do seu povo
4. A oração na vida de Jesus
5. O Pai-nosso: o Salmo de Jesus
6. O Magnificat: o Salmo de Maria, a Mãe de Jesus
Capítulo 9 | As dificuldades na reza dos Salmos
1. Olhando de perto as dificuldades
* Ira, raiva, agressividade, violência, sofrimento como castigo de Deus
* Imagens estranhas, linguagem difícil, fatos desconhecidos
* Afirmações que contradizem a nossa experiência diária
2. Esclarecendo algumas dificuldades
* Considerações sobre a violência e a ira de Deus nos Salmos
* Considerações sobre a pedagogia divina e a imagem que temos de Deus
* Sugestões para as imagens estranhas, linguagem difícil, fatos desconhecidos
Capítulo 10 | O rio dos Salmos: do nascedouro ao mar. Um breve resumo de tudo o
que vimos
1. A nascente
2. As fontes
3. Os córregos
4. O rio
5. O barco
6. Os romeiros
7. Os remos
8. O piloto
9. O porto
10. O mar
Capítulo 11 | Sugestões para assimilar os Salmos na vida
1. Sugestões de como estudar um salmo
2. Sugestão para você fazer o salmo da sua vida
3. Sugestão para a família ou a comunidade fazer o seu salmo
4. Sugestão de como atualizar os Salmos antigos para nós hoje
5. A vida de hoje nos Salmos de ontem
6. Leitura frequente, pessoal e comunitária, a partir de Jesus
Capítulo 12 | Os Salmos: um itinerário para Deus
1. A busca de Deus: Onde encontrá-lo? (Sl 77,4.7-11)
2. O retrato de Deus que orienta a busca (Sl 145,7-10)
3. Amadurecendo em humanidade diante de Deus (Sl 131)
4. O caminho para Deus passa pelo amor ao próximo (Sl 24,1-6)
5. Deus é amor, o amor revela Deus (1Cor 13,4-8)
6. A presença de Deus irrompe na natureza e nas coisas da vida! (Sl 8,2-5)
7. Prisioneiro do desejo de Deus (Sl 63,2.6-9)
8. O Salmo de Jesus (Mt 6,9-13)
9. O Salmo de Maria, a mãe de Jesus (Lc 1,46-55)
10. Um dos muitos Salmos da Igreja e das nossas comunidades
Apêndice | Temas frequentes na oração dos Salmos
1. A raiz de onde nasceram os Salmos
2. A contemplação da natureza como criatura de Deus
3. Amor e fidelidade
4. Deus acolhe os pobres e os indigentes
5. A busca da face de Deus
6. A busca da felicidade: feliz quem busca o Senhor
4
7. De noite rezo na cama
Coleção
Ficha Catalográfica
5
kindle:embed:0002?mime=image/jpg
H
INTRODUÇÃO
Rezar os Salmos hoje
á uma diferença entre as palavras “rezar” e “orar”. Posso rezar os Salmos e
posso orar os Salmos. “Rezar” vem de “recitar”: recito, rezo orações que outros
fizeram. “Orar” vem da palavra latina “ora” (bocas): oro, pronuncio com a boca as
orações que eu mesmo fiz. A reza, a recitação, quando feita mecanicamente, favorece
a rotina e torna superficial a oração. No tempo de Jesus, o ideal era este: aprender a
rezar os Salmos de tal maneira que eles despertem a criatividade e levem a pessoa a
produzir o seu próprio salmo. Foi o que aconteceu na vida de Jesus. Ele fez o seu
próprio Salmo que é o Pai-nosso (Mt 6,9-13; Lc 11,2-4). O salmo de Maria, a mãe de
Jesus, é o Magnificat (Lc 1,46-55).
Milton Nascimento tem uma música, cuja letra diz assim: “Certas canções que
ouço cabem tão dentro de mim que perguntar carece: Como não fui eu que fiz?”. Será
que eu posso dizer: certos Salmos cabem tão bem dentro de mim que perguntar
carece: Como não fui eu que fiz? Será que posso chegar a rezar os Salmos de tal
modo que eles expressem aquilo que estou sentindo? Dizia o monge João Cassiano,
do século IV (360-435): “Instruídos por aquilo que nós mesmos sentimos, já não
percebemos o salmo como algo que só ouvimos, mas sim como algo que
experimentamos e tocamos com nossas próprias mãos; não como uma história
estranha e inaudita, mas como algo que damos à luz desde o mais profundo do nosso
coração, como se fossem sentimentos que formam parte do nosso próprio ser”
(Collationes X, 11). Este é, até hoje, o ideal a ser alcançado na reza dos Salmos.
Às vezes, acontece que rezamos um salmo e ele não nos diz nada. Isso nem
sempre é por falta de estudo ou de piedade. Pode ser, simplesmente, como dizia o
monge Cassiano, por falta de atenção “àquilo que nós mesmos sentimos”. Pois, se eu
vivo na superficialidade, sem me aprofundar “naquilo que nós mesmos sentimos”,
não chego a experimentar a vida que é a raiz de onde nasceu o salmo, e o salmo
permanecerá uma oração estranha e distante, que não me diz respeito.
Os Salmos nasceram da vida, e nas experiências da vida encontramos a chave
principal para abrir a porta que nos permite entrar no mundo dos Salmos. E são tantas
as experiências da nossa vida! Alegria numa reunião de família (Sl 128,3); admiração
diante da beleza do pôr do sol ou do luar do sertão (Sl 8,4); revolta diante das
injustiças (Sl 58,2-10); uma criança dormindo tranquila no colo da mãe (Sl 131,2);
um pedreiro que levanta a parede de uma casa (Sl 127,1); saudades da terra natal (Sl
42,5) etc. Tudo aquilo que a vida tem de belo ou de triste pode tornar-se assunto para
uma conversa ao pé do ouvido com este Deus amigo. Assim nasceram os Salmos.
Brotaram da vida do povo. Funcionam como colírio. Ajudam a descobrir os reflexos
de Deus nas coisas da vida.
Este livro quer oferecer uma ajuda, visto que ele traz sugestões e reflexões de
como abrir a porta da casa dos Salmos e encontrar aí dentro um lugar aconchegante,
para poder louvar a Deus e fortalecer em nós o compromisso com a busca do Reino
de Deus e a sua justiça (cf. Mt 6,33). O estudo que faremos tem dois objetivos. O
primeiro é ajudar a conhecer o livro dos Salmos pelo lado de fora, dando informações
sobre a sua origem e o seu uso. O segundo é procurar abrir algumas janelas, por onde
6
os Salmos poderão ser observados e meditados pelo lado de dentro. Ambos os
objetivos nascem da mesma preocupação: oferecer uma chave para perceber a sua
importância para a nossa vida.
7
H
CAPÍTULO 1
O LUGAR DO LIVRO DOS SALMOS NA BÍBLIA
á três tipos de livros no Antigo Testamento: os livros históricos, que descrevem
o passado do povo de Deus; os livros sapienciais ou livros de sabedoria, que
falam da vida presente do povo, da sua sabedoria e da sua luta diária para sobreviver;
os livros proféticos, que conservam as palavras dos profetas para orientar a
caminhada do povo em direção ao futuro.
O livro dos Salmos costuma ser colocado entre os livros sapienciais. Mas o
curioso é quenos Salmos não há só sabedoria. Há também muita história e profecia.
E nos livros proféticos, históricos e sapienciais, não há só profecia, história e
sabedoria; há também Salmos, muitos Salmos. Só uma pequena parte dos Salmos da
Bíblia está no livro dos Salmos; a outra parte, bem maior, está espalhada pelo resto da
Bíblia, até no Novo Testamento.
Algo semelhante acontece com o tempo em que os Salmos foram escritos. Há
Salmos que foram feitos quando o livro dos Salmos ainda nem existia. Por exemplo,
os cânticos ou Salmos de Miriam (Ex 15,21), de Moisés (Ex 15,1-18), de Débora (Jz
5,1-31), de Ana (1Sm 2,1-10). E há Salmos que foram feitos bem depois que o livro
dos Salmos já estava pronto. Por exemplo, os cânticos de Maria (Lc 1,46-55), de
Zacarias (Lc 1,67-79), de Simeão (Lc 2,29-32) e os cânticos das primeiras
comunidades cristãs, que o apóstolo Paulo copiou e conservou nas suas cartas (1Cor
13,1-13; Fl 2,6-11).
Essas breves observações sobre o lugar do livro dos Salmos no conjunto da Bíblia,
sobre o conteúdo do livro dos Salmos e sobre a época em que os Salmos foram feitos,
permitem tirar quatro conclusões muito simples e muito importantes:
1. Amostra: O livro dos Salmos não pretende ter o monopólio da oração; pretende
ser apenas uma amostra de como o povo de Deus rezava naquele tempo.
2. Modelo: O livro dos Salmos oferece um modelo e um estímulo de como se
pode rezar. Quer provocar a criatividade e suscitar novos Salmos, como de fato
suscitou em muitas pessoas.
3. Ajuda: O livro dos Salmos serve como ajuda na hora da precisão. Todos nós, de
vez em quando, temos momentos de vazio e de abandono, em que já não
sabemos como e o que rezar. Numa hora dessas, é bom poder recorrer aos
Salmos e usar suas palavras antigas sempre novas para dirigir-nos a Deus. Foi o
que fez Jesus na hora da sua morte: “Meu Deus! Meu Deus! Por que me
abandonaste?” (Mc 15,34; Sl 22,2).
4. Vida: Para o povo de Deus, a prece não era um setor isolado, separado da vida.
Pelo contrário! Há um vaivém constante entre prece e vida, vida e prece. As
duas formavam uma unidade.
Duas comparações para resumir o que foi dito:
a) O livro dos Salmos é como a caixa d’água da nossa casa. Parte da água está
dentro da caixa, parte dela está nos canos que percorrem a casa. Canos de dois
tipos: os canos que conduzem a água da fonte até a caixa, e os canos que levam
8
a água da caixa até as torneiras. Às vezes, os canos são tantos e tão grandes, que
há mais água nos canos do que na própria caixa d'água. Há mais Salmos nos
outros livros da Bíblia do que no próprio livro dos Salmos.
b) A Bíblia é como uma casa à beira do rio. Você vê o reflexo da casa nas águas
do rio. O rio é a oração dos Salmos. É no rio dos Salmos que você vê refletida
toda a vida do povo: sua lei, sua história, sua sabedoria, sua profecia. Os Salmos
são o lado orante da vida e da história do povo de Deus.
9
N
CAPÍTULO 2
ORIGEM E FORMAÇÃO DO LIVRO DOS SALMOS
a superfície do livro dos Salmos, aparecem alguns sinais que chamam a atenção:
repetições, interrupções, incertezas quanto ao autor do salmo, confusão quanto à
enumeração dos Salmos. São pequenas janelas que permitem olhar para dentro da
casa e conhecer de perto o longo processo da formação do livro dos Salmos. Elas
revelam como se chegou dos Salmos ao livro dos Salmos.
Na origem de cada salmo, está um salmista, um poeta, uma poetisa, uma pessoa; e
na origem do livro dos Salmos, está a comunidade, ou seja, o povo. Se os 150 Salmos
foram transmitidos ao longo dos séculos e chegaram a ser reunidos num único livro,
isto se deve à iniciativa do povo. O povo se reconhecia nos Salmos e encontrava neles
um reflexo da sua caminhada, uma expressão da sua fé e da sua esperança. Por isso,
os cantava, selecionava e conservava. Assim se chegou dos Salmos ao livro dos
Salmos.
Neste capítulo, veremos de perto os pontos mais significativos deste longo
processo da formação do livro dos Salmos, assim como veremos a sua semelhança
com os livros de canto que hoje circulam nas nossas comunidades.
10
1. Um processo de formação que durou quase 800 anos
Alguns Salmos são bem antigos e datam desde o tempo de Davi, que governou o
povo de 1010 até 970 a.C. Outros Salmos já são mais recentes. Os últimos,
provavelmente, são do fim da época persa, em torno do ano 340 a.C. Isto quer dizer
que a formação do livro dos Salmos durou quase oitocentos anos! Por isso, nem
sempre é possível saber em que época exata foi escrito este ou aquele salmo. Essa
incerteza quanto à data da composição da maioria dos Salmos tem um significado
para o seu uso. Não sendo de nenhum tempo certo, dá certo para todos os tempos!
11
2. Preces vindas de todo canto e lugar
Alguns Salmos refletem o ambiente da cidade; por exemplo, o salmo que fala do
vigia noturno (Sl 130,6-7). Outros já são mais do interior, da roça; por exemplo, o
salmo que usa a imagem do arado para descrever a exploração dos agricultores (Sl
129,3). Alguns Salmos foram feitos na Palestina (Sl 122), outros no exílio da
Babilônia (Sl 137). Há Salmos que vêm da região do Norte da Palestina, outros do
Sul. Eles vêm de todo canto e lugar! É como hoje: pela letra e pela melodia, você
consegue reconhecer se o cântico vem do Nordeste ou do Sul do país. Na Bíblia, pela
maneira de os Salmos usarem o nome de Deus, os entendidos no assunto conseguem
descobrir se são do Norte ou do Sul da Palestina. Por exemplo, os Salmos 1 até 41
preferem chamar Deus de YHWH, traduzido em algumas Bíblias por Senhor. Os
Salmos 42 até 89 preferem usar o nome Elohim, que significa Deus. Mesmo assim,
na maioria dos casos, é muito difícil saber exatamente em que lugar este ou aquele
salmo foi escrito. Aqui vale o mesmo que acabamos de dizer a respeito da época. Não
sendo de nenhum lugar certo, dá certo para todos os lugares, inclusive para nós aqui
no Brasil.
12
3. Oração dos pobres nos centros de romaria
Antes da reforma de Josias de 620 a.C., havia muitos pequenos santuários
espalhados pela Palestina. Cada um desses santuários estava ligado a um fato
determinado da história do povo de Deus. Nas festas, os romeiros iam lá para fazer
suas preces, oferecer os seus dons e cumprir suas promessas. Os sacerdotes os
recebiam e com eles rezavam. Eis uma lista de alguns desses santuários, junto com os
fatos da história que neles eram lembrados e celebrados:
1. Siquém: Lugar onde Abraão recebeu a promessa da terra e fez um altar (Gn
12,6-8).
2. Hebron: Lugar do enterro de Sara e Abraão, junto ao carvalho de Mambré (Gn
13,18; 25,7-10).
3. Moriá: Lugar onde Abraão queria sacrificar Isaque, mas Deus o proibiu (Gn
22,1-2).
4. Bersabeia: Lugar onde Abraão fez um altar e Isaque cavou poços (Gn 21,32-
34; 22,19; 26,23-25).
5. Betel: Lugar onde Jacó teve a visão da escada até o céu (Gn 28,11-19; 1Sm
7,16; 2Rs 2,3).
6. Masfa: Lugar onde Jacó e Labão fizeram aliança para evitar guerra entre irmãos
(Gn 31,44-54).
7. Guilgal: Lugar das doze pedras como memorial da travessia do Jordão (Js 4,19-
24; 5,2-12).
8. Jericó: Lugar onde Josué teve uma visão do chefe do exército de YHWH (Js 5,13-
15).
9. Silo: Lugar de romaria anual, onde Eli acolheu e orientou o pequeno Samuel
(1Sm 1,1-2,10).
10. Carmelo: Lugar onde o profeta Elias refez a aliança quebrada das doze tribos
(1Rs 18,20-40).
As celebrações que se faziam nesses centros de romaria ajudavam o povo a manter
viva a memória e ter um contato direto com a sua origem como povo de Deus. Na
história do Brasil, foram os inúmeros pequenos santuários de peregrinação ligados
aos santos e santas da devoção popular que, ao longo dos séculos, sustentaram e
animaram a fé do povo. Assim era na Palestina: cada região, cada tribo tinha o seu
santuário de peregrinação, no qual lembravam e cultivavam os fatos e as pessoas
importantes da sua história como povo de Deus.
O ambiente daqueles santuários era muito simples, quase familiar. Em Silo, por
exemplo, o santuário era pequeno, e o espaço era apertado. O sacerdote Eli tomava
conta, recebia o povo e conversava com as pessoas. Foi lá que Ana,mãe de Samuel,
entrou no santuário e rezou, derramando sua alma angustiada diante de Deus (1Sm
1,9-11). Sentado na sua cadeira do lado de fora, junto à porta do santuário, Eli estava
tão perto que podia observar até o movimento dos lábios de Ana (1Sm 1,12). Ele
pensou que ela estivesse embriagada e pediu para ela voltar mais tarde, depois que o
efeito do vinho tivesse passado. Ana respondeu: “Não, Senhor! Eu sou uma mulher
atribulada. Não bebi vinho nem bebida forte. Mas derramo minha alma na presença
do Senhor. Não julgues a tua serva como uma vadia! É que estou muito triste e aflita.
13
Por isso estou rezando até agora!” (1Sm 1,15-16). Depois da reza, Ana conversou
com Eli e dele recebeu conselhos (1Sm 1,14-18). E ela voltou confortada para casa.
Esse fato nos dá uma ideia de como era o ambiente de oração naqueles santuários.
Era lá que o povo do interior, os pobres, vinham rezar e derramar sua alma diante do
Senhor. Ora, foi no ambiente desses pequenos centros de romaria que surgiram
muitos Salmos, sobretudo os Salmos de lamento, os Salmos dos pobres, Salmos
anônimos.
14
4. Cânticos populares
Os Salmos foram surgindo e o povo os cantava, conservando uns e esquecendo
outros. Hoje acontece o mesmo. Certos cânticos das Campanhas da Fraternidade já
foram esquecidos. Ninguém mais lembra deles. Mas se perguntar: “Vocês conhecem
Prova de Amor?”, todo mundo conhece. Pouca gente lembra o autor e a data desde
canto. Mas se perguntar: “Quem escreveu Jesus Cristo, eu estou aqui?”, muita gente
vai saber que foi Roberto Carlos. O mesmo acontecia com os Salmos. O povo
lembrava o autor de alguns. De outros, já não lembrava, ou ficava em dúvida.
Na Bíblia Hebraica, dos 150 Salmos, um terço deles, ou seja, quarenta e nove
Salmos são anônimos. Não têm autor. No título do Salmo 72 se diz: “De Salomão”
(Sl 72,1). No fim do mesmo salmo, se diz: “Fim das orações de Davi” (Sl 72,20).
Ficou a dúvida: é de Davi ou de Salomão? Hoje em dia, às vezes, a gente não sabe se
determinadas músicas são do padre Zezinho, de Zé Vicente ou da Irmã Miriam.
15
5. Coleções de Salmos
O livro dos Salmos parece uma colcha de retalhos. Os retalhos são as coleções de
Salmos que já existiam e que foram usadas e adaptadas para compor o livro. Um
simples levantamento dos títulos dos Salmos oferece o seguinte quadro geral:
Os Salmos 3 até 41 são de Davi (menos o Salmo 33);
Os Salmos 42 até 49 são dos filhos de Coré (menos o Salmo 43);
Os Salmos 51 até 65 são de Davi;
Os Salmos 68 até 70 são igualmente de Davi;
Os Salmos 72 até 83 são de Asaf;
Os Salmos 84 até 88 são dos filhos de Coré (o Salmo 86 é de Davi);
Os Salmos 105 até 107 começam com Aleluia;
Os Salmos 111 até 118 começam com Aleluia (menos o Salmo 115);
Os Salmos 120 até 134 são indicados como Cânticos das Subidas;
Os Salmos 135 e 136 começam novamente com Aleluia;
Os Salmos 146 até 150 também começam com Aleluia.
Esse quadro mostra que, antes da existência do livro dos Salmos, já havia coleções
de Salmos para as várias ocasiões de reza e de celebração. Por exemplo, havia a
coleção de Cânticos das Subidas, cujos Salmos eram cantados quando o povo, em
romaria, subia até Jerusalém. A coleção de Salmos chamados Aleluia era usada para
celebrações e festas de louvor. Havia as coleções dos Salmos ligados aos autores:
Davi, Coré, Asaf e outros. Até hoje, é em torno destes mesmos critérios que se fazem
as coleções dentro dos nossos livros de canto: para as partes da missa, para a
animação dos encontros, para romarias, para a devoção aos santos etc.
16
6. Canto repetido, canto modificado
Às vezes, um canto do Sul do Brasil reaparece no Nordeste com outra letra e outra
melodia. Parece até um canto diferente. Quando o povo gosta de um canto e com ele
se identifica, ele vai cantando-o e adaptando-o, modificando a letra e a melodia. O
mesmo canto, modificado ou não, aparece em várias coleções. O mesmo acontecia
com os Salmos. Foram surgindo várias coleções: Salmos para as romarias, para as
grandes festas, para as reuniões na sinagoga; Salmos do mesmo autor etc. Os mesmos
Salmos apareciam em várias coleções. Na edição final do livro dos Salmos, essas
coleções foram remanejadas e reunidas numa unidade maior.
Isso explica as repetições que existem dentro do livro dos Salmos. Por exemplo, o
Salmo 14 é igual ao Salmo 53. O Salmo 70 é quase igual aos versículos 14 a 18 do
Salmo 40. A primeira metade do Salmo 108 (Sl 108,2-6) está repetida nos versículos
8-12 do Salmo 57. A segunda metade do Salmo 108 (Sl 108,7-14) está repetida nos
versículos 7-14 do Salmo 60. Se o livro dos Salmos fosse uma única coleção de um
único autor, não haveria tais repetições. É que, por ocasião da redação final do livro
dos Salmos, várias coleções já existentes foram reunidas. O salmo repetido vinha de
outra coleção.
17
7. Davi, o autor dos Salmos
A Bíblia Hebraica atribui 73 Salmos a Davi, 12 a Asaf, 11 aos filhos de Coré, dois
a Salomão, e um a Moisés, a Ernã e a Etã, respectivamente. Os outros Salmos são
anônimos. Na tradução grega do século III a.C., chamada Septuaginta ou Setenta, há
82 Salmos de Davi, isto é, nove a mais do que no original hebraico. E no tempo de
Jesus, era comum atribuir todos os Salmos a Davi (cf. Lc 20,42). Como se explica
essa vontade de querer atribuir um número cada vez maior de Salmos a Davi? Qual o
sentido de dizer que os Salmos são de Davi?
Depois do exílio, a partir do século V a.C., o rei Davi tornou-se a expressão
preferida da esperança do povo. O Messias seria como um novo rei Davi para
restabelecer o direito pisado dos pobres (cf. Sl 72,1-3; 78,70; 89,4.21; 132,1.10.17).
Para o povo daquela época, Davi era o que os santos são para nós: um ideal a ser
imitado. O livro das Crônicas, que é da época pós-exílica, não fala dos pecados de
Davi e o apresenta como um homem santo. Davi era o herói que encarnava o ideal do
povo. É daí que nascia a vontade de identificação com Davi. Eles queriam ter em si
os mesmos sentimentos que animaram a Davi. Queriam “rezar como Davi rezou,
cantar como Davi cantou”. Por isso, para eles era muito importante poder dizer que
um salmo era de Davi. Isso ajudava o povo a entender e a viver melhor a sua missão.
É por isso que, na tradução grega, vários Salmos deixaram de ser anônimos e são
atribuídos a Davi. Para nós cristãos, o ideal é “rezar como Jesus rezou, cantar como
Jesus cantou”.
18
8. Os cinco livros dos Salmos: a Lei orante do povo de Deus
Hoje em dia, nossos livros de canto organizam os cânticos dentro de certa ordem.
A maneira de organizá-los depende do objetivo do editor: cânticos para a missa, para
os tempos do ano litúrgico, para reuniões e assembleias, para romarias etc. O editor
da redação final do livro dos Salmos teve uma ideia genial para organizar em cinco
partes os 150 Salmos que ele conseguiu reunir.
No fim dos Salmos 41, 72, 89 e 106, ele colocou o seguinte refrão de louvor:
“Bendito seja o Senhor, o Deus de Israel, desde agora e para sempre! Amém!
Amém!” (veja: Sl 41,14; 72,18-19; 89,53 e 106,48). Com esses quatro refrãos de
louvor, ele dividiu os 150 Salmos em cinco unidades menores: a primeira de 1 até 41;
a segunda de 42 até 72; a terceira de 73 até 89; a quarta de 90 até 106; e a quinta de
107 até 150. O editor do livro dos Salmos imitou o Pentateuco, o livro da Lei de
Deus, que também tem cinco partes, cinco livros. Desse modo, ele apresentou o livro
dos Salmos como o Pentateuco orante do povo de Deus, ou como o lado orante da
Lei de Deus.
19
9. Enumeração confusa dos Salmos
Quando, nas reuniões, se pede: “Vamos rezar o Salmo 50”, tem gente que abre a
Bíblia no Salmo 49, outros no Salmo 50, outros ainda no Salmo 51. Essa confusão
não é de hoje. Ela começou, muito provavelmente, quando, em torno do ano 250 a.C.,
lá no Egito, foi feita a tradução grega da Bíblia, chamada Setenta ou Septuaginta.
Quando o tradutor chegou ao Salmo 10, ele pensou que fosse a continuação do Salmo
9, e traduziu os dois como se fossem um único salmo. Por isso, o salmo seguinte que,
na Bíblia Hebraica, tinha o número11, passou a ser Salmo 10 na tradução grega. Isso
explica a diferença dos números que existe entre a Bíblia Hebraica e a sua tradução
grega.
Quando, depois da descida do Espírito Santo no dia de Pentecostes, os apóstolos
saíram pelo mundo afora para levar a todos os povos a Boa-nova de Deus, eles
levaram consigo a tradução grega da Bíblia, pois esta era a língua do povo daquela
época. No século IV, o Papa Dâmaso pediu a Jerônimo que traduzisse a Bíblia para o
latim, que era então a língua mais comum do Império Romano. O Papa queria uma
tradução popular que fosse fiel ao original e que o povo pudesse entender. Essa
tradução latina se chama Vulgata, isto é, Popular (vulgus = povo). Na sua tradução,
Jerônimo seguiu a ordem dos livros da Septuaginta, isto é, da tradução grega.
Por isso, a Igreja Católica segue a enumeração da tradução grega, que foi mantida
na tradução latina de Jerônimo e que, até hoje, continua sendo a enumeração dos
Salmos no breviário do clero e nas traduções em outras línguas. No século XVI,
época da reforma, Martinho Lutero voltou à enumeração original da Bíblia Hebraica.
Por isso, a Bíblia dos Protestantes segue a enumeração da Bíblia Hebraica. Hoje em
dia, na Igreja Católica, muitas traduções estão retomando a enumeração antiga da
Bíblia Hebraica. Para facilitar e evitar a confusão, quase todas as Bíblias colocam o
número da Bíblia Hebraica entre parêntesis. Por exemplo: Salmo 50(51). Outros
fazem o contrário e colocam o grego entre parêntesis. Por exemplo: Salmo 51(50).
Tanto faz. Deus queira que um dia termine essa confusão e que todos adotem a
enumeração da Bíblia Hebraica. Neste livro, usamos a enumeração da Bíblia
Hebraica.
Eis o esquema das diferenças na enumeração dos Salmos:
Bíblia Hebraica Tradução grega
1-8 1-8
9-10 9
11-113 10-112
114-115 113
116 114-115
117-146 116-145
147 146-147
148-150 148-150
20
10. O conteúdo final do livro dos Salmos
O título original hebraico do livro dos Salmos é Sefer Tehilim, isto é, livro dos
Hinos (Louvores). Mas, dentro do livro dos Hinos, é só um único salmo que é
apresentado explicitamente como Hino (Louvor) ou Tehilah (Sl 145,1). Na tradução
grega, o título é Biblos Psalmoon, isto é, livro dos Salmos. Contudo, dentro do livro
dos Salmos, só 57 dos 150 Salmos são apresentados explicitamente como psalmos.
Originalmente, a palavra psalmos ou salmo indicava um tipo de canto que devia ser
acompanhado com um instrumento de cordas chamado psaltérion. Daí vem o nome
salmo ou psalmos. Os outros Salmos são apresentados como oração (Sl 86,1), poema
(Sl 89,1), súplica (Sl 90,1), aleluia (Sl 107,1), salmo-cântico (Sl 83,1), ou como hino
(louvor) (Sl 145,1) etc. Essa diversidade mostra como é difícil identificar, sob um
único nome ou título, todo o conteúdo do livro dos Salmos: hino, salmo, cântico,
oração, poema, lamento, súplica! Tem de tudo! É difícil classificar a vida debaixo de
um denominador comum. Graças a Deus!
Uma vez pronto, o livro dos Salmos começou a exercer uma função muito
importante na vida das comunidades do povo de Deus:
* Conservava a memória, pois lembrava os fatos importantes da história do povo;
* Educava o povo, pois trazia os grandes apelos dos profetas e dos sábios;
* Reforçava a identidade do povo como povo de Deus;
* Cobrava dele o compromisso de fidelidade à aliança;
* Ajudava o povo a manter a fé, a esperança e o amor;
* Possibilitava ao povo o contato direto com Deus;
* Animava a caminhada, comunicando alegria: quem canta seus males espanta;
* Criava nas pessoas sentimento de pertença ao povo de Deus;
* Intensificava o desejo de anunciar aos outros a Boa-nova de Deus.
Numa palavra, o livro dos Salmos era e continua sendo a Lei orante do povo de
Deus.
21
H
CAPÍTULO 3
O JEITO DE O POVO DA BÍBLIA REZAR OS SEUS
SALMOS
oje existem várias maneiras de rezar os Salmos. Por exemplo, o Salmo “O
Senhor é meu Pastor” (Sl 23) tem várias melodias e várias letras. Para cantá-lo,
usamos vários instrumentos. Às vezes, é rezado por uma única pessoa, enquanto os
outros escutam; outras vezes, é rezado alternadamente, em coro. Às vezes, depois da
recitação do salmo, fica-se um momento em silêncio para ruminar a palavra ouvida e,
em seguida, cada um repete o versículo que mais chamou a sua atenção.
Essas e outras maneiras são os meios que nós usamos hoje para poder assimilar o
sentido do salmo e rezá-lo como expressão dos nossos próprios sentimentos. O ideal é
este: recriar o salmo de tal modo como se fosse nosso salmo, expressão da nossa fé.
E aí vem a pergunta: Como é que o povo do tempo da Bíblia rezava os Salmos?
Como fazia para assimilá-los na vida? O que podemos aprender deles neste ponto? O
próprio livro dos Salmos oferece respostas bonitas com boas sugestões para nós.
22
1. Instruções para o povo
Muitos Salmos, nem todos, têm um pequeno título que funcionava como chave de
leitura. Esses títulos informam sobre a origem, o autor, o tipo e o uso do salmo. São
títulos muito antigos, mas nem sempre são claros para nós. Eles dão uma ideia de
como os Salmos eram rezados naquele tempo.
Eis como exemplo o título do Salmo 57, que diz: “Do mestre do canto. Não
destruas. De Davi. À meia voz. Quando fugia de Saul na caverna” (Sl 57,1):
* Do mestre do canto. Sinal de que eles tinham um responsável que puxava o
canto durante as celebrações. Provavelmente, havia um grupo de cantores que
formava um coral para animar o culto (cf. 1Cr 15,16; 9,33; 2Cr 23,13).
* Não destruas. Era o título de uma música popular conhecida de todos. Esse
Salmo 57 devia ser cantado com a melodia da música “Não destruas”. Hoje
fazemos a mesma coisa. A pessoa faz letra para ser cantada conforme a melodia
de certos cantos populares bem conhecidos, e o dirigente do canto avisa: “Gente,
este cântico deve ser cantado com a melodia de Luar do Sertão”. Todo mundo
conhece. Naquele tempo, ninguém tinha livro na mão. Aprendiam o canto de
memória. Hoje, basta dizer: “Vamos cantar o canto número 57, na página 82”.
Todo mundo encontra o canto.
* De Davi. Atribuir o salmo a Davi ajudava o povo a “rezar como Davi rezou, a
cantar como Davi cantou”. Tornava mais concreta a reza do salmo, pois facilitava
a identificação das pessoas com o rei Davi.
* À meia voz. Indicava que se tratava de um salmo mais meditativo, pois havia
outros Salmos em que o povo era convidado a cantar bem alto “com gritos de
alegria” (Sl 47,2). Nem sempre as celebrações eram silenciosas. Pelo contrário!
Havia “gritos de alegria e de louvor, no barulho da festa” (cf. Sl 42,5).
* Quando fugia de Saul na caverna. Evoca um fato conhecido da vida de Davi (cf.
1Sm 24,1-8), que indicava ao povo quando e por que Davi tinha feito este salmo.
Isso os ajudava a ligar o salmo com a vida, e favorecia a identificação da pessoa
com Davi.
23
2. Instrumentos musicais
Ao que parece, as celebrações eram bem animadas, acompanhadas com muitos
instrumentos musicais. O Salmo 150 enumera vários: trombeta, cítara, harpa, tambor,
instrumento de corda, flauta, címbalo (Sl 150,3-4; cf. Sl 81,3-4). Em outros Salmos
aparecem outros instrumentos como a lira (harpa) de dez cordas (Sl 33,2), o oboé (Sl
46,1).
Havia Salmos que deviam ser acompanhados com um determinado instrumento
musical. Por exemplo, o Salmo 54 foi feito para ser acompanhado com instrumento
de corda (Sl 54,1). O Salmo 46, com oboé (Sl 46,1). O Salmo 33 convida o povo a
tocar os instrumentos e fazer uma grande louvação (Sl 33,2-3). Eles gostavam de
música, de canto e de festa! Eis como o livro do Eclesiástico descreve o final de uma
cerimônia festiva, presidida pelo Sumo Sacerdote Simão:
“Os cantores entoavam cantos de louvor, e o seu canto era acompanhado por
música melodiosa. O povo suplicava ao Senhor Altíssimo, dirigindo orações ao
Misericordioso, até que terminasse o culto do Senhor e acabasse a cerimônia.
Nessa hora, Simão descia do altar e estendia as mãos sobre toda a assembleia de
Israel, para dar a bênção do Senhor em alta voz e ter a honra de pronunciar o seu
nome. Então o povo se prostrava de novo, para receber a bênçãodo Altíssimo”
(Eclo 50,18-21).
24
3. Participação do povo
Hoje em dia, quando se reza um salmo, todo mundo tem o texto na mão, o que
facilita a participação. Naquela época, não havia texto na mão do povo. Cantava-se de
memória e o povo participava de muitas maneiras. Às vezes, alguém puxava o canto e
o povo respondia em forma de ladainha, dizendo sem parar: “Eterno é seu amor,
eterno é seu amor, eterno é seu amor, eterno...” (Sl 136). Outras vezes, o cantor que
puxava o canto mandava o povo confirmar a prece com a aclamação “Amém!
Amém!” (Sl 106,48). Ou provocava os vários grupos presentes na celebração: “A
Casa de Israel repita: Eterno é seu amor! Agora a Casa de Aarão repita: Eterno é seu
amor! Agora todo mundo que teme o Senhor repita: Eterno é seu amor!” (Sl 118,2-
4).
Em outros Salmos, o povo participava por meio do canto de um refrão que voltava
no começo, no meio e no fim (Sl 80,4.8.20). Outras vezes, participava dançando (Sl
150,4), acompanhando a procissão (Sl 42,5; 24,6-10), fazendo romaria (Sl 122,1-2),
tocando seus instrumentos (Sl 33,2-3). As festas eram alegres e barulhentas (Sl 81,3-
4; Sl 42,5).
Para facilitar a memorização dos Salmos para o povo, havia os assim chamados
Salmos alfabéticos. A primeira letra do primeiro versículo do salmo era a letra A. A
primeira letra do segundo versículo era B. A primeira letra do terceiro versículo era
C, e assim por diante, até a última letra do alfabeto. Por isso eram chamados
alfabéticos. Facilitava a reza de memória. Veja, por exemplo, os Salmos 25; 34; 37;
111; 112; 145.
25
4. Expressão corporal
Corpo e alma formam uma unidade. O corpo acompanha o movimento da mente e
dele procura ser uma expressão e uma ajuda. A expressão corporal faz parte da prece
e lhe dá mais vida. A Bíblia tem muitas informações sobre as várias formas de
expressão corporal que acompanhavam a recitação dos Salmos e a prece em geral:
prostração, genuflexão, inclinação (Sl 95,6; 22,30); levantar as mãos para o alto (Sl
63,5), bater palmas (Sl 47,1), soltar gritos de alegria (Sl 47,1). O profeta Elias, na
hora da reza no monte Carmelo, colocava a cabeça entre os joelhos (1Rs 18,42).
Imitou a atitude de total dependência, igual à do nenê durante os nove meses na
barriga da mãe.
Depois do exílio, quando uma grande parte dos judeus tinha migrado e vivia fora
da Palestina, no Egito e nos outros países ao redor do mar Mediterrâneo, eles criaram
o costume de orientar o corpo. Isto é, durante a oração, eles se voltavam na direção
do “teu santuário” (Sl 138,2), o Templo de Jerusalém que ficava no Oriente.
Rezavam orientados. Faziam isso três vezes ao dia, no momento exato em que, lá no
Templo, se oferecia o sacrifício, de manhã, ao meio-dia e no fim da tarde. Assim,
unidos entre si no mundo inteiro, faziam subir suas preces até Deus junto com a
fumaça dos sacrifícios do Templo de Jerusalém. Até hoje, os muçulmanos rezam
orientando o corpo na direção de Meca, o santuário central da sua religião.
26
5. Espelho para todo sofredor
Como vimos anteriormente, é difícil saber exatamente em que época, em que lugar
e a partir de que fato a maioria dos Salmos foi escrita. Ou seja, não é fácil atingir o
contexto histórico exato da origem dos Salmos. De certo modo, isso era proposital!
Era para permitir que os Salmos pudessem ser rezados em todo tempo e em todo
lugar, sobretudo os Salmos de lamento. Até hoje, num lamento, o poeta costuma
expressar sua dor de tal maneira que a prece possa ser assumida e rezada também por
outras pessoas sofredoras. Por isso, ele não particulariza demais nos detalhes
pessoais, pois isso dificultaria ao outro identificar-se com o lamento. Nem generaliza
demais, pois isso separaria o salmo da vida e ele já não seria espelho para ninguém.
Numa palavra, os Salmos são, ao mesmo tempo, universais e pessoais. Nisso está a
sua arte. Por isso eles são espelho para todo sofredor. Apesar das dificuldades de
linguagem, de cultura, de interpretação, apesar da distância no tempo e no espaço,
muitos séculos e milhares de quilômetros, até hoje, o povo se encontra consigo
mesmo e com Deus dentro dos Salmos. Os Salmos são a sua casa. Nossa casa!
O estudo do contexto histórico da origem do salmo ajuda muito para que, na
oração, o salmo se torne espelho para todo sofredor. Porém, não basta. Para uma boa
reza dos Salmos, é importante lembrar o seguinte: o sentido dos Salmos se concretiza
não só a partir do contexto da pessoa que fez o salmo no passado, mas também, e
sobretudo, a partir do contexto da pessoa que hoje reza o salmo. Por exemplo, o
Salmo 72 diz: “O Senhor liberta o indigente que clama, e o pobre que não tem
protetor” (Sl 72,12). Ao rezar esse salmo, devo pensar não só no indigente e no pobre
do século IV antes de Cristo, mas também, e sobretudo, nos indigentes e nos pobres
de hoje, aqui no Brasil, que eu conheço e dos quais nem sempre me lembro na minha
prece.
27
6. Um retrato da vida de todos
As imagens ou comparações, usadas nos Salmos para expressar a atitude orante do
povo diante de Deus, eram as mesmas que o povo usava para expressar as coisas mais
comuns da sua vida e da convivência diária: criança dormindo no colo da mãe (Sl
131,2), a família em casa ao redor da mesa (Sl 128,3), uma roda alegre de gente
amiga que grita e canta com violão e pandeiro (Sl 33,1-3; 81,3-4), o luar do sertão (Sl
8,4), saudades da terra (Sl 42,5) etc.
Todas as situações da vida estão presentes nos Salmos: alegria, tristeza, solidão,
abandono, perseguição, exploração, repressão, política, governo, vingança, opressão,
desespero, ódio, esperança, doença, morte, amor, casamento, educação, juventude,
velhice, calor, frio, luta, festa... tudo! Os Salmos não distanciavam as pessoas da vida.
Pelo contrário. Traziam a vida para dentro da prece, e levavam a prece para dentro da
vida. Tudo aquilo que dá para rir e para chorar era usado no diálogo com Deus. Os
Salmos têm a variedade da própria vida. Veja mais adiante uma longa lista de
situações da vida refletidas nos Salmos (capítulo 11, item 5).
28
7. Ambiente organizado da comunidade
O povo que hoje participa nas comunidades conhece muitos cânticos de memória:
“O Povo de Deus no deserto andava”, “Da cepa brotou a rama”, “Queremos Deus”,
“Eu confio em Nosso Senhor”, “A Ti, meu Deus”, “Me chamaste”, “Minha vida tem
sentido” etc. Outro dia perguntaram:
– Dona Maria, quando foi que a senhora aprendeu “Queremos Deus”?. Ela
respondeu:
– Sei não, senhor, mas a gente sabe!
Nas nossas famílias e comunidades existe um ambiente organizado de vida que
transmite as coisas sem que a gente se dê conta. Assim, aprendemos o Pai-nosso, a
Ave-Maria e tantos outros cânticos e orações. Da mesma maneira, no tempo de Jesus,
havia um ambiente de vida, sustentado e mantido pela organização comunitária do
povo em torno da sinagoga, e pelos costumes familiares. Nesse ambiente, o povo
aprendia os Salmos de memória. Era como a respiração da vida da comunidade.
Os Evangelhos ainda deixam transparecer alguns traços desse ambiente de oração
da vida comunitária do tempo de Jesus, em que os Salmos aparecem como parte
integrante da vida do povo. Por exemplo, no domingo de Ramos, o povo gritou,
espontaneamente, a frase de um salmo para aclamar Jesus: “Bendito aquele que vem
em nome do Senhor” (Mc 21,9 e Sl 118,26). O cântico de Maria evoca cinco Salmos
diferentes (Lc 1,46-55). Depois da Ceia Pascal, Jesus e os apóstolos saíram da sala e
foram para o Horto das Oliveiras rezando Salmos (Mt 26,30). Três ou quatro das oito
bem-aventuranças que Jesus proclamou para o povo são frases tiradas dos Salmos
(Mt 5,3-10). “Felizes os mansos, porque herdarão a terra” (Mt 5,4; Sl 37,11). “Felizes
os que choram, porque serão consolados” (Mt 5,5; Sl 126,5). “Felizes os puros de
coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8; Sl 24,3-4).
Esses e outros fatos mostram que os Salmos permeavam a vida do povo como o
cimento permeia os tijolos e dá consistência à parede. Os Salmos davam consistência
e expressão à piedade e à fé do povo. Eram ensinados e divulgados através daoração
em família nas casas, através das reuniões da comunidade na sinagoga, e também por
meio das romarias, procissões e celebrações no Templo.
29
O
CAPÍTULO 4
SALMO 1 E SALMO 150: OBSERVÂNCIA E
GRATUIDADE
livro dos Salmos é como uma grande rede, onde o povo deita e descansa da
caminhada, se refaz dos estragos e da dor, e acumula novas forças para retomar a
luta. Essa rede está pendurada em dois ganchos bem fortes, o Salmo 1 e o Salmo 150,
que ficam nas duas pontas, o primeiro e o último. Esses dois Salmos descrevem o
ponto de partida e o ponto de chegada da oração. Revelam a tensão que existe entre
as duas motivações mais profundas que nos levam a rezar. O Salmo 1 fala da
meditação e da observância da Lei do Senhor e da luta pela justiça. O Salmo 150 fala
do louvor e da festa total. Luta e festa! Observância e gratuidade! Os dois polos da
oração.
30
Salmo 1: observância e luta
1 Feliz o homem
que não vai ao conselho dos injustos,
não para no caminho dos pecadores,
nem se assenta na roda dos zombadores.
2 Pelo contrário:
seu prazer está na lei de YHWH,
e medita sua lei, dia e noite.
3 Ele é como árvore plantada junto d’água corrente:
dá fruto no tempo devido, e suas folhas nunca murcham.
4 Não são assim os injustos! Não são assim!
Pelo contrário: são como palha que o vento arrebata.
5 Por isso os injustos não ficarão de pé no Julgamento,
nem os pecadores na assembleia dos justos.
6 Porque YHWH conhece o caminho dos justos,
enquanto o caminho dos injustos perece.
“Feliz!” é a primeira palavra do livro dos Salmos: “Feliz o homem que não anda
no conselho dos ímpios” (Sl 1,1). Logo no início do Saltério, o Salmo 1 indica como
ponto de partida da oração o desejo da felicidade. Indica o objetivo da oração: ajudar
a pessoa a alcançar a felicidade. Indica o caminho que nos pode levar à felicidade. É
o Salmo dos “Dois Caminhos”. Quem quiser levar uma vida feliz deve fazer uma
opção inicial bem clara entre o caminho dos justos e o caminho dos pecadores (Sl
1,6); deve decidir-se firmemente a viver conforme as exigências da Lei do Senhor (Sl
1,2). E o meio a ser usado para alcançar esse objetivo é a prece: “Meditar dia e noite
na Lei do Senhor” e encontrar nela o seu prazer, a sua felicidade (Sl 1,2). A oração
está intimamente ligada à luta entre o bem e o mal. Ela é vista como um meio
importante para a pessoa poder romper com o caminho da injustiça e manter-se no
caminho da justiça e da Lei do Senhor (Sl 1,1-2). O objetivo da oração é produzir
bons frutos no tempo certo, igual a uma árvore frondosa, sempre verde, plantada à
beira das águas correntes (Sl 1,3).
Resumindo: na abertura do livro dos Salmos, no começo da caminhada do povo
com Deus, está a preocupação com a observância da lei, com a oração constante e
com a eficiência das nossas ações. Essa preocupação é um dos dois ganchos que
sustentam a rede dos Salmos. A influência desse gancho da observância da lei e da
prática da justiça percorre todo o livro até o outro gancho, até o Salmo 150.
Mas a oração não é só um meio para alcançar um fim. Ela é também o próprio fim
que se quer alcançar, amostra grátis da festa final. É disso que fala o Salmo 150.
31
Salmo 150: gratuidade e festa
1 Aleluia! Louvai a Deus no seu templo,
Louvai-o no seu poderoso firmamento!
2 Louvai a Deus por suas proezas;
Louvai-o por sua imensa grandeza!
3 Louvai a Deus tocando trombetas,
Louvai-o com cítara e harpa!
4 Louvai-o com dança e tambor,
Louvai-o com cordas e flauta!
5 Louvai-o com címbalos sonoros,
Louvai-o com címbalos vibrantes!
6 Todo ser que respira louva a YHWH! Aleluia!
O Salmo 150 descreve a felicidade finalmente alcançada após a longa caminhada
pelas estradas da vida. O Salmo 150, o último, apresenta, como num painel luminoso,
o ponto de chegada do caminho da oração. Aqui, no encerramento do livro dos
Salmos, a oração aparece como louvor e festa. “Aleluia! Louvai o Senhor!” (Sl
150,1.6). Com traços curtos e claros, o salmo indica os três lugares que motivam o
louvor: (1) O templo (Sl 150,1), o lugar onde a comunidade se reúne diante de Deus.
(2) O firmamento (Sl 150,1), a natureza onde Deus se revela como Criador do
Universo. (3) As proezas (Sl 150,2), a história, onde Deus se revela, como Libertador
e Salvador, nas maravilhas que operou pelo seu povo.
Templo, firmamento, proezas! Comunidade, natureza, história! As três são a
expressão da “imensa glória” de Deus (Sl 150,2). O Salmo 150 convida todos, sem
distinção, a participar do louvor: “Tudo que vive e respira louva o Senhor!” (Sl
150,6). Ele pede para usar todos os instrumentos (Sl 150,3-5). Todos têm que entrar
na dança (Sl 150,4). Nesse painel luminoso do último Salmo, a humanidade aparece
como um bloco animado, cantando e dançando num louvor eterno diante de Deus.
Resumindo: a história termina no louvor; a gratidão explode em canto: “Tudo que
vive e respira louva o Senhor!”. É a felicidade finalmente alcançada. Este é o outro
gancho em que está pendurada a rede dos Salmos. E, também aqui, a influência desse
gancho percorre todo o livro até o outro gancho, até o Salmo 1. É o gancho da festa,
da gratuidade, do puro bem querer, sem nenhum outro objetivo, a não ser este: estar
aí, diante de Deus, numa presença amiga e gratuita, feliz e alegre, para louvar e
agradecer. Aqui, a oração já não é meio, mas é o próprio ponto final: a festa.
Deitado nessa rede, o povo tem os pés do lado do Salmo 1; a cabeça e o coração
do lado do Salmo 150. Toda oração é, ao mesmo tempo, caminhada e chegada, meio
e fim, observância e gratuidade, pedido e louvor, conversão e gratidão, compromisso
e amizade, lei e graça, luta e festa, busca da felicidade e felicidade alcançada!
32
Os dois perigos que ameaçam a prece
Essas duas dimensões da prece também encerram em si os dois perigos que
ameaçam a prece, entortam a rede e fazem o povo cair no chão.
Um dos dois perigos é achar que basta o louvor (Salmo 150) e que a luta pela
justiça (Salmo 1) não contribui em nada para sustentar a caminhada do povo. É achar
que a graça de Deus faz tudo e que a nossa observância e luta não são necessárias
para a salvação; é achar que nós não podemos nem devemos fazer coisa alguma, pois
a salvação é um dom gratuito de Deus. Essa atitude provoca a passividade que deixa a
história à deriva, entregue à ideologia dominante, sem deixar lugar nem para Deus
nem para o povo.
O outro perigo é achar que o louvor e a celebração não contribuem para animar a
luta entre o bem e o mal; é achar que só a eficiência e o planejamento podem levar a
algum resultado de mudança e de transformação. Isso provoca o voluntarismo que
exclui a ação da graça, elimina a festa, se fecha nas próprias ideias e pode levar ao
fanatismo.
A tentação do intérprete é querer resolver o problema escolhendo uma afirmação e
negando a outra; ou reduzindo o sentido de uma frase ao tamanho do sentido da outra.
A Bíblia, porém, não racionaliza. Ela simplesmente explicita as contradições
existentes na vida, nos fatos e na história. Ela é a imagem do que acontece e existe na
história humana. Ela provoca e convida o leitor e a leitora a assumir a contradição e o
conflito como parte integrante da caminhada, e a permanecer na busca, sem
esmorecer, até chegar ao ponto onde as duas afirmações contrárias se encontram,
como dois galhos nascendo da mesma raiz.
O difícil mesmo é encontrar esta fonte comum, onde os dois córregos, da luta e da
festa, existem unidos, nascendo a cada instante, como irmãs gêmeas, brigando entre si
até hoje, mas como irmãs que se querem bem e que precisam uma da outra.
33
A
CAPÍTULO 5
A POESIA DOS SALMOS
oração dos Salmos situa-se mais do lado da poesia e da arte do que do lado da
lógica e da razão. Ainda que seja um assunto meio difícil e complicado, convém
ver de perto esse aspecto poético dos Salmos, pois ele ajuda muito a perceber o rumo
e o objetivo dos Salmos. A poesia dos Salmos é a linguagem humana colocada a
serviço da descoberta gratuita de Deus na vida.
34
Poesia: o lado de dentro das coisas
Poesia não é só uma questão derima e de ritmo. É muito mais do que isso. A
poesia tem outra porta de entrada, outro caminho de acesso aos segredos da vida.
Consegue ver e experimentar o outro lado dos fatos e da natureza, o lado de dentro,
onde a razão não penetra, a eficiência nada alcança, o planejamento se frustra. Onde a
vida encontra razões para viver que a própria razão desconhece. É o lado onde, no
segredo, a fonte gera a sua água, a flor solta o seu perfume, o passarinho recomeça o
seu canto. Onde o dia nasce, o mar se esconde, o sol descansa. Onde a criança é
adulto, e o adulto continua criança. Onde a dor é acolhida como irmã, e a alegria se
desprende da alma em pranto. Onde existe a escuridão luminosa, o silêncio sonoro, a
solidão partilhada. Onde se encontra a fonte sem fundo que reflete o rosto de quem
nela olha, e lhe faz descobrir o seu eu escondido em Deus.
Quando um artista tem uma inspiração, ele procura expressá-la numa obra de arte.
A poesia que daí resulta carrega dentro de si algo dessa inspiração. É por isso que as
obras de arte atraem e mexem tanto com as pessoas. O mesmo acontece quando
meditamos e rezamos os Salmos. A inspiração que conduziu os autores a comporem
os Salmos continua presente naquelas orações antigas. Através da meditação dos
Salmos, esta inspiração entra em ação e atua em nós comunicando a mesma
experiência de Deus, a mesma maneira de olhar a história, a mesma admiração diante
da natureza.
A poesia dos Salmos é uma faísca da plenitude de Deus, uma amostra da sua
presença no meio de nós. Ela é uma interpretação da fala de Deus. Nada melhor do
que a poesia dos Salmos para ser a expressão do nosso diálogo com Deus.
35
Alma e corpo da poesia
Na hora em que a prece sobe no coração e a inspiração nasce na mente, o salmista,
a poetisa, vai à procura de uma palavra para expressar o que está sentindo. O
casamento perfeito entre a inspiração e a forma literária é a expressão mais alta da
arte. É onde alma e corpo da poesia se unem e geram vida nova. Nem todos os
Salmos alcançam a perfeição poética. Mas todos eles, perfeitos ou não, expressam um
sentir, um sentimento, uma experiência de Deus na vida.
O sentido que o poeta quer expressar e transmitir através da sua poesia ou do seu
salmo não está só nas palavras e frases que ele escolhe e arruma com tanto cuidado,
mas também, sobretudo, no espaço invisível que ele cria entre as palavras e entre as
frases, nas entrelinhas. Arrumando as palavras e as frases dentro de determinada
ordem, o poeta cria entre elas uma tensão, um espaço, uma zona de silêncio, que
provoca o leitor. As palavras assim arrumadas tornam-se como que grávidas de um
novo sentido que, muitas vezes, não se encontra no dicionário.
Entre as frases e as palavras da poesia, do salmo, corre o fio invisível do sentido a
ser captado pelo leitor. O resultado da poesia não depende só do poeta. O poeta inicia
a obra, o leitor deve completá-la. As palavras e as frases do salmo são como um
binóculo que o poeta entrega ao leitor dizendo: “Aqui! Olhe você também para a
vida, para Deus! Você vai gostar!”. E pode até acontecer que o leitor ou a leitora,
olhando pelo salmo, consiga enxergar mais que o próprio poeta.
36
O jeito como a poesia dos Salmos arruma as palavras e as frases
Cada povo arruma as palavras da sua poesia de acordo com as possibilidades e as
exigências da sua cultura e da sua língua. A característica básica da poesia do povo
hebreu é esta: aproximar duas ou mais frases, dois ou mais pensamentos, completos
em si, cada um carregado de um sentido. São como dois polos, entre os quais se
estabelece uma tensão, uma relação; como dois fios, entre os quais salta a faísca
invisível do sentido. O critério usado pelos poetas hebreus para aproximar entre si as
palavras e as frases não é tanto (como na nossa poesia) a associação sonora, o ritmo
ou a rima, mas, sim, o conteúdo, o significado da frase; e isto ocorre de duas
maneiras: em forma de comparação e em forma de paralelismo.
* Em forma de comparação
A comparação é a maneira mais popular para expressar e transmitir um sentido. O
povo recorre à comparação quando quer explicar alguma coisa. A comparação
pertence mais à linguagem falada; ela é menos frequente na linguagem escrita dos
Salmos. Há duas maneiras de se fazer a comparação:
1. Comparar para igualar ou equiparar: “Como... assim...”. A frase menos
conhecida se esclarece a partir da mais conhecida. Alguns exemplos:
“Como vinagre nos dentes e fumaça nos olhos,
assim o preguiçoso para quem o envia” (Pr 10,26).
“Como o animal sedento à procura dos córregos,
assim estou eu à tua procura, Senhor!” (Sl 42,2).
2. Comparar para diferenciar e avaliar. “Melhor... do que...”. O poeta estabelece
uma escala de valores entre as duas frases, o que permite julgar e apreciar melhor
as coisas. Alguns exemplos:
“Melhor um dia na tua casa
do que mil passados em minha casa” (Sl 84,11).
“Mais vale o pouco do justo
do que as grandes riquezas do ímpio” (Sl 37,16).
* Em forma de paralelismo
O paralelismo aproxima ou justapõe duas frases em pé de igualdade e faz com que
uma interfira na descoberta do sentido da outra. O paralelismo é a forma poética
mais frequente nos Salmos. Ele se faz de três maneiras:
1. Uma frase completa o sentido da outra:
paralelismo sintético:
“O Senhor reconstrói Jerusalém,
reúne os exilados de Israel” (Sl 147,2).
“Levanta-te, ó Juiz da terra,
devolve o merecido aos soberbos” (Sl 94,2).
2. Uma frase diz o mesmo que a outra:
paralelismo sinônimo:
“Povo meu, escuta minha lei,
37
dá ouvido às palavras da minha boca” (Sl 78,1).
“O Senhor não rejeita seu povo,
jamais abandona a sua herança” (Sl 94,14).
3. Uma frase diz o contrário da outra:
paralelismo antitético:
“O ingênuo acredita em tudo que se diz,
o esperto discerne as coisas” (Pr 14,15).
“O Senhor conhece o caminho do justo,
o caminho dos ímpios se perde” (Sl 1,6).
“Os ricos passam necessidade e fome,
nada falta aos que procuram o Senhor” (Sl 34,11).
38
O desafio da poesia
Essa reflexão sobre o paralelismo e a poesia na Bíblia encerra uma lição. De um
lado, faz a gente ficar mais humilde; ajuda a relativizar nossas opiniões e a amenizar
nossos conflitos e nossas contradições. Faz perceber que “na casa do Pai há muitas
moradas” (Jo 14,2). Por outro lado, ajuda a perceber e a assumir com mais garra a
grande luta que atravessa a história. Ajuda, como diz o povo, a “dar um boi para não
entrar na briga, e uma boiada para não sair dela”. O mais importante na poesia dos
Salmos não são as normas literárias. O mais importante da janela não é a forma da
janela, mas, sim, o panorama que pode ser visto através dela.
A poesia é como uma seta na estrada, um estímulo, que coloca o leitor num
caminho de busca e de descoberta. Quer provocar nele a mesma experiência que o
poeta ou a poetisa teve. No momento em que conseguirmos encontrar dentro de nós
um reflexo da experiência do poeta, teremos atingido a fonte de onde o poeta bebeu;
teremos encontrado a luz que ilumina os Salmos pelo lado de dentro. Nesse
momento, começamos a “rezar como Davi rezou”, a “rezar como Jesus rezou”.
Aqui vale a pena lembrar as palavras do monge João Cassiano do século IV (360-
465 d.C.):
“Instruídos por aquilo que nós mesmos sentimos, já não percebemos o salmo
como algo que só ouvimos, mas sim como algo que experimentamos e tocamos
com nossas próprias mãos; não como uma história estranha e inaudita, mas como
algo que damos à luz desde o mais profundo do nosso coração, como se fossem
sentimentos que formam parte do nosso próprio ser” (Collationes X,11).
Esse é o ideal a ser alcançado na reza dos Salmos.
39
A
CAPÍTULO 6
A RAIZ DOS SALMOS
raiz dos Salmos é o clamor do povo, nascido de dupla fonte: da dor que faz gritar,
e da certeza de fé de que Deus ouve o clamor. Essa certeza da nossa fé encontra
sua garantia e expressão no nome com que Deus quer ser invocado: YHWH, Emanuel,
Deus conosco.
40
1. Deus ouve o nosso clamor
Desde o Êxodo, uma certeza acompanha o povo: “Deus ouve o nosso clamor” (Ex
2,23-24; 3,7-10). Essa certezapercorre os Salmos como a seiva percorre a árvore,
desde a ponta das raízes até a extremidade das folhas.
Mas Deus não atende a qualquer clamor, a qualquer grito. Os profetas de Baal
gritavam. O profeta Elias, debochando deles, até pediu que gritassem mais: “Gritem
mais! Ele é Deus! Talvez esteja conversando ou fazendo negócios, ou então viajando.
Quem sabe está dormindo, e aí ele acordará!” (1Rs 18,27). Gritaram mais, mas Deus
não atendeu! Um Deus que viaja, conversa ou faz negócios; que fica desatento e deve
ser acordado; um Deus assim não vale a pena. Nem existe! É um ídolo, uma fantasia,
criada pelo sistema do faraó e dos reis de Canaã para impedir qualquer tentativa de
rebelião ou de mudança da parte do povo oprimido. Um grito dirigido a esse Deus
não tem resposta, nem pode ter. É um falso Deus que “tem boca, mas não fala; tem
olhos, mas não vê; tem ouvidos, mas não ouve” (Sl 115,5-6). Nem pode atender.
Numa religião assim, aos pequenos só resta o grito, sem esperança de serem
atendidos.
O Deus da Bíblia é diferente. Ele atende ao grito calado do povo oprimido. A
novidade da Bíblia não está na dor que faz gritar, mas na fé de que Deus ouve o grito.
Ele ouve o clamor dos pequenos. Os Salmos são a expressão desse grito de fé:
Para Deus a minha voz: eu grito!
Para Deus a minha voz: ele me ouve! (Sl 77,2)
Segue aqui uma lista de frases tiradas dos Salmos, nas quais transparece a fé de
que Deus escuta o nosso clamor. Passando os olhos nessas preces, você perceberá
como a fé era vivida pelo povo, bem como ela era verbalizada em múltiplas formas
de oração. A lista pode parecer repetitiva e cansativa, mas ela é menos cansativa do
que o sofrimento que provocou esses gritos do povo. Por isso, leia devagar. Sinta o
clamor que se expressa nessas preces. Atrás de cada frase existe um ser humano
angustiado que grita, e uma situação dolorosa que faz gritar. A lista é apenas uma
pequena amostra dos muitos gritos que existem espalhados pelo livro dos Salmos.
Sl 3,5: Em alta voz eu grito a YHWH e ele me responde do seu monte
santo.
Sl 4,2: Quando te invoco, responde-me, ó Deus, meu defensor.
Sl 6,9: YHWH ouviu o meu soluço, ouviu o meu pedido, acolheu a minha
prece.
Sl 9,13: Ele (Deus) não se esquece jamais do clamor dos pobres.
Sl 17,1: Escuta, YHWH, a minha apelação, atende ao meu clamor, dá
ouvidos à minha súplica.
Sl 18,7: No meu aperto invoquei YHWH [...]. O meu grito chegou aos seus
ouvidos.
Sl 28,1-2: A ti, YHWH, eu clamo. [...] Que teu silêncio não me deixe como os
que descem à cova.
Sl 34,16: YHWH cuida sempre dos justos e ouve atentamente seus clamores.
41
Sl 55,18: De tarde, pela manhã e ao meio-dia, eu me queixo gemendo, e
Deus ouve o meu grito.
Sl 69,4: Esgotei-me de tanto gritar, minha garganta queima [...] esperando
por meu Deus.
Sl 77,2: A Deus levanto a minha voz, e grito! A Deus ergo a minha voz, e
ele me ouve.
Sl 99,6: Moisés, Aarão e Samuel clamavam a YHWH, e ele respondia.
Sl 107,6: Na sua aflição, clamaram a YHWH e ele os libertou de suas
angústias (vv.13.19.28).
Sl 116,1: Eu amo YHWH, porque ele ouve a minha voz suplicante.
Sl 130,1: Das profundezas eu clamo para ti, YHWH. Senhor, ouve o meu
grito!
Sl 138,3: Quando gritei, tu me ouviste, e aumentaste a força em minha
alma.
Sl 142,2: Gritando para YHWH, eu imploro! Gritando para YHWH, eu suplico.
Sl 143,6: Para ti estendo os meus braços, a minha vida é terra sedenta de ti.
Sl 145,19: Ele realiza o desejo dos que o temem, ouve o grito deles, e os
salva.
42
2. O Nome dele é YHWH
Na raiz dos Salmos está a nova experiência que a humanidade fez, através do povo
de Israel, de que Deus se colocou do lado dos oprimidos, ouviu os seus gritos,
libertou-os da opressão do Egito e lhes deu a garantia: “Estou contigo” (Ex 3,12).
Essa nova experiência de Deus está concretizada para sempre no nome YHWH, que
desmascarou, de vez, a falsidade do sistema dos reis, e deu aos pequenos a coragem
de enfrentar até o próprio faraó.
O Nome já existia. Em hebraico ele se escreve com estas quatro letras: hwhy
(YHWH). Nome muito antigo, de origem desconhecida. Não se sabe o seu sentido
exato, nem a sua pronúncia correta. Foi a experiência da libertação do Egito, vivida e
aprofundada ao longo dos séculos, que foi dando um sentido novo e sempre atual a
este nome antigo. O novo significado, que foi surgindo, nos é revelado no livro do
Êxodo em forma de dois diálogos entre Deus e Moisés. O primeiro diálogo, por
ocasião da vocação de Moisés, diante da sarça ardente (Ex 3,7-15). O outro diálogo,
por conta do encontro de Moisés com Deus no alto do monte Sinai (Ex 34,5-9).
1º diálogo:
YHWH é presença libertadora no meio do povo (Ex 3,7-15)
Trata-se de um texto denso, muito bem articulado, que transmite a maior das
revelações do Antigo Testamento: o NOME de Deus. Nesse Nome, Deus comunica o
que Ele quer significar para o seu povo, para todos nós, para cada um de nós.
Interpelado pelo grito do povo (cf. Ex 2,23-25), Deus chama Moisés e dá a ele a
missão de libertar o povo (Ex 3,7-15). Eis o texto do diálogo entre Deus e Moisés.
Leia devagar para captar todo o sentido do texto e adivinhar o mistério do Nome
YHWH:
7YHWH disse: “Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu
clamor por causa dos seus opressores; pois eu conheço as suas angústias. 8Por
isso, desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir daquela
terra a uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel, o lugar dos cananeus, dos
heteus, dos amorreus, dos ferezeus, dos heveus e dos jebuseus. 9Agora, o clamor
dos filhos de Israel chegou até mim, e também vejo a opressão com que os
egípcios os estão oprimindo.
10Vai, eu te envio ao faraó, para fazer sair do Egito o meu povo, os filhos de
Israel.” 11Então, disse Moisés a Deus: “Quem sou eu para ir ao faraó e fazer sair
do Egito os filhos de Israel?”.
12Deus disse: “Eu estou contigo; e este será o sinal de que eu te enviei: quando
fizeres o povo sair do Egito, vós servireis a Deus nesta montanha”.
13Moisés disse a Deus: “Quando eu for aos filhos de Israel e disser: ‘O Deus de
vossos pais me enviou até vós’; e me perguntarem: ‘Qual é o seu nome?’, que
direi?”.
14Disse Deus a Moisés: “Estou que estou”. Disse mais: “Assim dirás aos filhos de
Israel: ‘Estou me enviou até vós’”. 15Disse Deus ainda a Moisés: “Assim dirás aos
filhos de Israel: ‘YHWH, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac
43
e o Deus de Jacó me enviou até vós. Este é o meu nome para sempre, e esta será a
minha lembrança de geração em geração’” (Ex 3,7-15).
44
Um breve comentário
Ex 3,7-9: Interpelado pelo grito do povo (cf. Ex 2,23-25), Deus desce, vê a
opressão e resolve libertar o povo.
Ex 3,10-11: Por isso, chama Moisés: “Vai, eu te envio ao faraó, para fazer sair do
Egito o meu povo, os filhos de Israel”. Moisés fica com medo, esconde o medo atrás
da humildade e diz: “Quem sou eu para ir ao faraó e fazer sair do Egito os filhos de
Israel?”.
Ex 3,12: Na resposta, Deus não se refere ao pretexto da humildade, mas procura
desfazer o medo e diz: “Estou contigo!”. Esta promessa é a chave para captar o
significado do nome YHWH.
Ex 3,13: Moisés não consegue crer na promessa e esconde sua falta de fé atrás de
outro pretexto: “O povo vai perguntar: Qual o seu nome?”.
Ex 3,14-15a: Na resposta, Deus se dirige de novo à falta de fé de Moisés e repete,
literalmente, por duas vezes, a mesma promessa: “Estou que Estou”. É como se
dissesse: “Moisés, certissimamente estou com você! Disso você não pode duvidar”.
Em seguida, Deus repete de novo a mesma promessa: “Assim dirás: Estou me
mandou”. A expressão Estou é uma abreviação da afirmação Estou que Estou. No
fim, o texto passa da primeira pessoa (Estou) para a terceira pessoa do mesmo verbo e
diz: “Assim dirás: Está me mandou!”. Deus, falando de si mesmo, diz: Eu estou
contigo. Nós, falando de Deus, tiramos a conclusão e dizemos: Ele está conosco. Em
hebraico, a terceira pessoa singular do verbo estar se escreve YHWH, que são
exatamente as mesmas quatro letras do nomede Deus. Desse modo, o antigo nome
recebe aqui um novo significado. Ele é interpretado como sendo a afirmação
categórica e definitiva, da parte de Deus, de que Ele está sempre conosco: Estou
contigo! Certissimamente estou contigo!
Ex 3,15b: Só no fim do diálogo, Deus se refere à pergunta de Moisés sobre o nome
e diz: “Este é o meu Nome para sempre. Sob este Nome serei lembrado de geração
em geração”. Deus já não quer ter outro nome, a não ser YHWH, que significa: Estou
com você, Estou que Estou, Deus conosco! Até hoje, continuamos reafirmando essa
mesma certeza central da nossa fé. Na missa, o celebrante diz: “O Senhor esteja
convosco!”. O povo responde: “Ele está no meio de nós”. O nome YHWH é a certeza
definitiva da presença de Deus no meio de nós. É a expressão do solene compromisso
que Deus assumiu consigo mesmo de estar sempre conosco para nos libertar da “casa
da escravidão”.
Esse diálogo nos faz saber que o nome YHWH é a garantia total e absoluta da
presença de Deus no meio de nós. É essa certeza da fé que aflora na memória do povo
quando, nos Salmos, invoca a Deus sob o nome de YHWH.
No Antigo Testamento, este nome ocorre mais de seis mil vezes, sem falar dos
inúmeros nomes que terminam em -ias ou em -ia, que são abreviações do nome
YHWH. Por exemplo, Jeremias, Isaías, Zacarias, Malaquias, Josias etc. O nome YHWH
é o eixo da história. É o pavio da vela. Os fatos da história, registrados na Bíblia, são
a cera ao redor deste pavio. A luz desse Nome ilumina por dentro os fatos da história,
os fenômenos da natureza e a vida do povo.
45
2º diálogo:
YHWH é amor e fidelidade, compaixão e piedade (Ex 34,5-9)
O outro diálogo entre Deus e Moisés revela a bondade e a ternura de YHWH, sua
fidelidade e compaixão para conosco. Deus manda Moisés cortar duas tábuas de
pedra para escrever nelas os mandamentos da Lei. Moisés corta as tábuas e sobe a
montanha (Ex 34,1-4). Lá em cima acontece o diálogo:
5YHWH desceu na nuvem e ficou junto com Moisés, que invocou o nome de YHWH.
6YHWH passou diante de Moisés, proclamando: “YHWH, YHWH, Deus de compaixão
e piedade, lento para a cólera e cheio de amor e fidelidade. 7Ele conserva seu amor
por milhares de gerações, tolerando a falta, a transgressão e o pecado, mas não
deixa ninguém impune: castiga a falta dos pais nos filhos, netos e bisnetos”.
8Moisés caiu de joelhos por terra e adorou. 9Depois disse: “YHWH, se eu gozo do
teu favor, continua em nosso meio, mesmo que este povo seja cabeça dura. Perdoa
nossas faltas e pecados, e recebe-nos como tua herança” (Ex 34,5-9).
Esse diálogo é um dos textos mais bonitos que a memória do povo de Israel
conservou. O próprio Deus afirma que o nome YHWH significa compaixão e piedade,
amor e fidelidade. O seu amor alcança “milhares de gerações, tolerando a falta, a
transgressão e o pecado” (Ex 34,7). O castigo só alcança quatro gerações: pai, filho,
neto e bisneto. E mesmo para essas quatro gerações Moisés intercedeu junto a Deus e
pediu: “Perdoa nossas faltas e pecados, e recebe-nos como tua herança” (Ex 34,9).
Nós ficamos impressionados com o castigo até a quarta geração e esquecemos a
misericórdia até milhares de gerações. Não há proporção entre quatro gerações e
milhares de gerações. Além disso, esquecemos o perdão que Moisés pediu para essas
quatro gerações. Esquecemos Jesus que pediu a Pedro para perdoar setenta vezes sete
(Mt 18,22). Esquecemos que Jesus chegou a pedir perdão para o soldado que o estava
matando na cruz (Lc 23,34). Sim, milhares é bem mais que quatro. Jesus o
confirmou!
Resumindo: o nome YHWH é sinônimo de ternura, bondade, gratuidade, perdão,
misericórdia, amor fiel, piedade, compaixão, benevolência, presença amiga. É esta
ternura inacreditável e totalmente gratuita de Deus que aflora na memória do povo
quando, nos Salmos, invoca Deus sob o nome de YHWH.
Eis uma lista de alguns textos dos Salmos nos quais transparecem a ternura e o
amor de Deus. Saboreie essas preces e sinta o amor de Deus que neles se expressa.
Lendo os Salmos, você vai encontrar muitos outros textos e poderá completar a lista:
Sl 5,8: Por teu grande amor eu entro em tua casa.
Sl 6,5: Liberta-me. Salva-me por teu amor.
Sl 13,6: Quanto a mim, eu confio no teu amor.
Sl 25,6: Lembra-te da tua compaixão
e do teu amor que existem desde sempre.
Sl 25,10: As veredas de YHWH são todas amor e verdade.
Sl 31,20: YHWH, como é grande a tua bondade!
Tu a reservas para os que temem a ti.
46
Sl 33,5: O amor de YHWH enche a terra.
Sl 33,22: Esteja sobre nós o teu amor,
como está em ti a nossa esperança.
Sl 36,6: YHWH, o teu amor está no céu
e tua verdade chega às nuvens.
Sl 86,5: Tu és cheio de amor para todos que te invocam.
Sl 86,15: Deus de piedade e de compaixão,
lento para a cólera, cheio de amor.
Sl 103,17: O amor de YHWH existe desde sempre.
Sl 112,4: YHWH é piedade, compaixão e justiça.
Sl 136: “Eterno é o seu amor!”
(refrão repetido 26 vezes neste Salmo).
Sl 117: Eis o Salmo mais curto da Bíblia
que resume tudo nestes dois versículos:
Aleluia! Louvai a YHWH, nações todas,
glorificai-o, todos os povos!
Pois seu amor por nós é forte,
e sua verdade é para sempre! Aleluia!
47
3. A invocação do Nome de Deus
O nome é a pessoa! É a presença! Invocar esse nome de Deus é como pronunciar o
nome da pessoa amada. Dá para entender que o profeta Isaías chegou a dizer: “Sim,
YHWH, o teu nome e a lembrança de ti resumem todo o desejo da nossa alma” (Is 26,8).
Poder invocar esse Nome é a raiz da prece. Os Salmos são como 150 flores que
nasceram desta raiz plantada no coração do povo. Da vivência desse nome tão breve,
de apenas quatro letras, nasceram milhares de preces e Salmos em todas as direções,
em todas as formas e gêneros literários. O nome YHWH é a sua raiz.
Em hebraico, as quatro letras YHWH, associadas às letras do verbo YHWH, que
significa estar, revelam variedade das invocações encerradas neste Nome Divino:
YHWH Ele está conosco!
Grito de louvor, que professa e celebra a certeza da presença de
Deus!
YHWH Ele esteve conosco!
Grito de ação de graças, diante da experiência libertadora de
Deus.
YHWH Ele estará conosco!
Grito de esperança, na certeza de ser libertado.
YHWH Ele está ou não está conosco?
Grito de dúvida e de angústia da fé em crise.
YHWH Ele esteja conosco!
Grito de dor e de sofrimento, pedindo socorro,
certo de ser atendido.
YHWH Possamos estar contigo!
Grito de desejo de estar sempre com Deus.
YHWH Ele está no meio de nós, nós que estamos vivos aqui!
Grito de compromisso, nascido da vontade
de ser fiel.
Sete significados do mesmo Nome. Sete gritos nascidos de situações diferentes,
todos dirigidos ao mesmo Deus YHWH. Sete expressões do mesmo clamor, nascido da
dor e da fé, da esperança e do desejo de ser fiel.
Para evitar que este nome sagrado fosse pronunciado levianamente sem o devido
respeito, combinaram de pronunciar aquelas quatro letras YHWH não como Iahweh ou
Javé, mas como Adonai, que quer dizer Senhor. Por isso, algumas bíblias escrevem
Senhor, em vez de YHWH ou Javé.
Na Carta aos Filipenses, o apóstolo Paulo diz que Deus deu a Jesus “o Nome que
está acima de qualquer outro nome” e pede que “toda língua confesse que Jesus
Cristo é o Senhor” (Fl 2,9-11). Ou seja, Jesus, pela sua paixão, morte e ressurreição,
é a prova viva e definitiva de que Deus continua sendo YHWH, Emanuel (Mt 1,23),
Deus conosco, Adonai, Senhor. “Quem vê a mim vê o Pai” (Jo 14,9).
Esse NOME é invocado em todas as modalidades, com todos os instrumentos, sob
todas as formas literárias, misturado com todos os assuntos da vida. Só no livro dos
Salmos, ele é rezado e ruminado, invocado, cantado e gritado mais de 650 vezes, sem
48
falar das inúmeras vezes em que simplesmente se alude ao NOME sem pronunciá-lo
(cf. Sl 9,3; 23,3; 31,4; 44,6.9.21; 45,18; 48,11 etc.). Rezar os Salmos é penetrar no
mistério do Nome de Deus. É permitir que o mistério desse Nome nos envolva, nos
compenetre e nos santifique. Jesus manda rezar: “Santificado seja o teu Nome” (Mt
6,9). Maria rezava: “Seu Nome é santo” (Lc 1,49).
49
4. Celebraro Nome
Veja como o desejo de celebrar o Nome transparece no livro dos Salmos. Veja a
quantidade de sinônimos que eles inventaram para expressar o desejo de louvar o
Nome do Senhor e de verbalizar a convicção mais profunda da sua fé:
* Amar o nome (Sl 5,12);
* Cantar o nome (Sl 7,18);
* Tocar para o teu nome (Sl 9,3);
* Conhecer o nome (Sl 9,11);
* Invocar o nome (Sl 20,8);
* Guiar pelo nome (Sl 31,4);
* Exaltar o nome (Sl 34,4);
* Celebrar o nome (Sl 44,9);
* Comemorar o nome (Sl 45,18);
* Agradecer ao nome (Sl 54,8);
* Temer o nome (Sl 61,6);
* Jurar pelo nome (Sl 63,12);
* Buscar o nome (Sl 83,17);
* Bendizer o nome (Sl 86,9);
* Dar glória ao nome (Sl 86,12);
* Proclamar o nome (Sl 102,22);
* Lembrar-se do nome (Sl 119,55); e
* Abençoar o nome (Sl 129,8).
“Sim, YHWH, o teu nome e a lembrança de ti
resumem todo o desejo da nossa alma” (Is 26,8).
“Nosso auxílio está no nome YHWH,
que fez o céu e a terra” (Sl 124,8).
50
H
CAPÍTULO 7
PORTAS DE ENTRADA PARA O MUNDO DOS
SALMOS
á portas que os Salmos abrem para entrar no nosso mundo, e há portas que nós
abrimos para entrar no mundo dos Salmos. São portas que se encontram em
cada esquina da nossa vida, em cada página do livro dos Salmos. Portas de
movimento duplo: passando por elas, nós entramos no mundo dos Salmos, e os
Salmos entram dentro da nossa vida. Eis algumas dessas portas
1. A porta da memória do passado;
2. A porta da contemplação da natureza;
3. A porta da busca da face de Deus;
4. A porta da procura da felicidade;
5. A porta da observância da Lei de Deus;
6. A porta da certeza do pobre em ser atendido; e
7. A porta da oração a Deus na solidão da noite.
51
1. A porta da memória do passado
Na memória do seu passado, o povo encontrava muitos motivos para invocar a
Deus, pedir a sua ajuda, louvar o seu Nome e agradecer a sua bondade. Os Salmos
rezam e cantam os prodígios que Deus operou ao longo da história (Sl 150,2). A
história é muito mais do que só a enumeração de fatos que aconteceram no passado.
A história é a própria vida do povo. É a rocha firme debaixo dos seus pés. É a sua
“carteira de identidade”.
52
* A memória do passado, carteira de identidade
Quem perde a memória perde a sua identidade. Já não sabe mais quem é, nem de
onde veio, nem para onde vai. O passado não é um museu. Os dois, passado e
presente, se misturam na unidade da consciência que o povo tem de si mesmo e o
orientam na sua caminhada em direção ao futuro.
A história, o passado, a memória, são o próprio povo que, a cada momento, sem
parar, ininterruptamente, sai do passado, passa pelo presente e entra no futuro. A
história são as pessoas: Abraão e Sara, Isaque e Rebeca, Jacó com Lia e Raquel. É
Moisés, sua esposa e sua família. São os fatos: o êxodo, as pragas do Egito, a
travessia do mar Vermelho, os quarenta anos no deserto, o maná e as codornizes, a
conclusão da aliança, a entrada na Terra Prometida, o tempo dos juízes e dos reis, os
profetas e as profetisas, o cativeiro. São os levitas, as doze tribos, os clãs, as famílias,
os costumes, as festas, as romarias. São as muitas lutas e guerras com suas derrotas e
vitórias. É a vivência da aliança, o compromisso com a observância dos Dez
Mandamentos, entregues ao povo no monte Sinai por intermédio de Moisés. É
Jerusalém, o Templo, os centros de romarias, as celebrações, as orações. São as
reuniões semanais na sinagoga. É Davi como modelo de oração para os Salmos. São
também as tentações do dinheiro, do prazer e do poder, a escuridão angustiante do
cativeiro. São as infidelidades, os muitos pecados, a opressão, a tristeza, a perda de
identidade, as crises de fé, as traições, a saudade. São as lembranças dos bons tempos
passados com a família, com os amigos, nas comunidades. A história é o tapete da
vida que ficou para trás e que a memória enrola e leva consigo através do presente
para o futuro.
Essa história ou memória do povo é contada e cantada, em prosa e verso, de mil
maneiras, na Bíblia inteira, sobretudo nos Salmos, em todos os Salmos! Sim, em
todos os Salmos!
53
* Tirando lição da história
Alguns Salmos meditam o passado de maneira mais explícita. Eles refletem sobre
os fatos da história, sempre os mesmos fatos, mas cada salmo o faz de uma maneira
diferente. Isso mostra a grande variedade do olhar de fé com que o povo meditava
sobre o seu passado e dele tirava força, esperança e orientação para a sua caminhada.
Eis um exemplo de três Salmos:
Salmo 105: enumera os fatos da história para revelar a bondade e a ternura de
Deus.
vv. 1-6: Convida para louvar a Deus pelas maravilhas que Ele operou no
passado.
vv. 7-25: Descreve a história, desde a promessa a Abraão até a escravidão
no Egito.
vv. 26-38: Descreve a saída milagrosa do Egito e a travessia do mar
Vermelho.
vv. 39-44: Descreve a passagem pelo deserto até a posse da Terra Prometida.
v. 45: Deus fez tudo isto “para que observassem as suas leis”.
A palavra final do Salmo 105 aponta para o assunto do Salmo seguinte, pois
suscita a pergunta: “Será que eles observaram a lei?”. A resposta vem no Salmo 106.
Salmo 106: Enumera os mesmos fatos para provocar arrependimento e
conversão:
vv. 1-6: Convite ao louvor e à conversão, pois eles não observaram a lei.
vv. 7-39: Conta as infidelidades: o povo não observou a lei, apesar da
bondade de Deus.
vv. 40-43: Por isso, receberam o castigo merecido.
vv. 44-48: No fim, a misericórdia de Deus prevalece sobre o pecado e a
transgressão.
Com a observação final sobre a grandeza da misericórdia de Deus, o salmista
anima o povo e oferece a chave para o Salmo 107, que enumera os mesmos fatos em
quatro blocos para revelar o amor de Deus:
Salmo 107: Nos quatro blocos, Deus acolhe nosso clamor e provoca reação de
louvor:
vv. 1-3: Introdução: convite ao agradecimento por tantos atos de
libertação.
vv. 4-9: Primeiro bloco: no deserto, sem caminho: Deus mostrou o
caminho.
vv. 10-16: Segundo bloco: na escuridão, na prisão sem ajuda: Deus os
libertou.
vv. 17-22: Terceiro bloco: no erro, injustos, morrendo: Deus os curou.
vv. 23-32: Quarto bloco: na tempestade no mar, sem saída: Deus acalmou o
54
mar.
vv. 33-41: Faz um resumo dos critérios colhidos do passado para aprender a
ler a vida.
vv. 42-43: Conclusão: Quem é sábio “saiba discernir o amor de YHWH”.
Assim, através da oração desses e de tantos outros Salmos, o povo trazia o passado
para o presente. A reza dos Salmos o levava a abrir-se para Deus e sentir-se povo de
Deus, descendentes de Abraão e Sara.
55
2. A porta da contemplação da natureza
* A crise do cativeiro fechou todas as portas
No cativeiro, eles tinham perdido tudo: Templo, sacrifícios, oblações, terra, casas,
monarquia, rei, palácios, tudo. Tudo desapareceu como capim verde diante do calor
do sol. Tudo ficou seco, destruído. A fé tinha perdido seus apoios, a esperança estava
sem horizonte. A aliança parecia quebrada para sempre. Muita gente já andava
dizendo: “Deus rompeu conosco. Ele nos abandonou” (cf. Jr 33,23; Is 49,14; Ez
8,12). “Nossos ossos estão secos e nossa esperança se foi. Para nós, tudo acabou” (cf.
Ez 37,11). É trágico esse lamento que descreve o desânimo do povo no cativeiro:
“Fugiu a paz do meu espírito. Já não sei mais o que é ser feliz” (Lm 3,17).
A única coisa que tinha sobrado para eles era a memória das coisas que Deus tinha
feito no passado. Mas para muitos era uma saudosa memória de um passado que não
voltaria nunca mais. Muitos desacreditaram de tudo e chegaram a dizer: “Eu disse
comigo: acabou-se a minha força, a esperança que me vinha de YHWH” (Lm 3,18). É a
ausência total de esperança. A porta da memória do passado fechou! Parecia fechada
para sempre!
Qual a força que os fez levantar a cabeça e os levou a enfrentar e superar aquele
terrível desânimo? Foi a descoberta que os profetas fizeram através da contemplação
da natureza.
56
* A natureza como sinal da presença de Deus no meio do povo
Desde sempre, o povo sabia que a natureza tinha a ver com Deus, mas foi só a
partir do cativeiro da Babilônia que a presença de Deus, revelada na natureza,

Outros materiais